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Este livro faz um panorama de alguns dos principais temas ligados à história da literatura brasileira, abrangendo oito grandes períodos da produção literária nacional: o período colonial, o Barroco, o Arcadismo, o Romantismo, o Realismo, o Natural- ismo, o Parnasianismo e o Simbolismo. De modo didático, são evidenciados os mais impor- tantes autores desses movimentos, seus respectivos gêneros e obras de destaque. O ponto de vista pre- dominante na construção deste texto é a convicção de que a literatura não é um mero discurso estético, ou um código a ser decifrado de modo homogêneo, como se fosse destituído de valores e princípios ide- ológicos, mas sim um campo discursivo amplo, que foi sendo construído historicamente. As reflexões aqui proporcionadas objetivam não apenas ampliar os conhecimentos sobre as produções de cada época, mas também, e princi- palmente, despertar o interesse pela literatura brasileira e seu desenvolvimento. LITE R A TU R A B R A SILEIR A I E dgar R oberto K irch of Código Logístico 58161 Fundação Biblioteca Nacional ISBN 978-85-387-6118-1 9 788538 761181 Literatura brasileira I IESDE BRASIL S/A 2018 Edgar Roberto Kirchof Todos os direitos reservados. IESDE BRASIL S/A. Al. Dr. Carlos de Carvalho, 1.482. CEP: 80730-200 Batel – Curitiba – PR 0800 708 88 88 – www.iesde.com.br CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ K65L Kirchof, Edgar Roberto Literatura brasileira I / Edgar Roberto Kirchof. - [2. ed.] - Curitiba [PR] : IESDE Brasil, 2018. 162 p. : il. ; 21 cm. Inclui bibliografia ISBN 978-85-387-6118-1 1. Literatura brasileira - História e crítica. I. Título. 18-51670 CDD: 809 CDU: 82.09 © 2008-2018 – IESDE BRASIL S/A. É proibida a reprodução, mesmo parcial, por qualquer processo, sem autorização por escrito do autor e do detentor dos direitos autorais. Projeto de capa: IESDE BRASIL S/A. Imagem da capa: MaskaRad/iStockphoto Edgar Roberto Kirchof Pós-doutor em Semiótica pela Universidade de Kassel (Alemanha); doutor em Teoria da Literatura pela Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS); mestre em Comunicação e Semiótica pela Universidade do Vale do Rio dos Sinos (Unisinos). Graduado em Teologia pela Escola Superior de Teologia (EST) e em Letras (Português/Alemão) pela Unisinos. Atua nas seguintes áreas: teoria da literatura, semiótica, estudos culturais e educação. Sumário Apresentação 7 1 Literatura no Brasil Colônia: questões preliminares 9 1.1 Breve contextualização histórico-filosófica: o Renascimento 9 1.2 Portugal permanece na Idade Média 10 1.3 Os textos fundadores 11 1.4 Uma questão preliminar: o estatuto da literatura no Brasil Colônia 13 2 Literatura de informação e literatura jesuítica 21 2.1 A literatura de informação 21 2.2 A literatura jesuítica 25 3 O Barroco: fundamentos históricos, estéticos e ideológicos 31 3.1 O que significa Barroco? 31 3.2 Barroco e literatura 36 3.3 A influência jesuítica 38 4 O Barroco e a literatura brasileira 43 4.1 Barroco no Brasil: questões preliminares 43 4.2 Cultismo e Conceitismo no Brasil? 44 5 Neoclassicismo 57 5.1 Neoclássico: uma nova ideologia e uma nova estética 57 5.2 Fim do monopólio jesuítico sobre a educação 58 5.3 Iluminismo e verdade estética: Alexander Gottlieb Baumgarten 59 5.4 As academias e a Arcádia 60 5.5 Neoclássico ou rococó? 64 6 O Arcadismo brasileiro 67 6.1 Arcadismo no Brasil 67 6.2 Duas tendências 67 7 Romantismo: fundamentos históricos e filosóficos 79 7.1 Início do Romantismo 79 7.2 Alguns pressupostos filosóficos do Romantismo 80 7.3 Principais características estruturais da literatura romântica 83 8 O Romantismo brasileiro 89 8.1 Primeira geração romântica (1836-1850) 90 8.2 Segunda geração romântica (1850-1860) 92 8.3 Terceira geração romântica (1860-1870) 93 8.4 A prosa romântica 95 8.5 O teatro romântico no Brasil 99 8.6 Contribuições do Romantismo 101 9 O Realismo 105 9.1 O que é Realismo 105 9.2 Realismo e realidade 107 9.3 Principais características 108 9.4 Realismo no Brasil 109 10 Naturalismo 119 10.1 O que é Naturalismo 119 10.2 Principais influências ideológicas 120 10.3 Principais características 121 10.4 O Naturalismo no Brasil 122 10.5 Naturalismo de inspiração regional 124 10.6 Naturalismo estilizado 125 10.7 Naturalismos 125 11 Parnasianismo 131 11.1 O que é Parnasianismo 131 11.2 Principais características 132 11.3 Precursores do Parnasianismo no Brasil 133 11.4 O Parnasianismo no Brasil 134 12 Simbolismo 143 12.1 Origens e principais fundamentos do Simbolismo 143 12.2 Decadentismo e Simbolismo 144 12.3 Principais características 145 12.4 Simbolismo no Brasil 146 12.5 Movimento literário e atitude estética 150 Gabarito 155 Referências 159 Apresentação O presente livro propõe a você, leitor, um panorama de alguns dos principais temas ligados à história da literatura brasileira, abrangendo desde o período colonial até o Simbolismo. Por se tra- tar de um livro didático, está organizado de acordo com a periodização tradicionalmente aceita nos âmbitos da história da literatura e da crítica literária, sendo inicialmente discutido o próprio esta- tuto literário dos primeiros textos produzidos no contexto da conquista do continente americano. O ponto de vista que permeia os textos aqui apresentados é marcado pela convicção de que a literatura não é um mero discurso estético, ou um código a ser decifrado de modo unívoco, como se fosse destituído de valores e princípios ideológicos. Antes, a literatura brasileira, assim como qualquer outro universo de nossa cultura, deve ser compreendida como um campo discursivo que foi sendo construído historicamente e, portanto, não está isento de todos os conflitos e contradi- ções inerentes a qualquer atividade realizada no âmbito da cultura. Por outro lado, por seu caráter conciso e abrangente, este livro não apresenta discussões profundas a respeito das disputas que emergem das posições ocupadas pelos vários agentes que atuaram – e continuam atuando – na produção do campo da literatura brasileira. Antes, procura apenas apresentar alguns de seus principais protagonistas, limitando-se, em alguns casos, a men- cionar algumas das problemáticas e sugerindo bibliografia de apoio. Em ordem cronológica, são apresentados os oito períodos abordados: o período colonial, o Barroco, o Arcadismo, o Romantismo, o Realismo, o Naturalismo, o Parnasianismo e o Simbolismo, sendo que os quatro primeiros são apresentados em dois capítulos cada, ao passo que para cada um dos períodos ou escolas restantes destina-se apenas um capítulo. O primeiro capítulo aborda questões preliminares a respeito da literatura colonial, principal- mente sua relação com a literatura europeia, as discussões sobre seu valor literário e os principais mitos fundadores ligados à identidade brasileira. O segundo capítulo, por sua vez, examina alguns dos principais autores, gêneros e obras daquele período, com ênfase na literatura de informação e na literatura jesuítica. O terceiro capítulo procura realizar uma apresentação do contexto histórico do Barroco europeu, com o objetivo de fornecer um pano de fundo com base no qual o Barroco brasileiro poderia ser problematizado. No quarto capítulo, apresentam-se alguns dos principais autores con- siderados, no âmbito da literatura luso-brasileira, como pertencentes à estética barroca, com ênfase em Gregório de Matos e no padre Antônio Vieira. Nos capítulos 5 e 6, assim como nos capítulos 7 e 8, segue-se uma estrutura análoga à dos capítulos 3 e 4: apresentam-se, inicialmente, as questões conceituais e históricas ligadas a cada pe- ríodo literário específico – respectivamente, Arcadismo (Capítulo 5) e Romantismo (Capítulo 7) –, ao que segue a apresentação dos principais autores brasileiros ligados a cada um dos períodos es- pecíficos – respectivamente, Arcadismo (Capítulo 6) e Romantismo (Capítulo 8). 8 Literatura brasileira I Por fim, nos demaiscapítulos, apresentam-se condensados em um mesmo capítulo tanto os conceitos fundamentais quanto os principais autores brasileiros ligados a cada período: Realismo (Capítulo 9), Naturalismo (Capítulo 10), Parnasianismo (Capítulo 11) e Simbolismo (Capítulo 12). Que as reflexões aqui apresentadas de forma didática sirvam como uma motivação para que você amplie não apenas seus conhecimentos, mas também, principalmente, seu interesse pela literatura brasileira. 1 Literatura no Brasil Colônia: questões preliminares 1.1 Breve contextualização histórico-filosófica: o Renascimento Antes de abordarmos os textos ligados à literatura no período colonial, é necessário com- preender um pouco do contexto sociocultural em que tais textos emergiram, a fim de obtermos uma compreensão mais crítica e profunda de seus fundamentos ideológicos, bem como de suas principais intenções. Durante o século XVI, com a fundação da Universidade de Paris, ocorreu um reavivamento da teologia medieval realista, um retorno aos grandes mestres, principalmente a Agostinho e aos neoplatônicos. Na Alemanha e nos Países Baixos, com Reuchlin1 se valorizavam os gregos e com Erasmo2, o estoicismo, enquanto a França passava por uma redescoberta do humanismo cristão, principalmente por meio de Jacques Lefèvre (1455). Em poucos termos, intelectualmente, os ideais teológicos medievais – principalmente a filosofia escolástica, de Tomás de Aquino – foram per- dendo terreno para ideais mais humanistas e menos teocêntricos, baseados principalmente em um retorno à cultura greco-romana, anterior à cultura cristã instaurada a partir da Idade Média. Todas essas mudanças relativas à vida política, econômica e sobretudo intelectual no con- tinente europeu formaram a base daquilo que se convencionou chamar de Renascimento ou Renascença, cujo principal espaço de irradiação foi a Itália. Foi uma espécie de retorno à visão de mundo humanista e antropocêntrica que predominava na cultura greco-romana, em contra- posição à visão teocêntrica e cristã da Idade Média. Grandes artistas, como Leonardo da Vinci, Michelangelo, Brunelleschi, Bramante, entre numerosos outros, passaram a se inspirar em mode- los gregos e romanos para produzir suas obras, não mais utilizando preceitos cristãos. Se, de modo genérico, a arte medieval estava mais interessada nas conotações religiosas que poderiam emanar dos signos pictóricos e literários, a arte renascentista, por sua vez, passou a va- lorizar sobremaneira a cópia ou a imitação da própria realidade, em um apelo sensualista que foi suspendendo, de forma quase imperceptível, a cosmovisão predominantemente religiosa da Idade Média. Daí uma busca constante pelo aperfeiçoamento da técnica, inspirada nos novos conheci- mentos angariados no bojo dos campos de saber que se transformariam naquilo que hoje denomi- namos de ciências, como a Matemática e a Anatomia, por exemplo. Quanto à literatura, as influências greco-romanas já se fizeram sentir, pelo menos desde o século XIV, na Itália, com autores como Petrarca e Boccaccio, que privilegiaram temas profanos e humanistas em suas obras – como o amor mundano, a ironia, com críticas e sarcasmo em relação à instituição eclesiástica. A literatura influenciada pelos novos ideais buscou inspiração em clássicos 1 Johann Reuchlin (1455-1522): humanista alemão, professor de grego e de hebraico. 