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[TEXTO 13: CIÊNCIA E MORAL - MACHADO] A crítica de Nietzsche ao conhecimento racional, ao conhecimento científico tal como existe desde Sócrates e Platão, é tema constante de seus estudos desde os primeiros aos últimos textos e fundamentalmente é uma crítica à verdade. Não no sentido de estabelecer um conceito rigoroso e sistemático de verdade, uma verdade mais científica, mas de ser uma crítica da própria ideia de verdade considerada como um valor superior, levando à superação de alguns preconceitos filosóficos. Nietzsche aponta a arte como um modelo alternativo para a exacerbação da racionalidade, considerando a experiência artística, especialmente a arte trágica, superior ao conhecimento racional e atribuindo um valor maior à arte do que a verdade. INTRODUÇÃO O que interessa a Nietzsche é realizar uma crítica radical do conhecimento racional tal como existe desde Sócrates e Platão. Se não existe em Nietzsche propriamente uma questão epistemológica, se ele formula uma recusa de uma teoria do conhecimento, é porque o problema da ciência não pode ser resolvido no âmbito da própria ciência. Fundamentalmente esta crítica da ciência é uma crítica da verdade. Não no sentido de procurar estabelecer um conceito rigoroso e sistemático de verdade, de denunciar as ilusões, de superar os obstáculos à realização da racionalidade. Ponto central do ambicioso projeto de "transvaloração de todos os valores", a investigação sobre a verdade é uma crítica da própria ideia de verdade considerada como um "valor superior", como ideal. A segunda direção da reflexão nietzschiana é o parentesco entre a ciência e a moral. Sua ideia é clara: se há oposição entre ciência e arte, há continuidade entre ciência e moral Nietzsche. A ciência não está isenta de juízos de valor; mais ainda: é a moral que dá valor à ciência. Uma genealogia da verdade, tal como Nietzsche a elabora nesse momento, só pode ser feita no âmbito de uma genealogia da moral, posição que não implica uma teoria do conhecimento nem mesmo uma moral. Pensando a ciência a partir de seu antagonismo com a arte e de sua continuidade com a moral, o que faz Nietzsche é avaliar o conhecimento racional e a pretensão de verdade por meio de dois fenômenos culturais profundamente heterogêneos - um considerado positivo e o outro negativo - que exprimem um aumento ou diminuição de força, de potência. A arte expressa uma superabundância de forças: remete aos instintos fundamentais, à vontade apreciativa de potência. A moral atesta uma deficiência de forças: remete a instintos secundários, mais fracos, à vontade depreciativa de potência. "mostrar como a questão da ciência, que continua sendo fundamentalmente a questão da verdade, não pode ser elucidada através de uma análise interna da própria ciência, mas remete necessariamente a uma genealogia da moral: não uma teoria moral, mas uma teoria 1 da vontade de potência em que a vida é considerada como princípio último de avaliação tanto do conhecimento quanto da moral." O que se pretende: 1) Revelar a grande antinomia entre a moral e a vida: a moral, como manifestação da fraqueza e insurreição contra a vontade afirmativa de potência, é uma negação da vida, um combate contra seus valores mais fundamentais. 2) Compreender como a genealogia da moral é o fundamento de uma genealogia da verdade: o elemento-chave da argumentação é o conceito de vontade de verdade. A vontade de verdade, que é a crença de que nada é mais necessário do que o verdadeiro, de que o verdadeiro é superior ao falso, de que a verdade é um valor superior - crença que funda a ciência e constitui a essência da moral e da metafísica - é a expressão de uma vontade negativa de potência. A ARTE TRÁGICA E A APOLOGIA DA APARÊNCIA Tendo como plano de fundo a arte trágica grega, Nietzsche identifica no mundo a ação de duas forças cósmicas, dois impulsos primordiais: o apolíneo e o dionisíaco, os quais podem ser comparados aos movimentos de criação e destruição da natureza. Na Visão Dionisíaca do mundo, Nietzsche indica essa dupla fonte da arte grega e antecipa que, embora sejam impulsos antagônicos, há uma possibilidade de uma união através da arte trágica grega. Por que os gregos criaram os deuses olímpicos ou a arte apolínea? Para tornar a vida possível ou desejável, dando ao mundo uma superabundância de vida. A criação da arte apolínea, que tem na epopéia homérica sua mais importante realização, é a expressão de uma necessidade. "A vida só é possível pelas miragens artísticas" - Nietzsche Para que o grego, povo mais do que qualquer outro exposto ao sofrimento, pudesse viver foi necessário mascarar os terrores e atrocidades da existência com os deuses olímpicos, deuses da alegria e da beleza, resplandecentes filhos do sonho. A arte apolínea é a arte da beleza: se os deuses olímpicos não são necessariamente bons ou verdadeiros - como o deus das religiões morais depois analisadas por Nietzsche -, eles são belos. Para o grego beleza é medida, harmonia, ordem, proporção, delimitação mas também significa calma e liberdade com relação às emoções, isto é, serenidade. Contra a dor, o sofrimento, a morte o grego diviniza o mundo criando a beleza. "Não existe belo natural". O mundo grego da beleza é o mundo da "bela aparência"; a beleza é uma aparência. A questão da aparência é central em toda a filosofia de Nietzsche. 2 Se a beleza é uma aparência é porque há uma verdade que é a essência. Mais ainda: a beleza é uma aparência, um fenômeno, uma representação que tem por objetivo mascarar, encobrir, velar a verdade essencial do mundo. Para escapar do saber popular pessimista, o grego cria um mundo de beleza que, ao invés de expressar a verdade do mundo, é uma estratégia para que ela não ecloda. Produzir a beleza significa se enganar na aparência e ocultar a verdadeira realidade. Quando se diz que algo é belo apenas se diz que tem uma bela aparência, sem nada se enunciar sobre sua essência. Mascarando a essência, a vontade, a verdadeira realidade, a beleza é uma intensificação das forças da vida que aumenta o prazer de existir. Trata-se porém de uma aparência necessária. - Libertação da dor pela aparência. Assim, o primeiro importante resultado da análise nietzschiana, ao mostrar como os gregos ultrapassaram, encobriram ou afastaram um saber que ameaçava destruí-los, graças a uma concepção apolínea da vida, é o elogio da aparência. A apologia da arte já significa, como sempre significará para Nietzsche, uma apologia da aparência como necessária não apenas à manutenção, mas à intensificação da vida. O conceito de apolíneo, pode ser entendido a partir do principium individuationis, cujo sentido é a criação de individualidades. - Princípio de individuação a partir do qual as coisas ganham forma na multiplicidade da aparência, ou então, processo pelo qual o Uno-Primordial se representa nos entes individuais. Portanto, o apolíneo representa a produção de formas, a beleza (artes plásticas e poesia), fazendo com que a vida se separe do sofrimento. Pretendendo substituir o mundo da verdade, ou a verdade do mundo, pelas belas formas, a arte apolínea deixa de lado algo essencial; virando as costas para a realidade, dissimulando a verdade, ela desconsidera o outro instinto estético da natureza que não pode ser esquecido - o dionisíaco. O impulso dionisíaco representa o movimento de destruição, por meio do qual une os seres isolados e os deixa se sentirem como um único. O novo culto da religião dionisíaca punha em questão os valores mais fundamentais da Grécia. A oposição entre os dois instintos, as duas pulsões, as duas potências, as duas forças artísticas da natureza_- o apolíneo e o dionisíaco - era total. A experiência dionisíaca, em vez de individuação, assinala justamente uma ruptura com o principium individuationis e uma total reconciliação do homem com a natureza e os outros homens, uma harmonia universal e um sentimento místico de unidade; em vez de autoconsciência significa uma desintegração do eu, que é superficial, e uma emoção que abole a subjetividade.A experiência dionisíaca rompe com o principium individuationis, o subjetivo desaparece, é a perda de si mesmo que sela o laço que une pessoa a pessoa e reconcilia o homem com o mundo. 3 Em vez de delimitação, calma, tranqüilidade, serenidade, é um comportamento marcado por um êxtase, por um enfeitiçamento, por uma extravagância de frenesi sexual que destrói a família, por uma bestialidade natural constituída de volúpia e crueldade, de força grotesca e brutal; em vez de sonho, visão onírica, é embriaguez, experiência orgiástica. A experiência dionisíaca tendo significado um acesso à verdade da natureza, uma verdade que mostra que a natureza é desmesurada, faz o homem compreender a ilusão em que vivia ao criar um mundo de beleza justamente para, mascarar a verdade. A visão da essência eterna e imutável das coisas faz com que ele desista de agir e construir uma civilização. A civilização, que é um mundo aparente, fenomenal, é revelada como impostura pela natureza, pelo núcleo eterno das coisas, pela verdade dionisíaca. Neste sentido, a experiência dionisíaca é uma "embriaguez do sofrimento" que destrói o "belo sonho". É novamente pela arte que o grego é salvo do perigo representado por essa religião dionisíaca bruta, selvagem, natural, destruidora. É esta arte apolíneo-dionisíaca, reconciliação entre Apolo e Dioniso, que constitui para Nietzsche o momento mais importante da arte grega. Nietzsche elege a arte trágica como um modelo de arte que ao integrar o elemento dionisíaco em vez de reprimi-lo, transforma o próprio sentimento de desgosto causado pelo horror e absurdo do ser em representação capaz de tornar a vida possível. Neste momento de “supremo perigo da vontade” surge a arte trágica, a “feiticeira da salvação e da cura” para transformar “aqueles pensamentos de repugnância sobre o horrível e o absurdo da existência em representações, com as quais pudesse viver. "A tragédia é bela na medida em que o movimento instintivo que cria o horrível na vida nela se manifesta como instinto artístico, com seu sorriso, como criança que joga. O que há de emocionante e de impressionante na tragédia em si é que vemos o instinto terrível tornar-se, diante de nós, instinto de arte e de jogo." A arte trágica possibilita, portanto, a união entre a aparência e a essência. A finalidade da tragédia é proporcionar uma espécie de consolo metafísico, uma alegria, pois afirma a vida perante a crueldade e o horror, e por isso ela é também conhecimento, nisso consiste a sua grandeza. Esse conhecimento, ou melhor, essa experiência dionisíaca se dá de forma imediata, ou seja, não é mediada por imagens, é uma introvisão, um conhecimento que não pode ser adquirido por meio de conceitos, este é o tipo de conhecimento defendido por Nietzsche. A tragédia, mostrando o destino do herói trágico como sendo sofrer, não produz sofrimento mas alegria: uma alegria que não é mascaramento da dor, nem resignação, mas a ex- pressão de uma resistência ao próprio sofrimento. Idéia esboçada nesta época nos termos de uma "metafísica de artista" que pretende conjugar na arte trágica aparência e essência. "A forma mais universal do destino trágico é a derrota vitoriosa ou a vitória alcançada na derrota. A cada vez a individualidade é vencida: e entretanto sentimos seu aniquilamento como uma vitória. Para o herói trágico é necessário perecer, por onde ele deve vencer. 