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1 CENTRO UNIVERSITÁRIO FAVENI DIVERSIDADE ÉTNICO RACIAL DE GÊNERO GUARULHOS – SP 2 SUMÁRIO 1 INTRODUÇÃO ..................................................................................... 4 2 RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS NO BRASIL ....................................... 5 2.1 Desigualdades sociais e raciais na educação brasileira ............... 5 2.2 Políticas e práticas de superação do racismo e desigualdade racial na educação brasileira ......................................................................................... 7 3 AÇÕES AFIRMATIVAS .................................................................... 10 4 INCLUSÃO ESCOLAR ...................................................................... 13 5 RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS E DIVERSIDADE NO AMBIENTE ESCOLAR............................................................................................................... 15 5.1 As faces do racismo: discriminação e segregação sociorracial .. 15 5.2 Contribuições culturais na construção histórica do Brasil: colonialismo e diversidade ................................................................................. 19 5.3 A escola e o combate ao racismo na promoção da igualdade .... 21 6 ETNIA E RAÇA .................................................................................. 23 6.1 Distinção entre etnia e raça......................................................... 23 6.2 Questões histórico-sociais dos conceitos de etnia e raça ........... 26 7 REPENSANDO O PRECONCEITO RACIAL ..................................... 29 8 RACISMO E FORMAÇÃO DAS IDENTIDADES ÉTNICAS ............... 31 8.1 Formação da identidade e da autoimagem ................................. 32 8.2 Identidade étnica: desafios dos grupos minoritários ................... 35 8.3 O posicionamento do professor frente ao racismo e à injúria racial....................................................................................................................39 9 DISCRIMINAÇÃO .............................................................................. 42 9.1 Sobre a origem da discriminação ................................................ 42 3 9.2 A relação entre discriminação, preconceito e violência ............... 46 9.3 Consequências da discriminação para a dignidade humana ...... 50 10 DESIGUALDADES ÉTNICO-RACIAIS ........................................... 53 10.1 Desigualdades simbólicas e estruturais à luz da sociologia brasileira..............................................................................................................53 10.2 O fator biológico e o fator social no conceito de raça ................. 56 11 CULTURAS AFRO-BRASILEIRA E INDÍGENA NA SOCIEDADE BRASILEIRA CONTEMPORÂNEA ....................................................................... 60 11.1 A colonização do Brasil: táticas de resistência cultural ............... 60 11.2 Os indígenas sob o olhar europeu: entre o bom e o mau selvagem.............................................................................................................61 11.3 Índios e negros na literatura brasileira ........................................ 64 11.4 Coragem, nobreza e solidariedade: a poesia indianista ............. 64 12 A ESCRAVIDÃO NO BRASIL: DENÚNCIAS E CRUELDADE ....... 66 13 POR UMA EDUCAÇÃO ANTIRRACISTA ...................................... 69 13.1 Racismo: identificar e combater .................................................. 70 14 DIVERSIDADE CULTURAL NO BRASIL ....................................... 73 14.1 Diversidade cultural .................................................................... 73 15 CULTURA, MONOCULTURA, POLICULTURA E MULTICULTURALISMO NO BRASIL ................................................................... 77 16 O ALARGAMENTO DAS DESIGUALDADES SOCIAIS NO BRASIL...................................................................................................................79 17 BIBLIOGRAFIA .............................................................................. 83 4 1 INTRODUÇÃO Prezado aluno! O Grupo Educacional FAVENI, esclarece que o material virtual é semelhante ao da sala de aula presencial. Em uma sala de aula, é raro – quase improvável - um aluno se levantar, interromper a exposição, dirigir-se ao professor e fazer uma pergunta, para que seja esclarecida uma dúvida sobre o tema tratado. O comum é que esse aluno faça a pergunta em voz alta para todos ouvirem e todos ouvirão a resposta. No espaço virtual, é a mesma coisa. Não hesite em perguntar, as perguntas poderão ser direcionadas ao protocolo de atendimento que serão respondidas em tempo hábil. Os cursos à distância exigem do aluno tempo e organização. No caso da nossa disciplina é preciso ter um horário destinado à leitura do texto base e à execução das avaliações propostas. A vantagem é que poderá reservar o dia da semana e a hora que lhe convier para isso. A organização é o quesito indispensável, porque há uma sequência a ser seguida e prazos definidos para as atividades. Bons estudos! 5 2 RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS NO BRASIL A inclusão escolar tem sido discutida e fomentada nas últimas décadas no Brasil, ao encontro do entendimento de que deve ser garantido a todos os grupos culturais o acesso a uma educação igualitária e de qualidade. Como o Brasil historicamente produziu muitas diferenças e distanciamentos entre alguns grupos étnicos, é necessário o estudo a respeito das relações étnico-raciais dentro e fora da escola. 2.1 Desigualdades sociais e raciais na educação brasileira Para estabelecer um histórico a respeito da produção de desigualdades no Brasil, devemos abordar os processos de colonização, uma vez que o país foi conquistado por Portugal, fazendo parte de todo um planejamento de expansão territorial de nações europeias no século XVI. Nessa época, predominava a ideia de levar a essas novas colônias um jeito de pensar e viver que se aliasse aos preceitos europeus, com a cultura dos povos conquistadores vista sempre como a de maior valor como o caminho correto e como a norma comportamental a ser seguida. Essa imposição dos padrões europeus, que chegou ao Brasil com os portugueses, é o primeiro ponto para entendermos como as desigualdades sociais e raciais, em um primeiro momento manifestadas contra os índios e negros escravizados da África, tiveram lastro para acontecer em nosso País. Os mecanismos coloniais estabeleceram uma relação entre cor e raça, a qual, além de classificar as populações, também servia para operar a “[...] inferiorização de grupos humanos não europeus, do ponto de vista da produção da divisão racial do trabalho, do salário, da produção cultural e dos conhecimentos” (OLIVEIRA; CANDAU, 2010, documento on-line). Ou seja, a colonização não ocorreu somente no território, na materialidade dos recursos e na exploração do trabalho do colonizado, mas também na colonização de saberes, impondo novas formas de pensar e, consequentemente, agir em sociedade. 6 Ao analisarmos a história dos negros no Brasil principalmente no período pós-escravatura, com a Lei Áurea, sancionada em 13 de maio de 1888 e as suas inúmeras dificuldades de inserção na vida social e laboral, Pesavento (1989, p. 83) comenta que “[...] os egressos da escravidão, como negros, agregavam a este quadro o estigma do qual eram portadores: eram visualizados ideologicamente como uma força de trabalho inadequada para o trabalho regular, avessos à nova ordem que se impunha”. A marca deixada pela escravidão nas populações negras somente foi minimizada, segundo a autora, na segunda metade do século XIX, período recente em termos históricos. Essa desigualdade, o racismo e a discriminação que se estendem aos que se distinguem dos padrõesestabelecidos são produzidos histórica e culturalmente, como resultado da assimetria de poder entre grupos identitários mais privilegiados e grupos identitários discriminados. A problemática que envolve os processos coloniais brasileiros, que evidencia a emergência de uma etnia mais poderosa e que possui uma visão monoculturalista sobre o mundo, tem impactos na área educacional. Como alguns grupos de origens étnicas distintas foram privilegiados em detrimento de outros, também nos aspectos que envolvem a educação, como, por exemplo, o acesso à escolas de maior qualidade, devem ser criados mecanismos que possam reparar essas discriminações históricas que prejudicaram alguns grupos bem específicos, como os negros e os índios. Banton (2000, p. 457) define o processo de racialização como o “[...] processo ou situação em que a ideia de raça é introduzida para definir e qualificar uma população específica, suas características e suas ações”. Dessa forma, as pessoas são convencidas de que certas características são intrínsecas de alguma raça ou etnia, o que se confirma por expressões como “ele é italiano, por isso é mão fechada”, “o alemão é melhor com planejamento” e “os índios são preguiçosos”. Essas frases são manifestações dessa racialização, que acaba marcando e estereotipando uma etnia e/ou raça a partir de aspectos relacionados a questões biológicas e fenotípicas (cor da pele, cabelo, formato do nariz, espessura dos lábios, tamanho do crânio, etc.). 