2 Erasmo de Roterdã (1466-1536): humanista holandês, autor de O Elogio da Loucura (1511). Literatura brasileira I10 como Ovídio, Horácio, Virgílio e em outros autores da Antiguidade Clássica, construindo efeitos estéticos rebuscados, baseados em um conjunto de preceitos teóricos herdados de obras como as poéticas e retóricas de Aristóteles, Horácio, Longuino e Quintiliano, entre outros. Figura 2 – A Pietá de MichelangeloFigura 1 – Uma pietá medieval Jo sé M . A zc on a. 1.2 Portugal permanece na Idade Média Essa nova visão de mundo encontrou enorme resistência na Península Ibérica, de modo geral, e em Portugal, especificamente – em grande parte por causa da fortíssima atuação da ordem fundada por Inácio de Loyola, em 1534, a Companhia de Jesus (cujos membros são denominados jesuítas até os dias de hoje), com o objetivo explícito de servir como um obstáculo para as reformas protestantes. No intuito de barrar a eclosão de movimentos reformatórios que levavam invariavel- mente a cismas e novos movimentos, acreditava-se ser necessário realizar reformas no interior da própria Igreja católica. Em Portugal, desde que D. João III entregara aos jesuítas o Colégio das Artes, em 1555, a influência dessa ordem religiosa sobre a cultura lusitana passou a ser tão forte que chegou mesmo a, senão impedir, pelo menos frear de forma surpreendentemente eficaz a chegada da maior par- te dos valores e concepções renascentistas, que atingiam, a passos largos, os demais países euro- peus. Dessa maneira, enquanto a Europa se modernizava a partir dos novos ventos trazidos pelo Renascimento, os jesuítas se encarregavam de manter a cultura portuguesa mais atrelada à visão de mundo e às tradições da Idade Média. Talvez não seja demasiado exagero afirmar que, cultural e intelectualmente, Portugal per- maneceu sob o domínio do pensamento jesuítico desde 1555 até 1759, quando o Marquês de Pombal, influenciado pelos ideais do Iluminismo, expulsou-os tanto de Portugal quanto das colô- nias portuguesas. Literatura no Brasil Colônia: questões preliminares 11 Os jesuítas possuíam uma consciência muito forte da importância da educação, especial- mente a educação das crianças, para a manutenção da fé cristã, razão pela qual se dedicavam de forma intensa à fundação e ao cuidado de numerosos colégios, muitos dos quais se transformariam posteriormente em universidades. Nos colégios jesuíticos eram aceitos tanto alunos com intenções de se tornarem religiosos (padres jesuítas), quanto alunos interessados apenas em obter uma for- mação acadêmica consistente. No entanto, a filosofia dos jesuítas era de fundamento medieval, notadamente teológica, o que os tornava muito avessos aos novos conhecimentos científicos que se desenvolviam prin- cipalmente na Itália e se espalhavam pelos demais países da Europa. Em vez de privilegiar a ob- servação, o cálculo e a descoberta do novo, os jesuítas prezavam a manutenção da fé por meio do conhecimento da tradição, principalmente a tradição teológica cristã, o que os levou a promove- rem uma cultura (embora erudita) livresca, gramaticista e, na maior parte das vezes, maniqueísta3 e moralizante. No que diz respeito especificamente às artes e à literatura, os jesuítas se mantiveram me- dievais e, posteriormente, barrocos. Na verdade, o Barroco pode ser visto como uma tentativa de conciliação entre o pensamento religioso medieval, de um lado, e o apelo sensualista renascentista, de outro, tendo sido promovido amplamente pela ordem de Inácio de Loyola. Massaud Moisés acredita que os jesuítas, em decorrência do seu fundamento intelectual escolástico – que combatia as inovações renascentistas –, contribuíram sobremaneira para a manutenção do obscurantismo intelectual tanto em Portugal quanto no Brasil. Sua aversão aos clássicos (a maioria deles conside- rados pagãos e, portanto, nocivos para a conservação da fé cristã) era tão grande que eles chegaram a proibir a recitação de sonetos e de coplas4 em festas religiosas, além de colocarem vários dos prin- cipais autores latinos em um index5, proibindo, dessa maneira, a leitura de grandes autores como Plauto, Terêncio, Horácio, Ovídio e Marcial (MOISÉS, 2000, p. 26). Em vez de explorar as novas formas literárias e artísticas, como era a prática dos autores in- fluenciados pelo Renascimento, em Portugal e no Brasil os jesuítas mantiveram a tradição medie- val cristã. Os dois principais gêneros literários por eles cultivados foram, de um lado, a poesia lírica de fundo religioso e, de outro, o teatro cristão, cujas principais formas são os autos e os mistérios medievais. O primeiro gênero prevaleceuno caso da edificação da espiritualidade, ao passo que o teatro foi utilizado de forma intencional para catequizar os índios. 1.3 Os textos fundadores Ao lançarmos um olhar panorâmico sobre o conjunto dos textos considerados como os fundadores da tradição literária no Brasil, de imediato salta aos olhos que, em sua grande maioria, 3 O maniqueísmo tem sua origem na filosofia do persa Mani, que pregava um dualismo intransponível entre o bem e o mal: para ele, tudo que está ligado à matéria é mal por essência, ao passo que o espírito representa o bem. 4 A copla é uma forma poética muito popular, originada na Espanha, sendo utilizada na composição de canções com temas geralmente cômicos, mas também eróticos e escatológicos. 5 Index librorum proibitorum: lista de livros proibidos criada em 1559 pela Igreja católica. Literatura brasileira I12 não se trata de textos propriamente estéticos ou literários, no sentido restrito desses conceitos, e isso tanto no que diz respeito aos gêneros predominantes quanto à própria qualidade da composição. Embora muito se tenha discutido até os dias de hoje nos campos da teoria da literatura e da crítica literária, sobre o que efetivamente deva ser considerado um texto literário – e as literaturas moderna e contemporânea têm sido pródigas em criar formas cada vez mais surpreendentes –, o fato é que o cânone tradicional comporta, em sua grande maioria, textos em que predomina, de um lado, a ficcionalidade e, de outro, um arranjo linguístico dotado de alto grau de literariedade6. Entretanto, na produção literária ligada ao contexto dos séculos XVI e XVII, no Brasil, pre- dominaram, de um lado, textos de ordem documental – que abrangem desde meros textos infor- mativos até crônicas, testemunhos de viagem e textos considerados históricos – e, de outro, textos de cunho religioso, marcadamente produzidos pelos padres jesuítas enviados ao Brasil juntamente com os colonos e os representantes da elite governante portuguesa. Seu principal intuito era cris- tianizar os nativos e cuidar da manutenção da fé dos colonos e da classe dirigente. Os principais textos de origem portuguesa que merecem destaque, de acordo com o histo- riador da literatura brasileira Alfredo Bosi (1994, p. 13), são: • a Carta a el-rei D. Manuel, de Pero Vaz de Caminha, referindo o descobrimento de uma nova terra e as primeiras impressões da natureza e do aborígene ou nativo; • o Diário de Navegação, de Pero Lopes e Sousa, escrivão do primeiro grupo colonizador – o de Martim Afonso de Sousa (1530); • o Tratado da Terra do Brasil e a História da Província de Santa Cruz a que Vulgarmente Chamamos Brasil, de Pero Magalhães Gândavo (1576); • a Narrativa Epistolar e os Tratados da Terra e da Gente do Brasil, do jesuíta Fernão Cardim (a primeira certamente de 1583); • o Tratado Descritivo do Brasil, de Gabriel Soares de Sousa (1587); • os Diálogos das Grandezas do Brasil, de Ambrósio Fernandes Brandão (1618); • as cartas dos missionários jesuítas escritas nos dois primeiros séculos de catequese; • o Diálogo sobre a Conversão dos Gentios, do padre Manuel da Nóbrega; • a História do Brasil, de frei Vicente do Salvador (1627). Embora menos influentes em relação à formação do cânone literário brasileiro, também merecem destaque alguns textos de origem não portuguesa: • Viagem à Terra do Brasil, do calvinista francês Jean de Léry (1578); • As Singularidades da França Antártida, do frade André Thévet (1558); • Viagem ao Brasil, do alemão Hans Staden (1557). 