4 Nessa antítese, que faz pensar, nós pressentimos a suprema avaliação da individuação, como já evocamos uma vez: o Uno originário tem necessidade dela para atingir o fim último de seu prazer, de modo que o desaparecimento se torna tão digno e venerável quanto o nascimento e que aquilo que nasceu deve cumprir, com o desaparecimento, a tarefa que lhe incumbe como individualidade." Na tragédia o destino do herói é sofrer - como sofreu Dioniso quando foi despedaçado para fazer o espectador aceitar o sofrimento como integrante da vida. Eis a estranha "consolação" que proporciona a tragédia: a certeza de que existe um prazer superior a que se acede pela ruína e pelo aniquilamento do herói, da individualidade, da consciência: pela destruição dos valores apolíneos. Eis o que ensina a doutrina da tragédia: O conhecimento básico da unidade de tudo o que existe, a consideração da individuação como causa primeira do mal, a arte como a esperança jubilosa de que possa ser rompido o feitiço da individuação, como pressentimento de uma unidade restabelecida. A visão trágica do mundo, tal como Nietzsche a interpreta nesse momento, é um equilíbrio entre a ilusão e a verdade, entre a aparência e a essência : o único modo de superar a radical oposição metafísica de valores. METAFÍSICA DE ARTISTA E METAFÍSICA RACIONAL "Metafísica de artista" é a concepção de que a arte é a atividade propriamente metafísica do homem, a concepção de que apenas a arte possibilita uma experiência da vida como sendo no fundo das coisas indestrutivelmente poderosa e alegre, malgrado a mudança dos fenômenos. Nietzsche critica o socratismo estético e o denuncia como princípio assassino da tragédia, tendo como marco Eurípides e Sócrates, por introduzir na arte o pensamento e o conceito subordinando a criação artística à capacidade racional, a beleza à razão. Razão científica e instinto estético: o saber racional e o saber artístico. A valorização da arte - e não do conhecimento - como a atividade que dá acesso às questões fundamentais da existência é a busca de uma alternativa contra a metafísica clássica criadora da racionalidade. Ideia que sempre permaneceu fundamental no pensamento de Nietzsche: a arte tem mais valor do que a ciência por ser a força capaz de proporcionar uma experiência dionisíaca. O racionalismo socrático contra o “instinto” nega a possibilidade de expressão que não seja consciente, uma ilusão metafísica que acredita ser o conhecimento racional a única maneira de ter acesso à natureza, às coisas. Despreza o instinto em nome da criação artística consciente, que tem como critério a razão, a clareza do saber. O ponto de partida da análise é a crítica do "socratismo estético". Se Eurípedes é o marco que assinala a morte da arte trágica é porque com ele, pela primeira vez, o poeta se subordina ao pensador racional, ao pensador consciente. O que caracteriza a ''estética racionalista", a "estética consciente", é introduzir na arte o pensamento e o conceito a tal 5 ponto que a produção artística deriva da capacidade crítica. Momento em que a consciência, a razão, a lógica despontam como novos critérios de produção e avaliação da obra de arte. Quando a racionalidade faz uma crítica explícita à produção artística na perspectiva da consciência, quando toma como critério o grau de clareza do saber, a tragédia será des- classificada como irracional ou como desproporcional. Eurípides, guiado pelo socratismo estético, elimina da tragédia o dionisíaco para reconstruí-la puramente sobre o discurso racional: “tudo deve ser inteligível para ser belo”. Eurípedes se torna o poeta do racionalismo socrático: sua crítica da arte é o prolongamento da crítica socrática aos homens de sua época que por não terem consciência de seu ofício o exercem apenas por instinto. É neste "apenas por instinto" que se encontra, segundo Nietzsche, a essência do socratismo. "O socratismo despreza o instinto e portanto a arte. Nega a sabedoria justamente onde se encontra seu verdadeiro reino." Desprezando o instinto em nome da criação artística consciente que tem como critério a razão, o discernimento, a clareza do saber, o socratismo condena a arte e o saber trágicos. Se algo só é bom se for consciente, se há relação necessária entre saber-virtude-felicidade, o saber trágico, que é um saber inconsciente, se encontra necessariamente desclassificado. O que se nota é que a crítica de Nietzsche ao socratismo estético e à ciência não é somente uma questão estética, mas remete ao problema da verdade. Nietzsche considera o "espírito científico", como crença. Para ele, em toda sua investigação e mesmo nesse momentoem que defende uma "metafísica" de artista, o saber trágico não foi vencido propriamente pela verdade, mas por uma crença na verdade, por uma "ilusão metafísica" que está intimamente ligada à ciência. A "ilusão metafísica" - a crença de que o conhecimento é capaz de penetrar conscientemente na essência, na natureza, no fundo das coisas, separando a verdade da aparência e considerando o erro como um mal - que destruiu a arte trágica. O poder criador do artista trágico foi negado pela metafísica por não ser uma penetração consciente na essência das coisas. Enquanto a ciência cria uma dicotomia de valores que situa a verdade como valor supremo e desclassifica inteiramente a aparência, na arte a experiência da verdade se faz indissoluvelmente ligada à beleza, que é uma ilusão, uma mentira, uma aparência. Para a arte, a ilusão é um valor tão importante quanto a verdade. A Metafísica da arte justifica a existência e o mundo como fenômenos estéticos, tornando-os possíveis de serem vividos, pois a vida torna-se viável quando há espaço para o encantamento, para o espanto, para as novas possibilidades. O mundo é visto como a 6 eterna possibilidade do criar, do vir a ser, não havendo espaço para o definido, o determinado, para verdades, pois tudo está em constante mudança, num eterno devir. ARTE E INSTINTO DE CONHECIMENTO A crítica à instituição da dicotomia metafísica verdade-aparência agora é realizada a partir do conceito de "instinto de conhecimento" ou instinto de verdade. O que é o "instinto de conhecimento"? - É ressaltar que o conhecimento não faz parte da natureza humana (do instinto do homem), ou melhor, não está no mesmo nível que os instintos e que não é possível dizer que todos os homens desejam naturalmente conhecer. O conhecimento foi produzido, o conhecimento foi inventado, Quando afirma não haver instinto de conhecimento, ele quer salientar que não se deve definir o homem pelo conhecimento ou o conhecimento como o valor principal do homem porque os instintos são mais fundamentais do que o conhecimento. A expressão deve sempre ser entendida como se referindo a um instinto da crença no conhecimento ou na verdade. Propriamente o instinto de que fala Nietzsche é de crença e não de conhecimento. Para Nietzsche instinto de conhecimento ou de verdade significa decadência, baixeza, declínio, signo de que a vida envelheceu e de que os instintos fundamentais se tornaram fracos. Então, surge uma ideia central: as condições de possibilidade do conhecimento são sociais, políticas e substancialmente morais. A verdade não é uma adequação do intelecto à realidade; é o resultado de uma convenção que é imposta com o objetivo de tornar possível a vida social; é uma ficção necessária ao homem em suas relações com os outros homens. Conclusão: O homem não ama necessariamente a verdade: deseja suas consequências favoráveis. O homem também não odeia a mentira; não suporta os prejuízos por ela causados. A obrigação, o dever de dizer a verdade nasce para antecipar as consequências nefastas da mentira. Quando a mentira tem valor agradável ela é muito bem permitida. Desde o início, a investigação nietzschiana sobre o conhecimento não se limita ao interior da questão do conhecimento, mas o articula com um nível propriamente político ou social com o objetivo de mostrar que a oposição entre verdade e mentira tem uma origem moral. Articulação do conhecimento com o social que neste momento pretende sobretudo elucidar como a exigência de verdade surge da exigência da coexistência pacífica entre os homens, da exigência da vida gregária. Paz, segurança e lógica estão intrinsecamente ligadas. A relação entre conhecimento e moral não é, entretanto, estabelecida por uma teoria moral. A perspectiva que denuncia a oposição verdade-mentira como fundada na moral é, como Nietzsche a denominou "extramoral" ou fisiológica. É essa perspectiva extramoral que, criticando o instinto de conhecimento e de verdade, afirma a necessidade da ilusão. 