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Revista Atitude Edição Especial Direito · Faculdade Dom Bosco de Porto Alegre · Ano X - No 21 - agosto a dezembro de 2016 5150 AINDA É IMPORTANTE ESTUDAR DIREITO ROMANO? AINDA É IMPORTANTE ESTUDAR DIREITO ROMANO? Débora Grivot1 RESUMO Este trabalho tem o propósito de investigar a contínua oportunidade do estudo do Direito Romano na formação jurídica. A atualidade está marca- da pela influência do utilitarismo proveniente de épocas anteriores, que mesmo superado, ainda redunda na validação dos argumentos somente se estes corresponderem satisfatoriamente ao ‘para que serve?’ que possam estar submetidos. Isso também vale para a formação do bacharel em Direito, máxime diante das recorrentes reformas curriculares dos cursos superiores em Direito, que alinham ‘formação e mercado’ numa conjugação particular e própria dos novos tempos. Não só isso, além das exigências mercadológicas na seara do ensino, há também a avalanche das novas tecnologias que trazem consigo uma pecha do descarte do que é antigo, como ultrapassado. Porém, com o fito de apontar por que ainda é importante estudar Direito Romano, este trabalho pretende elencar alguns fundamentos desta importância. PALAVRAS-CHAVE: Direito Romano. Formação Jurídica. História do Direito ABSTRACT This paper has the purpose of investigating the continuous opportunity of the study of Roman Law in juridical formation. The actuality is marked by the influence of utilitarianism from previous times, which even surpasses, still results in the validation of the arguments only if they correspond sa- tisfactorily to the ‘for what purpose?’ that they may be submitted. This also applies to the formation of a bachelor’s degree in law, especially in view of the recurrent curricular reforms of higher law courses, which align ‘forma- tion and job market’ in a particular combination of the new times. Not only that, in addition to the marketing demands in the field of education, there is also the avalanche of new technologies that bring with them a chunk of discarding what is old, as outdated. However, in order to point out why it is still important to study Roman law, this paper goals to list some foundations of this importance. KEYWORDS: Roman law. Legal Training. History of Law. Seria estranho perguntar para um estudante de engenharia como conseguiu concluir o curso sem ter se dedicado à disciplina de cálculo. Seria mais estranho perguntar para um estudante de 1 Professora de Direito Romano e História do Direito na Faculdade Dom Bosco de Porto Alegre. Professora de Direito Romano e História do Direito nas Faculdades Integradas São Judas Tadeu de Porto Alegre. Doutora em Direito (UFRGS), mestre em Direito (UFRGS). medicina como conseguiu concluir a sua formação sem ter tido no curso a disciplina de anatomia e morfologia. Paradoxalmente, não causa mais estranheza saber que muitos estudantes de Di- reito concluem a formação sem conhecer as disciplinas de História do Direito e Direito Romano. Porém, estes breves apontamentos pretender incentivar a observação da historicidade do fe- nômeno jurídico, e demonstrar que o estudo do Direito Romano ainda é oportuno. Assim, pode-se apontar quatro perspectivas da importância de estudar Direito Romano ainda hoje: 1) Alto valor formativo; 2) A perfeição técnico-jurídica; 3) Interesse prático e 4) Aspecto histórico2. Todas estas perspectivas se afirmam como instrumentos de educação jurídica, e por isso, imprescindível para a formação do estudante de Direito. O referido ‘alto valor formativo’ pode imbuir o estudante de um espírito de justiça que tiveram os romanos, máxime quando propugnavam a ânsia de honeste vivere, alterum non laedere e suum cuique tribuere (viver honestamente, não lesar a outrem, dar a cada um o que é seu) expressões romanas apresentadas no Digesto de Justiniano3. Este alto valor formativo se espelha na liberdade e independência perante a lei, prestigiando o valor da iurisprudentia4 para a formação do direi- to5. Além disso, serve também o Direito Romano como suporte para uma firmeza de princípios perante as transformações da vida jurídica atual que atravessa uma crise muito