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AULA 1 NEUROCIÊNCIA EDUCACIONAL Prof. Wagner Allan Cagliumi 2 CONVERSA INICIAL Raízes da neurociência: desmistificando a neuroanatomofisiologia – entender o cérebro para ensinar melhor É com imenso prazer que usamos este espaço para apresentar um momento de reflexão sobre a neurociência na educação – esta ciência que enriquece nossa existência com múltiplas experiências, com inúmeras possibilidades de exploração, de sentimentos e de sensações. Uma diversidade de cores, aromas, sabores, dores, flores, folhas e frutos. Mas, sobretudo no entendimento da diversidade de pessoas, com inúmeras limitações e infinitas possibilidades. Esta diversidade, que faz deste planeta uma obra de arte pulsante e indescritível, também está presente em nossa sala de aula. Entretanto, nestas circunstâncias, nem sempre compreendemos a infinidade de possibilidades de aprendizagem, e contemplar ou explorar este inusitado conhecimento que a neurociência proporciona. O que nos leva, por diversas vezes, à sombra, às dúvidas e ao medo de fracassar. CONTEXTUALIZANDO É com base na diversidade encontrada na maneira de aprender daqueles que divergem do padrão que este material será construído: apresentaremos uma interpretação da neurociência dedicada ao ofício do educador, e que tentará responder, lançando mão de fundamentos científicos, as dúvidas mais comuns dos educadores acerca do desenvolvimento das habilidades cognitivas. Ao longo das aulas serão abordados temas tendo em mente a busca da construção de um espaço interativo, cujos objetivos são facilitar o entendimento da aprendizagem do ser humano e possibilitar o desenvolvimento de estratégias que favoreçam sua autonomia e humanizar o ensino como meio de ascender à cidadania. 3 TEMA 1 – FUNDAMENTOS: DESDE O PRINCÍPIO, APRENDENDO PARA SOBREVIVER O início desta viagem data dos primórdios do planeta, quando, em um determinado momento, fatores ambientais como a mistura de elementos químicos diversos e fenômenos físicos propiciaram uma fusão que deu origem à vida. Desta forma tivemos os primeiros organismos vivos: os seres unicelulares. À medida em que os organismos evoluíram de uni para pluricelulares, células foram se agrupando constituindo tecidos; tecidos foram se desenvolvendo, formando órgãos especializados, nos quais cada uma das funções era antes exercida pelas organelas, de tal modo que, em seu conjunto, os organismos passaram a ser constituídos por sistemas mais ou menos autônomos, porém interligados. Deve-se ressaltar que essa evolução ocorreu para que esses organismos unicelulares pudessem sobreviver ao meio, e essa sobrevivência dependia de que estes organismos tivessem habilidades mais ou menos complexas de perceber e responder aos estímulos nocivos deste meio. Assim inicia-se o processo de aprendizagem, no qual o organismo percebe tais estímulos e responde com o afastamento ou com algum tipo de defesa; a partir deste momento, inicia-se um processo que, ainda que rudimentar, chamaremos de memória. É claro que estamos falando de processos extremamente primitivos, mas que nos impulsionam a buscar entender os processos que futuramente nos parecerão de alta complexidade. Ao passo em que os seres ficaram mais complexos, tornou-se necessário um controle central, algum tipo de estrutura responsável pelo controle do trabalho conjunto de todos os sistemas; um sistema que pudesse receber as informações tanto dos outros sistemas do próprio organismo quanto do meio exterior, e utilizar estas informações para manter a sobrevivência, a reprodução, a alimentação, a excreção e todas as demais funções necessárias para manter o indivíduo vivo e em boas condições de funcionamento (Schwartzman, 2001). As células que se especializaram para exercer estas funções administrativas do conjunto vivo foram denominadas neurônios, que, juntamente com as células chamadas de gliais, ou neuróglia, passam a constituir o substrato do tecido nervoso. 