7 Desde o início de sua reflexão Nietzsche luta contra a oposição metafísica de valores, afirmando a positividade do aspecto que foi subestimado: a ilusão é a essência que o homem criou. A afirmação da vida, da realidade, que caracteriza a arte trágica é afirmação da aparência porque a própria vida é aparência. Se a arte, diferentemente da ciência, está do lado da vida, é porque a vida quer a aparência, não despreza seus véus e ilusões. "Única possibilidade de vida: na arte. De outro modo nos desviamos da vida. O movimento instintivo das ciências é o aniquilamento completo da ilusão: se não houvesse arte, a conseqüência seria o quietismo." A perspectiva extramoral critica o desejo de verdade como sendo um esquecimento de que o homem é um artista, um criador, isto é, um criador de aparência, situando o antagonismo entre arte e ciência no próprio campo da ilusão. No fundo, dois tipos de ilusão: a ilusão socrática, ilusão metafísica, que considera a verdade superior à aparência; e a ilusão artística, consciente do valor da ilusão, que sabe que tudo é ilusão, "figuração" "transfiguração", criação. Nessa propriedade de afirmação ou de negação da vida se encontra o essencial da reflexão nietzschiana sobre a relação entre arte e ciência, que se faz não na perspectiva da verdade e da falsidade, mas na perspectiva da força. O antagonismo entre arte e ciência é um antagonismo de forças. A força da arte é a afirmação da vida, que é totalmente incompatível com a negatividade que caracteriza a ciência. A alternativa proposta por Nietzsche é inverter essa correlação de forças, negando a negação da vida através da arte trágica considerada como afirmação. Se a força científica reprimiu a força artística dionisíaca, isto é, se a arte, e com ela a vida, foi desvalorizada pela metafísica socrática, é preciso revalorizar a arte - que cria uma superabundância de forças, que é o grande estimulante da vida, uma embriaguez de vida - para obrigar o saber a um retorno à vida. No conflito entre o instinto estético e o instinto de conhecimento, Nietzsche toma claramente posição ao lado da arte. O que de modo algum significa um projeto de destruição, de aniquilamento da ciência. Sua ideia é que cabe à arte, e à filosofia, estabelecer o valor da ciência ou, o que vem a ser o mesmo, dominar o instinto de conhecimento. Dominar a ciência significa discipliná-la, controlar seus excessos. O que caracteriza a posi- ção socrática, e é criticado por Nietzsche, não é exatamente o conhecimento; é o "instinto de conhecimento sem medida e sem discernimento", o "instinto ilimitado de conhecimento", o "instinto desencadeado do saber", o "conhecimento incessante", "a verdade a qualquer preço". Dominar a ciência é determinar seu valor no sentido de controlar a exorbitância de suas pretensões, no sentido de estabelecer até onde ela pode se desenvolver. É formular a questão dos limites. E como uma civilização socrática se funda em uma repressão do trágico, a crítica, o controle, do instinto ilimitado de conhecimento, do instinto desenfreado de saber, se faz pela 8 edificação de um novo tipo de vida em que os direitos da arte, que foram confiscados pela racionalidade científica, sejam restituídos, reconquistados. O que Nietzsche assinala e analisa é uma luta, uma correlação de forças; um combate entre o trágico e o racional, entre uma civilização socrática e uma civilização artística, dionisíaca. No pensamento de Nietzsche, valorizar a aparência é afirmar a força; é porque a arte é uma afirmação da vida como aparência que ela cria uma superabundância de forças. Pois esse reconhecimento de que a vida tem necessidade da ilusão quando aplicado ao domínio do conhecimento vai significar que o valor de um conhecimento é dado não pelo "grau de certeza", mas pelo "grau de necessidade absoluta para os homens". O que pretende Nietzsche é opor o trágico ao lógico ou utilizar critérios estéticos, valores artísticos, para definir o conhecimento. [ESTUDO DIRIGIDO - ITEM 1] a) A relação entre arte e ciência A relaçãoentre arte e ciência é antagônica, com base no texto de Machado. Enquanto a ciência, que usa da razão, situa a verdade como valor supremo e desclassifica inteiramente a aparência, na arte a experiência da verdade se faz indissoluvelmente ligada à beleza, que é uma ilusão, uma mentira, uma aparência. Para a arte, a ilusão é um valor tão importante quanto a verdade. b) A relação entre arte e instinto de conhecimento A arte é uma força caracterizada pelo Instinto, que restitui ao homem a sua vitalidade, seu interesse pela vida, a sua vontade de poder. Para Nietzsche, a arte é vida. Diferentemente do instinto de conhecimento, ou melhor, o instinto da crença no conhecimento, que não faz parte da natureza humana e não está no mesmo nível que os instintos. O conhecimento foi produzido e inventado, não sendo possível dizer que todos os homens desejam naturalmente conhecer. Dessa forma, por não haver instinto de conhecimento, não se deve definir o homem pelo conhecimento ou o conhecimento como valor principal do homem, já que os instintos são mais fundamentais. Aqui, surge uma ideia central: as condições de possibilidade do conhecimento são sociais, políticas e morais. c) O recurso metodológico proposto por Nietzsche e seu objetivo fundamental Nietzsche propõe revalorizar a arte, que cria uma superabundância de forças e estimula a vida, mas que foi menosprezada pela racionalidade. Assim, é proposta uma inversão da correlação de forças entre ciência e arte, negando a ciência como um valor superior e controlando os seus excessos, no sentido de estabelecer até onde ela pode se desenvolver, impondo ao conhecimento o valor da ilusão ou a ilusão como um valor tão importante quanto a verdade. Nietzsche quer opor o trágico ao lógico ou utilizar critérios estéticos, valores artísticos, para definir o conhecimento. 9 d) A razão pela qual é fundamental para Nietzsche explicitar e estabelecer uma ruptura com a Filosofia Socrático-Platônica A Filosofia Socrático-Platônica foi um divisor de águas que trouxe uma repressão do trágico e a decadência da arte trágica. Para ela, a crítica, o controle, o instinto ilimitado de conhecimento, se faz pela racionalidade científica, sendo esta um valor superior à arte. Porém, para Nietzsche, a exigência excessiva e ilimitada de conhecimento é prejudicial e é um crime contra a natureza, causando o aniquilamento da vida. Assim, a ruptura com a Filosofia Socrático-Platônica se faz fundamental, restituindo os direitos das artes que foram confiscados pela racionalidade científica e buscando a reabilitação da ilusão, da aparência como características essenciais da vida e da arte. 10 [TEXTO 14: INTRODUÇÃO E NIETZSCHE E O RESSENTIMENTO - KHEL] INTRODUÇÃO O ressentimento é uma constelação afetiva que serve aos conflitos característicos do homem contemporâneo caracterizado pelo individualismo, mecanismos de defesa do "eu" a serviço do narcisismo. Ressentir significa atribuir a um outro a responsabilidade pelo que nos faz sofrer. Um outro a quem delegamos, em um momento anterior, o poder de decidir por nós, de modo a poder culpá-lo do que venha a fracassar. - paradigma do neurótico, com sua servidão inconsciente e sua impossibilidade de implicar-se como sujeito do desejo. Ressentimento não é um conceito da psicanálise; é do senso comum que nomeia a impossibilidade de se esquecer ou superar um agravo. O ressentido não é alguém incapaz de se esquecer ou perdoar; é um que não quer se esquecer, não quer perdoar ou deixar em branco o mal que o vitimou. O estado emocional do ressentido é um "envenenamento psicológico", uma soma de rancor, desejo de vingança, raiva, maldade, ciúmes, inveja, malícia. Recalcamento sistemático, libera certas emoções e sentimentos, por si só normais inerentes aos homens, e tende a provocar uma deformação mais ou menos permanente, tanto no sentido de valores quanto da faculdade do julgamento. A palavra ressentimento indica uma reação, um sentimento de injúria ou agravo. Porém, o ressentido não se atreve, ou não se permite, responder à altura da ofensa ressentida. O envenenamento psicológico a que se refere o autor produz-se a partir da reorientação para o eu dos impulsos agressivos impedidos de descarga, gerando uma disposição passiva para a queixa e para a acusação, junto com a impossibilidade de esquecer o agravo. A vingança é uma necessidade psíquica que só faz sentido nos casos em que a vítima não foi capaz de reagir. A vingança decorre da falta de resposta imediata ao agravo. Deve ocorrer depois de um espaço de tempo, alimentado pela raiva ou pela impossibilidade do esquecimento de uma raiva passada. Diferentemente, no caso de ressentimento, o tempo da vingança nunca chega. O ressentido é tão incapaz de vingar-se quanto foi impotente de reagir imediatamente aos agravos e às injustiças sofridos. Aqui, é preciso que a vítima não se sinta à altura de responder ao agressor, que se sinta fraca ou inferior a ele. Por isso que Nietzsche o considera como qualidade dos "escravos". Uma das condições do ressentimento é que o sujeito estabeleça uma relação de dependência infantil com um outro, supostamente poderoso, a quem caberia protegê-lo, premiar seus esforços, reconhecer seu valor. Expressa a recusa do sujeito em sair da dependência: ele prefere ser "o protegido", ainda que prejudicado, a ser livre, mas desamparado. No ressentimento, o Outro é representado pelas figuras que, na infância, tinham poder efetivo para proteger, premiar e punir a criança. 