7 Ao analisar essa estratificação social a partir de aspectos étnico-raciais nos sujeitos, podemos identificar uma pedagogia que: [...] educou o olhar deste sujeito branco que julga; ela educou seu modo de compreensão sobre a pertença racial. Ela o educou para pensar que ele, branco, não tem raça nem cor e, portanto, pode, do alto de seu estatuto de incolor, julgar quem são, afinal, os “de cor” (KAERCHER, 2010, p. 87). Ao estudarmos a história mundial e brasileira, observamos, por exemplo, como as práticas da eugenia considerada ciência propunham saberes que relacionavam as características físicas, raciais e fenotípicas do ser humano com as suas capacidades (ou falta delas) em relação a uma ideia de raça humana superior. As práticas eugênicas no Brasil se associaram às correntes higienistas e sanitaristas no início do século XX, a fim de buscar o aprimoramento de uma raça nacional, o que envolvia inclusive o branqueamento da população. Segundo Souza (2005, p. 6), “[...] os eugenistas entendiam que atitudes radicais como a esterilização, pena de morte, controle rigoroso da entrada de imigrantes, obrigatoriedade do exame pré-nupcial, proibição do casamento inter-racial e de portadores de doenças contagiosas” levariam a esse objetivo. A desigualdade social embora muito relacionada aos aspectos econômicos, que dividem a sociedade em classes, de acordo com as suas posses ou propriedades também atinge outros campos, como o de gênero, o religioso e as questões de orientação sexual diversas, que fazem parte daqueles que são diferentes do construído como normal e socialmente aceito. O fato é que esses grupos identitários diversos se encontram no interior da escola e fazem parte cotidiana dos afazeres de professores assim, as aulas devem ser desenvolvidas de forma harmônica, intercultural e igualitária, procurando mediar conflitos e propor reflexões aos alunos. 2.2 Políticas e práticas de superação do racismo e desigualdade racial na educação brasileira O País embora tenha, nas últimas décadas, promovido inúmeras discussões em torno da diversidade cultural e dos processos de hibridismo ou 8 mestiçagem das várias etnias que compõem a identidade nacional ainda apresenta traços de racismo que acabam por produzir situações de desigualdade na sociedade. Uma das principais conquistas das lutas do Movimento Negro em busca de positivação da sua identidade afro-brasileira foi a inserção dos estudos sobre história e cultura afro-brasileira nos currículos escolares a partir da Lei nº. 10.639, de 9 de janeiro de 2003 (BRASIL, 2003). Com relação ao currículo escolar, é evidente a existência de um jogo de poder na seleção do que deve ser ensinado. A esse respeito, Passos (2008, p. 17) argumenta que “[...] o currículo escolar, tal qual a sociedade brasileira, está pautado numa compreensão de que apenas a cultura do colonizador branca, masculina, heterossexual e cristã tem legitimidade para ser estudada”. Todos aqueles saberes que não se enquadram nesses termos acabam excluídos da escola. Muitas vezes, alguns grupos cujos saberes não são considerados legítimos para estudo nas escolas são privados do acesso a uma educação de qualidade e, consequentemente, das mesmas oportunidades que outros têm. Devido a esses aspectos socioculturais enraizados na nossa história, cabe à escola dar visibilidade e tornar positiva a maneira de pensar e agir em relação aos afro-brasileiros, que representam uma significativa parte da população na atualidade. Carneiro (2006, p. 99), admite que ainda existe nas escolas “[...] uma cultura travada e preconceituosa, impermeável a aceitar o diferente e a conviver com o desigual”. Talvez por esse fato tenhamos percebido a movimentação de muitos grupos identitários em busca do seu espaço de aceitação e igualdade na sociedade nas primeiras décadas do século XXI, no Brasil, entendendo que fazer parte das discussões que ocorrem na escola é uma das formas mais potentes de modificar o modo como se pensam os temas e os jeitos de viver. Em resumo, temos a seguinte cronologia das alterações e modificações das leis sobre raça e etnia na educação brasileira: • LDB Lei nº. 9.394/1996, art. 26, §4º; • Lei nº. 10.639/2003, que alterou a LDB e acrescentou os art. 26-A e 79-B; • Lei nº. 11.645/2008, que alterou a LDB, modificada anteriormente pela Lei nº. 10.639/2003, no art. 26-A. 9 A Lei nº. 11.645/2008, em vigência, propõe a seguinte redação para o art.26-A da LDB (BRASIL, 2008, documento on-line): “Art. 26-A Nos estabelecimentos de ensino fundamental e de ensino médio, públicos e privados, torna-se obrigatório o estudo da história e cultura afro-brasileira e indígena”. Assim, é obrigatório para todas as instituições do sistema de ensino nacional também o estudo da história e cultura indígena e afro-brasileira. É importante perceber que o art. 79-B, acrescido à LDB pela Lei nº. 10.639/2003, não foi alterado, permanecendo o dia 20 de novembro como o Dia da Consciência Negra. Reforçando a importância de o respeito à diversidade ser considerado nos currículos, de modo a ampliar o escopo da educação escolar que considera as relações étnico-raciais, Silva (2007, p. 490) refere que: [...] a educação das relações étnico-raciais tem por alvo a formação de cidadãos, mulheres e homens empenhados em promover condições de igualdade no exercício de direitos sociais, políticos, econômicos, dos direitos de ser, viver, pensar, próprios aos diferentes pertencimentos étnico- -raciais e sociais. Para que as escolas possam organizar as suas práticas curriculares em torno do ensino dessas temáticas étnicas negras e indígenas, a Lei nº. 11.645/2008 propõe os seguintes conteúdos programáticos: • história da África e dos africanos; • luta dos negros e dos povos indígenas no Brasil; • cultura negra e indígena brasileira; • negro e o índio na formação da sociedade nacional. Ao analisarmos os conteúdos programáticos propostos, podemos verificar as possibilidades para os professores alinharem os seus planos de aula e proporem práticas, durante todo o ano escolar, que possam envolver discussões referentes à aprendizagem sobre as contribuições dessas etnias na formação e no enriquecimento cultural da nossa sociedade, deslocando-se da visão única das culturas europeias. Não estamos propondo substituição ou esquecimento das demais etnias europeias, mas uma educaçãovisando à valorização das diferentes etnias. Só assim uma efetiva mudança social será promovida. 10 3 AÇÕES AFIRMATIVAS As ações afirmativas são políticas públicas que visam a diminuir os impactos sociais causados por conflitos étnicos ou racismo. Seu objetivo maior é oferecer equidade, a fim de que a sociedade atinja um panorama de igualdade. A equidade diz respeito a tratar grupos sociais distintos de forma diferente, a partir de suas necessidades específicas, para que então eles possam desenvolver ferramentas e travar contato com outros grupos sociais de forma igualitária. Um projeto de ação afirmativa conhecido no Brasil é o de cotas raciais para o acesso a universidades públicas. Ele busca garantir o acesso da população negra ao ensino universitário, acesso este que foi historicamente impedido devido à escravização e às suas consequências. Há ainda universidades que oferecem cotas sociais para estudantes de baixa renda e provenientes de escolas públicas, corrigindo o ciclo de quase nulidade na ascensão social das classes D e E, causado pela estrutura capitalista neoliberal adotada pelo País a partir da década de 1990. A temática das ações afirmativas chegou ao Brasil no princípio dos anos 2000, a partir da III Conferência Mundial contra o Racismo, Discriminação e Xenofobia da ONU, realizada em 2001 na África do Sul. Na conferência, salientou- se que as desigualdades sociais e econômicas e os conflitos étnico-culturais eram uma responsabilidade dos Estados para com seus cidadãos. Saná-los dependeria da observância das particularidades dos impactos gerados em cada grupo social (SCHWARCZ, 2001). Posteriormente, no Brasil, alguns projetos de ação afirmativa contra o racismo foram elaborados, como a Lei nº 10.639, de 2003, que prevê a obrigatoriedade do ensino de história e cultura afro-brasileiras e africanas nas escolas públicas e privadas do ensino fundamental e médio, uma vez que mais da metade dos estudantes são afro-brasileiros. Há também a Lei nº 11.096, de 2005, que coloca em prática o Programa Universidade para Todos (PROUNI), plataforma de acesso à universidade para pessoas de baixa renda que teve grande impacto nos padrões de mobilidade social brasileiros nos 10 anos subsequentes à sua promulgação. 11 Das ações afirmativas podem derivar projetos especiais que auxiliem o grupo em questão. Considere, por exemplo, as cotas sociais para estudantes de escolas públicas. Reconhecidamente, as escolas públicas brasileiras não têm os melhores índices de aproveitamento, salvo algumas escolas-modelo. Algumas universidades públicas, então, contam com projetos de auxílio e tutoria nos estudos para quem encontra dificuldades. Alunos de escolas particulares podem chegar às universidades com bom conhecimento em outros idiomas, fator que facilita os estudos de ponta e abre oportunidades no mercado de trabalho, mas essa não é uma realidade para alunos provenientes de escola pública, em geral. Por isso, há projetos de extensão que oferecem cursos de idiomas, dos básicos aos aprofundados. Assim, ao deixar a universidade, alunos cotistas e ingressantes por ampla concorrência terão os mesmos conhecimentos, as mesmas bases e, consequentemente, as mesmas oportunidades. As políticas para provimento de equidade resultarão, algum tempo depois, num contexto de igualdade. As políticas públicas voltadas para ações afirmativas podem receber críticas que salientam a desigualdade no tratamento de grupos sociais. As cotas raciais, por exemplo, são constantemente questionadas, e um dos argumentos erroneamente utilizados é o de que elas seriam uma forma de discriminação social. No entanto, elas são extremamente necessárias, porque não se pode oferecer as mesmas oportunidades para grupos sociais com possibilidades tão distintas. Fazê-lo seria compactuar com a manutenção das estruturas de marginalização das classes sociais mais pobres, compostas em sua maioria por afrodescendentes (AUGUSTINHO, 2019). Se, no caso das cotas sociais, um aluno cotista precisa trabalhar para viver e essa é sua prioridade, como ele pode manter o mesmo nível de aprendizagem que um aluno de escola privada, que se dedica apenas aos estudos? Apenas o tempo disponível para as atividades escolares já se torna um princípio de desigualdade. A qualidade das escolas frequentadas, outro. A possibilidade de permanência na universidade pública, especialmente em cursos de período integral, sem suporte da universidade ou de programas sociais, outro desnível. 