4 TEMA 2 – NEUROCIÊNCIA CELULAR: NEURÔNIOS – GERENTES DA VIDA Iniciaremos o estudo dos neurônios, as células que no processo evolutivo se especializaram a fim de gerenciar todo o organismo e sua relação com o meio ambiente. É imperioso entendermos como funciona um neurônio para podermos nos inteirarmos, mais adiante, de processos como a aprendizagem, e de outras funções nervosas superiores, bem como de distúrbios e deficiências. Temos em nosso organismo aproximadamente 85 bilhões de neurônios, dez vezes mais células da glia, ou neuróglia, que estudaremos futuramente. A unidade funcional do tecido nervoso é o neurônio, ainda que as células da glia desempenhem um papel significativamente importante em todos os processos do sistema nervoso, inclusive em funções executivas, como o pensamento, o planejamento e o julgamento. Até recentemente considerava-se que as funções destas células eram secundárias às do neurônio. Os neurônios são células que basicamente constituem-se de corpos celulares e organelas como as demais, porém com prolongamentos denominados dendritos – que trazem estímulos do exterior da célula para o corpo celular e estímulos sensoriais (ou aferentes) – e um prolongamento que leva os estímulos do corpo celular para fora, estímulos eferentes ou motores, chamado de axônio. Apesar destes nomes a princípio nos parecerem difíceis, se levarmos em consideração sua etimologia, perceberemos que sua nomenclatura está estritamente relacionada à sua forma ou função. “Dendrito”, do grego dendro, significa “ramo” ou “árvore”, devido à forma que estes prolongamentos possuem. Axônio, por sua vez, deriva de axis, que significa “eixo”, pois realmente este é o eixo do neurônio. Os neurônios se comunicam com outros neurônios ou outros tecidos ou glândulas por meio da sinapse – cuja etimologia vem de sin (“junto”), e apse (“como”) – ou seja: “como se fosse junto”, pois há um pequeno espaço entre as células onde ocorrerá a transmissão do impulso. Cada neurônio pode estabelecer em média 1.500 sinapses, sendo que em alguns locais, como no cerebelo, alguns neurônios, denominados células de Purkinje, chegam a estabelecer cerca de 300 mil sinapses (Annunciato, 2002). Estas sinapses podem ocorrer de forma química – por meio de neurotransmissores (os quais estudaremos adiante); de forma elétrica – sem a 5 presença de neurotransmissores; e até mesmo por sinapses gasosas, que ocorrem por meio de gases específicos, como NO e CO. Ainda no neurônio encontraremos, na porção final do axônio, o botão sináptico, no qual poderá ser percebida a presença de vesículas contendo os neurotransmissores. Sabemos que todas as células estão em um meio líquido, assim como há presença de líquidos internamente. O líquido que está fora da célula é chamado de líquido extracelular (LEC), e o do meio interno denominamos líquido intracelular (LIC). No líquido extracelular há predominantemente uma carga positiva; já no líquido intracelular, há uma carga negativa. A este fenômeno denominamos polarização, o que significa que as células são polarizadas. A forma como ocorre a transmissão do impulso no neurônio depende basicamente da despolarização e repolarização da célula, o que se realiza quando um estímulo atinge algum local da membrana celular, fazendo com esta mude sua permeabilidade, permitindo a entrada de íons positivos no meio intracelular; consequentemente, como tudo tende a um equilíbrio, a célula irá se repolarizar, gerando um novo impulso no neurônio subsequente. TEMA 3 – SISTEMA NERVOSO: BASES ANATÔMICAS Atenção “neurocuriosos”: neste Tema estudaremos o sistema nervoso humano, suas principais divisões e também as funções predominantes de cada estrutura, o que nos dará base para que possamos entender as funções nervosas superiores,como emoção, pensamento, planejamento, julgamento e linguagem, dentre outras. 