11 NIETZSCHE E O RESSENTIMENTO Nietzsche foi o filósofo que desnudou a patologia do ressentimento e a articulou aos valores morais impostos pelo cristianismo. Na modernidade, os valores predominantemente foram criados a partir da aliança entre a tutela da Igreja e a coerção que o Estado impõe sobre os instintos vitais, em troca da proteção aos indivíduos. Para Nietzsche o Estado foi a mudança mais profunda que a humanidade produziu; sua tutela contribuiu para transformar os homens ativos em culpados. A força coercitiva do Estado sobre os homens, até então livres e nômades, desvalorizou a força dos instintos produzindo sua interiorização progressiva, até que os instintos vitais de dominação e destruição passassem a se voltar contra os homens, gerando culpa e má consciência. O homem civilizado é um eterno culpado de todas as suas manifestações vitais em obediência aos valores morais em que acredita. Quanto mais se submete e desvaloriza a "força dos instintos", mais enfraquece, e se entrega à tutela moral dos sacerdotes e das autoridades. Para Nietzsche, os valores são criações humanas determinadas a partir de conflitos de força e de poder. Ele também critica a noção de verdade que, em sua visão, é criação humana que corresponde às conveniências dos homens. Não temos nenhum interesse na verdade- a não ser quando ela nos convém. Uma ilusão que serve à expansão da vida vale mais que uma verdade que diminui nossa potência vital. Então, em que critério Nietzsche apoia seu julgamento do conhecimento filosófico e moral? Este critério é a vida, sua potência, seu contínuo movimento de expansão. Em Nietzsche, todos os valores são criados pelo homem, mas nem sempre são impostos pelos mais fortes aos mais fracos. Ao contrário: para ele, a moral é a invenção dos derrotados. Exemplo máximo disso é a moral cristã, segundo a qual o Bem está do lado dos fracos e dos sofredores e o Mal, do lado dos mais fortes - esses valores foram criados pelos fracos, impotentes e derrotados na luta da vida, que em Nietzsche se define sempre como vontade de potência, dominação, expansão de si mesma, poder. A noção de Bem e de Mal criada pelos derrotados funciona, por um lado, como "vingança espiritual" contra os mais fortes, já que a força e o egoísmo são condenados como expressões do Mal e a humildade e a fraqueza, elevadas à categoria do Bem. Funcionam também como recursos de domesticação dos derrotados, que a partir de uma moral "escrava" consolam-se de suas derrotadas, abandonam a luta e esperam pela recompensa prometida depoisda morte. Nietzsche distingue a moral aristocrática (que ele considera sadia e geradora de valores) da moral escrava ou contranatural (negativa): Os aristocratas, que são fortes, consideram-se automaticamente como "bons" sem se preocupar em julgar os outros como "maus". Para os aristocratas, o contrário do "bom" não 12 é o malvado, é o "ruim" no sentido do que é fraco e vil. Enquanto sua moral é criadora, livre e alegre, a moral dos fracos é negativa, reativa e passiva. É o reflexo do ódio dos impotentes contra a vida ("escravos"), que escolhem a servidão voluntária, a humildade auto-imposta, a vida rebaixada. A vida é o critério que decide tanto a moral escrava quanto a ética aristocrática - nos primeiros, a vontade de potência expressa-se apenas em termos de conservação da vida, enquanto nos últimos ela é vontade de poder e de expansão. É na relação entre fortes e fracos, vencedores e derrotados, escravos e aristocratas que se define o ressentimento. Este não é o sofrimento inevitável daqueles que, tendo lutado até o fim de suas forças, foram derrotados por alguém mais forte. Em Nietzsche, o ressentimento é consequência inevitável das restrições pulsionais auto-impostas pelo homem ocidental civilizado. É a doença dos fracos que identificam sua fraqueza com os valores da bondade, humildade e altruísmo de modo que os fortes, que eles não ousam enfrentar, pareçam maus, mesquinhos e egoístas. Nietzsche propõe a "transvaloração de todos os valores" a fim de curar seus contemporâneos do ressentimento que está impregnado nos próprios termos da moral. Os fortes que se protejam dos fracos- enquanto os primeiros entregam-se de peito aberto à vida, os segundos, temerosos e servis, ruminam silenciosamente sua vingança. Para os fortes, o mal não está separado do bem; os inimigos devem ser respeitados e até mesmo amados. Se a "vida é dura", poupar os fracos só serve para enfraquecê-los ainda mais. A má consciência é o afeto negativo que os fracos querem despertar nos fortes a partir de sua derrota, culpando-os pelo uso da força. Mas como esperar que os fortes não sejam fortes, não utilizem sua força vital? O único mandato ético da filosofia de Nietzsche é justamente: torna-te quem tu és, que estimula os homens a se apossar de todos os seus recursos e não recuar diante da "força dos instintos" Nietzsche defende a vida como vontade de potência. Se os fracos sofrem a opressão dos fortes, estes não devem ceder à má consciência, assim como é inútil que aqueles que queiram pedir aos fortes que deixem de ser fortes, querer que a força deixe de se expressar como força. O ressentimento não se confunde com a revolta ou com a luta por justiça e reconhecimento. Ressentimento não é ação que busca transformar. Ele é o canto queixoso do sujeito da modernidade e de todo aquele que projeta para fora de si, em determinado momento histórico, a fonte de seus males, como um mecanismo de defesa e escudo de proteção para preservar seu narcisismo. O ressentido conserva a crença a em sua integridade às custas de eleger inimigos. O outro como "inimigo mau" é essencial na manutenção do mecanismo de defesa próprio do ressentimento: é ele quem permite que o sujeito se mantenha dialeticamente do lado do "bom". 13 Bom, porque fraco, inofensivo. O homem do ressentimento, incapaz de defender-se do mais forte ou competir com ele na luta pela vida, "passa a qualificá-lo de brutal, cruel, ignóbil"- o que o coloca automaticamente na posição do bom, generoso, digno. Nisto consiste a "moral negativa" do ressentimento. O fraco só consegue afirmar-se negando aquele ao qual não consegue se igualar. Essa operação mental possibilita que o ressentido evite contato com tudo o que é "não eu", não o fortalece. Sua única força consiste em acusar os fortes. O ressentido é o escravo de sua impossibilidade de esquecer. Vive em função de uma vingança adiada, de modo que em sua vida não é possível abrir lugar para o novo. Mas como se trata de um vingativo passivo, seu silêncio acusador e suas queixas contínuas mobilizam, no outro, confusos sentimentos de culpa. O ressentido acusa, mas não está seriamente interessado em ser ressarcido do agravo que sofreu. A origem da culpa é a dívida. Ele é um covarde, um escravo e não concede a si mesmo os prazeres da vingança pela crueldade, presentes em algumas formas antigas do direito. Ele aposta na vingança imaginária, eternamente adiada, que lhe permitiria gozar do sofrimento daquele que o ofendeu sem ter de se confrontar com sua própria crueldade. Que o castigo aconteça por obra do destino, ou pelas mãos de Deus - esta seria a vingança perfeita pela qual o ressentido espera eternamente. - Que o ofensor padeça eternamente dos remorsos pelo o que fez. Ao direito à crueldade como compensação pelos agravos, de antigamente, Nietzsche contrapõe a origem da moderna justiça no terreno do ressentimento. Que a justiça se fizesse como decorrência natural do "sentimento de estar ferido". O desejo de vingança recusado é o núcleo doentio do ressentimento de Nietzsche. Uma vez que não se permite reagir, só resta ao fraco, ressentir. O ressentimento é uma doença que se origina do retorno dos desejos vingativos sobre o eu. É a fermentação da crueldade adiada, transmutada em valores positivos, que envenena e intoxica a alma, que fica eternamente condenada ao não esquecimento. "O ressentido é alguém que nem age nem reage inicialmente; produz apenas uma vingança imaginária, um ódio insaciável. Visto que o homem se consumiria rapidamente se reagisse, acaba por não reagir; eis a lógica" A vida, para Nietzsche, jamais poderia ser esmagada pelas promessas de uma vida futura. O homem moral não é melhor que os outros; pelo contrário, é um fraco, reativo, negativo - assim como um animal domesticado não é melhor que os outros. O "domesticador" é justamente o sacerdote, indivíduo apenas um pouco mais forte que o rebanho de fracos que ele controla, que se vale da má consciência para impedir que o sofrimento dos ressentidos se transforme em revolta potente e vital. O ressentido não se reconhece nas consequências de seus atos, ele espera que alguém seja culpado pelo seu sofrimento. Culpar o outro, para Nietzsche, é uma atitude de doentes. 14 [ESTUDO DIRIGIDO - ITEM 2] Com base nos textos de KHEL “Introdução” e “Nietzsche e o ressentimento” explique: a) A definição de ressentimento O ressentimento é considerado uma força reativa e indica um ressentimento de injúria ou agravo. O ressentido, atribui a um outro a responsabilidade pelo que o fez sofrer, sendo incapaz de se esquecer ou perdoar, não canalizando o ódio para fora, mas para si mesmo, construindo uma espécie de vingança imaginária com base no futuro. O ressentimento é característico do homem contemporâneo, caracterizado pelo individualismo e narcisismo. b) Como Khel estabelece a relação entre o pensamento de Nietzsche e o narcisismo. Kehl aponta o ressentimento como uma característica do homem contemporâneo, caracterizado pelo narcisismo. Está ligado à aquele que projeta para fora de si a fonte de seus males e que conserva a crença em sua integridade às custas de eleger inimigos. Afinal, o outro como "inimigo mau" permite que o sujeito se mantenha dialeticamente do lado do "bom", "generoso", "digno", mantendo o seu mecanismo de defesa próprio. Essa operação mental possibilita que o ressentido evite contato com tudo o que é "não eu", característica do sujeito narcisista. c) Como, a partir de uma perspectiva nietzschiana, estabelece a relação entre ressentimento e o Estado Uma das condições centrais do ressentimento é que o sujeito estabeleça uma relação de dependência infantil com um outro, supostamente poderoso, a quem caberia protegê-lo. O ressentido prefere ser protegido, ainda que prejudicado, do que livre, mas desamparado. Na relação entre ressentimento e o Estado, podemos colocar o Estado como esse sujeito que traz a proteção do indivíduo em troca da imposição da coerção sobre os instintos vitais, sendo essa a mudança mais profunda que a humanidade jáproduziu sob a ótica de Nietzsche. O mesmo, acredita também que a força coercitiva do Estado sobre os homens, até então livres e nômades, desvalorizou a força dos instintos produzindo sua interiorização progressiva, até que os instintos vitais de dominação e destruição passassem a se voltar contra os homens, gerando culpa, má consciência e ressentimento. d) Que relações a autora estabelece entre ressentimento e justiça, perdão, vingança, pureza moral, alteridade O homem contemporâneo vive sob o prisma do narcisismo, que tem como características a falta de alteridade pelo outro e o recorrente sentimento de ressentimento. Este último não se confunde com a revolta ou com a luta por justiça, pelo contrário, se caracteriza pela passividade do sujeito frente ao agravo que o ocorreu. O ressentido é incapaz de perdoar ou de esquecer, sempre remoendo o ódio para si mesmo; também é incapaz de vingar-se das injustiças sofridas, construindo uma espécie de vingança imaginária que nunca chega. O ressentido tem uma teoria pessoal, narcisista, que o sustenta: sua "pureza moral" o deixa para trás diante da dinâmica das relações que estabelece. Seu discurso se estrutura como "O outro se aproveita de mim, faz o que bem quer, mas eu não sou assim, porque para mim isso não é certo" - posição que o coloca como "bom" e "digno", diante de um "inimigo mau". 