12 Nesse cenário, sem as ações afirmativas e os projetos de auxílio delas derivados, mesmo que esse aluno chegue à universidade, as possibilidades de ele se manter nela são pequenas. Se conseguir finalizar o curso e se formar, ficaria, ainda assim, em uma posição inferior. Afinal, a bagagem cultural e o capital simbólico adquiridos por aqueles que têm melhores condições financeiras lhes ofereceriam mais e melhores portas de emprego, fomentando as desigualdades sociais. As ações afirmativas podem ser destinadas a qualquer grupo social que, por algum motivo, seja lesado em suas oportunidades de vida. Pessoas com deficiência têm atualmente seu direito de estudar em escolas públicas comuns, o que favorece a interação e o desenvolvimento social. Porém, podem precisar de equipamentos, recursos ou atenção especial, dependendo da deficiência. Esse auxílio, elemento da equidade, auxiliará o aluno com deficiência a ter os mesmos estímulos e possibilidades que os outros, aprendendo e se desenvolvendo tanto quanto eles, gerando, assim, uma situação de equidade. Portanto, as ações afirmativas se baseiam na elaboração de ferramentas que favoreçam a equidade, para depois se chegar à igualdade. As diferenças precisam ser observadas e compreendidas na ação do Estado pelo bem de seus cidadãos. Como você viu, ao longo da trajetória das civilizações ocidentais, as diferenças foram ainda mais aprofundadas. Quem tinha as melhores oportunidades conseguia provê-las também para seus descendentes. Nesse sentido, as ações afirmativas permitem ainda que a etnia marginalizada ocupe os espaços necessários para que possa reificar seu valor (AUGUSTINHO, 2019). No caso do povo negro no Brasil, as políticas de cotas raciais permitem que o negro saia da condição de estudante para ocupar espaços e posições que lhes eram negados, como o comando de uma sala de aula universitária, a chefia de uma equipe médica e a responsabilidade por um grande projeto de engenharia civil. Ou seja, todo e qualquer espaço de que os brancos e descendentes europeus usufruíram quase com exclusividade por séculos. Essas políticas públicas não privilegiam um grupo, mas fornecem ferramentas para que seus componentes 13 tenham tantas oportunidades quanto qualquer cidadão, inclusive aqueles beneficiados pelo privilégio branco. No panorama contemporâneo das estruturas e das formas de relacionamento social, considerando os legados históricos para os grupos dominantes e os que foram dominados, a justiça social se dá pela observância das diferenças. 4 INCLUSÃO ESCOLAR Antes iniciarmos o debate a respeito da inclusão escolar, vamos retomar alguns pontos importantes já comentados. O primeiro diz respeito ao conceito de cultura, aqui entendida como um termo utilizado “[...] para se referir a tudo o que seja característico sobre o ‘modo de vida’ de um povo, de uma comunidade, de uma nação ou de um grupo social” (HALL, 2016, p. 19). Essa definição do autor é importante para nos fazer pensar nos aspectos antropológicos e sociológicos da cultura, uma vez que não se restringe somente a um conjunto de coisas literatura, arte ou programas de TV mas, principalmente, engloba um conjunto de práticas (HALL, 2016). Logo, os indivíduos que partilham da mesma cultura tendem a apresentar uma interpretação do mundo similar, pois foramensinados, no interior das práticas cotidianas da sua sociedade, a se comportar e a pensar de acordo com determinados valores. O problema aqui é quando uma cultura se define de forma monoculturalista, como aquela detentora de saberes e como o caminho mais correto ou único a ser seguido, servindo para orientar sobre tudo e todos. Assim, todos aqueles que não se enquadram nos padrões por ela estabelecidos são marginalizados de alguma forma. O que se busca com a ideia da inclusão escolar é justamente estender àqueles que possam ser considerados diferentes, um espaço garantido nas escolas, para que desfrutem com equidade o seu processo de escolarização. “O conceito de diferença, considerando a escola e o currículo, é, geralmente, traduzido como diversidade ou identidade” (LOPES; DAL’IGNA,2007, p. 13). 14 Nas escolas brasileiras, é possível perceber essa pluralidade de identidades, essa variedade de indivíduos que se distinguem culturalmente por vários aspectos, sejam eles étnicos, religiosos, de gênero, de classe social (pobres e ricos), geracional, deficiências de todas as ordens, orientações sexuais distintas, etc. A todos deve ser garantido o direito à educação que promova uma aprendizagem de qualidade, mas não se resume a isso. Walsh (2001) propõe que — além do simples reconhecimento de grupos diversos, do respeito e da tolerância — é necessário reparar e compensar os prejuízos decorrentes da assimetria de poder existentes entre os grupos culturais durante o seu processo histórico de constituição. Ou seja, a escola deve ser um espaço onde as desigualdades sociais, econômicas e políticas não são ocultadas, mas reconhecidas e confrontadas (WALSH, 2001). Dessa forma, a inclusão escolar emerge como movimento de luta por direitos de igualdade entre os diversos e de afirmação das suas diferenças como marcadores da sua identidade. Deve-se cuidar, no entanto, para que as práticas inclusivas sejam naturalmente engendradas no cotidiano escolar, não forçadas. Nesse sentido, o professor precisa entender que “[...] os diferentes não possuem déficits de aprendizagem, mas aprendem de uma forma peculiar e que mais do que diagnósticos precisamos problematizar e negociar outras representações para esses sujeitos” (LOPES; FABRIS, 2000, p. 3). Isto é, devemos deixar de olhar para um aluno com ênfase naquilo que lhe falta, no que o torna incapaz em relação aos demais devemos focar nas suas possibilidades de aprender visando potencializá-lo de forma particular. Considerando alunos com deficiência, por exemplo, devemos promover políticas públicas e programas educacionais visando à sua inclusão nas redes regulares de ensino, compreendidos dentro do conceito da educação inclusiva. Destacamos que, na Constituição Federal, art. 205, existe a garantia da educação como direito de todos, reforçado ainda na LDB (BRASIL, 1996, documento on-line), que traz, no art. 4º, III, o dever do Estado quanto à garantia de “[...] atendimento educacional especializado gratuito aos educandos com necessidades especiais, preferencialmente na rede regular de ensino”. 15 O processo de inclusão de alunos com deficiências nas escolas regulares não é fácil ou simples, pois demanda investimentos em recursos materiais e humanos. Mesmo em meio às dificuldades durante esse período adaptação que vivemos, incluir todos os alunos na escola é um grande passo adiante. Finalizando nossa discussão sobre os aspectos que envolvem a inclusão escolar, devemos considerar as diferenças entre os mais variados grupos culturais que frequentam a escola, de forma a reconhecer os seus direitos à educação equitativa, entendendo que existem muitos processos nas interações entre esses grupos no cotidiano escolar. Logo, devem ser encarados com o olhar da alteridade e da participação do outro na constituição das suas identidades. Ao falarmos sobre equidade na educação, entendemos, acompanhando as ideias de Franco (2007, documento on-line), que deve haver simetria, igualdade no interior da escola quanto aos aspectos dos “[...] recursos escolares, organização e gestão da escola, clima acadêmico, formação e salário docente e ênfase pedagógica”. A pesquisa realizada pelos autores analisa como esses itens da equidade intraescolar vão refletir diretamente na eficácia dessa instituição de ensino, muitas vezes indo além do desempenho esperado. Como podemos perceber, a busca por equidade, além de ser pensada sobre o campo social do qual o aluno se insere, também deve ser analisada do ponto de vista do que as escolas oferecem para os seus alunos, uma vez que a falta ou a carência desses itens acabaria por reforçar as desigualdades sociais existentes. 