Buscar

[ANOTAÇÕES FILOSOFIA - Júlia Munhoz]

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes
Você viu 3, do total de 36 páginas

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes
Você viu 6, do total de 36 páginas

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes
Você viu 9, do total de 36 páginas

Faça como milhares de estudantes: teste grátis o Passei Direto

Esse e outros conteúdos desbloqueados

16 milhões de materiais de várias disciplinas

Impressão de materiais

Agora você pode testar o

Passei Direto grátis

Você também pode ser Premium ajudando estudantes

Prévia do material em texto

[TEXTO 13: CIÊNCIA E MORAL - MACHADO]
A crítica de Nietzsche ao conhecimento racional, ao conhecimento científico tal como existe
desde Sócrates e Platão, é tema constante de seus estudos desde os primeiros aos últimos
textos e fundamentalmente é uma crítica à verdade. Não no sentido de estabelecer um
conceito rigoroso e sistemático de verdade, uma verdade mais científica, mas de ser uma
crítica da própria ideia de verdade considerada como um valor superior, levando à
superação de alguns preconceitos filosóficos. Nietzsche aponta a arte como um modelo
alternativo para a exacerbação da racionalidade, considerando a experiência artística,
especialmente a arte trágica, superior ao conhecimento racional e atribuindo um valor maior
à arte do que a verdade.
INTRODUÇÃO
O que interessa a Nietzsche é realizar uma crítica radical do conhecimento racional tal
como existe desde Sócrates e Platão.
Se não existe em Nietzsche propriamente uma questão epistemológica, se ele formula uma
recusa de uma teoria do conhecimento, é porque o problema da ciência não pode ser
resolvido no âmbito da própria ciência.
Fundamentalmente esta crítica da ciência é uma crítica da verdade. Não no sentido de
procurar estabelecer um conceito rigoroso e sistemático de verdade, de denunciar as
ilusões, de superar os obstáculos à realização da racionalidade. Ponto central do ambicioso
projeto de "transvaloração de todos os valores", a investigação sobre a verdade é uma
crítica da própria ideia de verdade considerada como um "valor superior", como ideal.
A segunda direção da reflexão nietzschiana é o parentesco entre a ciência e a moral. Sua
ideia é clara: se há oposição entre ciência e arte, há continuidade entre ciência e moral
Nietzsche.
A ciência não está isenta de juízos de valor; mais ainda: é a moral que dá valor à ciência.
Uma genealogia da verdade, tal como Nietzsche a elabora nesse momento, só pode ser
feita no âmbito de uma genealogia da moral, posição que não implica uma teoria do
conhecimento nem mesmo uma moral.
Pensando a ciência a partir de seu antagonismo com a arte e de sua continuidade com a
moral, o que faz Nietzsche é avaliar o conhecimento racional e a pretensão de verdade por
meio de dois fenômenos culturais profundamente heterogêneos - um considerado positivo e
o outro negativo - que exprimem um aumento ou diminuição de força, de potência. A arte
expressa uma superabundância de forças: remete aos instintos fundamentais, à vontade
apreciativa de potência. A moral atesta uma deficiência de forças: remete a instintos
secundários, mais fracos, à vontade depreciativa de potência.
"mostrar como a questão da ciência, que continua sendo fundamentalmente a questão
da verdade, não pode ser elucidada através de uma análise interna da própria ciência, mas
remete necessariamente a uma genealogia da moral: não uma teoria moral, mas uma teoria
1
da vontade de potência em que a vida é considerada como princípio último de avaliação
tanto do conhecimento quanto da moral."
O que se pretende:
1) Revelar a grande antinomia entre a moral e a vida: a moral, como manifestação da
fraqueza e insurreição contra a vontade afirmativa de potência, é uma negação da
vida, um combate contra seus valores mais fundamentais.
2) Compreender como a genealogia da moral é o fundamento de uma genealogia da
verdade: o elemento-chave da argumentação é o conceito de vontade de verdade. A
vontade de verdade, que é a crença de que nada é mais necessário do que o
verdadeiro, de que o verdadeiro é superior ao falso, de que a verdade é um valor
superior - crença que funda a ciência e constitui a essência da moral e da metafísica
- é a expressão de uma vontade negativa de potência.
A ARTE TRÁGICA E A APOLOGIA DA APARÊNCIA
Tendo como plano de fundo a arte trágica grega, Nietzsche identifica no mundo a ação de
duas forças cósmicas, dois impulsos primordiais: o apolíneo e o dionisíaco, os quais podem
ser comparados aos movimentos de criação e destruição da natureza. Na Visão Dionisíaca
do mundo, Nietzsche indica essa dupla fonte da arte grega e antecipa que, embora sejam
impulsos antagônicos, há uma possibilidade de uma união através da arte trágica grega.
Por que os gregos criaram os deuses olímpicos ou a arte apolínea?
Para tornar a vida possível ou desejável, dando ao mundo uma superabundância de vida. A
criação da arte apolínea, que tem na epopéia homérica sua mais importante realização, é a
expressão de uma necessidade.
"A vida só é possível pelas miragens artísticas" - Nietzsche
Para que o grego, povo mais do que qualquer outro exposto ao sofrimento, pudesse viver
foi necessário mascarar os terrores e atrocidades da existência com os deuses olímpicos,
deuses da alegria e da beleza, resplandecentes filhos do sonho.
A arte apolínea é a arte da beleza: se os deuses olímpicos não são necessariamente bons
ou verdadeiros - como o deus das religiões morais depois analisadas por Nietzsche -, eles
são belos. Para o grego beleza é medida, harmonia, ordem, proporção, delimitação mas
também significa calma e liberdade com relação às emoções, isto é, serenidade. Contra a
dor, o sofrimento, a morte o grego diviniza o mundo criando a beleza. "Não existe belo
natural". O mundo grego da beleza é o mundo da "bela aparência"; a beleza é uma
aparência.
A questão da aparência é central em toda a filosofia de Nietzsche.
2
Se a beleza é uma aparência é porque há uma verdade que é a essência. Mais ainda: a
beleza é uma aparência, um fenômeno, uma representação que tem por objetivo mascarar,
encobrir, velar a verdade essencial do mundo. Para escapar do saber popular pessimista, o
grego cria um mundo de beleza que, ao invés de expressar a verdade do mundo, é uma
estratégia para que ela não ecloda. Produzir a beleza significa se enganar na aparência e
ocultar a verdadeira realidade.
Quando se diz que algo é belo apenas se diz que tem uma bela aparência, sem
nada se enunciar sobre sua essência. Mascarando a essência, a vontade, a verdadeira
realidade, a beleza é uma intensificação das forças da vida que aumenta o prazer de existir.
Trata-se porém de uma aparência necessária. - Libertação da dor pela aparência.
Assim, o primeiro importante resultado da análise nietzschiana, ao mostrar como os gregos
ultrapassaram, encobriram ou afastaram um saber que ameaçava destruí-los, graças a uma
concepção apolínea da vida, é o elogio da aparência. A apologia da arte já significa, como
sempre significará para Nietzsche, uma apologia da aparência como necessária não apenas
à manutenção, mas à intensificação da vida.
O conceito de apolíneo, pode ser entendido a partir do principium individuationis, cujo
sentido é a criação de individualidades. - Princípio de individuação a partir do qual as coisas
ganham forma na multiplicidade da aparência, ou então, processo pelo qual o
Uno-Primordial se representa nos entes individuais. Portanto, o apolíneo representa a
produção de formas, a beleza (artes plásticas e poesia), fazendo com que a vida se separe
do sofrimento.
Pretendendo substituir o mundo da verdade, ou a verdade do mundo, pelas belas formas, a
arte apolínea deixa de lado algo essencial; virando as costas para a realidade, dissimulando
a verdade, ela desconsidera o outro instinto estético da natureza que não pode ser
esquecido - o dionisíaco.
O impulso dionisíaco representa o movimento de destruição, por meio do qual une os seres
isolados e os deixa se sentirem como um único.
O novo culto da religião dionisíaca punha em questão os valores mais fundamentais da
Grécia. A oposição entre os dois instintos, as duas pulsões, as duas potências, as duas
forças artísticas da natureza_- o apolíneo e o dionisíaco - era total.
A experiência dionisíaca, em vez de individuação, assinala justamente uma ruptura com o
principium individuationis e uma total reconciliação do homem com a natureza e os outros
homens, uma harmonia universal e um sentimento místico de unidade; em vez de
autoconsciência significa uma desintegração do eu, que é superficial, e uma emoção que
abole a subjetividade.A experiência dionisíaca rompe com o principium individuationis, o subjetivo desaparece, é
a perda de si mesmo que sela o laço que une pessoa a pessoa e reconcilia o homem com o
mundo.
3
Em vez de delimitação, calma, tranqüilidade, serenidade, é um comportamento marcado por
um êxtase, por um enfeitiçamento, por uma extravagância de frenesi sexual que destrói a
família, por uma bestialidade natural constituída de volúpia e crueldade, de força grotesca e
brutal; em vez de sonho, visão onírica, é embriaguez, experiência orgiástica.
A experiência dionisíaca tendo significado um acesso à verdade da natureza, uma verdade
que mostra que a natureza é desmesurada, faz o homem compreender a ilusão em que
vivia ao criar um mundo de beleza justamente para, mascarar a verdade. A visão da
essência eterna e imutável das coisas faz com que ele desista de agir e construir uma
civilização. A civilização, que é um mundo aparente, fenomenal, é revelada como impostura
pela natureza, pelo núcleo eterno das coisas, pela verdade dionisíaca. Neste sentido, a
experiência dionisíaca é uma "embriaguez do sofrimento" que destrói o "belo sonho".
É novamente pela arte que o grego é salvo do perigo representado por essa religião
dionisíaca bruta, selvagem, natural, destruidora.
É esta arte apolíneo-dionisíaca, reconciliação entre Apolo e Dioniso, que constitui para
Nietzsche o momento mais importante da arte grega.