parecida aquela vivida no mundo romano. Foi na época clássica6 que as relações econômicas deflagram-se como manifestação preliminar daquilo que viria a ser a “globalização” da época. O comércio, até então quase inexistente numa sociedade agrícola, irrompe com a integração de outros povos que em Roma encontravam o seu pólo econômico, trazendo consigo os seus hábitos comerciais7. Por isso o 2 CRUZ, Sebastião. Direito Romano. Coimbra: Livraria Almedina, 1969, p. 117. Sebastião Cruz apresenta razões da utilidade do estudo do Direito romano, elaboradas com base no documento decorrente de um inquérito realizado com mais de 400 juristas de todo o mundo, questionados sobre esta oportunidade de tal ensino, publicado na revista Labeo em 1956 em forma de separata. 3 D.1.1.10.1 (Ulpianus) Iuris praecepta sunt haec: honeste vivere, alterum non laedere, suum cuique tribuere. D.1.1.1.0.1 (Ulpiano) Os preceitos de direito são estes: viver honestamente, não lesar outrem, dar a cada um o que é seu. DIGESTO DE JUSTINIANO, Livro I, Tradução de Hélcio Maciel França Madeira, 2ª Ed., São Paulo: Editora revista dos Tribunais, 2000, p. 19. 4 D.1.1.10.2 (Ulpianus) Iuris prudentia est divinarum atque humanarum rerum notitia, iusti atque iniusti scientia. D.1.1.10.2 (Ulpiano) Jurisprudência é o conhecimento das coisas divinas e humanas, a ciência do justo e do injusto. DIGESTO DE JUSTINIANO, Livro I, Tradução de Hélcio Maciel França Madeira, 2ª Ed., São Paulo: Editora revista dos Tribunais, 2000, pg. 19. O importante é frisar que o sentido de ju- risprudência aqui colocado não é necessariamente aquele entendido nos dias atuais como decisões reiteradas dos Tribunais. Conforme os ensinamentos de José Carlos Moreira Alves: “Iurispudentia (jurisprudência) significa ciência do direito (prudentia = ciência; iuris = direito).Os jurisconsultos, que em Roma desfrutaram de imenso prestigio, exerceram acentuada influencia sobre o desenvolvimento do direito romano, graças, principalmente, a três aspectos de sua atividade: agere, cavere, respondere. Cavere é a expressão técnica que indica a atuação do jurista no formular e redigir os negócios jurídicos, para evitar prejuízo á parte interessada, por inobservância de formalidades; agere é a atividade – no que concerne ao processo – semelhante á desenvolvida no cavere; e respondere diz respeito aos pareceres dos jurisconsul- tos sobre questões de direito controvertidas. ALVES, José Carlos Moreira. Direito Romano. Rio de Janeiro: Editora Forense, 2007, pg. 41. 5 A palavra direito, segundo as lições de Sebastião Cruz, é composta da partícula “de” que exprime intensidade (muito) e “Rectum” que significa algo não oblíquo, não torto. Assim, derectum significa algo que está muito reto, que não se inclina nem para a direita nem para a esquerda. O fiel da balança precisamente no meio, e os pratos da balança “retamente” alinhados. Os gregos utilizavam como símbolo a “Dikè”, deusa grega da justiça. Já para os romanos cumpria esta função a “Iustitia”, a deusa romana da justiça. Falando sobre símbolos, observa-se que nas suas imagens que a Dikè tem os olhos abertos para ver bem, com uma espada na mão direita e na esquerda uma ba- lança. A Iustitia não tem espada, segura a balança com as duas mãos e está de olhos vendados para ouvir bem, representando um direito oral como o direito romano. CRUZ, Sebastião, Direito Romano. Coimbra: Livraria Almedina, 1969, pg. 28. 6 A questão da divisão das fases históricas de Roma não é unânime, varia conforme o historiador e conforme o ponto de vista escolhido por ele. Silvio Meira expõe esta circunstância e aponta os mais diversos autores e suas classificações. A classificação mais abrangente apontada pelo romanista é entre Historia Externa e História Interna. É dentro da divisão da História Interna que está o período clássico do DireitoRomano, porque este se divide da seguinte forma: período pré-clássico, clássico e pós-clássico. Para uma noção do que se trata o período clássico, vejamos o que nos ensina o jurista: “O chamado período do direito antigo ou pré-clássico termina, segundo muitos autores, com a Lei Ebúcia (149 a 126 a.C.). Esta lei, que deu início à transformação