5 RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS E DIVERSIDADE NO AMBIENTE ESCOLAR 5.1 As faces do racismo: discriminação e segregação sociorracial No Brasil, a escola pública é destinada a todos os cidadãos, independentemente de cor de pele, herança cultural, religião, classe social, gênero ou orientação sexual. A sociedade é diversa e, para cumprir sua função social emancipatória, a escola deve acolher toda a multiplicidade social e cultural. Como 16 você sabe, a escola oferece conhecimento aos estudantes e assim imprime marcas na sociedade. Contudo, ao mesmo tempo, como componente do tecido social, ela reflete as formas de leitura social e de comportamento estruturadas exteriormente. Por isso é que se diz que o racismo no Brasil é estrutural, ou seja, está presente em muitas esferas sociais. Ele é reproduzido por padrões de comportamento históricos e está presente também nas escolas, desde as séries iniciais, entre estudantes e professores. Você sabe o que é o racismo? O racismo é a ideia, manifestada ou não, de que uma etnia é inferior a outra, em habilidades ou possibilidades. Ele gera discriminação, marginalização e desigualdade social e econômica. Assim, o racismo deixa marcas estruturais nas biografias das vítimas, cerceando suas possibilidades emancipatórias e de mobilidade social. Ou seja, ele reproduz desigualdades e impossibilita que as vítimas transcendam as dificuldades sociais e econômicas que lhes foram impostas. O racismo se estabelece quando uma etnia histórica ou economicamente (no geral, há uma combinação dos dois fatores) privilegiada, por meio de ações segregadoras e discriminatórias, reproduz padrões de marginalização e desigualdade. As leituras de mundo eurocêntricas, motivadas pelo expansionismo imperialista do século XIX e aprofundadas no século XX, fizeram com que caucasianos pessoas de pele clara com origem europeia não ibérica e detentoras do poder econômico e militar nas expansões territoriais estruturassem as sociedades como se a sua compreensão cultural fosse central. Assim, outras comunidades e culturas deveriam se encaixar no modelo. Com o passar do tempo, expressões sociais que não fossem semelhantes às suas eram descartadas, ignoradas ou reprimidas (AUGUSTINHO, 2019). Você pode se perguntar: então, o racismo só acontece a partir das ações discriminatórias de brancos caucasianos em relação a não brancos (negros, indígenas, hispânicos, orientais, árabes, entre outras etnias)? A resposta é não. O racismo acontece quando há a discriminação de um cidadão em virtude de sua etnia, seja ela qual for, independentemente de quem propaga a ação. 17 No entanto, é muito importante compreender: o racismo, quando associado ao privilégio e ao poder econômico e cultural, exclui, marginaliza, impede acessos sociais e, em sua forma mais cruel, mata. Nas sociedades ocidentais, são os brancos os detentores dos privilégios e do poder econômico. Por isso, as ações discriminatórias desse grupo social têm impactos negativos muito mais profundos do que uma ação empreendida por alguém não branco. Você já reparou que, nas periferias, favelas e comunidades carentes, a maior parte da população é negra, aindaque composta também por pessoas de diferentes etnias? Já observou que os trabalhos braçais e os menos remunerados são desempenhados por pessoas negras? Por que isso acontece? No Brasil, último país ocidental a findar a escravidão, a população negra foi marginalizada a partir da abolição, quando não encontrou qualquer respaldo para a manutenção digna de sua vida no País, muito menos possibilidade de retornar às comunidades ancestrais. A força de trabalho do povo negro escravizado foi substituída pela mão de obra remunerada de imigrantes europeus. Sem trabalho e expulsa das senzalas que abriam espaço para as colônias, a população negra passou a viver à margem da sociedade, formando comunidades distantes dos centros das cidades e vilas. Os sobreviventes não conseguiam espaço nas novas estruturas pós- abolicionistas. Assim, o subemprego, a moradia indigna e distante e a impossibilidade de acesso à educação reproduziram por gerações as condições de vida desiguais. Por isso, no Brasil, o racismo tem ainda um recorte de classe (FERNANDES, 2008). As classes mais pobres são compostas em sua maioria por pessoas negras, e a configuração das estruturas sociais reimprime em cada geração os impedimentos de acesso aos elementos que poderiam inserir a população negra num contexto de igualdade social e econômica. Um desses elementos, como você pode imaginar, é a educação. Decorre daí a necessidade de reparação, especialmente por meio da facilitação do acesso à educação formal continuada até a universidade. Esse é um dos únicos dispositivos que oferecem a possibilidade de rompimento do ciclo da pobreza para esse grupo social. Ainda assim, no mercado de trabalho, esse grupo pode sofrer racismo. Tal racismo não se relaciona apenas às suas características 18 físicas, mas também ao eventual recebimento de algum auxílio reparatório ao longo da vida. Profissionais que foram cotistas, por exemplo, têm suas capacidades intelectuais constantemente questionadas, mesmo que avaliações indiquem o seu alto rendimento. O racismo também pode ser definido como o apontamento de características físicas, culturais ou religiosas como forma de ridicularização ou menosprezo, como se os elementos apontados significassem a inferioridade do sujeito. Você pode identificar ações racistas até mesmo construídas para se passarem por “elogios”: “Ela é uma negra muito bonita”; “Aquele rapaz asiático é muito trabalhador”; “Aquela criança indígena é muito inteligente”. Sempre que a cor da pele ou a etnia é ressaltada num elogio ou no apontamento de alguma característica, não é elogio, é racismo. Afinal, quando os mesmos elogios são direcionados à etnia dominante, eles não vêm acompanhados do apontamento da pele branca. Em ambientes de trabalho, o apontamento de características físicas ou elementos culturais e religiosos pode ser utilizado como pressão para um “branqueamento” visual. Em alguns espaços, pessoas negras são estimuladas a alisar os cabelos, cortá-los ou prendê-los, com a justificativa de que se tornariam visualmente mais arrumados, elegantes. Elementos culturais como guias e turbantes não são, normalmente, permitidos nos códigos de vestimenta das empresas, embora colares e faixas não sejam problema. Reflita: por que essas situações acontecem? Talvez porque esses elementos sejam uma manifestação visual identitária, que informa aos contatos sociais o sentimento de pertencimento do indivíduo à cultura negra. A cultura dominante, no entanto, pressiona para que, visualmente, a herança identitária se apague e o indivíduo se torne mais “palatável”, ou seja, mais próximo da cultura branca (AUGUSTINHO, 2019). No ambiente escolar, além dos exemplos citados, que acontecem em todas as esferas sociais, há formas específicas de racismo, presentes na elaboração e nas matrizes curriculares. O apagamento da história dos povos negros nas aulas é racismo. Ignorar a presença e a produção de escritores, historiadores e cientistas negros é racismo. O reconhecimento desse cenário é o primeiro passo para que a 19 escola possa inserir conteúdos que reflitam a história e as contribuições sociais e científicas dos povos que constituem a nação. Dessa forma, os estudantes, ao circular por novos contextos sociais, poderão estar mais receptivos, compreendendo que a diversidade deve ser respeitada e acolhida. 5.2 Contribuições culturais na construção histórica do Brasil: colonialismo e diversidade Como conquista colonial do período de expansão marítima europeia, o Brasil nasce com a função de prover riquezas à sua metrópole. Os dois primeiros séculos de ocupação portuguesa, hispânica e holandesa em terras brasileiras não tinham como objetivo construir uma sociedade. Na verdade, como você deve saber, havia sociedades aqui constituídas antes da chegada dos portugueses. Tais sociedades eram diversas e ricas em conteúdo histórico e cultural, com suas próprias vivências e saberes. Contudo, não houve interesse em integrar tais culturas aos processos de exploração extrativista que se estabeleceram. Assim, os nativos brasileiros foram exilados da construção civilizatória de sua própria terra, muito embora tenham recebido os recém-chegados e indicado o nome da árvore cuja madeira resistente e preciosa tingiu de vermelho palácios e casas reais no Velho Continente (AUGUSTINHO, 2019). O mesmo parece ter acontecido com a presença negra no Brasil. Não nativo e trazido à força do continente africano, o povo negro, com sua força de trabalho, criou as riquezas que eram mandadas para a Europa, construiu cidades, portos, ferrovias e estradas. E contribuiu muito para a formação cultural nacional: música, culinária, literatura, danças, fé. Assim como ocorreu em outras colônias do chamado “Novo Mundo”, a construção cultural brasileira se deu na expressão e nas relações entre diferentes etnias. Não é possível ignorar o fato de que algumas dessas etnias eram livres e outras não. Mas isso não significa que as livres contribuíram mais ou mais efetivamente para a construção sociocultural do que as escravizadas ou marginalizadas. O Brasil é produto das conexões sociais e das leituras e interpretações de mundo, vivências e saberes de todos os grupos culturais que aqui 20 estavam. E a cultura nacional continua sendo reformulada, pois é plástica, mutante, não é estática. A configuração de domínio político e físico de uma etnia sobre outra terminou por fundamentar a ideia de domínio ou superioridade cultural de brancos sobre negros e indígenas. Mas, na sociedade brasileira contemporânea, sabe-se que essa ideia é falaciosa. Por isso, Estado e sociedade têm se organizado, com mais veemência a partir dos anos 2000, para a promoção da igualdade social, por meio de políticas públicas de esclarecimento sobre discriminação e racismo, bem como práticas sociais de valorização da cultura negra. A escola é parte fundamental desse processo, redirecionando ações a partir de projetos nacionais. Em 1996, surgiu o Programa Nacional de Direitos Humanos (PNDH), formulado para promover estratégias de proteção dos direitos humanos fundamentais e proteger grupos sociais vulneráveis no Brasil. Entre os focos principais do programa, estava a diminuição da marginalização social de pessoas negras e das práticas de racismo, minimizando desigualdades e promovendo a equidade social. É preciso refletir: a Lei nº 10.639/2003, que instituiu a obrigatoriedade da presença de conteúdos da história e da cultura afro-brasileiras nas matrizes curriculares da educação, foi promulgada apenas em 2010, mais de um século após a abolição da escravatura. Além da legitimação da identidade negra, essa ação permite que a sociedade brasileira reconheça a importância e as contribuições culturais, econômicas e políticas do povo negro à história nacional. Mas não se pode esquecer de que a demora para a implementaçãode políticas como essa causou um profundo impacto negativo em vidas de pessoas negras. Esse reconhecimento pode incentivar uma nova leitura da constituição social brasileira (AUGUSTINHO, 2019). Nessa nova leitura, negros, indígenas e imigrantes aqueles que imigraram como colonizadores ou aqueles que imigraram nos séculos XX e XXI buscando asilo político, terras de paz ou oportunidades de emprego e vida estável, vindos da Europa, da África, da Ásia e da América Latina devem ter o mesmo espaço, a mesma importância e as mesmas possibilidades de crescimento, educação, saúde; 21 enfim, vidas saudáveis e protegidas. A referida lei visa, portanto, a estabelecer patamares interpretativos de igualdade na contribuição histórica, para que relações entre raças e etnias diversas se deem de forma respeitosa, sem racismo ou discriminação. 