Nietzsche elege a arte trágica como um modelo de arte que ao integrar o elemento
dionisíaco em vez de reprimi-lo, transforma o próprio sentimento de desgosto causado pelo
horror e absurdo do ser em representação capaz de tornar a vida possível. Neste momento
de “supremo perigo da vontade” surge a arte trágica, a “feiticeira da salvação e da cura”
para transformar “aqueles pensamentos de repugnância sobre o horrível e o absurdo da
existência em representações, com as quais pudesse viver.
"A tragédia é bela na medida em que o movimento instintivo que cria o horrível na vida nela
se manifesta como instinto artístico, com seu sorriso, como criança que joga. O que há de
emocionante e de impressionante na tragédia em si é que vemos o instinto terrível
tornar-se, diante de nós, instinto de arte e de jogo."
A arte trágica possibilita, portanto, a união entre a aparência e a essência.
A finalidade da tragédia é proporcionar uma espécie de consolo metafísico, uma alegria,
pois afirma a vida perante a crueldade e o horror, e por isso ela é também conhecimento,
nisso consiste a sua grandeza. Esse conhecimento, ou melhor, essa experiência dionisíaca
se dá de forma imediata, ou seja, não é mediada por imagens, é uma introvisão, um
conhecimento que não pode ser adquirido por meio de conceitos, este é o tipo de
conhecimento defendido por Nietzsche.
A tragédia, mostrando o destino do herói trágico como sendo sofrer, não produz sofrimento
mas alegria: uma alegria que não é mascaramento da dor, nem resignação, mas a ex-
pressão de uma resistência ao próprio sofrimento. Idéia esboçada nesta época nos termos
de uma "metafísica de artista" que pretende conjugar na arte trágica aparência e essência.
"A forma mais universal do destino trágico é a derrota vitoriosa ou a vitória
alcançada na derrota. A cada vez a individualidade é vencida: e entretanto sentimos seu
aniquilamento como uma vitória. Para o herói trágico é necessário perecer, por onde ele deve vencer.
4
Nessa antítese, que faz pensar, nós pressentimos a suprema avaliação da individuação, como já
evocamos uma vez: o Uno originário tem necessidade dela para atingir o fim último de seu prazer, de
modo que o desaparecimento se torna tão digno e venerável quanto o nascimento e que aquilo que
nasceu deve cumprir, com o desaparecimento, a tarefa que lhe incumbe como individualidade."
Na tragédia o destino do herói é sofrer - como sofreu Dioniso quando foi despedaçado para
fazer o espectador aceitar o sofrimento como integrante da vida.
Eis a estranha "consolação" que proporciona a tragédia: a certeza de que existe um prazer
superior a que se acede pela ruína e pelo aniquilamento do herói, da individualidade, da
consciência: pela destruição dos valores apolíneos. Eis o que ensina a doutrina da tragédia:
O conhecimento básico da unidade de tudo o que existe, a consideração da individuação
como causa primeira do mal, a arte como a esperança jubilosa de que possa ser rompido o
feitiço da individuação, como pressentimento de uma unidade restabelecida.
A visão trágica do mundo, tal como Nietzsche a interpreta nesse momento, é um equilíbrio
entre a ilusão e a verdade, entre a aparência e a essência : o único modo de superar a
radical oposição metafísica de valores.
METAFÍSICA DE ARTISTA E METAFÍSICA RACIONAL
"Metafísica de artista" é a concepção de que a arte é a atividade propriamente metafísica do
homem, a concepção de que apenas a arte possibilita uma experiência da vida como sendo
no fundo das coisas indestrutivelmente poderosa e alegre, malgrado a mudança dos
fenômenos.
Nietzsche critica o socratismo estético e o denuncia como princípio assassino da tragédia,
tendo como marco Eurípides e Sócrates, por introduzir na arte o pensamento e o conceito
subordinando a criação artística à capacidade racional, a beleza à razão.
Razão científica e instinto estético: o saber racional e o saber artístico. A valorização da
arte - e não do conhecimento - como a atividade que dá acesso às questões fundamentais
da existência é a busca de uma alternativa contra a metafísica clássica criadora da
racionalidade. Ideia que sempre permaneceu fundamental no pensamento de Nietzsche: a
arte tem mais valor do que a ciência por ser a força capaz de proporcionar uma experiência
dionisíaca.
O racionalismo socrático contra o “instinto” nega a possibilidade de expressão que não seja
consciente, uma ilusão metafísica que acredita ser o conhecimento racional a única maneira
de ter acesso à natureza, às coisas. Despreza o instinto em nome da criação artística
consciente, que tem como critério a razão, a clareza do saber.
O ponto de partida da análise é a crítica do "socratismo estético". Se Eurípedes é o marco
que assinala a morte da arte trágica é porque com ele, pela primeira vez, o poeta se
subordina ao pensador racional, ao pensador consciente. O que caracteriza a ''estética
racionalista", a "estética consciente", é introduzir na arte o pensamento e o conceito a tal
5
ponto que a produção artística deriva da capacidade crítica. Momento em que a
consciência, a razão, a lógica despontam como novos critérios de produção e avaliação da
obra de arte.
Quando a racionalidade faz uma crítica explícita à produção artística na perspectiva da
consciência, quando toma como critério o grau de clareza do saber, a tragédia será des-
classificada como irracional ou como desproporcional.
Eurípides, guiado pelo socratismo estético, elimina da tragédia o dionisíaco para
reconstruí-la puramente sobre o discurso racional: “tudo deve ser inteligível para ser belo”.
Eurípedes se torna o poeta do racionalismo socrático: sua crítica da arte é o prolongamento
da crítica socrática aos homens de sua época que por não terem consciência de seu ofício
o exercem apenas por instinto.
É neste "apenas por instinto" que se encontra, segundo Nietzsche, a essência do
socratismo.
"O socratismo despreza o instinto e portanto a arte. Nega a sabedoria justamente onde se
encontra seu verdadeiro reino."
Desprezando o instinto em nome da criação artística consciente que tem como critério a
razão, o discernimento, a clareza do saber, o socratismo condena a arte e o saber trágicos.
Se algo só é bom se for consciente, se há relação necessária entre saber-virtude-felicidade,
o saber trágico, que é um saber inconsciente, se encontra necessariamente desclassificado.
O que se nota é que a crítica de Nietzsche ao socratismo estético e à ciência não é
somente uma questão estética, mas remete ao problema da verdade.
Nietzsche considera o "espírito científico", como crença. Para ele, em toda sua investigação
e mesmo nesse momentoem que defende uma "metafísica" de artista, o saber trágico não
foi vencido propriamente pela verdade, mas por uma crença na verdade, por uma "ilusão
metafísica" que está intimamente ligada à ciência.
A "ilusão metafísica" - a crença de que o conhecimento é capaz de penetrar
conscientemente na essência, na natureza, no fundo das coisas, separando a verdade da
aparência e considerando o erro como um mal - que destruiu a arte trágica. O poder criador
do artista trágico foi negado pela metafísica por não ser uma penetração consciente na
essência das coisas.
Enquanto a ciência cria uma dicotomia de valores que situa a verdade como valor supremo
e desclassifica inteiramente a aparência, na arte a experiência da verdade se faz
indissoluvelmente ligada à beleza, que é uma ilusão, uma mentira, uma aparência. Para a
arte, a ilusão é um valor tão importante quanto a verdade.
A Metafísica da arte justifica a existência e o mundo como fenômenos estéticos,
tornando-os possíveis de serem vividos, pois a vida torna-se viável quando há espaço para
o encantamento, para o espanto, para as novas possibilidades. O mundo é visto como a
6
eterna possibilidade do criar, do vir a ser, não havendo espaço para o definido, o
determinado, para verdades, pois tudo está em constante mudança, num eterno devir.
ARTE E INSTINTO DE CONHECIMENTO
A crítica à instituição da dicotomia metafísica verdade-aparência agora é realizada a partir
do conceito de "instinto de conhecimento" ou instinto de verdade.
O que é o "instinto de conhecimento"? - É ressaltar que o conhecimento não faz parte da
natureza humana (do instinto do homem), ou melhor, não está no mesmo nível que os
instintos e que não é possível dizer que todos os homens desejam naturalmente conhecer.
O conhecimento foi produzido, o conhecimento foi inventado,
Quando afirma não haver instinto de conhecimento, ele quer salientar que não se deve
definir o homem pelo conhecimento ou o conhecimento como o valor principal do homem
porque os instintos são mais fundamentais do que o conhecimento.
A expressão deve sempre ser entendida como se referindo a um instinto da crença no
conhecimento ou na verdade. Propriamente o instinto de que fala Nietzsche é de crença e
não de conhecimento.
Para Nietzsche instinto de conhecimento ou de verdade significa decadência, baixeza,
declínio, signo de que a vida envelheceu e de que os instintos fundamentais se tornaram
fracos. Então, surge uma ideia central: as condições de possibilidade do conhecimento são
sociais, políticas e substancialmente morais.
A verdade não é uma adequação do intelecto à realidade; é o resultado de uma convenção
que é imposta com o objetivo de tornar possível a vida social; é uma ficção necessária ao
homem em suas relações com os outros homens.
Conclusão: O homem não ama necessariamente a verdade: deseja suas consequências
favoráveis. O homem também não odeia a mentira; não suporta os prejuízos por ela
causados. A obrigação, o dever de dizer a verdade nasce para antecipar as consequências
nefastas da mentira. Quando a mentira tem valor agradável ela é muito bem permitida.
Desde o início, a investigação nietzschiana sobre o conhecimento não se limita ao interior
da questão do conhecimento, mas o articula com um nível propriamente político ou social
com o objetivo de mostrar que a oposição entre verdade e mentira tem uma origem moral.
Articulação do conhecimento com o social que neste momento pretende sobretudo elucidar
como a exigência de verdade surge da exigência da coexistência pacífica entre os homens,
da exigência da vida gregária. Paz, segurança e lógica estão intrinsecamente ligadas.
A relação entre conhecimento e moral não é, entretanto, estabelecida por uma teoria moral.
A perspectiva que denuncia a oposição verdade-mentira como fundada na moral é, como
Nietzsche a denominou "extramoral" ou fisiológica. É essa perspectiva extramoral que,
criticando o instinto de conhecimento e de verdade, afirma a necessidade da ilusão.