6 Literariedade: conceito criado pelos teóricos do Formalismo Russo para dar conta de todos os elementos linguísticos e estruturais inerentes a um texto literário. Tais elementos permitiriam distinguir a especificidade da literatura em relação a outros tipos de texto. Literatura no Brasil Colônia: questões preliminares 13 1.4 Uma questão preliminar: o estatuto da literatura no Brasil Colônia Antes de abordarmos alguns desses textos fundadores, é necessário enfrentar algumas ques- tões importantes para que se possa discutir, com coerência, o tema das manifestações literárias no Brasil Colônia, entre as quais destacamos as seguintes: • Por que tratar dos textos ligados à colonização como literatura? • Trata-se realmente de literatura? • Uma vez que tais textos foram escritos por portugueses e outros europeus, pode-se dizer que se trata realmente de literatura brasileira? • Nesse caso, quais seriam as suas marcas de brasilidade? • Afinal, como definir uma literatura genuinamente brasileira a partir do período colonial? Seria muita pretensão tentar fornecer respostas realmente consistentes para esses problemas, mesmo que de forma resumida, em um livro introdutório à literatura brasileira. Por esse motivo, nesta seção apenas apontamos para alguns dos principais argumentos em favor de se incluir tan- to a literatura de informação quanto a literatura jesuítica dos séculos XVI e XVII, notadamente europeia (pois incluem-se textos de espanhóis, franceses e mesmo alemães), naquilo que se pode denominar de cânone da literatura brasileira. Em primeiro lugar, não devemos esquecer que o Brasil iniciou sua existência para o mundo ocidental e europeu enquanto colônia. Nesse sentido, por uma questão histórica, não é aconselhá- vel desconsiderar a visão de mundo do colonizador. A colonização deu início a um processo irre- versível de hibridação cultural, uma mescla da cultura do colonizador tanto com as culturas aqui preexistentes quanto com aquelas para cá transportadas, principalmente da África. Essa confluência de culturas acarretou, no caso brasileiro, o surgimento de uma cultura na- cional complexa e heterogênea à medida que o Brasil deixou de ser colônia para se transformar no sujeito de sua própria história – embora, de um ponto de vista crítico, tal afirmação deva sempre ser vista com cautela. Como afirmou Alfredo Bosi (1994, p. 11), “essa passagem fez-se no Brasil por um lento processo de aculturação do português e do negro à terra e às raças nativas; e fez-se com naturais crises e desequilíbrios”. Nesse contexto histórico da formação da cultura e da literatura brasileira não é possível, portanto, desconsiderar os textos deixados pelos colonizadores, pois esses textos não constituem apenas meros testemunhos de uma época. Ao longo da história da literatura brasileira, tais textos se transformaram em uma espécie de fundamento pré-literário, tanto em termos temáticos quanto em termos formais. Como breve exemplo, pode-se citar o interesse pelo indianismo no caso de José de Alencar, que retomou e reinterpretou a literatura de informação do século XVI. Mas também os modernistas Oswald e Mário de Andrade que, entre outros, recorreram à literatura quinhentista e seiscentista quando procuraram pelos fundamentos da brasilidade literária, mesmo que seu intui- to, muitas vezes, tenha sido descontruir os mitos criados a partir dessa literatura. Literatura brasileira I14 Assim sendo, a despeito de sua relativa baixa qualidade literária, a literatura de informação, juntamente com a literatura jesuítica dos séculos XVI e XVII, devem ser consideradas – em uma ousada e muito acertada formulação de Alfredo Bosi – como a pré-história das nossas letras. 1.4.1 Literatura colonial e valor estético-literário Apesar de muito revelar sobre a mentalidade, os objetivos e os preconceitos do colonizador, a literatura de cunho documental não possui objetivos artísticos e estéticos, mas pragmáticos: o que se considerava essencial, naquele contexto específico, era descrever as novas terras, sua gente, sua riqueza – enfim, sua potencialidade como um novo mundo a ser explorado e cristianizado. Apesar de ser possível destacar aspectos de qualidade estética, por exemplo, na composição da Carta a el-rei Dom Manuel, de Pero Vaz de Caminha, ou mesmo na História da Província de Santa Cruz, de Gândavo, tratá-los como textos propriamente literários seria um exagero. No que tange à literatura religiosa, seu caráter marcadamente catequéticoe doutrinário, fun- damentado na visão de mundo escolástica que dominava o universo jesuíta no século XVI, cons- tituiu um empecilho quase intransponível para que atingisse um grau verdadeiramente literário. Talvez uma possível, porém controvertida, exceção seja a poesia lírico-mística de José de Anchieta, à qual já foram atribuídos muitos elogios, desde comparações com Ovídio e Virgílio até afirmações de que se trata de uma espécie de precursora do estilo barroco, que despontaria, mais tarde, em padre Vieira e, principalmente, em Gregório de Matos (COUTINHO, 2004a). Entretanto, uma análise atenta da obra anchietana permite perceber que o padre jesuí- ta utiliza a rima e esquemas rítmicos como mero ornamento formal, pois o conteúdo de sua produção está por demais preso à sua visão doutrinária marcada pela catequese (PIZZARRO, 1993, p. 197), no caso do teatro, e por um forte misticismo medieval, no caso da lírica. Observe, por exemplo, como a atmosfera lírica é utilizada, nos primeiros versos do “Poema da Virgem”, de Anchieta (2008c), com o fim de comover o leitor ao tratar dos sofrimentos da Virgem Maria ao enxergar Jesus crucificado: Por que ao profundo sono, alma, tu te abandonas, e em pesado dormir, tão fundo assim ressonas? Não te move a aflição dessa mãe toda em pranto, que a morte tão cruel do filho chora tanto? O seio que de dor amargado esmorece, ao ver, ali presente, as chagas que padece? Onde a vista pousar, tudo o que é de Jesus, ocorre ao teu olhar vertendo sangue a flux. Olha como, prostrado ante a face do Pai, todo o sangue em suor do corpo se lhe esvai. A despeito de julgamentos críticos sobre a qualidade estética da poesia anchietana, o fato é que textos marcadamente literários, no contexto jesuítico, constituem exceção, se é que existem. A maior parte dos textos produzidos pelos numerosos padres jesuítas para cá enviados – Manuel Literatura no Brasil Colônia: questões preliminares 15 da Nóbrega, João de Aspilcueta Navarro, Luis da Grã, Francisco Pires, Fernão Cardim, para citar apenas alguns – entra no rol dos textos informativos ou cai na vala comum dos textos catequéti- cos e maniqueístas, com evidente intenção de edificação espiritual e conversão do indígena para a fé cristã, embora seja possível perceber intentos literários ou estéticos em alguns textos, como o Diálogo sobre a Conversão do Gentio, de Manuel de Nóbrega, alguns poemas de Anchieta ou alguns manuscritos de Fernão Cardim, entre outros. Por outro lado, se os textos fundadores não primam pelo seu valor propriamente artístico – no sentido restrito desse conceito –, é possível afirmar que os primeiros escritos sobre o Brasil, produzidos tanto por autores não ibéricos quanto por autores ibéricos, adquirem um grande valor historiográfico, mesmo para a história da literatura, pelo fato de nos terem legado alguns dos mais fortes mitos sobre a nossa terra e seu povo nativo. Vários deles ressurgirão constantemente, ao longo da história posterior da literatura brasileira, e isso de forma consciente ou inconsciente por parte dos autores que deles lançam mão. 1.4.2 O mito do paraíso perdido Nesse sentido, um dos mais significativos mitos é o do Brasil como um eldorado ou uma terra da qual emanam leite e mel, criado nos primeiros relatos de viagem e perpetuado, ao longo da história da literatura, por todos os autores e períodos literários em que houve a exploração de ideais ufanistas, como o nacionalismo romântico de Alencar, por exemplo. Apesar de o primeiro documento realmente escrito sobre o Brasil ter sido a Carta de Pero Vaz de Caminha, esta permaneceu praticamente desconhecida até 1773, guardada nos arquivos portugueses. Por essa razão, os primeiros documentos sobre as terras americanas a se tornarem realmente conhecidos e populares na Europa foram as cartas de Américo Vespúcio, nas quais já se encontram alguns dos principais mitos criados e reforçados a respeito do Novo Mundo e de sua gente nativa: uma terra da qual emana leite e mel e cujos habitantes são dóceis, inocentes e destituídos de religião. Observe o modo paradisíaco como Vespúcio descreve as suas primeiras impressões, no fragmento de sua carta de 18 de julho de 1500, destinada a Lorenzo di Pierfrancesco de Medici: O que aqui vi foi uma infinitíssima quantidade de pássaros de diversas formas e cores, e tantos papagaios e de tão diversas formas que eram uma maravilha: alguns coloridos como grama, outros verdes e coloridos e de cor limão, e outros todos verdes e outros negros e encarnados. E o canto dos outros pássaros que estavam nas árvores era uma coisa tão suave e de tanta melodia que se nos ocor- reu muitas vezes ficar parados por sua doçura. As árvores são de tanta beleza e de tanta suavidade que pensávamos estar no Paraíso Terreno. E nenhuma da- quelas árvores nem suas frutas se pareciam com as nossas. (VESPÚCIO, 2008, tradução nossa) Essa mesma visão sobre as novas terras descobertas pode ser percebida em numero- sos outros documentos da época. Como esclarece Pizzarro (1993, p. 154), essa perspectiva Literatura brasileira I16 idealizada deve muito aos escritos de Marco Polo7, de Mandeville8 e do Preste João9, em que terras estranhas são descritas como paraísos dotados de povos exóticos e tesouros incalculá- veis, como as amazonas. Como você verá adiante, a Carta de Caminha também reforça essa visão de mundo, que mais revela sobre o imaginário europeu da Idade Média do que sobre a própria terra que passava a ser explorada. 