5.3 A escola e o combate ao racismo na promoção da igualdade Como você viu, a escola tem papel fundamental no combate ao racismo e à discriminação racial. Isso ocorre por dois motivos essenciais. Primeiro, porque a escola precisa estar apta a oferecer o espaço, os dispositivos e as adaptações necessárias para que estudantes marginalizados e discriminados tenham acesso à educação de qualidade. Em segundo lugar, ao receber esses estudantes, a escola precisa oferecer um lugar seguro e amigável. Como você pode imaginar, isso só é possível se toda a comunidade escolar, assim como a comunidade do entorno, for educada para compreender as práticas reparatórias e inclusivas como um benefício a todo o contexto social, não apenas aos indivíduos em questão. Além disso, é primordial que escolas e professores construam e difundam a noção de igualdade social. A ideia é que, também fora do contexto escolar, cidadãos negros, indígenas, imigrantes e pessoas com deficiência não sejam discriminados por não serem os espelhos dos padrões normativos. Eles devem ser vistos como portadores de características diversas, que enriquecem o contexto cultural brasileiro. Para além, devem ser encarados com o mesmo respeito e as mesmas oportunidades que quaisquer outros cidadãos (AUGUSTINHO, 2019). Se a escola é entendida como ferramenta essencial no processo civilizatório, ela é utilizada quando se quer mostrar ou cristalizar novas leituras de contextos sociais. Por isso, a escola é utilizada para combater o racismo e promover a igualdade racial, e isso não apenas a partir de práticas e projetos pedagógicos inovadores e externos às diretrizes curriculares. Em 2010, foi promulgada a Lei nº 12.288, que institui o Estatuto da Igualdade Racial. Entre outras ações, o dispositivo confirma a obrigatoriedade da presença na escola da história dos povos negros no Brasil e em África, identificando-a como elemento formador da estrutural social e 22 cultural brasileira. Além disso, o estatuto também prevê a obrigatoriedade desse conteúdo na formação de professores e profissionais da pedagogia, para que educadores tenham em sua formação a noção cristalizada da importância das contribuições dos povos negros. Na busca por uma educação destinada a todos os cidadãos, que considere as diversidades de cada grupo e as respeite, o Ministério da Educação no Brasil promove uma série de ações e programas para integrar grupos sociais marginalizados à escola. A ideia é que as diversidades sejam consideradas, não suprimidas. A seguir, você pode ver alguns exemplos (BRASIL, 2013). • Educação Escolar Quilombola: esse programa visa a inserir as características culturais e históricas de estudantes e professores pertencentes ou descendentes de comunidades quilombolas às diretrizes curriculares, fortalecendo e legitimando a sua identidade social. • Educação de Jovens e Adultos (EJA) — Projovem Urbano e Projovem Rural: o conhecido programa EJA, que oferece educação do ensino fundamental ao médio para jovens e adultos que estão fora da idade escolar, ganhou nos últimos anos duas novas versões. Uma delas privilegia e insere temáticas e particularidades do contexto urbano nas práticas educativas. A outra faz o mesmo a partir do contexto rural, anexando saberes e práticas que fortaleçam a identidade do cidadão do campo, mas também que favoreçam suas práticas de trabalho e seus meios de vida. • Programa de Apoio à Formação Superior e Licenciaturas Interculturais Indígenas (Prolind): esse projeto favorece os saberes e as vivências indígenas na formação de professores e profissionais cuja intenção é voltar o seu trabalho especificamente para as suas comunidades. Assim, é possível preservar a cultura original, com o ensino da língua materna, por exemplo, além do português, juntamente a propostas de economia sustentável. 8 Relações étnico- raciais e diversidade no ambiente escolar. 23 • Bolsa Família: é um benefício financeiro mensal para famílias em situação de vulnerabilidade social extrema, desde que as crianças e adolescentes em idade escolar (de 6 até 17 anos) sejam mantidos na escola. De acordo com o Ministério da Educação, há acompanhamento do rendimento escolar de cada um dos estudantes. • Acessível: esse programa procura inserir nas escolas públicas dispositivos e elementos que permitam aos estudantes com deficiência estudar, permanecer e circular na escola de forma facilitada, com foco em sua autonomia. Ele prevê desde rampas de acesso até salas multifuncionais com equipamentos e instrumentos especiais para pessoas com deficiência física, visual, auditiva, intelectual ou pessoas neuroatípicas. Pessoas com deficiência não necessariamente precisam de escolas e educação especial, a não ser que isso seja recomendado por médicos, em situações específicas. Elas podem (e isso é um direito seu) ser recebidas nas escolas públicas regulares. É dever do Estado providenciar os recursos necessários para que isso aconteça. 6 ETNIA E RAÇA 6.1 Distinção entre etnia e raça Somos todos iguais? Essa questão é muito complexa, e é sobre ela que vamos nos debruçar neste capítulo. Para iniciar a discussão, precisamos saber que, apesar de termos em comum a condição de humanidade, temos origens biológicas, territoriais e culturais diferentes, e isso faz com que tenhamos diferenças não só no modo de viver a vida, mas também em aspectos físicos. Segundo Neves (2006), as principais espécies hominídeas consideradas cruciais para a história da evolução humana datam de sete milhões de anos atrás. De lá para cá, o bipedismo, o consumo de proteína animal, a fabricação de ferramentas, o desenvolvimento do cérebro e a construção da vida em sociedade 24 permitiram que o homem chegasse aos dias atuais como o conhecemos. Entretanto, é importante considerar esse aspecto temporal e pensar nos processos biológicos pelos quais a nossa sociedade passou: O acaso na evolução biológica remete-se à existência ou não de variante numa população exatamente no momento em que essas variantes poderiam ser instadas à condição de solução adaptativa. A existência de variabilidade depende de mutações, que ocorrem de forma absolutamente imprevisível no genoma. A necessidade, por sua vez, remete-se ao desafio de sobrevivência imposto por uma nova situação ambiental, ambiente aqui entendido no seu sentido lato, que inclui também os competidores (NEVES, 2006, p. 81). Em essência, para sobreviver, cada sociedade passou por processos de adaptação em sua forma de alimentação, de vestimentas, de proteção das intempéries climáticas e de tantos outros aspectos. Estes interferiram não somente nas expressões culturais às quais se filiavam, mas também em aspectos biológicos que resultaram em mudanças físicas perceptíveis. Desse modo, a cor da pele, a cor do olho, a cor do cabelo, a altura, o tamanho, as formas corporais de partes do corpo são aspectos visíveis que diferenciam as sociedades e as culturas que conhecemos. Vamos compreender melhorcomo podemos analisar essas sociedades a partir da noção de raça e etnia. Carolus Linnaeus (1758) foi quem criou a taxonomia moderna e o termo Homo sapiens, reconhecendo quatro variedades do homem: o americano (Homo sapiens americanus), o europeu (Homo sapiens europaeus), o asiático (Homo sapiens asiaticus) e o africano (Homo sapiens afer). Essa situação difundiu a ideia de que há uma diferença entre grupos sociais a partir de cores: respectivamente, o vermelho, o branco, o amarelo e o preto. Para refletir o que a cor nos leva a pensar sobre raça, cabe lembra o que diz Guimarães (2008, p. 76– 77): “[...] cor é uma categoria racial, pois quando se classificam as pessoas como negros, mulatos ou pardos é a ideia de raça que orienta essa forma de classificação [...]”. Logo, a difusão desse conhecimento influenciou os estudos evolutivos no sentido de reforçar a ideia de que há divisão, de certa forma homogênea, entre os grupos sociais. Todavia, poderíamos dizer que Etnia e Raça são diferentes muitas 25 vezes percebidas pelas cores que compõem a base para as sociedades que conhecemos hoje? Para isso, vamos estudar o próprio termo raça e problematizar os seus usos. O termo raça tem uma variedade de definições geralmente utilizadas para descrever um grupo de pessoas que compartilham certas características morfológicas. A maioria dos autores tem conhecimento de que raça é um termo não científico que somente pode ter significado biológico quando o ser se apresenta homogêneo, estritamente puro; como em algumas espécies de animais domésticos. Essas condições, no entanto, nunca são encontradas em seres humanos. (SANTOS et al., 2010, p. 122). A explicação sobre a diferença entre as sociedades por meio da divisão dos grupos sociais a partir das cores se torna sem fundamento, até mesmo porque é rara a existência de sociedades isoladas. Em geral, há grandes trocas culturais entre sociedades que vivem próximas os seus membros inclusive transitam por esses grupos sociais por meio de casamentos. Guimarães (2008, p. 64–65) destaca que é preciso esclarecer uma diferença importante para compreender esse termo de forma conceitual e mais aprofundada: O que é raça? Depende. Realmente depende se estamos falando em termos científicos ou de uma categoria do mundo real. Essa palavra “raça” tem pelo menos dois sentidos analíticos: um reivindicado pela biologia genética e outro pela sociologia. [...] A biologia e a antropologia física criaram a ideia de raças humanas, ou seja, a ideia de que a espécie humana poderia ser dividida em subespécies, tal como o mundo animal, e de que tal divisão estaria associada ao desenvolvimento diferencial de valores morais, de dotes psíquicos e intelectuais entre os seres humanos. Para ser sincero, isso foi ciência por certo tempo e só depois virou pseudociência. [....] Depois da tragédia da Segunda Guerra, assistimos a um esforço de todos os cientistas — biólogos, sociólogos, antropólogos — para sepultar a ideia de raça, desautorizando o seu uso como categoria científica [...]