7
Desde o início de sua reflexão Nietzsche luta contra a oposição metafísica de valores,
afirmando a positividade do aspecto que foi subestimado: a ilusão é a essência que o
homem criou.
A afirmação da vida, da realidade, que caracteriza a arte trágica é afirmação da aparência
porque a própria vida é aparência. Se a arte, diferentemente da ciência, está do lado da
vida, é porque a vida quer a aparência, não despreza seus véus e ilusões.
"Única possibilidade de vida: na arte. De outro modo nos desviamos da vida. O movimento
instintivo das ciências é o aniquilamento completo da ilusão: se não houvesse arte, a
conseqüência seria o quietismo."
A perspectiva extramoral critica o desejo de verdade como sendo um esquecimento de que
o homem é um artista, um criador, isto é, um criador de aparência, situando o antagonismo
entre arte e ciência no próprio campo da ilusão. No fundo, dois tipos de ilusão: a ilusão
socrática, ilusão metafísica, que considera a verdade superior à aparência; e a ilusão
artística, consciente do valor da ilusão, que sabe que tudo é ilusão, "figuração"
"transfiguração", criação.
Nessa propriedade de afirmação ou de negação da vida se encontra o essencial da reflexão
nietzschiana sobre a relação entre arte e ciência, que se faz não na perspectiva da verdade
e da falsidade, mas na perspectiva da força. O antagonismo entre arte e ciência é um
antagonismo de forças. A força da arte é a afirmação da vida, que é totalmente incompatível
com a negatividade que caracteriza a ciência.
A alternativa proposta por Nietzsche é inverter essa correlação de forças, negando a
negação da vida através da arte trágica considerada como afirmação. Se a força científica
reprimiu a força artística dionisíaca, isto é, se a arte, e com ela a vida, foi desvalorizada pela
metafísica socrática, é preciso revalorizar a arte - que cria uma superabundância de forças,
que é o grande estimulante da vida, uma embriaguez de vida - para obrigar o saber a um
retorno à vida.
No conflito entre o instinto estético e o instinto de conhecimento, Nietzsche toma claramente
posição ao lado da arte. O que de modo algum significa um projeto de destruição, de
aniquilamento da ciência. Sua ideia é que cabe à arte, e à filosofia, estabelecer o valor da
ciência ou, o que vem a ser o mesmo, dominar o instinto de conhecimento.
Dominar a ciência significa discipliná-la, controlar seus excessos. O que caracteriza a posi-
ção socrática, e é criticado por Nietzsche, não é exatamente o conhecimento; é o "instinto
de conhecimento sem medida e sem discernimento", o "instinto ilimitado de conhecimento",
o "instinto desencadeado do saber", o "conhecimento incessante", "a verdade a qualquer
preço". Dominar a ciência é determinar seu valor no sentido de controlar a exorbitância de
suas pretensões, no sentido de estabelecer até onde ela pode se desenvolver. É formular a
questão dos limites.
E como uma civilização socrática se funda em uma repressão do trágico, a crítica, o
controle, do instinto ilimitado de conhecimento, do instinto desenfreado de saber, se faz pela
8
edificação de um novo tipo de vida em que os direitos da arte, que foram confiscados pela
racionalidade científica, sejam restituídos, reconquistados.
O que Nietzsche assinala e analisa é uma luta, uma correlação de forças; um combate entre
o trágico e o racional, entre uma civilização socrática e uma civilização artística, dionisíaca.
No pensamento de Nietzsche, valorizar a aparência é afirmar a força; é porque a arte é uma
afirmação da vida como aparência que ela cria uma superabundância de forças. Pois esse
reconhecimento de que a vida tem necessidade da ilusão quando aplicado ao domínio do
conhecimento vai significar que o valor de um conhecimento é dado não pelo "grau de
certeza", mas pelo "grau de necessidade absoluta para os homens".
O que pretende Nietzsche é opor o trágico ao lógico ou utilizar critérios estéticos, valores
artísticos, para definir o conhecimento.
[ESTUDO DIRIGIDO - ITEM 1]
a) A relação entre arte e ciência
A relaçãoentre arte e ciência é antagônica, com base no texto de Machado. Enquanto a
ciência, que usa da razão, situa a verdade como valor supremo e desclassifica inteiramente
a aparência, na arte a experiência da verdade se faz indissoluvelmente ligada à beleza, que
é uma ilusão, uma mentira, uma aparência. Para a arte, a ilusão é um valor tão importante
quanto a verdade.
b) A relação entre arte e instinto de conhecimento
A arte é uma força caracterizada pelo Instinto, que restitui ao homem a sua vitalidade, seu
interesse pela vida, a sua vontade de poder. Para Nietzsche, a arte é vida. Diferentemente
do instinto de conhecimento, ou melhor, o instinto da crença no conhecimento, que não faz
parte da natureza humana e não está no mesmo nível que os instintos. O conhecimento foi
produzido e inventado, não sendo possível dizer que todos os homens desejam
naturalmente conhecer. Dessa forma, por não haver instinto de conhecimento, não se deve
definir o homem pelo conhecimento ou o conhecimento como valor principal do homem, já
que os instintos são mais fundamentais. Aqui, surge uma ideia central: as condições de
possibilidade do conhecimento são sociais, políticas e morais.
c) O recurso metodológico proposto por Nietzsche e seu objetivo fundamental
Nietzsche propõe revalorizar a arte, que cria uma superabundância de forças e estimula a
vida, mas que foi menosprezada pela racionalidade. Assim, é proposta uma inversão da
correlação de forças entre ciência e arte, negando a ciência como um valor superior e
controlando os seus excessos, no sentido de estabelecer até onde ela pode se desenvolver,
impondo ao conhecimento o valor da ilusão ou a ilusão como um valor tão importante
quanto a verdade. Nietzsche quer opor o trágico ao lógico ou utilizar critérios estéticos,
valores artísticos, para definir o conhecimento.
9
d) A razão pela qual é fundamental para Nietzsche explicitar e estabelecer uma
ruptura com a Filosofia Socrático-Platônica
A Filosofia Socrático-Platônica foi um divisor de águas que trouxe uma repressão do trágico
e a decadência da arte trágica. Para ela, a crítica, o controle, o instinto ilimitado de
conhecimento, se faz pela racionalidade científica, sendo esta um valor superior à arte.
Porém, para Nietzsche, a exigência excessiva e ilimitada de conhecimento é prejudicial e é
um crime contra a natureza, causando o aniquilamento da vida. Assim, a ruptura com a
Filosofia Socrático-Platônica se faz fundamental, restituindo os direitos das artes que foram
confiscados pela racionalidade científica e buscando a reabilitação da ilusão, da aparência
como características essenciais da vida e da arte.
10
[TEXTO 14: INTRODUÇÃO E NIETZSCHE E O RESSENTIMENTO - KHEL]
INTRODUÇÃO
O ressentimento é uma constelação afetiva que serve aos conflitos característicos do
homem contemporâneo caracterizado pelo individualismo, mecanismos de defesa do "eu" a
serviço do narcisismo.
Ressentir significa atribuir a um outro a responsabilidade pelo que nos faz sofrer. Um outro
a quem delegamos, em um momento anterior, o poder de decidir por nós, de modo a poder
culpá-lo do que venha a fracassar. - paradigma do neurótico, com sua servidão inconsciente
e sua impossibilidade de implicar-se como sujeito do desejo.
Ressentimento não é um conceito da psicanálise; é do senso comum que nomeia a
impossibilidade de se esquecer ou superar um agravo. O ressentido não é alguém incapaz
de se esquecer ou perdoar; é um que não quer se esquecer, não quer perdoar ou deixar em
branco o mal que o vitimou. O estado emocional do ressentido é um "envenenamento
psicológico", uma soma de rancor, desejo de vingança, raiva, maldade, ciúmes, inveja,
malícia.
Recalcamento sistemático, libera certas emoções e sentimentos, por si só normais
inerentes aos homens, e tende a provocar uma deformação mais ou menos permanente,
tanto no sentido de valores quanto da faculdade do julgamento.
A palavra ressentimento indica uma reação, um sentimento de injúria ou agravo. Porém, o
ressentido não se atreve, ou não se permite, responder à altura da ofensa ressentida. O
envenenamento psicológico a que se refere o autor produz-se a partir da reorientação para
o eu dos impulsos agressivos impedidos de descarga, gerando uma disposição passiva
para a queixa e para a acusação, junto com a impossibilidade de esquecer o agravo.
A vingança é uma necessidade psíquica que só faz sentido nos casos em que a vítima não
foi capaz de reagir. A vingança decorre da falta de resposta imediata ao agravo. Deve
ocorrer depois de um espaço de tempo, alimentado pela raiva ou pela impossibilidade do
esquecimento de uma raiva passada.
Diferentemente, no caso de ressentimento, o tempo da vingança nunca chega. O ressentido
é tão incapaz de vingar-se quanto foi impotente de reagir imediatamente aos agravos e às
injustiças sofridos. Aqui, é preciso que a vítima não se sinta à altura de responder ao
agressor, que se sinta fraca ou inferior a ele. Por isso que Nietzsche o considera como
qualidade dos "escravos".
Uma das condições do ressentimento é que o sujeito estabeleça uma relação de
dependência infantil com um outro, supostamente poderoso, a quem caberia protegê-lo,
premiar seus esforços, reconhecer seu valor. Expressa a recusa do sujeito em sair da
dependência: ele prefere ser "o protegido", ainda que prejudicado, a ser livre, mas
desamparado. No ressentimento, o Outro é representado pelas figuras que, na infância,
tinham poder efetivo para proteger, premiar e punir a criança.
11
NIETZSCHE E O RESSENTIMENTO
Nietzsche foi o filósofo que desnudou a patologia do ressentimento e a articulou aos valores
morais impostos pelo cristianismo.