1.4.3 O índio sem fé, sem lei e sem rei Entre os principais mitos criados e reforçados pelos primeiros documentos produzidos na era colonial também merece destaque a ideia do nativo como o bom selvagem, destituído de sentimen- to de cobiça, de propriedade, de hierarquia e, mesmo, de religião. Essa ideia está muito presente na Carta de Pero Vaz de Caminha, mas também pode ser encontrada nos escritos de Léry, entre vários outros. Observe, na passagem a seguir, como Pero Vaz de Caminha se deixa imbuir desse mito: Parece-me gente de tal inocência que, se nós entendêssemos a sua fala e eles a nossa, seriam logo cristãos, visto que não têm nem entendem crença algu- ma, segundo as aparências. E portanto se os degredados que aqui hão de ficar aprenderem bem a sua fala e os entenderem, não duvido que eles, segundo a santa tenção de Vossa Alteza, se farão cristãos e hão de crer na nossa santa fé, à qual praza a Nosso Senhor que os traga, porque certamente esta gente é boa e de bela simplicidade. E imprimir-se-á facilmente neles qualquer cunho que lhe quiserem dar, uma vez que Nosso Senhor lhes deu bons corpos e bons rostos, como a homens bons. E o Ele nos para aqui trazer creio que não foi sem causa. E portanto Vossa Alteza, pois tanto deseja acrescentar a santa fé católica, deve cuidar da salvação deles. E prazerá a Deus que com pouco trabalho seja assim! (CAMINHA, 2008) Essa ideia de que os índios não teriam qualquer religião, lei ou autoridade, já presente na Carta, também está presente nas descrições de Pero de Magalhães Gândavo, por exemplo, no sétimo capítu- lo de seu Tratado da Terra do Brasil (aproximadamente 1570), conforme a citação a seguir: Não há como digo entre eles nenhum Rei, nem Justiça, somente em cada aldeia tem um principal que é como capitão, ao qual obedecem por vontade e não por força; morrendo este principal fica seu filho no mesmo lugar; não serve de outra coisa se não de ir com eles à guerra, e aconselha-os como se hão de haver na peleja, mas não castiga seus erros nem manda sobre eles coisa alguma contra sua vontade. Este principal tem três, quatro mulheres, a primeira tem em mais conta, e faz dela mais caso que das outras. Isto tem por estado e por honra. Não adoram coisa alguma nem têm para si que há na outra vida glória para os bons, e pena para os maus, tudo cuidam que se acaba nesta e que as almas fenecem com os corpos, e assim vivem bestialmente sem ter conta, nem peso, nem medida. (GÂNDAVO, 2008) 7 Marco Polo (1254-1324),viajante veneziano. Foi um dos primeiros ocidentais a percorrerem a China e a Mongólia no final da Idade Média, tendo deixado um fantasioso livro de crônicas sobre essas viagens. 8 Jean de Mandeville (1357-1371) – suposto cavalheiro inglês ou francês que também deixou um fantasioso livro de crônicas sobre as viagens que realizou por países como Turquia, Armênia, Pérsia e Egito, entre vários outros. 9 Preste João – lendário monarca cristão no Oriente, na verdade, Etiópia. Segundo a tradição mítica, ele seria descen- dente de Baltasar, um dos três reis magos, e seu reino seria repleto de monstros, tesouros e paisagens idílicas. Literatura no Brasil Colônia: questões preliminares 17 Essas formulações de Gândavo e de Caminha forneceram o fundamento para a criação do famoso mito “Sem F, sem L e sem R”, segundo o qual os nativos não possuiriam fé (F), lei (L) e tampouco rei (R). Esse mito seria consagrado por Gabriel Soares de Souza, uma década mais tarde. 1.4.4 Canibalismo e antropofagia Se no início da colonização prevalece uma visão idealizada do índio, segundo a qual ele é uma espécie de “bom selvagem” que habita um paraíso natural, sem cobiça, sem governo e sem religião, aos poucos, à medida que o colonizador passa a enxergar os índios um pouco mais de perto, descobre alguns de seus rituais religiosos, sendo que o ritual que mais lhe chama atenção é a antropofagia, ligada ao culto que realizavam aos seus antepassados. A partir de então vai surgindo um mito oposto ao do bom selvagem, a saber: surge a imagem do índio como canibal. O mito do canibalismo é já iniciado por Vespúcio, que logo percebe a existência da prática antropofágica entre os nativos: E percebemos que eram de um povo que se diz canibais e que quase a maior parte desse povo, senão todos, vivem de carne humana. E isto, tenha-o por certo, Vossa Magnificência! Não se comem entre eles, mas viajam em embarcações que se cha- mam canoas e vão trazer presas das ilhas ou terras vizinhas, de um povo inimigo deles ou de um outro povo que não o seu. (VESPÚCIO, 2008, tradução nossa) No livro de Hans Staden, esse mito recebe uma configuração quase romanesca, o que contri- buiu para a sua rápida popularização na Europa. Thévet, por sua vez, introduziu um elemento novo nessa questão, uma vez que distinguiu canibal e antropófago: ao passo que o primeiro realmente se alimentaria da espécie humana, o segundo comeria a carne de seus inimigos apenas como uma forma de vingança. Com Manuel de Nóbrega, que chega a realizar comparações entre o canibal indígena brasileiro e os canibais africanos citados por Rabelais no quarto livro de Pantagruel10, o mito do indígena americano como um canibal acaba se consagrando e entrando definitivamente para o imaginário do europeu. Um século mais tarde, um frade agostiniano influenciado pelo Arcadismo, Frei de Santa Rita Durão, tornaria esse mito ainda mais concreto no corpo do cânone literário luso-brasileiro, por- quanto realizou uma separação dicotômica entre o índio, selvagem canibal, de um lado, e o europeu, civilizado e cristão, de outro. Para finalizar, podemos chamar a atenção para o fato de que os primeiros escritos acerca do Brasil não entraram na história da literatura nacional por seu valor propriamente estético, mas sim por terem criado – sobre os nossos nativos, sobre o próprio colonizador e sobre a terra brasileira – uma série de representações míticas que se perpetuariam no imaginário dos europeus acerca de nosso país, mas também no imaginário de nosso próprio povo. Os numerosos mitos criados por Caminha, Gândavo, Nóbrega, Vespúcio, Anchieta e todos os demais escritores do Brasil Colônia surgem e ressurgem ao longo de nossa trajetória histórica e literária, muitas vezes imbricados em outros mitos, que passam a ser questionados e desconstruídos a partir do Modernismo. Em poucos termos, não é possível estudar nossa identidade nacional sem recorrer à literatura colonial. 10 François Rabelais (1493-1553): escritor francês da Renascença. Sua obra inspira-se no folclore popular e Pantagruel é um de seus livros cômicos. O título faz referência ao protagonista, monstro grotesco, ao mesmo tempo cômico e assustador. Literatura brasileira I18 Ampliando seus conhecimentos Os viajantes que aludem ao Paraíso (HOLANDA, 1992, p. 158-159) Os viajantes que aludem ao Paraíso materialmente presente em alguma parte da Terra, e que tentaram chegar a ele, não teriam melhor sorte do que Alexandre. “De paradis terrestrene vous saroie ie proprement parler car ie ny fui oncques”: assim se expressa, com efeito, o autor ou com- pilador das viagens de Mandeville, que não obstante refere o que outros lhe teriam narrado a respeito, como quem diz que a interdição não era irrevogável. De qualquer modo, deixa claro que a possibilidade de vencê-la não está unicamente no arbítrio dos homens. Outras grandes personagens, antes e depois, teriam procurado muitas vezes, e com o maior empenho, par moult grande volonté, avançar sobre os rios que correm do Paraíso. Assim, a fabulosa narrativa das viagens “nas quatro partidas do mundo” de D. Pedro, o Infante de Portugal, consta que, tendo esse príncipe alcançado licença do Preste João para ir até onde não houvesse mais gera- ção de homens, venceu 17 jornadas de dromedário (os dromedários que lhe deu o Preste), que valem por 680 léguas, sobre um deserto onde não há caminho por mar ou terra, e chegou à vista de umas montanhas, de onde não quiseram ir além os homens mandados a acompanhá- -lo, e avistou então o Tigre e o Eufrates e o Gion e o Fison, que são os rios do Paraíso terreal, e mais não viu. O mesmo aconteceu com quantos tentaram igual demanda, porque ou não lograram vencer os ínvios desertos, ou não puderam seguir viagem as naus onde navegavam; ou morreram cansados de remar contra a corrente; alguns ficaram cegos, outros surdos, do estrondo que ali fazem as águas, insuportáveis a ouvidos mortais; muitos naufragaram, ou se perderam, de sorte, escreve Mandeville, que nenhum homem conseguiu chegar lá pelo próprio capricho se ce nestoit par especial grace de Dieu. Por especial graça de Deus: isso mesmo dará a entender Cristóvão Colombo, quando, chegado à altura da “província” do Pária, se imagina à porta do Paraíso Terreal. “Já disse”, escreve, “aquilo que achava deste hemisfério e de sua feiúra, e creio, se passasse por debaixo da linha equinocial, que ali chegando, neste lugar mais alto, acharia maior temperança e diversidade nas estrelas e nas águas, não porque acredite que onde se acha a altura extrema seja possível navegar-se ou seja possível subir até lá, pois creio que lá está o Paraíso terrestre, onde ninguém pode chegar, salvo por vontade divina [...]”. A graça de Deus, a vontade divina, é todavia capri- chosa, ou assim parecerão suas razões, superiores aos nossos limites humanos e terrenos. A história das Ilhas Afortunadas e do horto das Hespérides, como tosca imagem do Éden, tão tosca, em verdade, quanto seria dado concebê-la aos que não conhecem a luz da verdadeira fé, só era imperfeitamente válida para quem procurasse uma representação material do sítio onde Deus pusera os nossos primeiros pais. Não pelo fato de se achar literalmente no lugar onde para seu curso o carro do Sol, ao passo que o sítio do verdadeiro Éden ficava da banda do Oriente: assim o dizem as traduções correntes e mais acreditadas entre os doutores. Pois dado que a Terra tem forma esférica, e essa era a noção conhecida já entre os antigos gregos, o Oriente poderia ficar em qualquer de suas partes, como dirá o Bispo de Chiapa. A razão mais poderosa e verdadeiramente decisiva contra a assimilação da verdade revelada às diabólicas mentiras do paganismo está em que palavras humanas não bastam para reproduzir ou comunicar aquilo que naturalmente transcende a mente humana, quanto mais o saber dos que ignoraram a palavra de Deus. Na melhor hipótese caberia acreditar que aqueles homens se apropriaram de relatos verídicos e inspirados em palavrasdos que obedeceram à lei divina, Literatura no Brasil Colônia: questões preliminares 19 como sudecera a Homero, segundo São Justino Mártir, o qual, no pintar em sua Odisseia o jardim de Alcino, se teria limitado a copiar Moisés. Ainda assim seria forçoso admitir que tais cópias, como sempre sucede, ficavam muito aquém do original. Atividades 1. Marque (R) se a afirmativa se refere à Renascença e (IM) se ela se refere à Idade Média. ( ) Tendência a uma concepção filosófica humanista e estoica. ( ) A arte possui um caráter simbólico e religioso. ( ) Literatura marcada por temas profanos, como o amor mundano e a sátira. ( ) A arte passa a incorporar conhecimentos provindos de áreas como a Matemática e a Anatomia. 