do direito adjetivo, constituiu um marco importante entre duas épocas. Alguns querem que o direito pré-clássico vá até Cícero. Com este se iniciaria a idade clássica, que estenderia até Diocleciano (284 da era Cristã). Diversos escritores preferem conceituar mais restritamente o período clássico, identificando-o com o Principado (de 27 a.C. com Augusto até 284 d.C. com Diocleciano), pois nesses três primeiros séculos é que surgiram os maiores jurisconsultos romanos, cujos trabalhos, embora em grande parte desaparecidos, ainda subsistem em fragmentos no Digesto. São três séculos de ouro do Direito Romano, em que viveram Sabino (Masúrio), Gaio Cássio Longino, Nerva Pai, Gaio, Celso, Pompônio, Ulpiano, Paulo, Papiniano, Modestino.” MEIRA, Silvio. História e Fontes do Direito Romano. São Paulo: Saraiva, 1966, pg. 24. 7 IGLESIAS, Juan. Derecho Romano. 12ª ed. Barcelona: Ariel, 1999, pg. 231: “Ciertamente, la aplicación de los juristas al servicio del comercio logra para éste una reglamentación tan variada como sutil, en justa respuesta a demandas sociales sucesivamente acrecidas. La lógica, hermanada con la intuición, no menos que con las exigencias de la buena fe y de la justicia timbrada por la equidad, despliega Revista Atitude Edição Especial Direito · Faculdade Dom Bosco de Porto Alegre · Ano X - No 21 - agosto a dezembro de 2016 5352 AINDA É IMPORTANTE ESTUDAR DIREITO ROMANO? direito das gentes8, comum a todas as nações, tem o seu valor em Roma, e o Pretor contribui para avigorar a invenção do direito. O conhecimento deste caráter universal do Direito Romano pode ser muito útil para o jurista moderno vive na era da globalização e do direito de ‘todas as gentes’9. Ainda em relação ao seu alto valor normativo, o Direito Romano também auxilia na percepção do casuísmo científico, no qual o jurista deve saber, não apenas interpretar e aplicar as normas aos casos concretos, mas deve sobretudo estar habilitado na sutileza de criar uma norma adequada para um caso especial e não previsto nas normas já existentes10. Da mesma forma, também a perfeição técnico-jurídica faz a importância do estudo do Direito Romano, isso porque a ciência do direito nasceu com os romanos, porque estes criaram prin- cípios que são perenemente válidos. Foram os romanos que fizeram do direito uma verdadeira ‘ciência’, já que elaboraram certos princípios vigentes até a atualidade, e que resultaram de uma experiência de treze séculos, do trabalho de homens dotados de uma excepcional intuição para as coisas do direito, formulando conceitos que consagraram a terminologia jurídica e que nunca mais desapareceram. Por isso, no pensamento de Sebastião Cruz, ‘o Ius Romanum não é um direito morto, nem sequer um simples pressuposto das atuais instituições. É mais, muito mais. É um direito vivente. É um modelo para todo aquele que tem a missão de criar, de interpretar ou de aplicar o direito’11. Quando o autor refere à perfeição técnico-jurídica proveniente do estudo do Direito Romano, quer sem dúvida frisar a origem latina do direito atual, principalmente na sua perspectiva linguística, já que muitos institutos que sustentam o ordenamento jurídico são alicerçados na terminologia romana.12 los más finos y asegurados recursos en pro de un tráfico económico-jurídico en aumento constante”. 8 Segundo o Digesto de Justiniano: D.1.1.1.4 Ius gentium est, quo gentes humanae utuntur. Quod a naturali recedere facile intellegere licet, quia illud omnibus animalibus, hpc solis hominibus inter se commune sit. D.1.1.1.4 O direito das gentes é aquel do qual os povos humanos se utilizam. O que permite facilmente entender que ele se distancia do natural, porque aquele é comum a todos os animais e este é comum somente aos homens entre si. DIGESTO DE JUSTINIANO, Livro I, Tradução de Hélcio Maciel França Madeira, 2ª Ed., São Paulo: Editora revista dos Tribunais, 2000, pg. 16. Já Gaio, nas suas Institutas, descreve: Gaio 1.1: Todos os povos que são regidos por leis e costumes usam um direito que, em parte, lhes é próprio e, em parte, é comum a todos os homens, pois o direito que cada povo promulga para si mesmo, esse lhe é próprio e se chama ius civile, direito