15 [TEXTO 15: OS DESTINOS DO DESEJO E APOCALIPSE - BIRMAN] INTRODUÇÃO O mal-estar se inscreve sempre no campo do sujeito, da subjetividade. Ele é a matéria-prima sempre recorrente e recomeçada para a produção de sofrimento nas individualidades. Temos que pensar nos destinos do desejo na atualidade, já que esses destinos nos permitem captar o que se passa nas subjetividades, propiciando uma leitura acurada das mesmas. Como circunscrever o mal-estar na atualidade, pela indagação dos destinos do desejo? Nessa perspectiva, a contemporaneidade se caracterizaria pela “cultura do narcisismo” e pela “sociedade do espetáculo” que constituiriam um modelo de subjetividade em que seriam silenciadas as possibilidades de reinvenção do sujeito, de valorização das singularidades e diferenças e de reconhecimento do próprio desejo. Os destinos do desejo, como afirma Birman, acabariam por tomar uma direção exibicionista e autocentrada, que teria em contrapartida o esvaziamento do intersubjetivo, a fragmentação da subjetividade e o desinvestimento nas trocas inter-humanas. De acordo com Birman “[...] esse é o trágico cenário para a implosão e a explosão da violência que marcam a atualidade e que se fazem acompanhar da crescente volatilização da solidariedade". Nessa perspectiva, o contexto social contemporâneo proporcionaria exíguas possibilidades para experiências de alteridade, compreendida como a capacidade que o indivíduo tem de viver com o diferente, justamente pelo fato de que as concepções de cultura situar- se-iam na glorificação do eu e na estetização da existência, condições essas que o estimulariam fenômenos narcísicos e o autocentramento da subjetividade. Situação que resultaria em determinados efeitos no sujeito e levaria a alteração da subjetivação, com a fragilização das relações sociais e da permanência em grupos. Estratégias que vinculadas ao processo de psicopatologização da existência humana, de medicalização e de banalização da prescrição de psicofármacos seriam determinantes para todos aqueles que se mostrassem insatisfeitos com sua condição subjetiva. O homem contemporâneo submetido às estratégias medicalizantes, enclausurado pelos mecanismos da psicofarmacologia que promete curá- lo da própria condição humana e anestesiado pelos efeitos dos psicofármacos estaria cada vez mais sujeito ao processo de mitigação de seu próprio desejo. A MODERNIDADE E O MAL ESTAR A psicanálise é uma leitura da subjetividade e de seus impasses na modernidade. Vale dizer, aquela é uma interpretação do mal-estar na modernidade. Porém, também existe certo mal-estar da psicanálise na atualidade. Este mal-estar é o que nos impede de chegar a tempo nos lances e nas divididas, deixando-nos frequentemente desamparados e a ver navios quando a confusão está comendo solta. Não é sem razão, portanto, que a 16 psicanálise se encontra em crise na contemporaneidade. Isto é público e notório. Aquela se deve não apenas às novas formas de subjetivação forjadas na atualidade, mas também a certa perda de poder crítico da comunidade psicanalítica engendrada pelos fundamentalismos a que já me referi. Este é indubitavelmente um dos aspectos de nosso mal-estar. Assim, toda a primeira parte deste livro pretende realizar uma revisão crítica de alguns conceitos e temas da teoria e da prática psicanalíticas. Tudo isso para fazer passar também a psicanálise por uma peneira crítica e por uma modalidade de decantação conceitual, como um esforço teórico para tornar possível sua inserção na atualidade. O CORPO, O AFETO E A AÇÃO A tragédia da servidão na psicanálise se articula intimamente ao esquecimento da presença do corpo na experiência do sujeito. Dito de outra maneira, uma parcela substantiva da comunidade analítica se esqueceu de que a subjetividade sofrente tem um corpo e que é justamente neste que a dor literalmente se enraíza. Esse esquecimento não passou despercebido para ninguém, custando bastante caro para a psicanálise. Esta deu de bandeja, com isso, para a medicina e para a psiquiatria a inglória tarefa de cuidar do corpo. Em contrapartida, a psicanálise ficou com a dita parte nobre da subjetividade, isto é, o psiquismo, a versão cientificista da alma. Como a separação entre corpo e psiquismo não é sustentável pela leitura freudiana da subjetividade, pretendo mostrar como esta dualidade está no fundamento da surdez atual do ofício de psicanalisar. Isso porque, nesse modelo que opôs o corpo ao psiquismo, grande parte do mal-estar na atualidade ficaria fora da modalidade psicanalítica de escuta. Além disso, a questão não fica restrita ao corpo. Junto com este, seria o afeto que estaria sendo eliminado da psicanálise. A questão da afetividade é absolutamente crucial para que se possa ficar no mesmo cumprimento de onda dos sofrimentos atuais, já que a intensidade e o excesso pulsional seriam características marcantes desses sofrimentos. Ao lado disso, sublinhar a dimensão do afeto é situar o sujeito nas dobras reais de seu sofrimento, em vez de se restringir a experiência analítica às cavilações obsedantes do pensamento. Tudo isso tem implicações práticas diretas, pois supõe certa concepção da experiência psicanalítica. Com efeito, conferir ao corpo e ao afeto um lugar crucial na leitura da subjetividade é também considerar que a prática analítica não é apenas uma escuta do psiquismo, mas uma modalidade de ação. Vale dizer, a experiência psicanalítica se realiza por uma forma específica de interpretação, que se desdobra em uma modalidade de ação. Em um dos ensaios inaugurais da psicanálise Freud indicou perfeitamente como as perturbações do espírito seriam impossibilidades de ação. Sendo provocadas por ofensas e feridas da auto-estima do sujeito, aquelas perturbações poderiam ter outro destino pelas possibilidades entreabertas pelo ato psicanalítico. 17 O ESPETÁCULO E A CULTURA DO NARCISISMO Em todas essas novas maneiras de construção da subjetividade, o eu se encontra situado em posição privilegiada. No entanto, esse autocentramento do sujeito no eu assume formas inéditas, sem dúvida, se considerarmos a tradição ocidental do individualismo iniciada no século XVII. Esse autocentramento se apresentaria sob a forma de estetização da existência, numa infinita exigência de performances, onde o que importa para as subjetividades individualistas é a exaltação do eu. A exibição passa a ser o lema essencial da existência, processo denominado de "cultura do espetáculo". A cultura da imagem é propalada pela mídia que promove a estetização do eu, em que o sujeito não vale pelo o que é, mas sim pelo o que ele parece ser. Com efeito, a subjetividade construída nos primórdios da modernidadetinha seus eixos constitutivos nas noções de interioridade e reflexão sobre si mesma. Em contrapartida, o que agora está em pauta é uma leitura da subjetividade em que o autocentramento se conjuga de maneira paradoxal com o valor da exterioridade. Com isso, a subjetividade assume uma configuração decididamente estetizante, em que o olhar do outro no campo social e mediático passa a ocupar uma posição estratégica em sua economia psíquica. - cultura do narcisismo e sociedade do espetáculo que dão ênfase no autocentramento e exterioridade. Os destinos do desejo assumem, pois, uma direção marcadamente exibicionista e autocentrada, na qual o horizonte intersubjetivo se encontra esvaziado e desinvestido das trocas inter-humanas. Esse é o trágico cenário para a implosão e a explosão da violência que marcam a atualidade. O ETHOS DA VIOLÊNCIA A solidariedade se encontra assustadoramente em baixa. Cada um por si e foda-se o resto parece ser o lema maior que define o ethos da atualidade. A solidariedade seria o correlato de relações inter-humanas fundamentadas na alteridade. Para isso, no entanto, seria necessário que o sujeito reconhecesse o outro na diferença e singularidade, atributos da alteridade. O que justamente caracteriza a subjetividade na cultura do narcisismo é a impossibilidade de poder admirar o outro em sua diferença radical, já que não consegue se descentrar de si mesma. O sujeito da cultura do espetáculo encara o outro apenas como um objeto para seu usufruto. Dessa maneira, o sujeito vive permanentemente em um registro especular, em que o que lhe interessa é o engrandecimento grotesco da própria imagem. O outro lhe serve apenas como instrumento para o incremento da auto-imagem, podendo ser eliminado como um dejeto quando não mais servir para essa função abjeta. Com isso, as relações inter-humanas assumem características nitidamente agonísticas, de uma maneira perturbadora. Na ausência de projetos sociais compartilhados, resta apenas 18 para as subjetividades os pequenos pactos em