. Ou seja, as raças são, cientificamente, uma construção social e devem ser estudadas por um ramo próprio da sociologia ou das ciências sociais, que trata das identidades sociais. Estamos, assim, no campo da cultura, e da cultura simbólica. [...] As sociedades humanas constroem discursos sobre suas origens e sobre a transmissão de essências entre gerações. Esse é o terreno próprio às identidades sociais e o seu estudo trata desses discursos sobre origem. Cabe deixar de lado o termo raça usado pelas ciências biológicas e tão difundido nos séculos XVIII e XIX, que entendiam como pertinente a ideia de raças humanas para diferenciar os grupos sociais e até mesmo hierarquizá-los, para 26 compreender que a única raça existente é a raça humana. Neves (2006) compreende que o termo raça só faz sentido se for utilizado no âmbito sociológico, no qual são levadas em consideração as origens do grupo, tanto pelos traços fisionômicos como pelos aspectos culturais, abarcando as suas complexidades históricas e a identidade dos seus membros. Silva e Soares (2011) destacam que esse “novo” uso do termo vem se consolidando; porém, em outros momentos, diferentes conceitos tentaram dar conta de identificar os grupos sociais de forma que considerassem a sua pluralidade sem hierarquizá-los, como explicam a seguir: Apesar dessas novas leituras conceituais e usos das palavras, o que confere uma mudança histórica altamente comum e saudável no campo das mentalidades, o conceito de “raça”, por muitas vezes foi deixado de lado em detrimento de outros, não completamente substituidores, mas que talvez fizessem o mesmo papel definidor e classificador dessas pessoas unidas por características, cultura e instituições semelhantes e, num contexto de luta por igualdades, experiências parecidas de resistência e/ou percepção de todo um sistema insistentemente segregacionista. Atualmente, um desses outros conceitos seria o de “etnia”, que tem origem do grego ethnos, o que entendemos não só como um conjunto de pessoas da comunidade. É o pertencimento do grupo, independente dos laços consanguíneos e a construção de ações coletivas (SILVA; SOARES, 2011, p. 106). Assim, o termo etnia abrange a complexidade dos contextos sociais, políticos e econômicos dos grupos sociais, não só enquanto identificação de grupo, mas enquanto mobilização política para a sua existência em meio aos outros grupos sociais. Luvizotto (2009, p. 30) explica que “[...] a concepção de etnicidade está além da definição de culturas específicas e, portanto, é composta de mecanismos de diferenciação e identificação que são acionados conforme os interesses dos indivíduos em questão, assim como o momento histórico no qual estão inseridos [...]”. Logo, com essa discussão, temos um quadro panorâmico de como os conceitos de raça e etnia se inserem nas sociedades e nos debates atuais. 6.2 Questões histórico-sociais dos conceitos de etnia e raça Para que você possa entender como esses conceitos foram utilizados diante das questões histórico-sociais, vamos enfatizar alguns momentos da história 27 mundial e até mesmo da história nacional pertinentes a essa compreensão. É importante perceber que alguns usos políticos dos conceitos de raça e etnia podem explicitar diferenças entre grupos sociais dispostas pelos poderes político e econômico ou mesmo pretendem invisibilizar aspectos específicos de culturas que vivem no mesmo espaço territorial, a partir de uma suposta de ideia de democracia racial. O primeiro destaque aconteceu durante a Segunda Guerra Mundial (1939– 1945). O plano alemão de conquista do mundo se valia da diferenciação dos grupos sociais para hierarquizar uns sobre os outros e valorizar a dita raça ariana: os descendentes de uma das três grandes sociedades humanas provenientes do Cáucaso (região da Europa Oriental e da Ásia Ocidental, entre o Mar Negro e o Mar Cáspio). Mazowe (2008) destaca que os nazistas optaram pelos velhos padrões coloniais europeus, tanto em termos geopolíticos como em termos de questões raciais, para impor as suas ideias imperiais, exterminar povos considerados diferentes dos seus e se apresentar como raça superior. Assim, essa era uma estratégia política de Adolf Hitler (político alemão que foi líder do Partido Nazista) para dividir os grupos sociais, mas também fazer com que os arianos apoiassem esse regime político por medo de morrer, como analisa Foucault (1996, p. 210): [...] o regime nazista não terá como único objetivo a destruição das outras raças. Este é apenas um de seus aspectos. O outro [aspecto] é o de expor a própria raça ao perigo absoluto e universal da morte. O risco de morrer, a exposição à destruição total é um princípio inscrito entre os deveres fundamentais da obediência nazista e entre os objetivos essenciais da política. Entretanto, em nomeda construção da Alemanha somente por pessoas provenientes da raça ariana, inúmeras atrocidades foram cometidas, misturando nazismo com eugenia a seleção das pessoas com base em características genéticas. Umas das consequências desse pensamento político entre os governantes alemães da época foi o holocausto, que, segundo Katz (1994, p. 28), é descrito como “[...] fenomenologicamente único em virtude do fato de que nunca antes um Estado se fixara, como objetivo de princípio e como política Etnia e raça 28 de fato, a tarefa de aniquilar fisicamente cada um dos homens, mulheres e crianças pertencentes a um povo determinado [...]”. Diante desses números, percebemos como determinado uso da ideia de raça pode ter consequências perversas e aterrorizantes. Um segundo destaque para pensar nos conceitos estudados neste capítulo é em relação à difusão de uma suposta democracia racial no Brasil do século XIX. Assim como o nosso primeiro exemplo, essa proposta também tem implicações políticas de modo a invisibilizar as disputas raciais da constituição do povo brasileiro. Freyre (1995) apresenta uma convivência quase harmoniosa entre brancos, indígenas e negros desde a colonização do Brasil, trazendo a ideia de que não havia disputas raciais, imposições culturais ou mesmo resistência por parte dos povos colonizados. A sua perspectiva era de evidenciar traços de diferentes culturas que formaram o que hoje conhecemos como a cultura brasileira, mas essa leitura foi apropriada politicamente pelos governantes da época para dizer que havia no Brasil uma democracia racial. No entanto, apesar de esse ter sido um discurso oficial por muito tempo, os cidadãos reconhecem no cotidiano das cidades brasileiras que isso é um mito, como explicita Hasenbalg (1979, p. 239): [...] as pessoas não se iludem com relação ao racismo no Brasil; sejam brancas, negras ou mestiças, elas sabem que existe preconceito e discriminação racial. O que o mito racial no brasileiro faz é dar sustentação a uma etiqueta e regra implícita de convívio social, pela qual se deve evitar falar em racismo, já que essa fala se contrapõe a uma imagem enraizada do Brasil como nação. Transgredir essa regra cultural não explicitada significa cancelar ou suspender, mesmo que temporariamente, um dos pressupostos básicos que regulam a interação social do cotidiano, que é a crença na convivência não conflituosa dos grupos raciais. Sabe-se que houve, no começo do século XIX, políticas de branqueamento que buscavam atrair populações da Europa ao Brasil, a partir de vantagens para a fixação desses povos no território brasileiro. Silva (2017, p. 594) explica como se deu essa articulação: [...] para o entendimento da democracia racial como dispositivo biopolítico assentado na miscigenação e no chamado “projeto” de branqueamento da nação, nomeadamente a partir dos anos 1930, quando a miscigenação e a negação oficial do racismo passaram a ser emblemáticos nas narrativas identitárias da nação. [...] É neste contexto que defendo a ideia de que a população negra acaba por ser constituída como saber, pois, incluída nas 29 narrativas nacionais pelo viés da miscigenação é excluída pelo seu virtual desaparecimento, uma vez que o branqueamento é concebido mediante a própria ideia de miscigenação. Mesmo evidenciando os motivos e as consequência do mito da democracia racial, Munanga (1999, p. 125–126) explica que essas ideias influenciam até mesmo a maneira como a nossa sociedade é constituída hoje: Apesar do esforço dos movimentos negros em redefinir o negro, dando-lhe uma consciência política e uma identidade étnica mobilizadoras, contrariando a ideologia de democracia racial construída a partir de um racismo universal, assimilacionista, integracionista — o universalismo — aqui, concordamos com Peter Fry — essa ideologia continua forte no Brasil, na sua constituição e na ideia da democracia racial, mesmo se há sinais [...] de uma crescente polarização. Se a mestiçagem representou o caminho para nivelar todas as diferenças étnicas, raciais e culturais que prejudicavam a construção do povo brasileiro, se ela pavimentou o caminho não acabado do branquecimento, ela ficou e marcou significativamente o inconsciente e o imaginário coletivo do povo brasileiro. Chamando atenção para essas situações que envolvem a discussão de raça e etnia, pretendemos enfatizar a relevância das conceituações apresentadas e a necessidade de um olhar crítico para a proposição de diferença dos grupos sociais. Longe de resolver a questão, o objetivo é ampliar a percepção de como esses conceitos estão atrelados às discussões políticas e econômicas, não só na nossa história, mas também nos dias atuais. 