inerente à própria cidade, mas o dirieto que a razão natural constituiu entre todos os homens e entre todos os povos que o observam, chama-se ius gentium, como se disséssemos o direito que os povos usam. Assim, também o povo romano usa um direito que , em parte, lhe é próprio e, em parte, comum a todos os homens. INSTITUTAS DO JURISCONSULTO GAIO, tradução de J.Cretella Jr e Agnes Cretella, São Paulo: Ed. Revista dos Tribunais, 2004, pg. 37. Além disso, vale a lição de Juan Iglesias: “El ius gentium es derecho positivo romano, pero no exclusivista o personalista, sino llamado a regir entre romanos y entre romanos y extranjeros. Fruto, de una parte, del remozamiento y vigorización del sistema tradicional, representa, de otra, la acogida de algunos principios jurídicos extraños, que son injertados en el viejo tronco con sutileza de visión romana. El ius Pentium es ius civile, un ius civile abierto y progresivo, despojado de su condicionalidad nacional, limado y atemperado a nuevos modos, en los que triunfa el principio de la libre forma contractual, frente a la angostura y rigidez de los viejos moldes. Su nervio está constituido por negocios que surgidos en la actuación del comercio internacional, dan lugar a bonae fidei iudicia.” IGLESIAS, Juan, . Derecho Romano, 12ª ed. Barcelona: Ariel, 1999, pg. 64. 9 Uma importante obra sobre o ius gentium é aquela de Max Kaser, na qual examina o seu significado histórico, suas classes, suas diversas interferências na vida privada e no direito privado, sendo inclusive apoio ou suporte para compreensão de um direito internacional atual. Veja KASER, Max. Ius Gentium. Traducción de Francisco Javier Andrés Santos, Granada, Editorial Comares, 2004. 10 CRUZ, Sebastião. Direito Romano. Coimbra: Livraria Almedina, 1969, pg. 118. Outra interessante posição sobre a sutileza de criar norma no caso concreto pose ser observada no texto de H.L.A. Hart: “A textura aberta do direito significa que existem, de fato, áreas do comportamento nas quais muita coisa deve ser decidida por autoridades administrativas ou judiciais que busquem obter, em função das circunstancias, um equilíbrio entre interesses conflitantes, cujo peso varia de caso para caso. (...) Nisso, à margem das normas e nos espaços deixados em aberto pela teoria dos precedentes, os tribunais desempenham uma função normativa que os órgãos administrativos também desempenham nuclearmente, ao elaborar padrões variáveis.Em um sistema no qual o princípio do stare decisis seja firmemente reconhe- cido, essa função dos tribunais se assemelha muito ao exercício, por parte de um órgão administrativo, de poderes normativos delegados. Na Inglaterra esse fato é muitas vezes obscurecido pelo formalismo verbal, pois os tribunais freqüentemente desmentem essa função criadora e insistem em que a função adequada da interpretação jurídica e do uso do precedente são, respectivamente, buscar a ‘intenção do legislador’ e fazer referência ao direito já existente.” HART, H.L.A. O Conceito de Direito. São Paulo: Ed. Martins Fontes, 2009, pg. 176. 11 CRUZ, Sebastião. Direito Romano. Coimbra: Livraria Almedina, 1969, pg. 118. 12 DONATO, Hernani. A palavra escrita e a sua história. 2ª ed., São Paulo: Edições Melhoramentos, 1951, pg. 90. Segundo este autor, sob a perspectiva jurídica o latim pode se perpetuar. Assevera o autor: “Um caso miraculoso – Eis o caso único e milagroso de uma língua oficialmente dada por morta e que todavia vive prodigiosamenteimperante naquilo que os homens possuem de mais forte e de mais vivo: a Religião, a Lei, a Ciência. Sobre essa vida de uma língua oficialmente considerada porta, definiu-se muito bem o estudioso Paulo Savj-Lopez, pela forma seguinte: o latim vive ainda hoje uma vida férvida e fecunda nas línguas neolatinas. Aquele maravilhoso poder vital, em virtude do qual as leis do direito romano continuam ainda hoje em grande parte das legislações modernas, é o mesmo que faz a língua romana perpetuar-se com sempre renovada energia numa vasta superfície da Terra. Os idiomas neolatinos, na sua múltipla variedade, podem ser Além disso, também é muito oportuno o estudo do Direito Romano pelo seu interesse prático: as instituições