3.1 Divisão do sistema nervoso: partes de um todo indivisível Como todas as estruturas do corpo humano – e para facilitar o seu estudo – o sistema nervoso foi dividido didaticamente em partes para uma maior compreensão. Entretanto é importante ressaltar que o ser humano é um todo, e, independentemente da área que o estude, deve sempre ser visto como um conjunto. Ademais, devemos levar em conta que, ainda que estejamos estudando as neurociências, essa só terá seu devido valor quando entendida para alguém, e não para algo. 6 A divisão anatômica do sistema nervoso se dá em sistema nervoso central e sistema nervoso periférico. Funcionalmente temos também o sistema nervoso autônomo ou, como alguns neurocientistas preferem, sistema nervoso vegetativo. Já comentamos que as respostas dos seres vivos passam por três grandes eixos, ou seja, uma aferência – encaminhamento da informação; um processamento desta informação e, finalmente, a resposta à informação. Desta forma, pode-se dizer que o sistema nervoso central é a estrutura que processa a informação. Sua localização está no neuroeixo, estrutura envolvida pelos ossos do crânio e em conjunto com a coluna vertebral; já as estruturas que se projetam fora do neuroeixo formarão o sistema nervoso periférico. O sistema nervoso central é composto por cérebro, cerebelo e tronco encefálico de medula espinal. O cérebro é dividido em telencéfalo e diencéfalo; o tronco encefálico é dividido em mesencéfalo, ponte e bulbo. O conjunto formado por cérebro, cerebelo e tronco encefálico denomina-se encéfalo. Gostaríamos de salientar que na mídia em geral, fala-se muito de cérebro, como se fosse a única estrutura responsável pelas funções nervosas superiores; entretanto, principalmente nas últimas décadas, há evidências de que a participação de cerebelo e tronco encefálico nestas funções é significativa. Por isso, ao longo deste material pretendemos dar a merecida importância a estas estruturas. Ressaltamos a importância de nos familiarizar com estes nomes todos, com sua localização e, principalmente, com suas possíveis funções, para que possamos entender como ocorrem determinados processos em nossos alunos, desde a leitura e escrita até algumas respostas comportamentais. 3.2 Encéfalo O encéfalo constitui-se de 80% de água, 10% de lipídios, 8% de proteínas e 2% de outros materiais, com um volume de aproximadamente 1.350 cm, sendo estruturalmente composto de substância cinzenta (corpos neuronais) – córtex – e substância branca (axônios mielinizados). Possui capacidade computacional de 1.013 a 1.016 operações por segundo, o que equivale a aproximadamente às operações realizadas por 10 mil computadores Apple 64. 7 3.3 Córtex cerebral O cérebro está dividido em dois hemisférios: direito e esquerdo, com possíveis diferenças funcionais. Ele é recoberto por um manto, que estirado tem aproximadamente 2 metros quadrados com 4 mm de espessura denominado córtex – do latim “casca” – e é dividido por 5 lobos: frontal, parietal, temporal e occipital, visíveis externa e internamente; sob o lobo temporal observa-se o lobo insular (ou da ínsula), que como o próprio nome diz, “ilha”, isto é: trata-se de um lobo isolado dos demais. O córtex cerebral, nos hominídeos, cresceu continuamente nos últimos 4,4 milhões de anos e, em seu desenvolvimento, ganhou uma infinidade de sulcos para permitir que o cérebro esteja suficientemente compacto para caber na calota craniana, que não acompanha o seu crescimento. Por isso, no cérebro adulto, apenas 1/3 de sua superfície fica "exposta” – o restante permanece por entre os sulcos. Em seguida, discutiremos as funções predominantes de cada lobo; utilizamos a palavra predominantes, pois nas neurociências termos como absolutamente, exclusivamente, sempre e nunca nos levam frequentemente a equívocos, pois ainda há muito a ser desvendado sobre este sistema. TEMA 4 – SISTEMA NERVOSO: BASES FISIOLÓGICAS 4.1 Os lobos cerebrais: funções divididas em subfunções Conheceremos agora os cinco lobos cerebrais e suas funções predominantes. Podemos dizer que as funções gerais do córtex cerebral são o pensamento, o julgamento, a antecipação, os movimentos voluntários, a linguagem e a percepção. Cada lobo tem determinadas responsabilidades em funções específicas. Vejamos o lobo occipital, por exemplo: é conhecido por suas relações com a visão; neste lobo encontramos as áreas visuais responsáveis pela recepção da informação visual, pela análise da imagem e pela busca na memória nas fibras de associação. O