Na modernidade, os valores predominantemente foram criados a partir da aliança entre a
tutela da Igreja e a coerção que o Estado impõe sobre os instintos vitais, em troca da
proteção aos indivíduos. Para Nietzsche o Estado foi a mudança mais profunda que a
humanidade produziu; sua tutela contribuiu para transformar os homens ativos em
culpados. A força coercitiva do Estado sobre os homens, até então livres e nômades,
desvalorizou a força dos instintos produzindo sua interiorização progressiva, até que os
instintos vitais de dominação e destruição passassem a se voltar contra os homens,
gerando culpa e má consciência.
O homem civilizado é um eterno culpado de todas as suas manifestações vitais em
obediência aos valores morais em que acredita. Quanto mais se submete e desvaloriza a
"força dos instintos", mais enfraquece, e se entrega à tutela moral dos sacerdotes e das
autoridades.
Para Nietzsche, os valores são criações humanas determinadas a partir de conflitos de
força e de poder. Ele também critica a noção de verdade que, em sua visão, é criação
humana que corresponde às conveniências dos homens.
Não temos nenhum interesse na verdade- a não ser quando ela nos convém. Uma ilusão
que serve à expansão da vida vale mais que uma verdade que diminui nossa potência vital.
Então, em que critério Nietzsche apoia seu julgamento do conhecimento filosófico e moral?
Este critério é a vida, sua potência, seu contínuo movimento de expansão.
Em Nietzsche, todos os valores são criados pelo homem, mas nem sempre são impostos
pelos mais fortes aos mais fracos. Ao contrário: para ele, a moral é a invenção dos
derrotados. Exemplo máximo disso é a moral cristã, segundo a qual o Bem está do lado dos
fracos e dos sofredores e o Mal, do lado dos mais fortes - esses valores foram criados pelos
fracos, impotentes e derrotados na luta da vida, que em Nietzsche se define sempre como
vontade de potência, dominação, expansão de si mesma, poder.
A noção de Bem e de Mal criada pelos derrotados funciona, por um lado, como "vingança
espiritual" contra os mais fortes, já que a força e o egoísmo são condenados como
expressões do Mal e a humildade e a fraqueza, elevadas à categoria do Bem. Funcionam
também como recursos de domesticação dos derrotados, que a partir de uma moral
"escrava" consolam-se de suas derrotadas, abandonam a luta e esperam pela recompensa
prometida depoisda morte.
Nietzsche distingue a moral aristocrática (que ele considera sadia e geradora de valores) da
moral escrava ou contranatural (negativa):
Os aristocratas, que são fortes, consideram-se automaticamente como "bons" sem se
preocupar em julgar os outros como "maus". Para os aristocratas, o contrário do "bom" não
12
é o malvado, é o "ruim" no sentido do que é fraco e vil. Enquanto sua moral é criadora, livre
e alegre, a moral dos fracos é negativa, reativa e passiva. É o reflexo do ódio dos
impotentes contra a vida ("escravos"), que escolhem a servidão voluntária, a humildade
auto-imposta, a vida rebaixada.
A vida é o critério que decide tanto a moral escrava quanto a ética aristocrática - nos
primeiros, a vontade de potência expressa-se apenas em termos de conservação da vida,
enquanto nos últimos ela é vontade de poder e de expansão.
É na relação entre fortes e fracos, vencedores e derrotados, escravos e aristocratas que se
define o ressentimento. Este não é o sofrimento inevitável daqueles que, tendo lutado até o
fim de suas forças, foram derrotados por alguém mais forte. Em Nietzsche, o ressentimento
é consequência inevitável das restrições pulsionais auto-impostas pelo homem ocidental
civilizado. É a doença dos fracos que identificam sua fraqueza com os valores da bondade,
humildade e altruísmo de modo que os fortes, que eles não ousam enfrentar, pareçam
maus, mesquinhos e egoístas. Nietzsche propõe a "transvaloração de todos os valores" a
fim de curar seus contemporâneos do ressentimento que está impregnado nos próprios
termos da moral.
Os fortes que se protejam dos fracos- enquanto os primeiros entregam-se de peito aberto à
vida, os segundos, temerosos e servis, ruminam silenciosamente sua vingança. Para os
fortes, o mal não está separado do bem; os inimigos devem ser respeitados e até mesmo
amados.
Se a "vida é dura", poupar os fracos só serve para enfraquecê-los ainda mais. A má
consciência é o afeto negativo que os fracos querem despertar nos fortes a partir de sua
derrota, culpando-os pelo uso da força. Mas como esperar que os fortes não sejam fortes,
não utilizem sua força vital? O único mandato ético da filosofia de Nietzsche é justamente:
torna-te quem tu és, que estimula os homens a se apossar de todos os seus recursos e não
recuar diante da "força dos instintos"
Nietzsche defende a vida como vontade de potência. Se os fracos sofrem a opressão dos
fortes, estes não devem ceder à má consciência, assim como é inútil que aqueles que
queiram pedir aos fortes que deixem de ser fortes, querer que a força deixe de se expressar
como força.
O ressentimento não se confunde com a revolta ou com a luta por justiça e reconhecimento.
Ressentimento não é ação que busca transformar. Ele é o canto queixoso do sujeito da
modernidade e de todo aquele que projeta para fora de si, em determinado momento
histórico, a fonte de seus males, como um mecanismo de defesa e escudo de proteção para
preservar seu narcisismo.
O ressentido conserva a crença a em sua integridade às custas de eleger inimigos. O outro
como "inimigo mau" é essencial na manutenção do mecanismo de defesa próprio do
ressentimento: é ele quem permite que o sujeito se mantenha dialeticamente do lado do
"bom".
13
Bom, porque fraco, inofensivo. O homem do ressentimento, incapaz de defender-se do mais
forte ou competir com ele na luta pela vida, "passa a qualificá-lo de brutal, cruel, ignóbil"- o
que o coloca automaticamente na posição do bom, generoso, digno. Nisto consiste a "moral
negativa" do ressentimento.
O fraco só consegue afirmar-se negando aquele ao qual não consegue se igualar.
Essa operação mental possibilita que o ressentido evite contato com tudo o que é "não eu",
não o fortalece. Sua única força consiste em acusar os fortes.
O ressentido é o escravo de sua impossibilidade de esquecer. Vive em função de uma
vingança adiada, de modo que em sua vida não é possível abrir lugar para o novo. Mas
como se trata de um vingativo passivo, seu silêncio acusador e suas queixas contínuas
mobilizam, no outro, confusos sentimentos de culpa.
O ressentido acusa, mas não está seriamente interessado em ser ressarcido do agravo que
sofreu. A origem da culpa é a dívida. Ele é um covarde, um escravo e não concede a si
mesmo os prazeres da vingança pela crueldade, presentes em algumas formas antigas do
direito. Ele aposta na vingança imaginária, eternamente adiada, que lhe permitiria gozar do
sofrimento daquele que o ofendeu sem ter de se confrontar com sua própria crueldade.
Que o castigo aconteça por obra do destino, ou pelas mãos de Deus - esta seria a vingança
perfeita pela qual o ressentido espera eternamente. - Que o ofensor padeça eternamente
dos remorsos pelo o que fez.
Ao direito à crueldade como compensação pelos agravos, de antigamente, Nietzsche
contrapõe a origem da moderna justiça no terreno do ressentimento. Que a justiça se
fizesse como decorrência natural do "sentimento de estar ferido".
O desejo de vingança recusado é o núcleo doentio do ressentimento de Nietzsche. Uma vez
que não se permite reagir, só resta ao fraco, ressentir. O ressentimento é uma doença que
se origina do retorno dos desejos vingativos sobre o eu. É a fermentação da crueldade
adiada, transmutada em valores positivos, que envenena e intoxica a alma, que fica
eternamente condenada ao não esquecimento.
"O ressentido é alguém que nem age nem reage inicialmente; produz apenas uma vingança
imaginária, um ódio insaciável. Visto que o homem se consumiria rapidamente se reagisse,
acaba por não reagir; eis a lógica"
A vida, para Nietzsche, jamais poderia ser esmagada pelas promessas de uma vida futura.
O homem moral não é melhor que os outros; pelo contrário, é um fraco, reativo, negativo -
assim como um animal domesticado não é melhor que os outros. O "domesticador" é
justamente o sacerdote, indivíduo apenas um pouco mais forte que o rebanho de fracos que
ele controla, que se vale da má consciência para impedir que o sofrimento dos ressentidos
se transforme em revolta potente e vital. O ressentido não se reconhece nas consequências
de seus atos, ele espera que alguém seja culpado pelo seu sofrimento. Culpar o outro, para
Nietzsche, é uma atitude de doentes.
14
[ESTUDO DIRIGIDO - ITEM 2]
Com base nos textos de KHEL “Introdução” e “Nietzsche e o ressentimento”
explique:
a) A definição de ressentimento
O ressentimento é considerado uma força reativa e indica um ressentimento de injúria ou
agravo. O ressentido, atribui a um outro a responsabilidade pelo que o fez sofrer, sendo
incapaz de se esquecer ou perdoar, não canalizando o ódio para fora, mas para si mesmo,
construindo uma espécie de vingança imaginária com base no futuro. O ressentimento é
característico do homem contemporâneo, caracterizado pelo individualismo e narcisismo.
b) Como Khel estabelece a relação entre o pensamento de Nietzsche e o narcisismo.
Kehl aponta o ressentimento como uma característica do homem contemporâneo,
caracterizado pelo narcisismo. Está ligado à aquele que projeta para fora de si a fonte de
seus males e que conserva a crença em sua integridade às custas de eleger inimigos.
Afinal, o outro como "inimigo mau" permite que o sujeito se mantenha dialeticamente do
lado do "bom", "generoso", "digno", mantendo o seu mecanismo de defesa próprio. Essa
operação mental possibilita que o ressentido evite contato com tudo o que é "não eu",
característica do sujeito narcisista.
c) Como, a partir de uma perspectiva nietzschiana, estabelece a relação entre
ressentimento e o Estado
Uma das condições centrais do ressentimento é que o sujeito estabeleça uma relação de
dependência infantil com um outro, supostamente poderoso, a quem caberia protegê-lo. O
ressentido prefere ser protegido, ainda que prejudicado, do que livre, mas desamparado.