de hoje são basicamente apoiadas nas instituições romanas, preâmbulo do direito civil. Sob este prisma é possível asseverar que algumas das normas atuais são meras transcrições ou adaptações de preceitos romanos13; outras chegam às raias de não se compreender bem sem a sua análise histórica. Portanto, forma-se melhor aquele que sabe, por exemplo, a origem da ob-ligatio, que é mais do que um simples saber histórico, mas prática cotidiana da lide jurídica. Ainda, outro exemplo de interesse prático proveniente do estudo romanístico pode ser percebido no campo da boa-fé. No Direito Romano, a referência à Fides é tão antiga quanto é a fundação da cidade. Tratava-se de uma divindade reconhecida por cives (cidadãos romanos) e por non-cives (peregrinos), era invocada na celebração dos negócios. Ela velava pelo cumprimento desses negócios, castigando os faltosos e protegendo os cumpridores. Tinha sua sede na palma da mão direita, por isso os contraentes davam um aperto das mãos direitas (dexterarum porrectio) para imprimir solenidade à promessa. Desaparecido o culto da deusa Fides, ficou o aperto de mãos direitas como sinal de confiança mútua. Hoje, para além da herança semântica, fides é também bona fides, um dever de conduta de probidade na vida de relação.14 Por fim, um último aspecto apontado como relevante para advogar pelo Direito Romano nos dias atuais é o seu aspecto histórico, isto é, um verdadeiro laboratório jurídico porque são treze séculos de variadas circunstâncias sociais que demandavam a regulação. Assim, o operador do direito pode perceber a historicidade intrínseca do fenômeno jurídico, analisando como as nor- mas nascem, evoluem reagem às diversas circunstâncias e ao final fenecem no campo jurídico.15 Por tudo isso, já é consenso afirmar que o Direito Romano é o alfabeto e a gramática da lingua- gem jurídica, e que o seu conhecimento não é apenas preliminar ou introdutório das disciplinas modernas, mas é sem dúvida a base sólida onde alicerçar conhecimentos que transformem o simples bacharel em ciências jurídica e sociais num jurista. Hoje o estudo dos institutos de Direito Romano tem sofrido acentuada indiferença. Isto porque parece muito mais proveitoso ao operador do direito moderno acompanhar as novas tecnologias do que dedicar-se a formação intelectual e perquirir soluções jurídicas apresentadas pelos antepassados. Quem assim procede, esquece que a noção e a consciência da técnica do direito dos antigos servem não apenas para construir uma considerados, ou como outras tantas fases atuais do latim, ou como línguas novas, derivadas do latim; o que é certo, entretanto, é que substancialmente, o latim continua neles.” 13 Alguns romanistas modernos utilizam esta ferramenta como base para a explicação do direito civil. Tal é a obra de Cretella Jr, Cur- so de direito romano: o direito romano e o direito civil brasileiro, ou mesmo de Silvio de Salvio Venosa, Direito Civil – Parte Geral, como exemplos de muitos outros. 14 Um autor que com maestria se dedicou ao tema, Menezes Cordeiro, referiu “A fides romana constitui a base lingüística e conceitual da boa-fé no Direito civil português. O conhecimento profundo da sua natureza primitiva e das linhas subseqüentes de evolução tem um interesse insofismável.” CORDEIRO, Antonio Manuel Menezes. Da boa-fé no direito civil. 2 v., Coimbra: Almedina, 1984, p. 53. 15 Um historiador do direito argentino, já escreveu: “El jurista que no se satisface con el conocimiento superficial, descriptivo, de las normas, sino que intenta captar su espíritu, penetrar en su intimidad, no puede – por lo tanto – prescindir del estudio histórico, único capaz de responder a los interrogantes de esa índole que se nos plantean cada vez que reflexionamos sobre su significado. Cualquiera sea el siglo en que esas normas hayan nacido, antiguo o moderno, problemas de interpretación histórica, en mayor o menor número, se presentan siempre, y no deben ser evitados. (...) Como he dicho otras veces, ley hoy vigente es sólo un capitulo, un capítulo más, de la his- toria o la novela de la institución respectiva. Mal podríamos entender ese capítulo si no hubiéramos leído los anteriores, si