lobo parietal, por sua vez, está relacionado às áreas somato-sensoriais, áreas de percepção espacial, de imagem corporal e de associação polimodal – 8 áreas estas presentes em todos os lobos, corroborando para a ideia de interdependência de todas as funções do sistema nervoso. Abaixo do lobo parietal, está o lobo temporal, conhecido por suas áreas auditivas, de aquisição, de memória visual, de memória geral e também o córtex de associação polimodal. Este é um lobo importante nas relações de leitura – ao estudarmos as dislexias, voltaremos a citar estas áreas. Um lobo quase não citado na literatura é o lobo da ínsula, área cortical que pode ser vista abaixo do lobo temporal, relacionado ao olfato. Finalmente temos o lobo frontal, relacionado ao planejamento, pensamento, imaginação, avaliação e considerações. Neste lobo podemos encontrar as áreas motora, pré-motora, motora suplementar (área descrita somente em 1988, com o auxílio de novas tecnologias de neuroimagem) e uma grande área denominada córtex de associação pré-frontal, também conhecida por área pré-frontal. O lobo frontal foi uma das áreas encefálicas que mais cresceu no ser humano nos últimos milhões de anos. Esta área está relacionada, dentre inúmeras funções, à inibição de respostas primitivas; em estudos recentes, é considerada uma das áreas envolvidas no Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade (TDAH). Os lobos têm responsabilidades distintas em determinadas funções. Entretanto, devido às inúmeras fibras de projeção intra-hemisféricas, fibras de associação inter-hemisféricas e as áreas de associação que estão distribuídas em todo o córtex cerebral, não podemos deixar de salientar que a resposta funcional final é dependente de praticamente todas as áreas encefálicas. 4.2 Sistema límbico: primitivo, porém sofisticado O sistema límbico é um complexo de estruturas localizadas ao redor do tálamo e abaixo do córtex cerebral. Este complexo estrutural está significativamente implicado nos processos emocionais, ainda que as emoções estejam relacionadas ao sistema nervoso por completo. Este sistema é composto pelo hipotálamo, glândula pituitária, amígdala e hipocampo, estruturas que serão brevemente descritas neste artigo. O hipotálamo é uma pequena estrutura localizada abaixo do tálamo, e está relacionado principalmente com a homeostase, processo de ajuste corporal relacionado à regulação da fome, sede, resposta à dor, níveis de prazer, satisfação sexual, ira e comportamento agressivo, dentre outros. Regula também 9 o funcionamento do sistema nervoso autônomo, estando então implicado na regulação da pressão sanguínea, respiração, batimento cardíaco e ativação fisiológica nas respostas referentes a circunstâncias emocionais. Estudos recentes indicam que há uma proteína, a leptina, que é liberada quando comemos de forma demasiada. O hipotálamo aparentemente percebe os níveis de leptina na corrente sanguínea e responde com a queda da sensação de apetite. Sugere-se que algumas pessoas têm uma mutação genética em um gene que produz a leptina e seu corpo não envia a mensagem para o hipotálamo informando que já se comeu o suficiente, o que dá origem a uma hipótese paraa obesidade, ainda que muitos obesos não apresentem esta mutação genética, o que leva mais uma vez, ao cuidado com afirmações absolutas quando falamos sobre o sistema nervoso. O hipotálamo também está química e neurologicamente relacionado com a glândula pituitária, conhecida como a glândula mestra. Esta glândula libera hormônios relacionados à regulação do crescimento e do metabolismo. O hipocampo consiste de duas estruturas que formam uma curva partindo da amígdala. Está significativamente relacionado à conversão de memória imediata em memória de longa duração. Pesquisas demonstram que quando o hipocampo é lesionado o indivíduo não consegue construir novas memórias, como se tudo o que fosse experimentado desaparecesse após algum tempo; entretanto, não se perde o acesso a memórias mais antigas. As amígdalas são estruturas em forma de amêndoas situadas em ambos os lados do tálamo, no extremo inferior do hipocampo. Quando estimuladas eletricamente em animais, estes respondem com agressividade. Por outro lado, quando as amígdalas são extirpadas, os animais se tornam extremamente dóceis e não respondem a estímulos que lhes causariam raiva e medo, além de haver diminuição das respostas sexuais. Vale ainda lembrar que amígdalas são estruturas pertencentes ao sistema límbico – diferentemente das popularmente conhecidas amígdalas presentes na garganta, cuja denominação correta é tonsilas palatinas. 