Na relação entre ressentimento e o Estado, podemos colocar o Estado como esse sujeito
que traz a proteção do indivíduo em troca da imposição da coerção sobre os instintos vitais,
sendo essa a mudança mais profunda que a humanidade jáproduziu sob a ótica de
Nietzsche. O mesmo, acredita também que a força coercitiva do Estado sobre os homens,
até então livres e nômades, desvalorizou a força dos instintos produzindo sua interiorização
progressiva, até que os instintos vitais de dominação e destruição passassem a se voltar
contra os homens, gerando culpa, má consciência e ressentimento.
d) Que relações a autora estabelece entre ressentimento e justiça, perdão, vingança,
pureza moral, alteridade
O homem contemporâneo vive sob o prisma do narcisismo, que tem como características a
falta de alteridade pelo outro e o recorrente sentimento de ressentimento. Este último não
se confunde com a revolta ou com a luta por justiça, pelo contrário, se caracteriza pela
passividade do sujeito frente ao agravo que o ocorreu. O ressentido é incapaz de perdoar
ou de esquecer, sempre remoendo o ódio para si mesmo; também é incapaz de vingar-se
das injustiças sofridas, construindo uma espécie de vingança imaginária que nunca chega.
O ressentido tem uma teoria pessoal, narcisista, que o sustenta: sua "pureza moral" o deixa
para trás diante da dinâmica das relações que estabelece. Seu discurso se estrutura como
"O outro se aproveita de mim, faz o que bem quer, mas eu não sou assim, porque para mim
isso não é certo" - posição que o coloca como "bom" e "digno", diante de um "inimigo mau".
15
[TEXTO 15: OS DESTINOS DO DESEJO E APOCALIPSE - BIRMAN]
INTRODUÇÃO
O mal-estar se inscreve sempre no campo do sujeito, da subjetividade. Ele é a
matéria-prima sempre recorrente e recomeçada para a produção de sofrimento nas
individualidades.
Temos que pensar nos destinos do desejo na atualidade, já que esses destinos nos
permitem captar o que se passa nas subjetividades, propiciando uma leitura acurada das
mesmas.
Como circunscrever o mal-estar na atualidade, pela indagação dos destinos do desejo?
Nessa perspectiva, a contemporaneidade se caracterizaria pela “cultura do narcisismo” e
pela “sociedade do espetáculo” que constituiriam um modelo de subjetividade em que
seriam silenciadas as possibilidades de reinvenção do sujeito, de valorização das
singularidades e diferenças e de reconhecimento do próprio desejo.
Os destinos do desejo, como afirma Birman, acabariam por tomar uma direção exibicionista
e autocentrada, que teria em contrapartida o esvaziamento do intersubjetivo, a
fragmentação da subjetividade e o desinvestimento nas trocas inter-humanas.
De acordo com Birman “[...] esse é o trágico cenário para a implosão e a explosão da
violência que marcam a atualidade e que se fazem acompanhar da crescente volatilização
da solidariedade". Nessa perspectiva, o contexto social contemporâneo proporcionaria
exíguas possibilidades para experiências de alteridade, compreendida como a capacidade
que o indivíduo tem de viver com o diferente, justamente pelo fato de que as concepções de
cultura situar- se-iam na glorificação do eu e na estetização da existência, condições essas
que o estimulariam fenômenos narcísicos e o autocentramento da subjetividade. Situação
que resultaria em determinados efeitos no sujeito e levaria a alteração da subjetivação, com
a fragilização das relações sociais e da permanência em grupos.
Estratégias que vinculadas ao processo de psicopatologização da existência humana, de
medicalização e de banalização da prescrição de psicofármacos seriam determinantes para
todos aqueles que se mostrassem insatisfeitos com sua condição subjetiva. O homem
contemporâneo submetido às estratégias medicalizantes, enclausurado pelos mecanismos
da psicofarmacologia que promete curá- lo da própria condição humana e anestesiado pelos
efeitos dos psicofármacos estaria cada vez mais sujeito ao processo de mitigação de seu
próprio desejo.
A MODERNIDADE E O MAL ESTAR
A psicanálise é uma leitura da subjetividade e de seus impasses na modernidade. Vale
dizer, aquela é uma interpretação do mal-estar na modernidade. Porém, também existe
certo mal-estar da psicanálise na atualidade. Este mal-estar é o que nos impede de chegar
a tempo nos lances e nas divididas, deixando-nos frequentemente desamparados e a ver
navios quando a confusão está comendo solta. Não é sem razão, portanto, que a
16
psicanálise se encontra em crise na contemporaneidade. Isto é público e notório. Aquela se
deve não apenas às novas formas de subjetivação forjadas na atualidade, mas também a
certa perda de poder crítico da comunidade psicanalítica engendrada pelos
fundamentalismos a que já me referi. Este é indubitavelmente um dos aspectos de nosso
mal-estar.
Assim, toda a primeira parte deste livro pretende realizar uma revisão crítica de alguns
conceitos e temas da teoria e da prática psicanalíticas. Tudo isso para fazer passar também
a psicanálise por uma peneira crítica e por uma modalidade de decantação conceitual,
como um esforço teórico para tornar possível sua inserção na atualidade.
O CORPO, O AFETO E A AÇÃO
A tragédia da servidão na psicanálise se articula intimamente ao esquecimento da presença
do corpo na experiência do sujeito. Dito de outra maneira, uma parcela substantiva da
comunidade analítica se esqueceu de que a subjetividade sofrente tem um corpo e que é
justamente neste que a dor literalmente se enraíza.
Esse esquecimento não passou despercebido para ninguém, custando bastante caro para a
psicanálise. Esta deu de bandeja, com isso, para a medicina e para a psiquiatria a inglória
tarefa de cuidar do corpo. Em contrapartida, a psicanálise ficou com a dita parte nobre da
subjetividade, isto é, o psiquismo, a versão cientificista da alma.
Como a separação entre corpo e psiquismo não é sustentável pela leitura freudiana da
subjetividade, pretendo mostrar como esta dualidade está no fundamento da surdez atual
do ofício de psicanalisar. Isso porque, nesse modelo que opôs o corpo ao psiquismo,
grande parte do mal-estar na atualidade ficaria fora da modalidade psicanalítica de escuta.
Além disso, a questão não fica restrita ao corpo. Junto com este, seria o afeto que estaria
sendo eliminado da psicanálise. A questão da afetividade é absolutamente crucial para que
se possa ficar no mesmo cumprimento de onda dos sofrimentos atuais, já que a intensidade
e o excesso pulsional seriam características marcantes desses sofrimentos. Ao lado disso,
sublinhar a dimensão do afeto é situar o sujeito nas dobras reais de seu sofrimento, em vez
de se restringir a experiência analítica às cavilações obsedantes do pensamento.
Tudo isso tem implicações práticas diretas, pois supõe certa concepção da experiência
psicanalítica. Com efeito, conferir ao corpo e ao afeto um lugar crucial na leitura da
subjetividade é também considerar que a prática analítica não é apenas uma escuta do
psiquismo, mas uma modalidade de ação. Vale dizer, a experiência psicanalítica
se realiza por uma forma específica de interpretação, que se desdobra em uma modalidade
de ação. Em um dos ensaios inaugurais da psicanálise Freud indicou perfeitamente como
as perturbações do espírito seriam impossibilidades de ação. Sendo provocadas por
ofensas e feridas da auto-estima do sujeito, aquelas perturbações poderiam ter outro
destino pelas possibilidades entreabertas pelo ato psicanalítico.
17
O ESPETÁCULO E A CULTURA DO NARCISISMO
Em todas essas novas maneiras de construção da subjetividade, o eu se encontra situado
em posição privilegiada. No entanto, esse autocentramento do sujeito no eu assume formas
inéditas, sem dúvida, se considerarmos a tradição ocidental do individualismo iniciada no
século XVII.
Esse autocentramento se apresentaria sob a forma de estetização da existência, numa
infinita exigência de performances, onde o que importa para as subjetividades
individualistas é a exaltação do eu. A exibição passa a ser o lema essencial da existência,
processo denominado de "cultura do espetáculo". A cultura da imagem é propalada pela
mídia que promove a estetização do eu, em que o sujeito não vale pelo o que é, mas sim
pelo o que ele parece ser.
Com efeito, a subjetividade construída nos primórdios da modernidadetinha seus eixos
constitutivos nas noções de interioridade e reflexão sobre si mesma. Em contrapartida, o
que agora está em pauta é uma leitura da subjetividade em que o autocentramento se
conjuga de maneira paradoxal com o valor da exterioridade. Com isso, a subjetividade
assume uma configuração decididamente estetizante, em que o olhar do outro no campo
social e mediático passa a ocupar uma posição estratégica em sua economia psíquica. -
cultura do narcisismo e sociedade do espetáculo que dão ênfase no autocentramento e
exterioridade.
Os destinos do desejo assumem, pois, uma direção marcadamente exibicionista e
autocentrada, na qual o horizonte intersubjetivo se encontra esvaziado e desinvestido das
trocas inter-humanas. Esse é o trágico cenário para a implosão e a explosão da violência
que marcam a atualidade.
O ETHOS DA VIOLÊNCIA
A solidariedade se encontra assustadoramente em baixa. Cada um por si e foda-se o resto
parece ser o lema maior que define o ethos da atualidade.
A solidariedade seria o correlato de relações inter-humanas fundamentadas na alteridade.
Para isso, no entanto, seria necessário que o sujeito reconhecesse o outro na diferença e
singularidade, atributos da alteridade.
O que justamente caracteriza a subjetividade na cultura do narcisismo é a impossibilidade
de poder admirar o outro em sua diferença radical, já que não consegue se descentrar de si
mesma. O sujeito da cultura do espetáculo encara o outro apenas como um objeto para
seu usufruto. Dessa maneira, o sujeito vive permanentemente em um registro especular, em
que o que lhe interessa é o engrandecimento grotesco da própria imagem. O outro lhe serve
apenas como instrumento para o incremento da auto-imagem, podendo ser eliminado como
um dejeto quando não mais servir para essa função abjeta.