2. Assinale apenas as afirmativas corretas. a) Os primeiros textos produzidos no Brasil Colônia se destacam por um alto valor literário, especialmente a Carta de Pero Vaz de Caminha. b) Segundo vários críticos, a poesia religiosa de Anchieta possui um alto valor literário. c) Durante os primeiros séculos da colonização do Brasil, os textos produzidos pelos euro- peus fizeram emergir vários mitos acerca de nossa identidade nacional. d) Um dos mitos mais recorrentes na literatura colonial diz respeito à representação do Brasil como um lugar idílico. 3. Quais os principais mitos sobre a identidade do Brasil surgidos a partir da literatura colo- nial? Por que eles são importantes para a história da literatura? 2 Literatura de informação e literatura jesuítica 2.1 A literatura de informação De forma simplificada e didática, seguindo uma sugestão de Pizzaro (1993, p. 157), é pos- sível dividir a literatura de informação por um critério histórico (1500-1550 e 1550 em diante). Os primeiros documentos (principalmente a Carta de Caminha e os escritos de Vespúcio) estão por demais influenciados pelos mitos de Marco Pollo e de Mandeville, o que faz com que ressal- tem, de forma quase caricata, aspectos marcados pela inocência paradisíaca dos habitantes nativos, ligada principalmente ao modo “ingênuo” como apresentavam a sua nudez. Para esses autores, os índios eram como que uma tabula rasa, destituídos de vários vícios europeus e, por isso mesmo, aptos para receberem a fé cristã. Por outro lado, foi Vespúcio o pri- meiro autor a mencionar o fato de que os nativos eram antropófagos, o que, contudo, não chegou a abalar sua crença na inocência e na ingenuidade do nativo. Observe como, apesar de descrever a prática antropofágica, Vespúcio não chega a realizar um julgamento negativo do índio, muito pelo contrário, conforme se pode perceber pelo excerto destacado em itálico a seguir: Não comem mulher alguma, salvo aquelas que têm como escravas, e disso ti- vemos a certeza em muitos lugares onde encontramos tais pessoas, porque nos ocorreu muitas vezes ver os ossos e as cabeças de alguns que foram comidos. E eles não o negam; ademais, o afirmam os seus inimigos, que estão continua- mente atemorizados por eles. São gente de gentil disposição e de boa estatura: andam de todo desnudos. (VESPÚCIO, 2008, tradução e grifos nossos) 2.1.1 Um alemão e dois franceses A partir de 1550, foram surgindo informações menos imprecisas, em parte, produzidas por autores ibéricos diretamente vinculados à colonização, como missionários, administradores e mo- radores; em parte, por autores não ibéricos que aqui vieram com o fim de obter lucros e vantagens comerciais ligadas ao escambo. Alguns dos nomes que podem ser citados são Ulrich Schmidel, Peter Carder, Robert Withrington, James Lancaster, entre vários outros. Destacaremos aqui apenas um alemão e dois franceses pela repercussão que suas obras obtiveram ainda em sua própria época. O alemão Hans Staden permaneceu prisioneiro dos tupinambás e sua obra, Viagem ao Brasil (1557), conheceu prestígio e popularidade imediatos, pois sua crônica de aventuras foi reeditada quatro vezes em apenas um ano, o que se deve mais ao estilo vivo e arrebatador que o autor utiliza para narrar suas peripécias do que à veracidade ou confiabilidade das informações que apresenta. Certamente, as várias reedições da obra de Staden muito contribuíram para a disseminação do mito do “índio canibal” entre os europeus, já no século XVI. Observe a passagem a seguir: Em seguida, as mulheres, sobretudo as velhas, que são mais gulosas de carne humana e anseiam pela morte dos prisioneiros, chegam com água fervendo, Literatura brasileira I22 esfregam e escaldam o corpo a fim de arrancar-lhe a epiderme; e o tornam tão branco como na mão dos cozinheiros os leitões que vão para o forno. Logo de- pois o dono da vítima e alguns ajudantes abrem o corpo e o esquartejam com tal rapidez que não faria melhor um açougueiro ao esquartejar um carneiro. E então – incrível crueldade – assim como os nossos caçadores jogam a carniça aos cães para torná-los mais ferozes, esses selvagens pegam os filhos, uns após outros, e lhes esfregam o corpo, os braços e as pernas com o sangue inimigo, a fim de torná-los mais valentes. Em seguida, todas as partes do corpo, inclusive as tripas depois de bem lavadas, são colocadas no moquém, em torno do qual as mulheres, principalmente as velhas gulosas, se reúnem para recolher a gordura que escorre pelas varas dessas grandes e altas grelhas de madeira. Em seguida exortam os homens a procede- rem de modo que elas tenham sempre tais petiscos e lambem os dedos e dizem iguatu, o que quer dizer “está muito bom!”. (STADEN, 2006) Durante a ocupação francesa no Brasil por Villegaignon (1555), dois cronistas franceses deixaram, por escrito, suas impressões sobre a terra e o povo nativo. Ao passo que o calvinista Jean de Léry, em sua Viagem à terra do Brasil (Histoire d´un voyage facit en la terre du Brésil, autremment dite Amérique, 1578), apresenta uma visão simpática ao índio brasileiro, chegando mesmo, em algumas partes, a elevar elementos da cultura indígena acima da própria cultura europeia, por sua vez o franciscano André Thévet, em suas Singularidades da França Antártica (Les singularitez de la France Antartique, autremment nommée Amérique, et de plusieurs terres et isles, 1558), retrata o índio de forma francamente preconceituosa e deformada, a ponto de Léry tê-lo criticado severamente como “mentiroso e caluniador”. Figura 1 – Um “monstro” de Thévet An dr é Th év et . Observando essa ilustração (uma réplica dos “monstros de Thévet”), você pode deduzir como o franciscano contribuiu para aumentar o mito do exotismo selvagem e quase sobrenatural acerca do Novo Mundo, na medida em que descreve as criaturas “monstruosas” que teria visto em terras brasileiras. Já o calvinista Léry se mostra mais comedido em suas descrições, chegando mesmo a rela- tivizar a pretendida superioridade da cultura europeia em relação à cultura do índio americano. Literatura de informação e literatura jesuítica 23 Observe, na passagem a seguir, como a simpatia que Léry nutre pelo nativo faz com que atenue o horror que a prática antropofágica suscitava na mente do europeu. Em vez de criticar o ritual do nativo, Léry critica, em uma surpreendente analogia, uma prática europeia que seria tão nociva quanto o canibalismo – a saber, a usura: É útil, entretanto, que ao ler sobre semelhantes barbaridades os leitores não se esqueçam do que se pratica entre nós. Em boa e sã consciência acho que exce- dem em crueldade aos selvagens os nossos usurários [agiotas], que, sugando o sangue e o tutano, comem vivos órfãos, viúvas e outras criaturas miseráveis, que prefeririam sem dúvida morrer de uma vez a definhar assim, lentamente. (LÉRY, 1972) 2.1.2 A Carta de Pero Vaz de Caminha A Carta a el-rei dom Manuel, de Pero Vaz de Caminha, pode ser considerada uma espécie de certidão oficial de batismo do Brasil para o mundo europeu, pois é dela que procede a famosa data do Descobrimento, 21 de abril de 1500: E assim seguimos nosso caminho, por este mar de longo, até que terça-feira das Oitavas de Páscoa, que foram 21 dias de abril, topamos algunssinais de terra, estando da dita Ilha – segundo os pilotos diziam, obra de 660 ou 670 léguas (CAMINHA, 2008). A carta foi escrita a pedido de D. Manuel I, rei de Portugal, para dar conta da empreitada realizada pela frota de Pedro Álvares Cabral em direção ao Novo Mundo. Datada de Porto Seguro, ela constitui uma espécie de diário de bordo. No estilo vivo de uma crônica de viagem, relata os principais acontecimentos ligados à viagem, desde a data de partida, 9 de março, até a chegada ao que naquele momento se chamou de Ilha da Vera Cruz, quando foi datada: 1.