4.3 Cerebelo: nosso pequeno cérebro As tradicionais abordagens neurobiológicas afirmam que o cerebelo é a parte do encéfalo responsável pela manutenção do equilíbrio e postura corporal, controle do tônus muscular e dos movimentos voluntários, bem como pela http://pt.wikipedia.org/wiki/Enc%C3%A9falo http://pt.wikipedia.org/wiki/Equil%C3%ADbrio http://pt.wikipedia.org/w/index.php?title=T%C3%B4nus_muscular&action=edit http://pt.wikipedia.org/w/index.php?title=Movimento_volunt%C3%A1rio&action=edit 10 aprendizagem motora. É formado por dois hemisférios – os hemisférios cerebelares – e por uma parte central, chamada de verme cerebelar. O termo cerebelo deriva do latim, e significa "pequeno cérebro". Estudos atuais indicam que o cerebelo, por meio de circuitos cérebro- cerebelares – projeções entre o cerebelo e diferentes áreas do córtex cerebral – tem participação relevante em funções como atenção, linguagem e outros aspectos da cognição. Pode-se dizer que um grande marco no estudo do cerebelo envolvendo funções cognitivas se deu na década de 1980, quando um pesquisador chamado Erick Courchesne, da Universidade da Califórnia (San Diego, EUA), em suas investigações neuroanatomofuncionais relacionadas ao autismo infantil, percebeu que não haveriam alterações no córtex cerebral de autistas, mas sim em seus cerebelos. Vejam que o cerebelo até então, nas abordagens tradicionais, aparece como uma estrutura relacionada a funções motoras e de equilíbrio, e nenhuma destas funções é descrita como alterada no autismo infantil – distúrbio caracterizado pelo prejuízo em três áreas do desenvolvimento: interação social, comunicação e presença de comportamento restrito e repetitivo, nenhuma das áreas com referências motoras significativas. Então qual seria a relação entre cerebelo e autismo? Courchesne e seus colaboradores sugerem que a relação estaria implicada em funções não motoras para o cerebelo. Esta pesquisa desencadeou uma série de outros estudos no mundo todo, reconsiderando o cerebelo como estrutura envolvida em processos nervosos superiores. Podemos citar o envolvimento do cerebelo em funções como linguagem, atenção seletiva, memória, e também em distúrbios como transtorno de déficit de atenção e hiperatividade e autismo infantil. Além disso, são descritas duas síndromes cerebelares cujas manifestações predominantes não são de origem motora: a síndrome cerebelar afetivo-cognitiva, caracterizada por manifestações comportamentais, e a síndrome da fossa posterior, caracterizada principalmente por mutismo após cirurgias do cerebelo. O objetivo, neste momento, é apenas o de apresentar o cerebelo sem cometer a injustiça de relacioná-lo somente a funções motoras e de equilíbrio, e demonstrar que, como as demais estruturas do sistema nervoso, suas funções são complexas e interdependentes. http://pt.wikipedia.org/wiki/Latim 11 4.4 Tronco encefálico: passagem para a vida O tronco encefálico é uma estrutura do sistema nervoso central relacionada predominantemente às funções mais primitivas, ou seja, aquelas que controlam a manutenção da vida, como a respiração, os batimentos cardíacos e o estado de vigília-sono. Contudo, pesquisas recentes indicam que o tronco encefálico possui uma importante relação com uma função nervosa superior: a atenção, como veremos logo adiante. Anatomicamente, o tronco encefálico é dividido em mesencéfalo, ponte e bulbo, e está localizado anteriormente ao cerebelo. Suas funções gerais consistem em receber informações sensitivas de estruturas cranianas, controlar os músculos da cabeça, transmitir informações da medula espinal para outras