Com isso, as relações inter-humanas assumem características nitidamente agonísticas, de
uma maneira perturbadora. Na ausência de projetos sociais compartilhados, resta apenas
18
para as subjetividades os pequenos pactos em torno da possibilidade de extração do gozo
do corpo do outro, custe o que custar.
Este é o cenário para a estridente explosão da violência na cultura da atualidade. A
eliminação do outro, se este resiste e faz obstáculo ao gozo do sujeito, nos dias atuais se
impõe como uma banalidade.Neste contexto, surge até mesmo uma nova categoria de
desviantes, as crianças, cujos crimes estão aumentando.
RECOMEÇAR
A psicanálise ainda é o saber mais consistente para indagar as relações turbulentas do
sujeito com seu desejo, ficando para isso nos limiares da morte, do gozo e da violência, que
nos entreabrem para o que existe de horror no universo das delícias eróticas.
Porém, a psicanálise deve se repensar em alguns de seus fundamentos, para ficar sensível
e conseguir ser potente no que tange ao mal-estar na atualidade. Esta seria a única
maneira de a psicanálise continuar a ser operante no contexto de trevas, obscurantismo e
fundamentalismo em que vivemos hoje em dia. É preciso recomeçar do ponto em que
estamos agora.
DO ADMIRÁVEL MUNDO NOVO À DESESPERANÇA - DROGAS
Nas décadas iniciais heróicas, anos 60 e 70, e na segunda metade do século XX, as drogas
representavam a via de acesso para um mundo novo a ser descoberto e construído. As
drogas, como mercadorias mágicas, possibilitaram a transformação dos registros do corpo e
da sensorialidade das individualidades, facultando a estas o desbravamento do
desconhecido e a invenção de novos mundos.
Dessa maneira, os jovens, artistas, intelectuais e o mundo underground em geral se
esforçavam em poder pensar na existência de outros mundos e em novos horizontes para a
existência. As drogas alucinógenas, principalmente o ácido lisérgico (LSD), representavam
então a via privilegiada para que os indivíduos pudessem habitar um outro universo. O que
estava em pauta era uma crítica cerrada e radical à mesmice do mundo instituído e a gana
em construir um outro universo humanamente habitável.
Contudo, esse revolucionário estilo existencial da contracultura foi infletido em outra direção
no final dos anos 70. Desarticuladas do campo semântico de invenção de um "admirável
mundo novo", as drogas foram capturadas pela indústria do narcotráfico, pelas máfias,
sendo transformadas em seu potencial simbólico. Foi instituído o consumo de drogas em
larga escala pelo bel-prazer da busca da excitação, da procura do gozo em estado puro.
De caminho experimental para a busca de outros horizontes existenciais para as
individualidades, as drogas passaram a ser os meios privilegiados para aquelas lidarem
com o que há de insuportável em suas misérias psíquicas e com o mal-estar da
contemporaneidade.
19
Transformou-se, pois, o seu valor de uso. Com isso, a escala de consumo das drogas
aumentou muito e sua oferta tornou-se diversificada. Outras camadas populacionais que
ficaram de fora da onda cultural dos anos 60 e 70 foram capturadas pela magia das drogas.
Além disso, inventaram-se progressivamente novas drogas para a oferta do público cioso
por excitações imaginárias renovadas. As drogas passaram a servir para mitigar as
desesperanças das individualidades, para apaziguar as angústias e as tristezas daquelas
no desamparo provocado pelo mal-estar da atualidade.
O ARTESANATO, A INDÚSTRIA E OS SABERES BIOLÓGICOS
Com os avanços científicos da bioquímica, medicina e da psicofarmacologia, a produção de
drogas deixa de ser um trabalho artesanal e passa para o trabalho industrial, com a
colaboração da pesquisa biológica no campo das neurociências - tudo isso transformou o
objeto droga, que passou a ser uma mercadoria.
Vale dizer que seria impensável o desenvolvimento gigantesco da indústria de drogas sem
que houvesse a inestimável colaboração da bioquímica do sistema nervoso e da
psicofarmacologia. Colaboração indireta, sem dúvida. Porém, nem por isso é inestimável.
O EVITAMENTO DA DOR
O impressionante desenvolvimento da psicofarmacologia a partir dos anos 50 ofereceu à
psiquiatria a perspectiva de construir uma suposta legitimidade médica e científica. Com
isso, a psiquiatria passou a ser uma especialidade médica, e poderia se gabar de ter
seus fundamentos no discurso rigoroso da ciência biológica (mudança radical da
psiquiatria).
Ao se guiar pelos valores do cientificismo, foi aos poucos dando primazia aos modos
medicamentosos de intervenção, supostamente infalíveis, e descartando os instrumentos
centrados na palavra. As psicoterapias foram sendo colocadas em segundo plano, cada vez
mais afastadas da clínica psiquiátrica, quando não completamente excluídas. Tudo isso
conduziu a uma transformação radical da relação médico-paciente, em que a singularidade
da experiência do paciente em estar enfermo foi sendo descartada, quando não
completamente silenciada.
Além disso, a descoberta de psicofármacos poderosos na regulação do sofrimento psíquico
entreabriu a possibilidade de se relacionar com a dor mental de outra maneira. Assim, a
utilização de drogas eficazes contra a angústia e as depressões indica, de forma eloquente,
uma mudança significativa na relação dos indivíduos com estas paixões, até então
incontroláveis pela intervenção médica.Ï
Com isso, o limiar suportável para aquelas paixões foi baixando progressivamente nas
individualidades, que passaram também a demandar tais químicas diante de toda e
qualquer transformação negativa de humor. A medicalização psicofarmacológica das
variações de humor, das paixões e do sofrimento psíquico foi aumentando de maneira
vertiginosa. Assim, um outro limiar de controle social daquelas variações foi alcançado pela
via psicofarmacológica, com a produção de psicofármacos cada vez mais diversificados,
20
específicos para cada um dos quadros sintomáticos e para as diferentes síndromes
psicopatológicas.
Diante de qualquer angústia, tristeza ou outro desconforto psíquico, os clínicos passaram a
prescrever, sem pestanejar, os psicofármacos mágicos, isto é, os ansiolíticos e
antidepressivos. A escuta da existência e da história dos enfermos foi sendo
progressivamentedescartada e até mesmo, no limite, silenciada. Enfim, por essa via
tecnológica, a população passou a ser ativamente medicalizada, numa escala sem
precedentes.
É por esse viés que podemos apreender as relações secretas e perigosas entre as ditas
drogas pesadas e as supostas drogas medicamentosas, isto é, entre a indústria do
narcotráfico e a grande indústria farmacêutica. É evidente que as duas se complementam
de maneira harmoniosa e quase perfeita, pois em ambas é o evitamento de qualquer
sofrimento psíquico pelo sujeito que está em pauta, nas condições atuais do mal-estar na
civilização. Não se pode esquecer aqui que o desamparo humano aumentou muito na dita
pós-modernidade, pois, com o fim das utopias e dos messianismos alimentados pela
modernidade, não há mais como fazer obstáculo às dores e desesperanças produzidas na
atualidade. Isso porque não se oferecem outros projetos alternativos nos registros social e
político.
DEPRIMIDOS, PANICADOS E TOXICÔMANOS
Como essa via de evitamento sistemático da dor e do sofrimento psíquicos foi legitimada?
Como tudo isso se tornou legítimo, de maneira ampla, geral e irrestrita?
Nas últimas décadas a psicopatologia se concentrou no estudo das depressões, síndrome
do pânico e toxicomanias (psicopatologia da pós-modernidade). O que caracteriza essa
psicopatologia é sua direção biológica de pesquisa, fundada nas neurociências e na
psicofarmacologia. A finalidade dessa medicina mental é regular as variações dos humores
e das paixões, para normalizar os excessos das imensidades psíquicas.
Pode-se caracterizar a sociedade pós-moderna como a sociedade do espetáculo ou como a
cultura do narcisismo. Aqui, o sujeito perde suas relações com as ideias de tempo e de
história. Com isso, o que importa é o aqui e o agora.
A inflação do eu é o operador crucial na estetização da existência, pois por seu intermédio
se definem as novas relações entre o sujeito e o outro. Com efeito, a predação do corpo do
outro se transforma em trilha preferencial do amor e do erotismo, pois o que importa para a
individualidade é a apropriação do corpo do outro para a expansão inflacionada do próprio
eu. Com isso, as noções éticas de alteridade e reconhecimento da diferença tendem ao
desaparecimento no universo social voltado para a estetização da existência.
Pode-se compreender agora como a psiquiatria da pós-modernidade se constrói na direção
definida de pesquisa e interesse clínico pelas perturbações funcionais do humor, sejam
estas depressões ou síndrome do pânico, na medida em que nestas perturbações do
espírito o sujeito não consegue ser cidadão da sociedade do espetáculo.
21
Nesse contexto, a psicofarmacologia fornece os instrumentos básicos para que essas
individualidades possam se inscrever nos trâmites brilhosos da cultura do narcisismo. Os
psicofármacos, pelo enorme efeito antidepressivo e tranquilizante, visam a transformar
esses miseráveis sofredores em seres efetivos da sociedade do espetáculo. Com isso,
silenciam-se as cavilações pesadas e as ruminações "excessivamente" interiorizadas dos
deprimidos, e eles são transformados em seres "legais" do universo do espetacular.
Apenas nesse contexto podemos interpretar o fantástico crescimento das toxicomanias nas
últimas décadas, pois, seja pelo narcotráfico, pela farmacodependência ou pelos
psicofármacos, o que está sempre em pauta é a transformação do sujeito inseguro,
deprimido e panicado em cidadão da sociedade do espetáculo.
A cultura dos sofredores e dos espíritos desesperados já era. Não se admite mais, no
contexto da sociedade do espetáculo, os personagens sofrentes e desesperados, que
marcaram as gerações do pós-guerra, como as gerações existencialista e beat. O que
interessa agora é a estetização da existência e a inflação do eu, que promovem uma
ética oposta à do sofrimento. Por fim, pode-se entender a cultura do evitamento da dor
promovida pela medicina e pela indústria de drogas pesadas, pois por seu intermédio a
magia do silêncio do sofrimento psíquico está sempre em pauta.