º de maio de 1500. Embora seu principal valor resida no fato de constituir um documento vivo das primeiras impressões do europeu acerca da terra e do povo do chamado Novo Continente ou Novo Mundo, tratando-se, portanto, de um documento informativo, muito se tem elogiado o estilo literário ou quase literário de Caminha, em que se percebe uma crônica viva, bem articulada, além de, inclu- sive, certos arroubos estético-formais, como trocadilhos e figuras de construção. Por exemplo, no trecho a seguir, para descrever a nudez das índias, Caminha utiliza, além do polissíndeto “tão... tão... tão”, o trocadilho entrementes já antológico entre “vergonhas” e “envergonhavam”: Ali andavam entre eles três ou quatro moças, bem novinhas e gentis, com ca- belos muito pretos e compridos pelas costas; e suas vergonhas, tão altas e tão cerradinhas e tão limpas das cabeleiras que, de as nós muito bem olharmos, não se envergonhavam. (CAMINHA, 2008, grifos nossos) Tanto na descrição do índio quanto na descrição da terra, Pero Vaz se revela, como não po- deria deixar de ser, um homem medieval, fruto de seu tempo, imbuído do espírito da conquista, de um lado, e do espírito da difusão da cristandade, de outro, ambos mesclados a uma ingenuidade motivada, talvez, não só pelo ideário medieval de que está imbuído, mas também pelo próprio êxtase do inédito. Por essa razão, o escrivão escolhe pormenorizar o que lhe parece exótico, as plantas, as aves, as cores, a exuberância da natureza, os ornamentos e a nudez do índio, fornecendo elementos para alimentar o mito do eldorado brasileiro, de um lado, e da ingenuidade e inocência do nativo, de outro. Literatura brasileira I24 O espírito da conquista se manifesta principalmente na descrição da terra, que é apresentada naquilo que possui de potência para ser conquistado e transformado em riqueza, seu tamanho e a abundância das águas: Esta terra, Senhor, parece-me que, da ponta que mais contra o sul vimos, até à outra ponta que contra o norte vem, de que nós deste porto houvemos vista, será tamanha que haverá nela bem vinte ou vinte e cinco léguas de costa. [...] Águas são muitas; infinitas. Em tal maneira é graciosa que, querendo-a aprovei- tar, dar-se-á nela tudo; por causa das águas que tem! (CAMINHA, 2008) A intenção de exploração de metais preciosos também permanece evidente, por exemplo, na seguinte passagem: Até agora não pudemos saber se há ouro ou prata nela, ou outra coisa de metal, ou ferro; nem lha vimos. Contudo a terra em si é de muito bons ares frescos e temperados como os de Entre-Douro-e-Minho, porque neste tempo d’agora assim os achávamos como os de lá. (CAMINHA, 2008) Na descrição do índio, prevalece, como já se afirmou, a ideia de um povo dócil e ao mesmo tempo exótico. Caminha se demora nos detalhes visuais do exótico, aquilo que diferencia o índio do europeu, principalmente a cor da tez, os adornos e adereços corporais, o fato de andarem nus: A feição deles é serem pardos, um tanto avermelhados, de bons rostos e bons narizes, bem feitos. Andam nus, sem cobertura alguma. Nem fazem mais caso de encobrir ou deixar de encobrir suas vergonhas do que de mostrar a cara. Acerca disso são de grande inocência. Ambos traziam o beiço de baixo furado e metido nele um osso verdadeiro, de comprimento de uma mão travessa, e da grossura de um fuso de algodão, agudo na ponta como um furador. Metem-nos pela parte de dentro do beiço; e a parte que lhes fica entre o beiço e os dentes é feita a modo de roque de xadrez. E trazem-no ali encaixado de sorte que não os magoa, nem lhes põe estorvo no falar, nem no comer e beber. Os cabelos deles são corredios. E andavam tosquiados, de tosquia alta antes do que sobre-pente, de boa grandeza, rapados todavia por cima das orelhas. (CAMINHA, 2008) O espírito da catequese é explicitado com todas as letras ao final da carta: Contudo, o melhor fruto que dela se pode tirar parece-me que será salvar esta gente. E esta deve ser a principal semente que Vossa Alteza em ela deve lançar. E que não houvesse mais do que ter Vossa Alteza aqui esta pousada para essa navegação de Calicute bastava. Quanto mais, disposição para se nela cumprir e fazer o que Vossa Alteza tanto deseja, a saber, acrescentamento da nossa fé! (CAMINHA, 2008) A visão de mundo medieval de Caminha se revela, da forma mais evidente, na maneira como trata a cultura do outro. A crença maniqueísta na divisão do mundo entre o bem e o mal, sendo que a cristandade europeia constituiria o único bem possível e aceitável, leva o cronista não apenas a idealizar o índio como um “um ser facilmente passível de conversão à fé cristã”, mas, o que é pior, a nem sequer procurar compreender o outro no que efetivamente possui de diferente. Por essa razão, Caminha chega à conclusão, evidentemente equivocada, de que o índio não possui qualquer religião: Parece-me gente de tal inocência que, se nós entendêssemos a sua fala e eles a nossa, seriam logo cristãos, visto que não têm nem entendem crença alguma, segundo as aparências. [...] E imprimir-se-á facilmente neles qualquer cunho Literatura de informação e literatura jesuítica 25 que lhe quiserem dar, uma vez que Nosso Senhor lhes deu bons corpos e bons rostos, como a homens bons. E o Ele nos para aqui trazer creio que não foi sem causa. (CAMINHA, 2008) 2.2 A literatura jesuítica Os jesuítas chegaram ao Brasil em 1549, juntamente com Tomé de Souza, primeiro gover- nador geral das principais regiões do Brasil (Rio de Janeiro, Bahia e Pará). Aqui, assim como em Portugal, fundaram colégios parecidos com o Colégio das Artes, em que ensinavam Filosofia, Teologia e Humanidades, a fim de preparar neófitos para a ordem inaciana. Os jesuítas foram os responsáveis pela manutenção de uma certa vida intelectual na Colônia, sendo que suas reflexões e produções escritas norteavam-se por objetivos muito pragmáticos: catequizar os índios e promover ou fortalecer a fé e a moral cristã entre os colonos. Os jesuítas acreditavam que era necessário manter os colonos sob o domínio da fé e da moral cristã na medida em que a Colônia era vista como um local repleto de tentações, em que rondava o que eles entendiam como o perigo da libertinagem moral. Quanto aos índios, acreditavam os jesuítas, pelo menos em seus primeiros escritos, no mito do bom selvagem que estaria à espera da doutrina cristã para se tornar um ser humano completo. Nesse sentido, os padres jesuítas aqui aportados produziram um material escrito relativamente amplo, composto de epístolas, relatórios, cartas ânuas, crônicas de viagem, gramática, poesia (lírica e épica) e teatro. Essa produção pode ser dividida em dois grandes blocos: • literatura de edificação e educação; e • literatura de informação. Ao passo que a gramática, a poesia e o teatro eram utilizadas para catequizar o índio e para educar o colono, constituindo, portanto, uma literatura de edificação, as epístolas, os relatórios e as crônicas serviam como documentação informativa sobre a terra que estava sendo explorada, cujo principal destino era informar os superiores, na metrópole, a respeito das possibilidades de outros projetos missionários. Nesse sentido, formam a literatura de informação. Apesar de seus autores serem relativamente numerosos, pela importância política na Colônia e também pela relativa superioridade do material produzido, podem ser destacados Manuel da Nóbrega, Fernão Cardim e Joséde Anchieta, sendo que, desses três, Anchieta é indubitavelmente o mais significativo. Por essa razão, ele será tratado com mais profundidade na próxima seção. Manuel de Nóbrega chegou ao Brasil em 1549, juntamente com Tomé de Sousa, sendo no- meado como o primeiro provincial da ordem inaciana no Brasil. Suas atividades eram dirigidas à conversão dos índios e à educação moral dos colonos. Entre suas principais obras, destacam-se as Cartas do Brasil, em que, além de fornecer numerosas informações sobre a terra e a gente da Colônia, coloca uma grande ênfase naquilo que considerou uma degenerescência moral tanto da parte dos índios quanto dos colonos, o que, segundo ele, contribuía para a propagação da promis- cuidade sexual. Entre as muitas informações que deixou nas Cartas, podem ser destacadas aquelas sobre rituais antropofágicos não apenas entre os índios, mas também entre alguns portugueses que teriam aderido a essa prática. Literatura brasileira I26 Outro padre jesuíta a deixar uma obra relevante sobre a colonização do Brasil foi o portu- guês Fernão Cardim. Em 1582, ele foi designado para acompanhar o primeiro governador-geral nomeado sob domínio espanhol, Manuel Teles Barreto. Seus principais manuscritos lhe foram roubados por piratas em 1601, quando regressava a Lisboa, e acabaram caindo nas mãos de Samuel Purchas, um colecionador. Por essa razão, tornou-se conhecido apenas tardiamente para a histo- riografia do Brasil colonial. Em suas obras, o Brasil é descrito como um éden, igual e muitas vezes superior à Europa, sendo que essa idealização também se estende ao próprio indígena. Contudo, sua empolgação pelo Brasil o levou a um excesso de imaginação em alguns casos – por exemplo, quando fala de homens marinhos e monstros do mar, ou quando descreve o uru como um pássaro que coloca tantos ovos e tão brancos que os campos pareciam cobertos de neve. 2.2.1 José de Anchieta José de Anchieta nasceu no dia 19 de março de 1534, em São Cristóvão de la Laguna, capital de Tenerife, nas Ilhas Canárias. No entanto, ainda criança foi enviado para estudar em Coimbra. Lá, cursou filosofia e, aos 17 anos de idade, ingressou na ordem de Inácio de Loyola, a Companhia de Jesus, tornando-se, dessa forma, um jesuíta. Em 1553, veio para o Brasil, incor- porado à missão jesuítica chefiada pelo padre Luís da Grã, que acompanhava Duarte da Costa, o segundo governador-geral do Brasil. De sua biografia podem ser ressaltados, entre outros fa- tos, a fundação do colégio de Piratininga, em São Paulo, juntamente com Manuel da Nóbrega, e a sua permanência, também junto de Nóbrega, como refém dos tamoios em Iperoig. Faleceu em 1597, na cidade de Reritiba, hoje Anchieta, no Espírito Santo. O gênio de Anchieta o torna, sem dúvida, o escritor mais relevante no que tange à literatura jesuítica de seu período. A obra de Anchieta é muito vasta e abrange gêneros variados, desde obras líricas, épicas e dramáticas, cartas, sermões, crônicas e até uma Arte de gramática. Além disso, foi redigida em quatro idiomas diferentes (português, espanhol, tupi e latim), o que torna seu estudo um projeto complexo. A distribuição dos seus textos quanto ao idioma é a que segue: • 12 em português; • 35 em castelhano; • 2 em latim (além de dois poemas sobre Mem de Sá e Nossa Senhora); • 18 em tupi; • 6 plurilíngues. Neste livro introdutório, serão apenas apresentadas, de forma breve e panorâmica, algumas das questões mais relevantes da obra anchietana para a crítica contemporânea. Chama a atenção a predominância de obras em espanhol, o que pode ser explicado, em parte, pelo fato de ser essa a sua língua materna. No entanto, uma análise um pouco mais atenta dos gêneros que predominam em cada idioma nos ajuda a compreender o sistema literário de José de Anchieta. Em sua língua materna, predominam poemas líricos, sendo que alguns também foram escri- tos em português e uns poucos em latim. Literatura de informação e literatura jesuítica 27 O tupi, por sua vez, predomina de forma absoluta