7 REPENSANDO O PRECONCEITO RACIAL A partir dos exemplos emblemáticos enfatizados, devemos lembrar que o preconceito racial ainda é velado nos dias de hoje. Talvez não tão explícito como no holocausto, na escravidão ou mesmo nas políticas de branqueamento anteriormente citadas, o olhar com desdém para alguém de etnia diferente ou mesmo a exclusão de um currículo por conta da cor da pele são considerados formas de preconceito racial. Para Blumer (1965), quatro aspectos permitem evidenciar as formas de preconceito racial por um grupo dominante: (a) de superioridade; (b) de que a raça 30 subordinada é intrinsecamente diferente e alienígena; (c) de monopólio sobre certas vantagens e privilégios; e (d) de medo ou suspeita de que a raça subordinada deseje partilhar as prerrogativas da raça dominante. Logo, as populações que se sentem prejudicadas em função do preconceito racial têm se organizado em movimentos sociais e se articulado para fazer valer os seus direitos sociais. Considera-se que as ações políticas afirmativas: […] tomam como base para sua implementação a extrema desigualdade racial brasileira no acesso ao ensino superior. Os argumentos favoráveis concentram- -se nesse sentido, afirmando a necessidade de um enfrentamento direto da sociedade brasileira a esse respeito, o que implica o reconhecimento de que o Brasil é um país racialmente desigual e que tal situação é fruto de discriminação e preconceito, e não de uma situação de classe social (LIMA, 2010, p. 87). Essas políticas são consequência da mobilização dos movimentos sociais vinculados à noção de raça e etnia. Entre eles, podemos destacar: A partir da segunda metade da década de 1990 acelera-se um processo de mudanças acerca das questões raciais, marcado fortemente por uma aproximação entre o Movimento Negro e o Estado brasileiro. É a partir deste momento que as reivindicações por ações mais concretas para o enfrentamento das desigualdades raciais começam a ser cobradas. Dois acontecimentos — um de âmbito nacional e outro, internacional — são destacados consensualmente pelos estudiosos do tema como momentos importantes desse processo: a Marcha Zumbi de Palmares contra o Racismo, pela Cidadania e a Vida, em 1995, ano de comemoração do tricentenário da morte de Zumbi dos Palmares, e a Conferência de Durban, em 2001 (LIMA, 2010, p. 89). Podemos dizer que, apesar de diferentes grupos sociais que reivindicam a questão da identidade étnica no Brasil, como negros, indígenas, ciganos, e outros povos que habitam o território brasileiro, a mobilização do movimento negro tem se destacado. Essas mobilizações descritas acima tiveram consequências concretas nas implantações das cotas raciais, como explicita Maio e Santos et al. (2010, p. 189): Logo após a conferência, o governo brasileiro definiu um programa de política de cotas no âmbito de alguns ministérios (Desenvolvimento Agrícola e Reforma Agrária, Justiça e Relações Exteriores) (Moehlecke, 2002). No plano estadual e municipal, diversas iniciativas foram realizadas para a implementação do sistema de cotas. Aquela que obteve maior destaque no final do ano de 2001 foi a da Assembleia Legislativa do Estadodo Rio de Janeiro, que estabeleceu uma porcentagem das vagas das 31 universidades estaduais para pretos e pardos (Maggie; Fry, 2004). A partir de 2002, o debate e a implementação de políticas de ação afirmativa com viés racial, com foco no sistema de cotas, estenderam-se por diversas universidades públicas, tanto estaduais como federais. Em sua ampla maioria, com regras variadas, foram definidos mecanismos centrados na auto declaração dos candidatos. Já a UnB, além de ser a primeira universidade federal a adotar o programa, estabeleceu critérios adicionais à auto declaração para definir os beneficiários, ou seja, quem seriam os "negros". A implantação das cotas não se deu sem polêmicas, e desde então são produzidas avaliações sobre o programa em inúmeros estados. As principais críticas à política de cotas destacadas por Guarnieri e Melo-Silva (2017, p. 185) desde a sua implantação em 2012 apontam: [...] inexistência biológica das raças; caráter ilegítimo das ações de “reparação” aos danos causados pela escravidão em tempo presente; risco de acirrar o racismo no Brasil; possibilidade de manipulação estatística da categoria “parda”; inviabilidade de identificação racial em um país mestiço; a questão da pobreza como determinante da exclusão social. Por outro ladro, também é preciso evidenciar pontos que foram vantajosos e que conseguiram provocar uma nova configuração da população no acesso à educação superior. Logo, a mesma pesquisa destacou: Os argumentos favoráveis concentraram-se na discussão sobre a constitucionalidade das cotas e relevância para o país. A intervenção do Estado foi colocada como fundamental diante dos quadros de desigualdade raciais remanescentes de fenômenos sociais que precisam ser enfrentados; destacando-se que as “ações afirmativas” atuariam como alternativa para a busca de igualdade através da promoção de condições equânimes entre brancos e negros (GUARNIERI; MELO-SILVA, 2017, p. 185). 8 RACISMO E FORMAÇÃO DAS IDENTIDADES ÉTNICAS A formação da identidade pessoal ocorre desde o nascimento, a partir das experiências e vivências nos campos sociais. Nesses campos, as pessoas aprendem a respeito da cultura de cada grupo étnico. Nesse contexto, cada etnia tem uma cultura própria, forjada a partir das experiências históricas que vivenciou, 32 das ideias e normas sociais que produziu com o passar dos tempos e que procurou transmitir de geração em geração. A vida em sociedade, algumas vezes, faz com que determinadas etnias tenham mais poder e dominem as demais. Isso afeta a produção das identidades e pode abalar a construção da autoimagem dos sujeitos dominados e inferiorizados. Quando a cultura de um grupo étnico é vista como superior e procura servir como padrão para todas as demais, pode haver efeitos indesejáveis, como o racismo e a discriminação étnico-racial. 8.1 Formação da identidade e da autoimagem Para analisar o processo de formação das identidades, é preciso compreender bem o conceito de cultura, pois esse conceito é decisivo para que as identidades sejam produzidas nos sujeitos. O termo “cultura”, nesse caso, pode ser utilizado “[...] para se referir a tudo o que seja característico sobre o ‘modo de vida’ de um povo, de uma comunidade, de uma nação ou de um grupo social [...]” (HALL, 2016, p. 19). Essa definição é interessante pois remete aos vários aspectos antropológicos e sociológicos presentes na cultura. Dessa forma, não a restringe a “[...] um conjunto de coisas romances e pinturas ou programas de TV e histórias em quadrinhos, mas sim [a define como] um conjunto de práticas [...]” (HALL, 2016, p. 20). Logo, os indivíduos que partilham da mesma cultura tendem a apresentar uma interpretação de mundo semelhante, uma atribuição de sentido similar sobre as coisas. Afinal, eles aprendem no interior das práticas cotidianas de seu grupo étnico a respeito desses conceitos e seus significados. Considere, por exemplo, uma criança pequena. Ela desenvolve traços de comportamento similares aos dos pais ou irmãos, na maioria das vezes. Na escola também ocorre esse processo. É a partir da conduta do professor ou dos colegas na educação infantil ou anos iniciais do ensino fundamental que os alunos aprendem formas de agir que farão parte da sua identidade. Para compreender melhor como ocorre o processo de formação das 33 identidades, veja algumas características inerentes a ela: negação; diferença; relação. Os sujeitos constituem a sua identidade a partir da negação daquilo que não são. Ou seja, sou “branco” porque não sou “negro” ou “amarelo”; sou um sujeito “calmo” pois não sou “nervoso” ou “agressivo”. Esse mesmo mecanismo que faz alguém definir quem é (ou pretende ser) exclui as demais possibilidades, normalmente inserindo o sujeito em um sistema de classificação social que possui representações simbólicas sobre as diferentes categorias. Ou seja, quando alguém se posiciona como “branco”, por exemplo, assume todos os significados que essa classificação proporciona. Isso inclui os privilégios históricos, bem como uma posição que simbolicamente denota maior confiança, ou que é associada à competência profissional, etc. O segundo elemento que você deve considerar é que a identidade é produzida também a partir da marcação da diferença. Assim, um sujeito é da forma como é porque é diferente dos demais com os quais não se identifica. É importante você notar que “[...] a diferença é um elemento central dos sistemas classificatórios por meio dos quais os significados são produzidos [...]” (WOODWARD, 2012, p. 68). O problema com a questão da diferença ocorre quando ela é utilizada dentro desse sistema classificatório para realizar juízo de valor e construir representações ruins, negativas e que inferiorizam algumas identidades. Isso foi muito recorrente, por exemplo, durante os processos colonizadores no Brasil. Nesse contexto, assumiu-se a identidade europeia (dos colonizadores) como a central, mais importante e poderosa do que todas as demais. Nesse processo, indígenas e negros foram representados como subalternos, inferiores, selvagens e sem cultura. Convém reforçar ainda que “[...] temos o direito a ser iguais quando a nossa diferença nos inferioriza; e temos o direito a ser diferentes quando a nossa igualdade nos descaracteriza. Daí a necessidade de uma igualdade que reconheça as diferenças e de uma diferença que não produza, alimente ou reproduza as desigualdades [...]” (SANTOS, 2003, p. 56). 