Produzidas pela medicina clínica, pela psiquiatria e pelo narcotráfico, as toxicomanias são
os contrapontos das depressões e da síndrome do pânico, no sentido de que é pelo
consumo massivo de drogas que o sujeito tenta regular os humores e efeitos maiores do
mal-estar da atualidade. O sujeito busca, pela magia das drogas, se inscrever na rede de
relações da sociedade do espetáculo e seus imperativos éticos.
[ESTUDO DIRIGIDO - ITEM 3]
Com relação ao texto de Birman “Os destinos do desejo” e “Apocalipse”, responda:
a) Como Birman relaciona os destinos do desejo às novas formas de subjetivação.
Os destinos do desejo, como afirma Birman, acabariam por tomar uma direção exibicionista
e autocentrada, dentro da cultura do narcisismo e sociedade do espetáculo, que teria, em
contrapartida, o esvaziamento do intersubjetivo, a fragmentação da subjetividade e o
desinvestimento nas trocas inter-humanas.
b) Como Birman caracteriza mal-estar na atualidade e qual a distinção que estabelece
com o mal-estar na modernidade.
O mal-estar é caracterizado como matéria-prima para a produção de sofrimento dos
indivíduos, sempre atuando no campo da subjetividade. Na atualidade, ele ocorre pelo
esvaziamento das relações (devido à supervalorização do "eu" e do autocentramento
exacerbado) e, também, pela necessidade do indivíduo de ser notado e glorificado pelo
mundo externo (sociedade do espetáculo). Já na modernidade, se deu pelo
desencantamento do mundo, em uma época de revolução científica e de racionalização, em
que Deus e a igreja deixaram de causar aos homens a sensação de segurança,
estabilidade e amparo. Logo após, a ciência também passou a ser questionada e vista
22
como insuficiente para amparar a humanidade. Assim, o homem passou a recorrer a si
mesmo como referência de valores morais, e se viu cada vez mais isolado dos outros,
afastado do sentido de comunidade.
c) Explique como Birman articula as relações existentes entre o individual e o social e
como qualifica e discute o sofrimento psíquico no texto “Mal-estar na civilização”.
Na sociedade do espetáculo e na cultura do narcisismo, o indivíduo vive permanentemente
em um registro especular, em o que o que lhe interessa é o engrandecimento da própria
imagem. O outro lhe serve apenas como um instrumento para o incremento da autoimagem,
podendo ser eliminado como um dejeto quando não mais servir para essa função. Com todo
esse autocentramento e exibicionismo, não há mais investimento nas relações
inter-humanas, assim, o social passa a ser algo superficial e fragilizado. Nesse mundo das
aparências, também não há espaço para mostrar o sofrimento, se tem o dever de ser feliz e,
nesse contexto, não corresponder a perspectiva social, não se enquadrar no contexto
coletivo em termos comportamentais, de consumo e de estabelecimento de harmonia com
os paradigmas estabelecidos, levaria os indivíduos aos elevados sofrimentos psíquicos e,
possivelmente, ao mundo das drogas ou uso de psicofármacos.
d) Como Birman equaciona a temática relativa a violência e como ela se apresenta
nas relações entre indivíduo e sociedade.
Com a crescente volatilização da solidariedade e a perda da alteridade, o sujeito da
atualidade não admira mais o outro em sua diferença, por não conseguir descentrar-se de si
mesmo. Sempre olhando para o "próprio umbigo", o outro acaba por se tornar um
instrumento para o incremento da auto-imagem, não havendo mais investimento nas trocas
inter-humanas, que se tornam cada vez mais superficiais e frágeis. Todo esse
autocentramento, exibicionismo e extração do gozo a qualquer custo, acaba por gerar uma
implosão e explosão da violência na cultura da atualidade.
23
[TEXTO 16: NARCISISMO CONTEMPORÂNEO - UMA ABORDAGEM LASCHIANA -
WANDERLEY, ALEXANDRE]
Vídeo complementar: https://www.youtube.com/watch?v=jU6Q2ZP31Dg
Lasch é um crítico da sociedade terapêutica e do narcisismo contemporâneo.
O texto tem como objetivo abordar as relações entre indivíduo e sociedade. Examina alguns
tópicos relativosà sociologia da saúde mental e à interface entre a sociologia, psicanálise e
a psicopatologia (visão multidisciplinar). Busca as relações entre as sociedades ocidentais
contemporâneas e os traços psicológicos típicos dos indivíduos urbanos.
O livro de Lasch foi escrito na década de 80, onde estava tendo um declínio da esperança
na sociedade americana. Antecipa problemas da sociedade atual.
A ÉTICA DA SOBREVIVÊNCIA
Lasch baseia seus estudos para a análise da origem e evolução da família burguesa nos
séculos XIX e XX e aponta uma preocupação com os destinos da sociedade
norte-americana. Suas reflexões podem ser estendidas a outras sociedades
industrializadas, nas quais predomina o individualismo como valor.
Após a ebulição política dos anos 60, os americanos recuaram para preocupações
puramente pessoais. Surgiram os homens narcisistas.
ANTES DEPOIS
Dispostos a dar a vida por um ideal e
apego às questões coletivas.
Sobrevivência individual "cuidar de si
mesmo" e "viver para si".
Preocupação com as tradições e com o
futuro.
Esquecimento do passado e do futuro -
perda do sentido da tradição e continuidade
histórica.
Apego à religião O Narcisismo é muito mais terapêutico do
que religioso. O que importa para as
pessoas é ter uma ilusão de bem estar
pessoal, saúde e segurança.
Preocupação com a política Ameaça à política (foca apenas no eu).
Vida íntima preservada Declínio da vida íntima
Narcisismo = sobrevivência individual = falta de sentido histórico
Características do narcisista: superficialidade emocional, medo da intimidade, hipocondria,
promiscuidade sexual, horror à velhice e à morte. São descrentes quanto à possibilidade de
24
transformar o futuro, desprezam o passado e vivem para o momento, perdendo o sentido de
continuidade histórica (repúdio ao passado recente - sintoma de uma crise cultural).
"Woody Allen, anos 70: soluções políticas não funcionam, acredito no sexo e na morte, duas
experiências únicas em uma existência"
Os movimentos políticos a partir do final do séc. 60 passaram a reforçar uma moral da
sobrevivência que se justificaria per se. Se atrelaram às defesas de interesses particulares,
deixando de lado ideais que visam o bem comum. (Ex. interesses referidos ao próprio
corpo).
Na ausência de valores como justiça social e sentido de continuidade com gerações
anteriores, a ética da sobrevivência constitui a marca distintiva da cultura do narcisismo.
"As condições sociais hoje em dia encorajam uma mentalidade de sobrevivência, expressa
em sua forma mais rude nos filmes de catástrofes ou em fantasias de viagens espaciais,
que permitem uma fuga do planeta condenado. As pessoas deixam de sonhar com a
superação das dificuldades, mas passam a sobreviver a elas."
Essa cultura testemunha a transformação do individualismo competitivo e da ética do
trabalho livre (característicos no início do capitalismo), na ética da autopreservação e da
sobrevivência psíquica.
A desqualificação da luta política dos anos 60 dá lugar, a um ataque à família burguesa
(fonte de repressão emocional e sexual). Buscando contrapor-se aos valores tradicionais, o
homem narcísico, ao invés de culpado, moralista ou reprimido, se diz liberado, permissivo e
tolerante. Para Lasch, essa liberação sexual e quebra de tabus não trazem paz sexual ou
espiritual. Ao contrário, essa busca incessante pelo prazer se torna uma obsessão que gera
queixas de vazio interior e, a proclamação da tolerância não resultou em uma maior
compreensão e aceitação do semelhante, o homem narcísico é indiferente a tudo e a todos
que não lhe dizem respeito diretamente.
A ideologia individualista acaba por produzir um meio familiar anômico, onde prevalecem
princípios incomuns/impróprios de orientação social, baseados no respeito à liberdade e ao
desejo de cada um. A família tradicional, pressionada na ampla sociabilidade e no modelo
de hierarquias, passa por um processo onde se transforma em uma família igualitária e
individualizante, perdendo uma autonomia na resolução de seus problemas, sentindo a
necessidade de auxílio na tomada de decisões com profissionais de fora (terapeutas,
burocracias, especialistas..).
Nesse sentido, passamos de um clima religioso (antigo), para um clima terapêutico:
"Tendo desbancado a religião como moldura organizadora da cultura americana, a visão
terapêutica ameaça também desbancar a política, o último refúgio da ideologia. A
burocracia transforma as queixas coletivas em problemas pessoais acessíveis à intervenção
terapêutica".
25
A atrofia das tradições mais antigas de autossuficiência tornou o indivíduo dependente do
Estado, da corporação e de outras burocracias. Ao invés da "produção", passou-se para a
"reprodução": os pais perderam o direito de educar moralmente os filhos e são induzidos a
consumir os serviços dos tecnoburocratas da sociedade do bem-estar. Assim sendo, ao
atacarem a família, os radiciais reforçam o programa racionalizador do Estado.
É possível destacar um paralelo entre a indiferença do homem narcísico e a atitude blasé
(indiferente, apática) dos habitantes das metrópoles: ambos perdem a capacidade de
indignar-se, restando uma atitude passiva como resposta aos infortúnios da vida pública.
A essência da atitude blasé reside na perda do poder de discriminação diante do excesso
de estímulos e informações que existem nas grandes cidades: pessoas, acontecimentos e
coisas são niveladas, têm o mesmo valor.
Exemplo: assistimos com naturalidade notícias de uma criança passando fome, seguida de
gols de uma partida de futebol, corpos de vítimas de um ataque terrorista, etc. Essas
notícias desfilam diante dos nossos olhos e parecem ter a mesma relevância.