torno da possibilidade de extração do gozo do corpo do outro, custe o que custar. Este é o cenário para a estridente explosão da violência na cultura da atualidade. A eliminação do outro, se este resiste e faz obstáculo ao gozo do sujeito, nos dias atuais se impõe como uma banalidade.Neste contexto, surge até mesmo uma nova categoria de desviantes, as crianças, cujos crimes estão aumentando. RECOMEÇAR A psicanálise ainda é o saber mais consistente para indagar as relações turbulentas do sujeito com seu desejo, ficando para isso nos limiares da morte, do gozo e da violência, que nos entreabrem para o que existe de horror no universo das delícias eróticas. Porém, a psicanálise deve se repensar em alguns de seus fundamentos, para ficar sensível e conseguir ser potente no que tange ao mal-estar na atualidade. Esta seria a única maneira de a psicanálise continuar a ser operante no contexto de trevas, obscurantismo e fundamentalismo em que vivemos hoje em dia. É preciso recomeçar do ponto em que estamos agora. DO ADMIRÁVEL MUNDO NOVO À DESESPERANÇA - DROGAS Nas décadas iniciais heróicas, anos 60 e 70, e na segunda metade do século XX, as drogas representavam a via de acesso para um mundo novo a ser descoberto e construído. As drogas, como mercadorias mágicas, possibilitaram a transformação dos registros do corpo e da sensorialidade das individualidades, facultando a estas o desbravamento do desconhecido e a invenção de novos mundos. Dessa maneira, os jovens, artistas, intelectuais e o mundo underground em geral se esforçavam em poder pensar na existência de outros mundos e em novos horizontes para a existência. As drogas alucinógenas, principalmente o ácido lisérgico (LSD), representavam então a via privilegiada para que os indivíduos pudessem habitar um outro universo. O que estava em pauta era uma crítica cerrada e radical à mesmice do mundo instituído e a gana em construir um outro universo humanamente habitável. Contudo, esse revolucionário estilo existencial da contracultura foi infletido em outra direção no final dos anos 70. Desarticuladas do campo semântico de invenção de um "admirável mundo novo", as drogas foram capturadas pela indústria do narcotráfico, pelas máfias, sendo transformadas em seu potencial simbólico. Foi instituído o consumo de drogas em larga escala pelo bel-prazer da busca da excitação, da procura do gozo em estado puro. De caminho experimental para a busca de outros horizontes existenciais para as individualidades, as drogas passaram a ser os meios privilegiados para aquelas lidarem com o que há de insuportável em suas misérias psíquicas e com o mal-estar da contemporaneidade. 19 Transformou-se, pois, o seu valor de uso. Com isso, a escala de consumo das drogas aumentou muito e sua oferta tornou-se diversificada. Outras camadas populacionais que ficaram de fora da onda cultural dos anos 60 e 70 foram capturadas pela magia das drogas. Além disso, inventaram-se progressivamente novas drogas para a oferta do público cioso por excitações imaginárias renovadas. As drogas passaram a servir para mitigar as desesperanças das individualidades, para apaziguar as angústias e as tristezas daquelas no desamparo provocado pelo mal-estar da atualidade. O ARTESANATO, A INDÚSTRIA E OS SABERES BIOLÓGICOS Com os avanços científicos da bioquímica, medicina e da psicofarmacologia, a produção de drogas deixa de ser um trabalho artesanal e passa para o trabalho industrial, com a colaboração da pesquisa biológica no campo das neurociências - tudo isso transformou o objeto droga, que passou a ser uma mercadoria. Vale dizer que seria impensável o desenvolvimento gigantesco da indústria de drogas sem que houvesse a inestimável colaboração da bioquímica do sistema nervoso e da psicofarmacologia. Colaboração indireta, sem dúvida. Porém, nem por isso é inestimável. O EVITAMENTO DA DOR O impressionante desenvolvimento da psicofarmacologia a partir dos anos 50 ofereceu à psiquiatria a perspectiva de construir uma suposta legitimidade médica e científica. Com isso, a psiquiatria passou a ser uma especialidade médica, e poderia se gabar de ter seus fundamentos no discurso rigoroso da ciência biológica (mudança radical da psiquiatria). Ao se guiar pelos valores do cientificismo, foi aos poucos dando primazia aos modos medicamentosos de intervenção, supostamente infalíveis, e descartando os instrumentos centrados na palavra. As psicoterapias foram sendo colocadas em segundo plano, cada vez mais afastadas da clínica psiquiátrica, quando não completamente excluídas. Tudo isso conduziu a uma transformação radical da relação médico-paciente, em que a singularidade da experiência do paciente em estar enfermo foi sendo descartada, quando não completamente silenciada. Além disso, a descoberta de psicofármacos poderosos na regulação do sofrimento psíquico entreabriu a possibilidade de se relacionar com a dor mental de outra maneira. Assim, a utilização de drogas eficazes contra a angústia e as depressões indica, de forma eloquente, uma mudança significativa na relação dos indivíduos com estas paixões, até então incontroláveis pela intervenção médica.Ï Com isso, o limiar suportável para aquelas paixões foi baixando progressivamente nas individualidades, que passaram também a demandar tais químicas diante de toda e qualquer transformação negativa de humor. A medicalização psicofarmacológica das variações de humor, das paixões e do sofrimento psíquico foi aumentando de maneira vertiginosa. Assim, um outro limiar de controle social daquelas variações foi alcançado pela via psicofarmacológica, com a produção de psicofármacos cada vez mais diversificados, 20 específicos para cada um dos quadros sintomáticos e para as diferentes síndromes psicopatológicas. Diante de qualquer angústia, tristeza ou outro desconforto psíquico, os clínicos passaram a prescrever, sem pestanejar, os psicofármacos mágicos, isto é, os ansiolíticos e antidepressivos. A escuta da existência e da história dos enfermos foi sendo progressivamentedescartada e até mesmo, no limite, silenciada. Enfim, por essa via tecnológica, a população passou a ser ativamente medicalizada, numa escala sem precedentes. É por esse viés que podemos apreender as relações secretas e perigosas entre as ditas drogas pesadas e as supostas drogas medicamentosas, isto é, entre a indústria do narcotráfico e a grande indústria farmacêutica. É evidente que as duas se complementam de maneira harmoniosa e quase perfeita, pois em ambas é o evitamento de qualquer sofrimento psíquico pelo sujeito que está em pauta, nas condições atuais do mal-estar na civilização. Não se pode esquecer aqui que o desamparo humano aumentou muito na dita pós-modernidade, pois, com o fim das utopias e dos messianismos alimentados pela modernidade, não há mais como fazer obstáculo às dores e desesperanças produzidas na atualidade. Isso porque não se oferecem outros projetos alternativos nos registros social e político. DEPRIMIDOS, PANICADOS E TOXICÔMANOS Como essa via de evitamento sistemático da dor e do sofrimento psíquicos foi legitimada? Como tudo isso se tornou legítimo, de maneira ampla, geral e irrestrita? Nas últimas décadas a psicopatologia se concentrou no estudo das depressões, síndrome do pânico e toxicomanias (psicopatologia da pós-modernidade). O que caracteriza essa psicopatologia é sua direção biológica de pesquisa, fundada nas neurociências e na psicofarmacologia. A finalidade dessa medicina mental é regular as variações dos humores e das paixões, para normalizar os excessos das imensidades psíquicas. Pode-se caracterizar a sociedade pós-moderna como a sociedade do espetáculo ou como a cultura do narcisismo. Aqui, o sujeito perde suas relações com as ideias de tempo e de história. Com isso, o que importa é o aqui e o agora. A inflação do eu é o operador crucial na estetização da existência, pois por seu intermédio se definem as novas relações entre o sujeito e o outro. Com efeito, a predação do corpo do outro se transforma em trilha preferencial do amor e do erotismo, pois o que importa para a individualidade é a apropriação do corpo do outro para a expansão inflacionada do próprio eu. Com isso, as noções éticas de alteridade e reconhecimento da diferença tendem ao desaparecimento no universo social voltado para a estetização da existência. Pode-se compreender agora como a psiquiatria da pós-modernidade se constrói na direção definida de pesquisa e interesse clínico pelas perturbações funcionais do humor, sejam estas depressões ou síndrome do pânico, na medida em que nestas perturbações do espírito o sujeito não consegue ser cidadão da sociedade do espetáculo. 