34 As diferenças são marcadores que constituem as pessoas, as tornam seres singulares e especiais. Dessa forma, devem ser reconhecidas e valorizadas socialmente. O terceiro aspecto talvez seja o mais importante de todos: o caráter relacional da identidade. A identidade é produzida a partir das relações nos grupos sociais e nas instituições que fazem parte das experiências dos sujeitos: “Nós participamos dessas instituições ou ‘campos sociais’, exercendo graus variados de escolha e autonomia, mas cada um deles tem um contexto material e, na verdade, um espaço e um lugar, bem como um conjunto de recursos simbólicos [...]” (WOODWARD, 2012, p. 29). Os campos sociais são importantes e decisivos para que as relações e interações sociais ocorram e, assim, contribuam para que os sujeitos produzam suas identidades. Nesse contexto, a escola é uma importante instituição, que as crianças frequentam de forma obrigatória a partir dos 4 anos de idade no Brasil e que acolhe aos mais diversos grupos étnicos e culturais. As escolas também possuem seus contextos particulares e seus simbolismos. Por exemplo, uma escola pública pode ser muito diferente de uma escola privada nas questões estruturais, curriculares e, até mesmo, em relação ao público que atende O processo de formação da identidade também envolve aspectos psíquicos. O indivíduo produz tanto selfs sobre simesmo quanto sobre todos os demais com quem convive, formando o seu autoconceito. Segundo Goñi e Fernández (2009, p. 25), “[...] o conceito que uma pessoa tem de seu self surge das interações com os outros e reflete as características, expectativas e avaliações dos demais [...]”. O autoconceito se relaciona estreitamente com a autoimagem e com a autoestima que os sujeitos possuem. Por sua vez, segundo mendes et al. (2012, p. 7), A autoimagem é uma descrição que a pessoa faz de si, a forma como ela se vê, estando esta percepção também relacionada ao modo como os outros a percebem. Por seu turno, a autoestima é uma avaliação que o sujeito faz de si, estando esta valoração relacionada também com o modo como os outros o avaliam [...] 35 Como você pode perceber, durante o processo de formação das identidades, existe uma estreita relação entre o autoconceito, a autoimagem e a autoestima, o que tem importância significativa. Caso o sujeito, ao conviver em seus campos sociais, perceba que simbolicamente sua identidade é representada como inferior ou excluída em relação às demais, pode ter sérios problemas de autoestima e autoimagem. Nesse caso, ele assume para si as representações distorcidas que o desvalorizam. É o que acontece, por exemplo, com identidades culturais minoritárias que sofrem estigmatizações, preconceitos, racismo e violências diversas. Bee e Boyd (2011, p. 284), ao analisarem o autoconceito e o ambiente escolar, comentam que “A criança em idade escolar também começa a ver suas próprias características (e as de outras pessoas) como relativamente estáveis e, pela primeira vez, desenvolve um sentido global de seu próprio valor [...]”. É possível inferir que, na escola, os mecanismos de produção das identidades encontram terreno fértil para que as mais variadas relações e interações necessárias se estabeleçam. Cabe ao docente estar atento, percebendo e intervindo sempre que esse processo possa ser prejudicado por práticas racistas ou preconceituosas durante suas aulas. 8.2 Identidade étnica: desafios dos grupos minoritários Você já viu que a formação das identidades individuais ocorre a partir das relações estabelecidas entre os grupos e instituições sociais às quais os sujeitos pertencem. Essa formação também envolve os aspectos internos, ligados ao desenvolvimento psicológico. É aí que são estabelecidos o autoconceito, a autoimagem e a autoestima. Da mesma forma, a cultura tem importância fundamental. Por meio dela, os indivíduos aprendem as práticas sociais discursivas (o que se diz) e não discursivas (o que se faz) do seu grupo étnico. A cultura, dessa forma, envolve todos os simbolismos e representações que foram estabelecidos com o passar das experiências históricas do grupo. Ela costuma servir como balizador, como norte a guiar as ações futuras daqueles que fazem parte de 36 determinada etnia. Assim, as características étnicas contribuem significativamente para a formação das identidades. Como exemplo, considere algumas alusões a traços ou comportamentos culturais de determinadas etnias: “o povo alemão sabe melhor como poupar”, “os italianos são mais acolhedores e hospitaleiros”, “os indígenas são mais espiritualizados e desapegados dos bens materiais”, etc. Essas afirmações procuram essencializar os traços de uma identidade étnica, o que pode ou não ser verdadeiro para todos os que compõem a etnia (OLIVEIRA; CANDAU, 2010, p. 16). A formação das identidades culturais e étnicas é um processo histórico e social produzido nos embates de poder e força entre as etnias existentes. No decorrer da história brasileira, houve, acompanhando as tendências internacionais, o favorecimento de algumas etnias. Além disso, ocorreu a construção de representações simbólicas que favorecem tais etnias e, ao mesmo tempo, desqualificam e inferiorizam todas as demais, produzindo grandes desigualdades sociais e raciais. Dessa forma, os mecanismos de colonização no Brasil estabeleceram uma relação entre cor e raça que serviu para classificar as populações, bem como para executar a “[...] inferiorização de grupos humanos não europeus, do ponto de vista da produção da divisão racial do trabalho, do salário, da produção cultural e dos conhecimentos [...]” (OLIVEIRA; CANDAU, 2010, p. 16). A colonização não se deu somente no território físico, na materialidade dos recursos e na exploração da mão de obra do colonizado, mas também colonizou os saberes, impôs novas formas de pensar e agir socialmente. As sociedades ocidentais e, mais particularmente, a sociedade brasileira desenvolveram um processo de racialização em que foram cristalizadas algumas características essenciais ao sujeito moderno, que serve de referência a todos os demais. Louro (2011, p. 65) reforça essa ideia ao argumentar que “[...] no contexto da sociedade brasileira, ao longo de sua história, foi sendo produzida uma norma a partir do homem branco, heterossexual, de classe média urbana e cristão [...]”. Dessa forma, as minorias sociais são compostas por todos aqueles que por quaisquer motivos não se encaixem na norma: as mulheres, os negros, os 37 indígenas, os homossexuais, aqueles que possuem outras religiões (como as de matriz africana), as pessoas com deficiência, os pobres, etc. Embora, em grande parte dos casos, esses grupos apresentem-se quantitativamente maiores do que os que servem de referência, são considerados minoritários devido à sua falta de força e de poder nas relações sociais. O professor, ao desenvolver suas atividades na escola, deve estar atento para que as suas aulas não reforcem uma estratificação social que se vale dos aspectos étnico-raciais dos sujeitos. Ele não deve ceder espaço a uma pedagogia que “[...] educou o olhar deste sujeito branco que julga; ela educou seu modo de compreensão sobre a pertença racial. Ela o educou para pensar que ele, branco, não tem raça nem cor e, portanto, pode, do alto de seu estatuto de incolor, julgar quem são, afinal, os ‘de cor’ [...]” (KAERCHER, 2010, p. 87). Ou seja, o docente, seja ele branco, negro ou de qualquer outra cor de pele, deve ter consciência de que as características étnicas influenciam e são importantes para a formação da identidade e, consequentemente, da autoimagem e da autoestima de seus alunos, coibindo práticas racistas e preconceituosas. Ao analisar a produção histórica relativa ao conceito de racismo e suas modificações com o passar das décadas no Brasil, Guimarães (2004, p. 33) comenta que [...] o nosso desafio atual, ao formar as novas gerações, é teorizar a simultaneidade desses dois fatos aparentemente contraditórios, apontados por todos os que nos precederam: a reprodução ampliada das desigualdades raciais no Brasil coexiste com a suavização crescente das atitudes e dos comportamentos racistas [...]. O autor faz uma crítica e um alerta ao fato de que no Brasil entende-se que não há racismo devido ao mito da democracia racial. O fato de haver miscigenação na formação do povo brasileiro não faz com que, naturalmente, as relações sociais sejam harmônicas e justas. O mito da democracia racial mascara o grande abismo que é produzido desde a época colonial e reproduzido em instituições como a escola, colocando alguns grupos étnicos em condição desigual, marginalizada e empobrecida. 38 Você deve entender que “[...] a identidade étnico-cultural, mesmo quando aparece como marginalizada, excluída, não é uma realidade muda, simples objeto de interpretação. Ela é fonte de sentido e de construção do real. Os processos culturais são processos conflitivos [...]” (KREUTZ, 1999, p. 83). Os conflitos normalmente surgem a partir dos movimentos sociais de algumas etnias em busca de sua igualdade de direitos políticos, econômicos e sociais, procurando quebrar a hegemonia de poder que se instituiu historicamente. Como exemplo, considere
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