no supiéramos lo que sucedió antes. Mucho de lo que leyéramos ese capítulo carecería de sentido para nosotros, no tendría explicación, por faltamos los elementos de juicio, los datos o las claves para interpretarlo. La función de la disciplina historia del Derecho es, precisamente, ésa: revelarnos el pasado para permitirnos comprender el presente. Además de auxiliamos en la labor hermenéutica, la historia jurídica, bien entendida, es capaz de estimular nuestro espíritu crítico, de impedir que la dogmática degenere en nosotros en un rígido dogmatismo, con su pernicioso efecto paralizante de la inteligencia. Ella nos impulsa a relacionar las normas jurídicas, concebidas como enunciados lógicos y éticos, con los fenómenos sociales: los principios con los hechos. También, nos hace tomar conciencia de la necesidad de situar la ciencia jurídica en la intersección de las coordenadas tiempo y espacio, y de cultivarla en función de ellas. Al ser tan importantes los beneficios que brinda, su presencia en los planes de estudio universitarios ha de ser considerada indispensable. LEVAGGI, Abelardo, Historicidad Del Derecho, in: Revista IMES Direito, ano II, nº 4, janeiro-junho, 2002, pg. 51-54. Revista Atitude Edição Especial Direito · Faculdade Dom Bosco de Porto Alegre · Ano X - No 21 - agosto a dezembro de 2016 5554 AINDA É IMPORTANTE ESTUDAR DIREITO ROMANO? indissolúvel cultura jurídica, mas também para compreender a prática atual. É no Direito Romano que se apoia a ideia de universalidade e principalmente, não é despiciendo frisar veementemente, a importância de Roma para a realização de uma história universal. Segundo Rudolf Von Jhering: “Tres veces Roma dictó leyes al mundo y sirvió de lazo de unión entre los pueblos: primero por la unidad del Estado romano en la plenitud de su poderío; luego por la unidad de la Iglesia a la caída del Imperio; finalmente, por la unidad del derecho al ser adoptado el de Roma en la Edad Medio. La importancia y misión de Roma en la historia se resume en que representa el triunfo de la idea de universalidad sobre el principio de las nacionalidades16.” Assim, atinge-se o intuito deste trabalho: a luta contra a aversão ao passado que se alastrada pela formação jurídica atual. O esforço em trazer o Direito Romano como modelo do conteúdo da norma não é em vão17. Não é uma simples demonstração de que não se trata se necrologia jurídica, mas é a defesa de que, sim, o Direito Romano pode ser modelo para o direito atual. Portanto, segundo as lições de Jhering, a importância do Direito Romano para o mundo atual não consiste só em ter sido por um momento, a fonte e a origem do Direito. Sua autoridade reside na profunda revolução interna, na transformação completa que causou em todo o nosso pensa- mento jurídico, e em ter chegado a ser, assim como o Cristianismo, um elemento da civilização moderna.18 Como o bacharel em Direito poderia prescindir de conhecer a origem do seu objeto de seu estudo? O estudante de engenharia não prescinde da disciplina de cálculo; o estudante de medi- cina não se formasem saber anatomia. Não é possível ceder à terrível aversão à história dentro da academia de estudos jurídicos. Por quê? Responde esta indagação a primeira passagem do Digesto de Justiniano, na qual Ulpiano refere o jurista Celso para quem o Direito é ars boni et aequi19 e sem a qual não há que se compreender o ‘para que serve’ do Direito. 16 IHERING, Rudolf Von, El espíritu del derecho romano, trad. Fernando Vela, Madrid: Marcial Pons, 2005, pg. 29. 17 Muitos historiadores ainda se esforçam em demonstrar a importância da cultura histórica. Em especial citamos a perplexidade demonstrada por Ivar Lissner, na sua obra “Assim viviam nossos antepassados”, cuja referência é: “Mas que são uns poucos milênios quando computados pelo relógio da eternidade que mede o ritmo do desenvolvimento humano? Tudo quanto fizemos, pensamos e criamos baseia-se no vasto alicerce das antigas civilizações. As obras magnificentes da Grécia teriam sido inconcebíveis sem o antigo Oriente, sem a Suméria, Babilônia, Assíria e Egito. A vida dos gregos sua grandiosa imaginação e energia criadora irradiaram-se pelo Mediterrâneo