21 Nesse contexto, a psicofarmacologia fornece os instrumentos básicos para que essas individualidades possam se inscrever nos trâmites brilhosos da cultura do narcisismo. Os psicofármacos, pelo enorme efeito antidepressivo e tranquilizante, visam a transformar esses miseráveis sofredores em seres efetivos da sociedade do espetáculo. Com isso, silenciam-se as cavilações pesadas e as ruminações "excessivamente" interiorizadas dos deprimidos, e eles são transformados em seres "legais" do universo do espetacular. Apenas nesse contexto podemos interpretar o fantástico crescimento das toxicomanias nas últimas décadas, pois, seja pelo narcotráfico, pela farmacodependência ou pelos psicofármacos, o que está sempre em pauta é a transformação do sujeito inseguro, deprimido e panicado em cidadão da sociedade do espetáculo. A cultura dos sofredores e dos espíritos desesperados já era. Não se admite mais, no contexto da sociedade do espetáculo, os personagens sofrentes e desesperados, que marcaram as gerações do pós-guerra, como as gerações existencialista e beat. O que interessa agora é a estetização da existência e a inflação do eu, que promovem uma ética oposta à do sofrimento. Por fim, pode-se entender a cultura do evitamento da dor promovida pela medicina e pela indústria de drogas pesadas, pois por seu intermédio a magia do silêncio do sofrimento psíquico está sempre em pauta. Produzidas pela medicina clínica, pela psiquiatria e pelo narcotráfico, as toxicomanias são os contrapontos das depressões e da síndrome do pânico, no sentido de que é pelo consumo massivo de drogas que o sujeito tenta regular os humores e efeitos maiores do mal-estar da atualidade. O sujeito busca, pela magia das drogas, se inscrever na rede de relações da sociedade do espetáculo e seus imperativos éticos. [ESTUDO DIRIGIDO - ITEM 3] Com relação ao texto de Birman “Os destinos do desejo” e “Apocalipse”, responda: a) Como Birman relaciona os destinos do desejo às novas formas de subjetivação. Os destinos do desejo, como afirma Birman, acabariam por tomar uma direção exibicionista e autocentrada, dentro da cultura do narcisismo e sociedade do espetáculo, que teria, em contrapartida, o esvaziamento do intersubjetivo, a fragmentação da subjetividade e o desinvestimento nas trocas inter-humanas. b) Como Birman caracteriza mal-estar na atualidade e qual a distinção que estabelece com o mal-estar na modernidade. O mal-estar é caracterizado como matéria-prima para a produção de sofrimento dos indivíduos, sempre atuando no campo da subjetividade. Na atualidade, ele ocorre pelo esvaziamento das relações (devido à supervalorização do "eu" e do autocentramento exacerbado) e, também, pela necessidade do indivíduo de ser notado e glorificado pelo mundo externo (sociedade do espetáculo). Já na modernidade, se deu pelo desencantamento do mundo, em uma época de revolução científica e de racionalização, em que Deus e a igreja deixaram de causar aos homens a sensação de segurança, estabilidade e amparo. Logo após, a ciência também passou a ser questionada e vista 22 como insuficiente para amparar a humanidade. Assim, o homem passou a recorrer a si mesmo como referência de valores morais, e se viu cada vez mais isolado dos outros, afastado do sentido de comunidade. c) Explique como Birman articula as relações existentes entre o individual e o social e como qualifica e discute o sofrimento psíquico no texto “Mal-estar na civilização”. Na sociedade do espetáculo e na cultura do narcisismo, o indivíduo vive permanentemente em um registro especular, em o que o que lhe interessa é o engrandecimento da própria imagem. O outro lhe serve apenas como um instrumento para o incremento da autoimagem, podendo ser eliminado como um dejeto quando não mais servir para essa função. Com todo esse autocentramento e exibicionismo, não há mais investimento nas relações inter-humanas, assim, o social passa a ser algo superficial e fragilizado. Nesse mundo das aparências, também não há espaço para mostrar o sofrimento, se tem o dever de ser feliz e, nesse contexto, não corresponder a perspectiva social, não se enquadrar no contexto coletivo em termos comportamentais, de consumo e de estabelecimento de harmonia com os paradigmas estabelecidos, levaria os indivíduos aos elevados sofrimentos psíquicos e, possivelmente, ao mundo das drogas ou uso de psicofármacos. d) Como Birman equaciona a temática relativa a violência e como ela se apresenta nas relações entre indivíduo e sociedade. Com a crescente volatilização da solidariedade e a perda da alteridade, o sujeito da atualidade não admira mais o outro em sua diferença, por não conseguir descentrar-se de si mesmo. Sempre olhando para o "próprio umbigo", o outro acaba por se tornar um instrumento para o incremento da auto-imagem, não havendo mais investimento nas trocas inter-humanas, que se tornam cada vez mais superficiais e frágeis. Todo esse autocentramento, exibicionismo e extração do gozo a qualquer custo, acaba por gerar uma implosão e explosão da violência na cultura da atualidade. 23 [TEXTO 16: NARCISISMO CONTEMPORÂNEO - UMA ABORDAGEM LASCHIANA - WANDERLEY, ALEXANDRE] Vídeo complementar: https://www.youtube.com/watch?v=jU6Q2ZP31Dg Lasch é um crítico da sociedade terapêutica e do narcisismo contemporâneo. O texto tem como objetivo abordar as relações entre indivíduo e sociedade. Examina alguns tópicos relativosà sociologia da saúde mental e à interface entre a sociologia, psicanálise e a psicopatologia (visão multidisciplinar). Busca as relações entre as sociedades ocidentais contemporâneas e os traços psicológicos típicos dos indivíduos urbanos. O livro de Lasch foi escrito na década de 80, onde estava tendo um declínio da esperança na sociedade americana. Antecipa problemas da sociedade atual. A ÉTICA DA SOBREVIVÊNCIA Lasch baseia seus estudos para a análise da origem e evolução da família burguesa nos séculos XIX e XX e aponta uma preocupação com os destinos da sociedade norte-americana. Suas reflexões podem ser estendidas a outras sociedades industrializadas, nas quais predomina o individualismo como valor. Após a ebulição política dos anos 60, os americanos recuaram para preocupações puramente pessoais. Surgiram os homens narcisistas. ANTES DEPOIS Dispostos a dar a vida por um ideal e apego às questões coletivas. Sobrevivência individual "cuidar de si mesmo" e "viver para si". Preocupação com as tradições e com o futuro. Esquecimento do passado e do futuro - perda do sentido da tradição e continuidade histórica. Apego à religião O Narcisismo é muito mais terapêutico do que religioso. O que importa para as pessoas é ter uma ilusão de bem estar pessoal, saúde e segurança. Preocupação com a política Ameaça à política (foca apenas no eu). Vida íntima preservada Declínio da vida íntima Narcisismo = sobrevivência individual = falta de sentido histórico Características do narcisista: superficialidade emocional, medo da intimidade, hipocondria, promiscuidade sexual, horror à velhice e à morte. São descrentes quanto à possibilidade de 24 transformar o futuro, desprezam o passado e vivem para o momento, perdendo o sentido de continuidade histórica (repúdio ao passado recente - sintoma de uma crise cultural). "Woody Allen, anos 70: soluções políticas não funcionam, acredito no sexo e na morte, duas experiências únicas em uma existência" Os movimentos políticos a partir do final do séc. 60 passaram a reforçar uma moral da sobrevivência que se justificaria per se. Se atrelaram às defesas de interesses particulares, deixando de lado ideais que visam o bem comum. (Ex. interesses referidos ao próprio corpo). Na ausência de valores como justiça social e sentido de continuidade com gerações anteriores, a ética da sobrevivência constitui a marca distintiva da cultura do narcisismo. "As condições sociais hoje em dia encorajam uma mentalidade de sobrevivência, expressa em sua forma mais rude nos filmes de catástrofes ou em fantasias de viagens espaciais, que permitem uma fuga do planeta condenado. As pessoas deixam de sonhar com a superação das dificuldades, mas passam a sobreviver a elas." Essa cultura testemunha a transformação do individualismo competitivo e da ética do trabalho livre (característicos no início do capitalismo), na ética da autopreservação e da sobrevivência psíquica. A desqualificação da luta política dos anos 60 dá lugar, a um ataque à família burguesa (fonte de repressão emocional e sexual). Buscando contrapor-se aos valores tradicionais, o homem narcísico, ao invés de culpado, moralista ou reprimido, se diz liberado, permissivo e tolerante. Para Lasch, essa liberação sexual e quebra de tabus não trazem paz sexual ou espiritual. Ao contrário, essa busca incessante pelo prazer se torna uma obsessão que gera queixas de vazio interior e, a proclamação da tolerância não resultou em uma maior compreensão e aceitação do semelhante, o homem narcísico é indiferente a tudo e a todos que não lhe dizem respeito diretamente. A ideologia individualista acaba por produzir um meio familiar anômico, onde prevalecem princípios incomuns/impróprios de orientação social, baseados no respeito à liberdade e ao desejo de cada um. A família tradicional, pressionada na ampla sociabilidade e no modelo de hierarquias, passa por um processo onde se transforma em uma família igualitária e individualizante, perdendo uma autonomia na resolução de seus problemas, sentindo a necessidade de auxílio na tomada de decisões com profissionais de fora (terapeutas, burocracias, especialistas..). Nesse sentido, passamos de um clima religioso (antigo), para um clima terapêutico: "Tendo desbancado a religião como moldura organizadora da cultura americana, a visão terapêutica ameaça também desbancar a política, o último refúgio da ideologia. A burocracia transforma as queixas coletivas em problemas pessoais acessíveis à intervenção terapêutica". 25 A atrofia das tradições mais antigas de autossuficiência tornou o indivíduo dependente do Estado, da corporação e de outras burocracias. Ao invés da "produção", passou-se para a "reprodução": os pais perderam o direito de educar moralmente os filhos e são induzidos a consumir os serviços dos tecnoburocratas da sociedade do bem-estar. Assim sendo, ao atacarem a família, os radiciais reforçam o programa racionalizador do Estado. É possível destacar um paralelo entre a indiferença do homem narcísico e a atitude blasé (indiferente, apática) dos habitantes das metrópoles: ambos perdem a capacidade de indignar-se, restando uma atitude passiva como resposta aos infortúnios da vida pública. A essência da atitude blasé reside na perda do poder de discriminação diante do excesso de estímulos e informações que existem nas grandes cidades: pessoas, acontecimentos e coisas são niveladas, têm o mesmo valor. Exemplo: assistimos com naturalidade notícias de uma criança passando fome, seguida de gols de uma partida de futebol, corpos de vítimas de um ataque terrorista, etc. Essas notícias desfilam diante dos nossos olhos e parecem ter a mesma relevância. O NARCISISMO PATOLÓGICO Lasch, em a cultura do narcisismo, faz uma comparação entre as personalidades narcisistas e os indivíduos urbanos da sociedade americana e encontra semelhanças como: temor intenso da velhice e da morte, senso de tempo alterado, fascínio pela celebridade, medo de competição, declínio do espírito lúdico. O autor sustenta que o indivíduo narcísico se origina de mudanças