no que diz respeito às obras de teatro. Percebe-se, portanto, que o espanhol e o português lhe servem para expressão de uma espirituali- dade mais subjetiva, resultado de uma experiência mística pessoal, ao passo que o tupi é a língua utilizada para produzir obras com o intuito explícito de catequese do índio. Assim sendo, existe uma divisão clara, diria-se mesmo dualista, na obra de Anchieta: ao passo que sua lírica possui aspectos literários dotados de intensa personalização, manifestando, em versos bem construídos, questões relativas tanto à intimidade quanto à tensão entre o eu terreno e a divindade cristã, o teatro anchietano possui uma intenção explícita de cristianizar o índio por meio de várias estratégias de aculturação, o que o torna didático, rígido, estereotipado e autoritário. No que tange à lírica, Alfredo Bosi (1994, p. 82) sugeriu existirem duas linhas de forma- ção poética: • uma voltada à criação de símbolos tomados da vida cotidiana; e • outra mais afeita a uma linguagem místico-efusiva. No primeiro caso, Anchieta (2008a) utiliza símbolos retirados principalmente do campo semântico da alimentação e das relações de parentesco para exprimir o êxtase da ligação com Deus; por exemplo, no poema “Ao Santíssimo Sacramento”: [...] enquanto a presença tarda do vosso divino rosto o saboroso e doce gosto deste pão seja minha refeição. [...] No segundo caso, Anchieta (apud MOISÉS, 2000) lança mão de vários recursos imagéticos e sensórios, apelando para uma ligação mais direta e efusiva com a divindade, com a extrapolação de pulsões afetivas, como nos versos de “O Menino Nascido ao Pecador”: Yo nací porque tu mueras, porque vivas moriré, porque rías lloraré, y espero porque esperes, porque ganes perderé. É no teatro anchietano, contudo, que se encontram as questões mais relevantes e contro- versas para uma discussão sobre a influência da literatura jesuítica sobre a formação da literatura e da identidade brasileira, pois se trata de um projeto claramente orientado por uma subjugação cultural. Se, nos primeiros relatos de viagem, havia a impressão de que o índio não possuía reli- gião, aos poucos os portugueses foram percebendo que existia sim uma religiosidade indígena, marcadamente centrada no culto dos mortos. A partir desse núcleo, organizavam-se vários rituais comandados pelos pajés, como cerimônias de canto e dança em que se praticava o fumo (ou o ato de fumar) e as cauinagens (em que se consumia bebida alcoólica), o que levava os participantes a uma espécie de transe. Ligado ao culto dos mortos, também estava o ritual da antropofagia. Literatura brasileira I28 A estratégia de Anchieta foi utilizar as peças teatrais – de influência medieval, principal- mente os autos de Gil Vicente – como meio de cristianizar e suplantar a religiosidade original. Suas principais estratégias foram: • inserir a teologia cristã sob o viés do imaginário indígena; • demonizar os heróis indígenas; • demonizar e animalizar os costumes nativos. O teatro de José de Anchieta ataca e demoniza não apenas os heróis, mas também os rituais indígenas. Imbuído de uma visão de mundo absolutamente maniqueísta, em suas peças Anchieta divide o mundo entre o bem e o mal, sendo que o primeiro está figurativizado por todas as perso- nagens cristãs e europeias, ao passo que o segundo é construído pelo imaginário religioso do indí- gena. Por exemplo, no Auto de São Lourenço o mal é representado pela personagem principal, o he- rói tamoio Guaixará, que havia atacado os portugueses duas vezes, e pelo chefe indígena Aimbiré. São Sebastião e São Lourenço, por outro lado, são os representantes do bem. Note, na passagem a seguir, como o ritual da cauinagem, da maneira como é exaltado por Guaixirá, acaba ridicularizado e representado como uma beberagem imoral, o que deprecia seu teor religioso original: Boa medida é beber cauim até vomitar. Isto é jeito de gozar a vida, e se recomenda a quem queiraaproveitar. A moçada beberrona trago bem conceituada. Valente é quem se embriaga e todo o cauim entorna, e à luta então se consagra. (ANCHIETA, 2008b) Pode-se concluir que o teatro jesuítico dos séculos XVI e XVII, principalmente sob a pena de Anchieta, serviu como o suporte de uma política colonizadora que reduz o outro a si mesmo e, paralelamente, cria um dualismo de códigos. Como afirmou Alfredo Bosi, o caso de Anchieta é exemplar porque revela a postura do colonizador de construir um código válido para si mesmo e seus pares, de um lado, e outro código, válido para o povo, de outro: “Lá o símbolo e a efusão da subjetividade; aqui, o didatismo alegórico rígido, autoritário. Lá a mística da devotio moderna; aqui a moral do terror das missões” (BOSI, 1994, p. 93). Ampliando seus conhecimentos Reatando os fios (BOSI, 2005, p. 92-93) O missionário que se volta para o índio, prega-lhe em tupi e compõe autos devotos (e, por vezes, circenses) com o fim de convertê-lo, é um difusor do salvacionismo ibérico para quem a vida do selvagem estava imersa na barbárie e as suas práticas se inspiravam diretamente no demônio. Literatura de informação e literatura jesuítica 29 As cerimônias indígenas resumiam-se, em última instância, ao fenômeno da tentação vito- riosa. O mal se abatia, como uma cobra, sobre os participantes dos cantos, das danças, da cauinagem, do rito antropofágico. O fora dominando o dentro, a pura exterioridade, a mais brutal reificação: essa a imagem que os jesuítas conceberam e nos legaram das festas tupis. Não admira, portanto, que as mensagens fundadoras e originais do cristianismo, como a igualdade de todos os homens e o mandamento do amor universal, tenham sofrido, no processo de catequese, um alto grau de entropia. A pedagogia da conversão apagava os traços progressistas virtuais do Evangelho fazendo-os regredir a um substituto para a magia dos tupis. No entanto, a poesia do Anchieta que escreve líricas sacras já estava entrando em outro tempo histórico e psicológico, o tempo da pessoa que escolhe aceitar ou recusar o amor de um Deus pessoal e entranhadamente humano. Estamos tão resignados a pensar com “realismo” (se assim foi, é porque não poderia deixar de ter sido), que não nos perguntamos se, na verdade, o que aconteceu não terá significado uma franca regressão da consciência culta europeia absorvida pela práxis da conquista e da colonização. Como nas cruzadas e nas guerras santas, a religião e a moral coletiva degradam- -se rápida e violentamente a pura ferramenta do poder; e o que se ganha em eficiência tática perde-se em qualidade no processo de humanização. O caso de Anchieta parece exemplar porque se trata do nosso primeiro intelectual militante. O fato de ter vivido inspirado pela sua inegável boa-fé de apóstolo apenas torna mais dramá- tica a constatação desta quase-fatalidade que divide o letrado colonizador em código para uso próprio (ou de seus pares) e um código para uso dos povos. Lá o símbolo e a efusão da subje- tividade; aqui, o didatismo alegórico rígido, autoritário. Lá a mística da devotio moderna; aqui, a moral do terror das missões. E depois virá o Iluminismo que se combinará com a ditadura recolonizadora; e o liberalismo que se casará com a escravidão... Anchieta fala não só várias línguas, mas linguagens distintas conforme o seu auditório. O universalismo cristão, peculiar à mensagem evangélica dos primeiros séculos, precisa de condições históricas especiais para manter sua coerência e pureza. No processo de transplante cultural a aliança do cristianismo com estratos sociais e políticos dominantes é letal para sua integridade. A cisão, que este ensaio aponta, entre um teatro de catequese como exterioridade e uma lírica do sentimento religioso, talvez sirva de estímulo para repensar os contrastes internos do inte- lectual “que vive em colônias”. Atividades 1. Entre as alternativas a seguir, assinale quais são verdadeiras (V) e quais são falsas (F). ( ) Os escritos de Jean de Léry sobre o índio brasileiro demonstram uma grande aversão por parte desse autor em relação ao nativo, o que se deve provavelmente à sua ideolo- gia calvinista. ( ) Na Carta de Pero Vaz de Caminha, já há indícios de que o índio pratica rituais antropofágicos. ( ) Um dos principais objetivos dos jesuítas que acompanharam Tomé de Souza ao Brasil era a conversão do nativo ao cristianismo. ( ) Entre os vários autores do período da Colonização, destaca-se, pela importância, a obra de José de Anchieta. Literatura brasileira I30 2. Relacione a primeira coluna com a segunda. a) Léry. ( ) Foi um dos primeiros autores a destacar a prática da antropofagia entre os índios. b) Anchieta. ( ) É o primeiro autor a afirmar que os nativos não possuíam nem fé, nem lei, nem rei. c) Gândavo. ( ) É responsável pela escrita do primeiro documento a respeito do Brasil. d) Vespúcio. ( ) Representa o índio de forma humanizada. e) Caminha. ( ) Possui uma vasta obra dramática destinada à catequização do nativo. 3. Explique as principais estratégias discursivas que Anchieta utilizou em sua obra dramática para convencer o nativo a abandonar sua cultura e aceitar a religião cristã. 