oriental até a Itália. Somente porque Roma nos transmitiu a cultura grega é que o espírito da Grécia pode espalhar-se por todo o mundo ocidental. Nas artes plásticas, na literatura e na ciência, muitíssimos outros povos da antiguidade realizaram muito mais que os romanos. Mas os romanos ultrapassaram a todos na arte da política que fortaleceram por meio de uma cultura unificadora. Unir todos os países da área do Mediterrâneo numa paz oniabrangente, somente Roma pode fazê-lo. Os romanos praticaram a vida com tal imediatismo, eram tão praticamente orientados, e tão grandes estadistas e organizadores políticos que sua imaginação artística permaneceu necessariamente em segundo plano. No campo da arte, não foram tão bem dotados como os gregos ou os egípcios, mas politicamente pode-se considerá- -los, de certo, como o povo mais capaz que já existiu sobre a Terra. As rodas da história continuam a rolar pelo globo, o cenário sempre muda, as civilizações vêm e vão. Gerações após gerações marcham ao longo da infinda estrada através dos milênios. Essa estrada passa pelas maravilhosas civilizações da mesopotâmia; pelas pirâmides da IV Dinastia do Egito e dos Reis que eram deuses; pelos aristocratas comerciais da Fenícia; pelos palácios de Persepolis e pelo haren de Xerxes; pela promessa de redenção que a palestina deu à Humanidade; pelas misteriosas cidades de Mohenjo-Daro; pelas 40.000 torres da grande muralha da China; pelo labirinto do Rei Minus; pelo apogeu da Grécia, o classicismo que não admite ulterior perfeição. O homem se esgota em grandes realizações; nações a que devemos fabulosa herança desaparecem; perdidos impérios ensinam-nos a inconstância do destino e o ciclo eterno de toda a vida sobre a Terra. Que imensa estrada de experiências humanas! Gostaríamos de parar por um momento; de voltar para trás e olhar, para aprender a lição de tudo isso. Mas a estrada é por demais vasta, por demais longa e o homem é fraco e impotente, simples mancha num cosmos que permanece para sempre fora de sua compreensão.” LISSNER, Ivar, Assim Viviam nossos antepassados, 1º volume, trad. Oscar Mendes, 5ª Edição, Belo Horizonte: Editora Itatiaia Limitada, 1968, pg. 463. 18 IHERING, Rudolf Von. El espíritu del derecho romano. trad. Fernando Vela, Madrid: Marcial Pons, 2005, pg. 30. 19 Expressão romana que inaugura o Digesto de Justiniano e é muito famosa e difundida entre os romanistas: D.1.1.1.pr (Ulpianus) Iuri operarum prius oportet, unde nomen iuris descendat. est autem a iustitia appellatum: nam, ut eleganter Celsus definit, ius est art boni et aequi. D.1.1.1.pr (Ulpiano) É preciso que aquele que há se de dedicar ao direito primeiramente saiba de onde descende o nome ‘direito’ (ius). Vem, pois, de ‘justiça’ chamado. De fato, como Celso elegantemente define, o direito é a arte do bom e do justo. DIGESTO DE JUSTINIANO, Livro I, Tradução de Hélcio Maciel França Madeira, 2ª Ed., São Paulo: Editora revista dos Tribunais, 2000, pg. 15. REFERÊNCIAS ALVES, José Carlos Moreira. Direito Romano. Rio de Janeiro: Editora Forense, 2007. CORDEIRO, Antonio Manuel Menezes. Da boa-fé no direito civil. 2 v., Coimbra: Almedina, 1984. CRUZ, Sebastião. Direito Romano. Coimbra: Livraria Almedina, 1969. DIGESTO DE JUSTINIANO. Livro I. Tradução de Hélcio Maciel França Madeira, 2ª ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000. DONATO, Hernani. A palavra escrita e a sua história. 2ª ed. São Paulo: Edições Melhoramentos, 1951. HART, H.L.A. O Conceito de Direito. São Paulo: Ed. Martins Fontes, 2009. IGLESIAS, Juan. Derecho Romano. 12ª ed. Barcelona: Ariel, 1999. IHERING, Rudolf Von. El espíritu del derecho romano. trad. Fernando Vela, Madrid: Marcial Pons, 2005. INSTITUTAS DO JURISCONSULTO GAIO, tradução de Cretella Jr e Agnes Cretella, São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004. KASER, Max. Ius Gentium. Traducción de Francisco Javier Andrés Santos, Granada: Editorial Comares, 2004. LEVAGGI, Abelardo, Historicidad Del Derecho, in: Revista IMES Direito, ano II, nº 4, janeiro-junho, 2002, pg. 51-54. MEIRA, Silvio. História e Fontes do Direito Romano. São Paulo: Saraiva, 1966.
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