específicas na sociedade: burocracias, proliferação de imagens, ideologias terapêuticas, racionalização da vida interior, consumismo, mudanças da vida familiar. Lasch reforça em seus estudos que o narcisismo é uma patologia e não uma condição humana. Seus principais pontos dizem respeito ao devassamento da esfera privada (trata-se aqui da invasão dos espaços privados 'como a própria casa e a família' pela ordem pública) e a caracterização do narcisismo do indivíduo moderno como de cunho patológico. "(...) os pacientes que começaram a se apresentar para tratamento nos anos 40 e 50 muito raramente lembravam as neuroses clássicas que Freud descreveu com tanta profundidade. Nos últimos anos, o paciente fronteiriço, que vai ao psiquiatra não com sintomas bem definidos, mas com insatisfações difusas, tornou-se cada vez mais comum. Ele não sofre mais de fixações ou fobias debilitantes; ao invés, ele se queixa de insatisfação difusa, vaga, com a vida, e sente que sua existência é fútil e sem finalidade. Ele descreve sentimentos de vazio, depressão, oscilação de autoestima, incapacidade de progredir. Ele ganha uma sensação de autoestima aumentada somente quando se liga a figuras admiradas e fortes, cuja aceitação ele deseja muito, e por quem precisa se sentir apoiado." O narcisista quer buscar uma identidade (cura, terapia). Tem como sintomas: ansiedade, depressão, vagos descontentamentos, atenção voltada para o sexo e para o corbo, frieza afetiva, inveja, problemas nas relações humanas e amorosas, vazio interior e etc. Características: - busca a paz de espírito, cura e terapias. 26 - principais aliados: terapeutas, especialistas - não se sente culpado por querer o prazer imediato. - obsessão por: celebridade, culto ao prazer, corpo, alimentação, dinheiro, terapias.. - vê o mundo como um espelho - A personalidade narcisista é fruto da persistência do narcisismo infantil na vida do adulto. "Não obstante suas ocasionais ilusões de onipotência,o narcisista depende dos outros para validar sua autoestima. Ele não consegue viver sem uma audiência que o admire. Sua aparente liberdade dos laços familiares e dos constrangimentos institucionais não o impede de ficar só consigo mesmo, ou de exaltar a sua individualidade. Pelo contrário, ela contribui para a sua insegurança, que ele somente pode superar quando vê o seu 'eu grandioso' refletido nas atenções das outras pessoas, ou ao se ligar àqueles que irradiam celebridade, poder e carisma. Para o narcisista, o mundo é o espelho, ao passo que o individualista áspero o via como um deserto vazio a ser modelado segundo seus próprios desígnios". O individualista antigo tem o ego forte, não precisa de aplausos e elogios, é autossuficiente, diferente do narcisista que, apesar de ser egoísta, não é autossuficiente, depende do estado, dos especialistas, das burocracias, do terapeuta, tem o ego frágil, precisa de aplausos e elogios, é inseguro. Lasch acredita que as condições sociais predominantes tendem a aflorar os traços narcisistas presentes em todos nós. Estas condições também transformaram a família, que por sua vez modela a estrutura subjacente da personalidade. - defesa contra tensões e ansiedades da vida moderna. O narcisismo não é somente uma condição patológica, ele desempenha um papel de protetor psíquico, permitindo que o sujeito equilibre a percepção de suas necessidades em relação às dos outros. No entanto, a configuração capitalista atual exaspera os traços narcísicos, impedindo a identificação mútua entre os indivíduos e enfraquecendo a busca pelo bem comum. Em uma última análise, Lasch aponta ainda para um fator determinante a saber: a promoção do consumo como substituto do protesto e da rebelião. A propaganda desempenha um papel central. Se antes a propaganda se limitava a anunciar um produto, exaltando suas qualidades, ela passa a criar seu próprio produto: o consumidor eternamente insatisfeito. No mundo globalizado, que pretende aposentar palavras como nação ou Estado, o recuo da política é intensificado. Os indivíduos concentram mais do que nunca no seu próprio bem-estar - "Gozo, logo sou". Se anteriormente a publicidade chamava atenção para a mercadoria, exaltando suas vantagens, hoje ela cria um produto próprio: o consumidor insatisfeito, entediado e ansioso, promovendo não apenas produtos, mas estilos de vida, novas experiências e satisfação pessoal. Para Lasch, essa relação entre publicidade e sujeito gera um círculo vicioso, pois ao tempo que o consumo se projeta como refúgio para os dissabores da solidão, fadiga, violência e insatisfação sexual; incita o surgimento de novos descontentamentos. A 27 publicidade de consumo “joga sedutoramente com o mal-estar da civilização industrial. Seu trabalho é tedioso, sem sentido? Deixa-o com sentimentos de futilidade e fadiga? Sua vida é vazia? O consumo promete preencher o doloroso vazio.”. Nesse panorama, a propaganda midiática assume basicamente duas funções, a de alavancar o consumo como substituinte do protesto e da rebelião e de emplacá-lo como remédio, que promete diminuir todas as infelicidades primárias do confronto civilizatório. Todavia, mesmo posicionado como uma alternativa para o confronto e como cura para os problemas, o consumo também se coloca como fonte de insegurança e trauma, sobretudo pelas questões de diferenciação. “Parece fora de moda perto dos seus vizinhos? Tem um carro inferior ao deles? Seus filhos têm tanta saúde quanto o deles? São tão populares? Saem-se tão bem na escola? A publicidade institucionaliza a inveja e suas ansiedades resultantes”. Por meio do consumo, aderimos à promessa de prazer imediato e por meio da aderência ao consumismo nos condenamos a uma insatisfação maior. Todos nós, atores e espectadores, igualmente vivemos cercados de espelhos. Neles, procuramos segurança quanto à nossa capacidade de cativar ou impressionar outras pessoas, ansiosamente procuramos por manchas que possam prejudicar a aparência que desejamos projetar. A indústria da publicidade encoraja deliberadamente esta preocupação com aparências [...], um fascículo anunciando conselhos de beleza colocou em sua capa um nu com o título: “sua obra-prima: você”. [ESTUDO DIRIGIDO - ITEM 4] Com base no texto “Narcisismo contemporâneo...”, responda as questões abaixo: a) Explique as relações que o autor estabelece entre cultura e narcisismo Ao estudar sobre a personalidade narcisista e sobre a cultura dos indivíduos urbanos dos Estados Unidos, Lasch encontra semelhanças características do transtorno, tais como: temor intenso da velhice e da morte, senso de tempo alterado, fascínio pela celebridade, medo da competição, declínio do espírito lúdico, autocentramento e exibicionismo. Lasch defende que o indivíduo narcísico se originou a partir de mudanças específicas na cultura americana. Essas mudanças referem-se à burocracia, à proliferação de imagens, às ideologias terapêuticas, à racionalização da vida interior, ao culto do consumismo e às mudanças na vida familiar. O autor acredita que, essas reflexões podem ser estendidas a outras sociedades industrializadas, nas quais predominam o individualismo como valor, não ficando restrito apenas às particularidades da cultura americana. b) Segundo o autor, como se dá a transformação do individualismo competitivo e da ética do trabalho livre para a ética da autopreservação e da sobrevivência psíquica. Lasch sugere que há uma decepção dos grupos de vanguarda radical dos anos 60 quanto aos resultados políticos do movimento e a consequente retração da atividade política. Sentindo-se impotentes diante de uma generalizada burocratização americana, atemorizados pela exaustão iminente dos recursos naturais e com medo pela possibilidade de uma catástrofe nuclear, os militantes políticos passaram a se preocupar, quase 28 exclusivamente, com o próprio bem-estar. Antes, dispostos a dar a vida por um ideal, transformaram a sobrevivência física e psíquica como finalidade, predominando o individualismo como valor. A descrença no futuro acaba por incorporar uma incapacidade narcisista de se sentir parte do fluxo da história, mudando a experiência subjetiva dos indivíduos, que agora se sentem vazios e isolados, em uma ética de autopreservação, gerando uma fragmentação do senso de comunidade. Essa cultura marca a transformação do individualismo competitivo e da ética do trabalho livre, característicos no início do capitalismo, pela ética da autopreservação e sobrevivência psíquica. c) Que relações e⁄ou distinções o autor estabelece entre indiferença do homem narcísico e a atitude blasé. A essência da atitude blasé, que traz indiferença e apatia, reside na perda do poder de discriminação diante do excesso de estímulos e informações que existem nas grandes cidades: pessoas, acontecimentos e coisas são niveladas, têm o mesmo valor. Já o homem narcísico é indiferente a tudo e a todos que não lhe dizem respeito diretamente. É possível destacar um paralelo entre a indiferença do homem narcísico e a atitude blasé (indiferente, apática) dos habitantes das metrópoles: ambos perdem a capacidade de indignar-se, restando uma atitude passiva como resposta aos infortúnios da vida pública. d) Por que a crítica à moralidade burguesa é, segundo o autor, um elemento fundamental para a reflexão de Christopher LASCH. A intensificação da crítica à moralidade burguesa é um tópico central na reflexão de Lasch porque todo o movimento de contracultura passou a ser canalizado para o ataque à família tradicional burguesa. A ideologia individualista acaba por produzir um meio familiar anômico, desorganizado, onde princípios incomuns e impróprios de orientação social, baseados no respeito à liberdade e ao desejo de cada um, prevalecem. Assim, a família tradicional se transforma em uma família igualitária e individualizante. Essas condições sociais afloram os traços narcisistas nos indivíduos, levando à uma cultura narcisista. e) Explique com base nos argumentos do autor porque o narcisismo na perspectiva
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