3 O Barroco: fundamentos históricos, estéticos e ideológicos 3.1 O que significa Barroco? Não existe consenso quanto ao significado original da palavra barroco, mas há duas princi- pais correntes quanto a esse assunto. Alguns teóricos acreditam que o lexema tem sua origem na península ibérica. Assim sendo, tanto o termo castelhano barrueco como o português barroco significariam uma pérola de superfí- cie irregular, imagem que acabou sendo utilizada para caracterizar, de modo depreciativo, as ino- vações artísticas produzidas após o Renascimento. Nessa acepção, o termo revela como que uma denúncia dos exageros ou da não linearidade da arte pós-renascentista: as obras ditas barrocas se caracterizariam, nessa perspectiva, como um desvio ou como uma deformação em relação à arte produzida por Leonardo da Vinci e outros artistas do Renascimento – esta sim, considerada um protótipo do bom gosto. Por outro lado, o grande estudioso desse período, o suíço Heinrich Wölfflin, acredita que, na verdade, a palavra barroco tem sua origem no silogismo hipotético medieval, de cunho escolástico, de sentido confuso e frequentemente falso. Sua fórmula é a seguinte: b A r O c O A: designa juízos universais afirmativos. O: designa juízos particulares negativos. Moisés sugere o seguinte exemplo: bAr: todo homem é vertebrado. Oc: algum ser vivo não é vertebrado. O: portanto, algum ser vivo não é homem. (MOISÉS, 2000, p. 66) O aspecto mais importante quanto a essa questão, independentemente do significado real- mente original desse termo, é o fato de que até o final do século XIX e início do século XX a pala- vra barroco foi utilizada com sentido depreciativo – tanto no caso da pérola de superfície irregular quanto no caso do silogismo falso. Assim, em sua origem, barroco significaria algo como mau gosto. Literatura brasileira I32 Foi apenas com os estudos de Jacob Burckhardt e, principalmente, Wölfflin, que o Barroco começou a ser visto como um estilo estético coerente, com um fundo ideológico organizado, dotado de caracte- rísticas próprias que perpassam todas as artes produzidas desde o final do século XVI até o início do século XVIII – como a música, a pintura, a literatura, a arquitetura, a escultura –, em diferentes países europeus e suas respectivas colônias. 3.1.1 Do Renascimento ao Maneirismo No século XV, quando a antiga cidade de Bizâncio – batizada de Constantinopla pelo im- perador romano Constantino, que a havia transformado na capital oriental do Império Romano – foi conquistada pelos otomanos, os europeus perderam o acesso que possuíam ao Oriente, o que acarretou a impossibilidade de comércio com aquela região. Tal acontecimento histórico marca, oficialmente, o final da Idade Média e o início da Idade Moderna. Esse período é caracterizadopor um forte antropocentrismo, em oposição ao período medieval, caracterizado por uma visão teocêntrica do mundo. Nas artes, essas mudanças se refletiram principalmente em um retorno a valores intelectuais e estéticos do período clássico, da antiga Grécia e da antiga Roma, sendo deno- minado de Renascença ou Renascimento. Tomando a Antiguidade Clássica como modelo, os artistas da Renascença buscaram imitar a natureza da forma mais perfeita possível, evitando o verticalismo (predominância de traços ver- ticais) da arquitetura gótica (medieval), bem como seus abundantes detalhes. A linha, tão impor- tante na arte medieval, perdeu espaço para a superfície (TATARKIEWICZ, 1987, p. 71). Por outro lado, também surgiu e se alastrou a convicção de que a obra visual seria mais admirável quanto mais fielmente copiasse os objetos do mundo. Juntamente com vários outros artistas daquele pe- ríodo, Leonardo da Vinci foi um dos principais propagadores dessa visão, chegando mesmo a afir- mar que a arte é filha da natureza (cf. KIRCHOF, 2003, p. 113). Figura 1 – A Última Ceia, de Leonardo da Vinci Fonte: DA VINCI, Leonardo. A última ceia. 1495-1498. Têmpera e óleo sobre gesso: 460 x 880 cm. Refeitório de Santa Maria delle Grazie, Milão, Itália. O Barroco: fundamentos históricos, estéticos e ideológicos 33 A pintura A Última Ceia, realizada por Leonardo da Vinci em 1498, no refeitório do mosteiro Santa Maria delle Gratia, em Milão, tornou-se uma das obras mais conhecidas desse período. Note como as principais características do estilo estético renascentista se fazem presentes (GOMBRICH, 2002): • a utilização da perspectiva, que pode ser percebida, principalmente, na paisagem monta- nhosa retratada na janela por trás de Jesus; • a perfeição da imitação (mimese), que pode ser percebida não apenas na exatidão dos tra- ços utilizados para reproduzir os objetos, os alimentos, as formas humanas, mas também na riqueza de detalhes introduzidos nesses objetos, como as dobras da toalha da mesa, por exemplo; • a disposição simétrica das personagens, que pode ser notada pelo fato de Jesus ocupar o centro da cena, ao passo que os discípulos estão divididos, primeiro, quanto ao lado direito e esquerdo em relação a Cristo e, segundo, de acordo com quatro grupos de três. Em nenhuma pintura anterior dedicada a esse tema encontra-se uma divisão tão proporcio- nal (cf. KIRCHOF, 2008, p. 267). Como você pode perceber por meio dessa pintura, algumas das principais características estéti- cas da arte renascentista são a linearidade, a simetria das partes, a claridade, a sobriedade. No entanto, quando foi chamado para pintar o teto da Capela Cistina, em Roma, Michelangelo (que foi contempo- râneo de da Vinci e na maior parte de suas obras também havia se guiado pelos princípios estéticos re- nascentistas) desviou-se desses ideais de um modo surpreendentemente brusco, notadamente em uma de suas pinturas que se tornaria um marco de ruptura com a Renascença: O Juízo Final. Figura 2 – O Juízo Final, de Michelangelo Fonte: MICHELANGELO. O juízo final. 1535-1541. Afresco: 137 x 122 cm. Capela Sistina, Vaticano. Literatura brasileira I34 Nessa pintura, não existe mais a tentativa de trasmitir uma sensação de paz ou ordem, e sim uma evidente atmosfera de confusão e desespero, envolta em um sensualismo marcado pela emi- nência de uma desordem ou de um caos. Em vez da harmonia, da linearidade e da clareza buscadas pelos renascentistas, tem-se uma obra descontínua, cuja principal sensação é de uma obscuridade assustadora. Alguns autores acreditam que essa obra é o marco do início do Barroco. Outros, con- tudo, acreditam que se trata apenas de um período intermediário, que tem sido denominado de Maneirismo. Na opinião de autores como o próprio Wölfflin, a passagem da Renascença em dire- ção ao Barroco se deu de forma gradual e não como um salto brusco. Nesse sentido, o Maneirismo seria um período de passagem, em que se mesclam ainda aspectos da estética renascentista com aspectos já marcadamente barrocos. Deve-se notar que existe uma controvérsia quanto a esse assunto, que perdura até os dias de hoje e perpassa as demais artes, inclusive a literatura: enquanto alguns autores denominam de barrocas todas as obras que foram produzidas após o Juízo Final de Michelangelo, outros afirmam que existe uma certa gradação da estética renascentista em direção à estética barroca, realizada pelo Maneirismo. Na literatura, ao passo que Helmut Hatzfeld, renomado estudioso do barroco, acredita que a obra Dom Quixote, de Miguel Cervantes, deva ser caracterizada como barroca, Arnold Hauser, não menos renomado estudioso da arte e da literatura, caracteriza Cervantes e também Shakespeare como autores maneiristas. É importante salientar, nessa discussão, que todas essas nomenclaturas foram cunhadas principalmente a partir do final do século XIX e que, portanto, os artistas dos séculos XVI e XVII definitivamente não se viam nem como maneiristas, nem como barrocos. Em última análise, a discussão em torno desses conceitos revela que o trabalho da crítica – tanto das artes quanto da literatura – é marcado por controvérsias e decisões ideológicas. 3.1.2 Do Maneirismo ao Barroco Os assim chamados maneiristas propuseram um retorno a certos princípios medievais, que haviam sido combatidos pelos renascentistas. Ao passo que os artistas do Renascimento, com sua grande admiração pela natureza, tratavam a arte visual como a cópia mais perfeita possível da na- tureza, os maneiristas – como Parmesan, Pontormo, Rosso, Bronzino, entre outros – procuravam “espiritualizar a representação”, nos termos de Panofsky (1989, p. 122), fundamentando-se, para tanto, nos postulados metafísicos de Platão e de Aristóteles. Segundo Hatzfeld (2002, p. 40), o Maneirismo deve ser caracterizado como um “prolonga- mento e distorção das formas do último Renascimento”. Retornando a certas concepções da Idade Média, o Maneirismo volta a interpretar o mundo visível como símbolo de significados invisíveis e espirituais – em suma, como a alegoria de verdades divinas e eternas. Em termos puramente estéticos, são muitos os novos recursos utilizados pelos maneiristas, tais como a construção mais complexa das imagens, a tensão das formas, o uso estensivo da horizontalidade e da linearidade para ornamentação e estilização (ao contrário da cópia direta da natureza), motivos não humanos, entre vários outros (TATARKIEWICZ, 1987, p. 173), sendo que a maior parte deles pode ser per- cebida já no Juízo Final, de Michelangelo. O Barroco: fundamentos históricos, estéticos e ideológicos 35 No século XVII, a tendência de se afastar da estética radicalmente mimética e harmônica dos renascentistas levou uma série de artistas a produzirem obras hoje denominadas barrocas. Esse fenômeno é perceptível na música de Johann Sebastian Bach, nas telas de Peter Paul Rubens e Gian Lorenzo Bernini, na arquitetura de Della Porta e na literatura de Calderón de la Barca, Quevedo e Gôngora, Gregório de Matos e o Padre Vieira, entre tantos outros artistas e escritores que poderiam aqui ser citados. Heinrich Wölfflin resumiu a três termos os principais traços do estilo barroco: • tamanho; • abundância; e • vivacidade. Tais características tornam-se especialmente evidentes quando se compara uma tela barroca com uma renascentista. Note como o pintor flamengo Peter Paul Rubens abdica da harmonia a partir da medida humana em favor do sobrenatural, marcado com abundância de cores e con- trastes entre claro e escuro. Enquanto os renascentistas procuravam a transparência, os barrocos buscaram uma completude extensiva: os primeiros se guiavam pela economia de cores e formas; os segundos, pelo seu esbanjamento; os primeiros buscavam formas estáticas; os segundos, formas dinâmicas (TATARKIEWICZ, 1987, p. 341). Figura 3 – A descida da cruz é parte do tríptico que descreve também a Visitação e a apresentação de Jesus no Templo Fonte: RUBENS, Peter Paul. A descida da cruz. 1612-1614.
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