O NARCISISMO PATOLÓGICO
Lasch, em a cultura do narcisismo, faz uma comparação entre as personalidades narcisistas
e os indivíduos urbanos da sociedade americana e encontra semelhanças como: temor
intenso da velhice e da morte, senso de tempo alterado, fascínio pela celebridade, medo de
competição, declínio do espírito lúdico. O autor sustenta que o indivíduo narcísico se origina
de mudanças específicas na sociedade: burocracias, proliferação de imagens, ideologias
terapêuticas, racionalização da vida interior, consumismo, mudanças da vida familiar.
Lasch reforça em seus estudos que o narcisismo é uma patologia e não uma condição
humana. Seus principais pontos dizem respeito ao devassamento da esfera privada
(trata-se aqui da invasão dos espaços privados 'como a própria casa e a família' pela ordem
pública) e a caracterização do narcisismo do indivíduo moderno como de cunho patológico.
"(...) os pacientes que começaram a se apresentar para tratamento nos anos 40 e 50 muito
raramente lembravam as neuroses clássicas que Freud descreveu com tanta profundidade.
Nos últimos anos, o paciente fronteiriço, que vai ao psiquiatra não com sintomas bem
definidos, mas com insatisfações difusas, tornou-se cada vez mais comum. Ele não sofre
mais de fixações ou fobias debilitantes; ao invés, ele se queixa de insatisfação difusa, vaga,
com a vida, e sente que sua existência é fútil e sem finalidade. Ele descreve sentimentos de
vazio, depressão, oscilação de autoestima, incapacidade de progredir. Ele ganha uma
sensação de autoestima aumentada somente quando se liga a figuras admiradas e fortes,
cuja aceitação ele deseja muito, e por quem precisa se sentir apoiado."
O narcisista quer buscar uma identidade (cura, terapia). Tem como sintomas: ansiedade,
depressão, vagos descontentamentos, atenção voltada para o sexo e para o corbo, frieza
afetiva, inveja, problemas nas relações humanas e amorosas, vazio interior e etc.
Características:
- busca a paz de espírito, cura e terapias.
26
- principais aliados: terapeutas, especialistas
- não se sente culpado por querer o prazer imediato.
- obsessão por: celebridade, culto ao prazer, corpo, alimentação, dinheiro, terapias..
- vê o mundo como um espelho
- A personalidade narcisista é fruto da persistência do narcisismo infantil na vida do
adulto.
"Não obstante suas ocasionais ilusões de onipotência,o narcisista depende dos outros para
validar sua autoestima. Ele não consegue viver sem uma audiência que o admire. Sua
aparente liberdade dos laços familiares e dos constrangimentos institucionais não o impede
de ficar só consigo mesmo, ou de exaltar a sua individualidade. Pelo contrário, ela contribui
para a sua insegurança, que ele somente pode superar quando vê o seu 'eu grandioso'
refletido nas atenções das outras pessoas, ou ao se ligar àqueles que irradiam celebridade,
poder e carisma. Para o narcisista, o mundo é o espelho, ao passo que o individualista
áspero o via como um deserto vazio a ser modelado segundo seus próprios desígnios".
O individualista antigo tem o ego forte, não precisa de aplausos e elogios, é autossuficiente,
diferente do narcisista que, apesar de ser egoísta, não é autossuficiente, depende do
estado, dos especialistas, das burocracias, do terapeuta, tem o ego frágil, precisa de
aplausos e elogios, é inseguro.
Lasch acredita que as condições sociais predominantes tendem a aflorar os traços
narcisistas presentes em todos nós. Estas condições também transformaram a família, que
por sua vez modela a estrutura subjacente da personalidade. - defesa contra tensões e
ansiedades da vida moderna.
O narcisismo não é somente uma condição patológica, ele desempenha um papel de
protetor psíquico, permitindo que o sujeito equilibre a percepção de suas necessidades em
relação às dos outros. No entanto, a configuração capitalista atual exaspera os traços
narcísicos, impedindo a identificação mútua entre os indivíduos e enfraquecendo a busca
pelo bem comum.
Em uma última análise, Lasch aponta ainda para um fator determinante a saber: a
promoção do consumo como substituto do protesto e da rebelião. A propaganda
desempenha um papel central. Se antes a propaganda se limitava a anunciar um produto,
exaltando suas qualidades, ela passa a criar seu próprio produto: o consumidor
eternamente insatisfeito.
No mundo globalizado, que pretende aposentar palavras como nação ou Estado, o recuo da
política é intensificado. Os indivíduos concentram mais do que nunca no seu próprio
bem-estar - "Gozo, logo sou".
Se anteriormente a publicidade chamava atenção para a mercadoria, exaltando suas
vantagens, hoje ela cria um produto próprio: o consumidor insatisfeito, entediado e ansioso,
promovendo não apenas produtos, mas estilos de vida, novas experiências e satisfação
pessoal. Para Lasch, essa relação entre publicidade e sujeito gera um círculo vicioso, pois
ao tempo que o consumo se projeta como refúgio para os dissabores da solidão, fadiga,
violência e insatisfação sexual; incita o surgimento de novos descontentamentos. A
27
publicidade de consumo “joga sedutoramente com o mal-estar da civilização industrial. Seu
trabalho é tedioso, sem sentido? Deixa-o com sentimentos de futilidade e fadiga? Sua vida
é vazia? O consumo promete preencher o doloroso vazio.”.
Nesse panorama, a propaganda midiática assume basicamente duas funções, a de
alavancar o consumo como substituinte do protesto e da rebelião e de emplacá-lo como
remédio, que promete diminuir todas as infelicidades primárias do confronto civilizatório.
Todavia, mesmo posicionado como uma alternativa para o confronto e como cura para os
problemas, o consumo também se coloca como fonte de insegurança e trauma, sobretudo
pelas questões de diferenciação. “Parece fora de moda perto dos seus vizinhos? Tem um
carro inferior ao deles? Seus filhos têm tanta saúde quanto o deles? São tão populares?
Saem-se tão bem na escola? A publicidade institucionaliza a inveja e suas ansiedades
resultantes”.
Por meio do consumo, aderimos à promessa de prazer imediato e por meio da aderência ao
consumismo nos condenamos a uma insatisfação maior.
Todos nós, atores e espectadores, igualmente vivemos cercados de espelhos. Neles,
procuramos segurança quanto à nossa capacidade de cativar ou impressionar outras
pessoas, ansiosamente procuramos por manchas que possam prejudicar a aparência que
desejamos projetar. A indústria da publicidade encoraja deliberadamente esta preocupação
com aparências [...], um fascículo anunciando conselhos de beleza colocou em sua capa
um nu com o título: “sua obra-prima: você”.
[ESTUDO DIRIGIDO - ITEM 4]
Com base no texto “Narcisismo contemporâneo...”, responda as questões abaixo:
a) Explique as relações que o autor estabelece entre cultura e narcisismo
Ao estudar sobre a personalidade narcisista e sobre a cultura dos indivíduos urbanos dos
Estados Unidos, Lasch encontra semelhanças características do transtorno, tais como:
temor intenso da velhice e da morte, senso de tempo alterado, fascínio pela celebridade,
medo da competição, declínio do espírito lúdico, autocentramento e exibicionismo. Lasch
defende que o indivíduo narcísico se originou a partir de mudanças específicas na cultura
americana. Essas mudanças referem-se à burocracia, à proliferação de imagens, às
ideologias terapêuticas, à racionalização da vida interior, ao culto do consumismo e às
mudanças na vida familiar. O autor acredita que, essas reflexões podem ser estendidas a
outras sociedades industrializadas, nas quais predominam o individualismo como valor, não
ficando restrito apenas às particularidades da cultura americana.
b) Segundo o autor, como se dá a transformação do individualismo competitivo e da
ética do trabalho livre para a ética da autopreservação e da sobrevivência psíquica.
Lasch sugere que há uma decepção dos grupos de vanguarda radical dos anos 60 quanto
aos resultados políticos do movimento e a consequente retração da atividade política.
Sentindo-se impotentes diante de uma generalizada burocratização americana,
atemorizados pela exaustão iminente dos recursos naturais e com medo pela possibilidade
de uma catástrofe nuclear, os militantes políticos passaram a se preocupar, quase
28
exclusivamente, com o próprio bem-estar. Antes, dispostos a dar a vida por um ideal,
transformaram a sobrevivência física e psíquica como finalidade, predominando o
individualismo como valor. A descrença no futuro acaba por incorporar uma incapacidade
narcisista de se sentir parte do fluxo da história, mudando a experiência subjetiva dos
indivíduos, que agora se sentem vazios e isolados, em uma ética de autopreservação,
gerando uma fragmentação do senso de comunidade. Essa cultura marca a transformação
do individualismo competitivo e da ética do trabalho livre, característicos no início do
capitalismo, pela ética da autopreservação e sobrevivência psíquica.
c) Que relações e⁄ou distinções o autor estabelece entre indiferença do homem
narcísico e a atitude blasé.
A essência da atitude blasé, que traz indiferença e apatia, reside na perda do poder de
discriminação diante do excesso de estímulos e informações que existem nas grandes
cidades: pessoas, acontecimentos e coisas são niveladas, têm o mesmo valor. Já o homem
narcísico é indiferente a tudo e a todos que não lhe dizem respeito diretamente. É possível
destacar um paralelo entre a indiferença do homem narcísico e a atitude blasé (indiferente,
apática) dos habitantes das metrópoles: ambos perdem a capacidade de indignar-se,
restando uma atitude passiva como resposta aos infortúnios da vida pública.
d) Por que a crítica à moralidade burguesa é, segundo o autor, um elemento
fundamental para a reflexão de Christopher LASCH.
A intensificação da crítica à moralidade burguesa é um tópico central na reflexão de Lasch
porque todo o movimento de contracultura passou a ser canalizado para o ataque à família
tradicional burguesa. A ideologia individualista acaba por produzir um meio familiar
anômico, desorganizado, onde princípios incomuns e impróprios de orientação social,
baseados no respeito à liberdade e ao desejo de cada um, prevalecem. Assim, a família
tradicional se transforma em uma família igualitária e individualizante. Essas condições
sociais afloram os traços narcisistas nos indivíduos, levando à uma cultura narcisista.
e) Explique com base nos argumentos do autor porque o narcisismo na perspectiva

Continue navegando