regiões do encéfalo, e deste para a medula espinal, além de desempenhar funções motoras e sensitivas específicas. Na região do tronco encefálico há um cruzamento de projeções nervosas, que fazem com que o lado esquerdo do cérebro controle os movimentos do lado direito do corpo, e o lado direito do cérebro controle o lado esquerdo. Além disso, ele faz conexão com 10 dos 12 nervos cranianos. O tronco encefálico está relacionado também a outra função – particularmente interessante para nós educadores – a regulação da atenção, por meio da formação reticular. A formação reticular é a agregação de neurônios de tamanhos e tipos diferentes, separados por uma rede de fibras nervosas e está localizado na parte central do tronco encefálico. As grandes vias ascendentes (que levam informações) e sistemas como o piramidal e visual, passam pela formação reticular, o que demonstra que esta estrutura tem importância significativa em processos nervosos superiores. A formação reticular está relacionada ao estado de sono e vigília, pois ela é capaz de ativar o córtex cerebral a partir do sistema ativador reticular ascendente (SARA). Além disso, contém mecanismos capazes de regular o sono de forma ativa. O sono não é homogêneo: possui vários estágios, entre estes está o sono paradoxal (ou sono REM, chamado assim pelo fato de os olhos se moverem rapidamente, e ainda que o indivíduo esteja em sono profundo, é nesta fase que ocorrem os sonhos, e estudos recentes relacionam este sono com a capacidade de transformar a memória imediata em memória de longa duração). 12 Por esta estrutura ser um filtro de informações que deve ter acesso ao córtex cerebral, há evidências que esteja relacionada ao transtorno de déficit de atenção e hiperatividade (TDAH), pois teoricamente, não faria corretamente a “filtragem” de estímulos que chegam ao córtex, levando o indivíduo acometido por este distúrbio a não selecionar adequadamente o que explora em sua atenção. Na prática, é como se a pessoa não conseguisse diferenciar a importância de um professor falando e um ruído que esteja ocorrendo fora da sala de aula. 4.5 Sistema vestibular e equilíbrio A capacidade do ser humano de manter a postura ereta e de se mover sobre o solo se desenvolveu ao longo de milhares de anos. Como parte deste processo evolucionário, diversos sistemas neuromusculares e neurossensoriais foram gerados para indicar com precisão a correta orientação espacial de um indivíduo, sua postura, sua relação com o meio e sua locomoção. O sistema vestibular detecta a posição da cabeça no espaço; isto é, determina se ela está ereta com relação à força gravitacional da Terra, se está jogada para trás, voltada para baixo, ou em outra posição. Detecta também as mudanças bruscas de movimento. Para aexecução dessas funções, o aparelho vestibular divide-se em duas secções fisiologicamente distintas: a mácula do utrículo e do sáculo e os canais semicirculares. O sentido de equilíbrio depende de grupos de células sensoriais ciliadas localizadas na parede interna do sáculo e utrículo e na base dos canais semicirculares. As fibras nervosas que partem dessas células sensoriais levam informações sobre a posição relativa dos cílios até os centros de equilíbrio no encéfalo. Quando a cabeça se movimenta, a inércia do líquido no interior dos canais semicirculares exerce pressão sobre os cílios das células sensoriais. A pressão faz com que os cílios se curvem, estimulando as células sensoriais a gerar impulsos nervosos e transmiti-los ao encéfalo. A sensação de tontura que sentimos quando rodopiamos resulta do conflito de duas percepções: os olhos informam ao sistema nervoso que paramos de rodopiar, mas o movimento do líquido dos canais semicirculares da orelha interna informa que nossa cabeça ainda está em movimento. 13 4.6 Neurotransmissores: a química cerebral Muitos de nossos comportamentos são guiados pela “química” cerebral, ou seja, a neurobioquímica, um universo tão apaixonante que cremos que “haverá uma química entre vocês e esse conhecimento”. Nossos movimentos, pensamentos, memória e até mesmo gostos estão relacionados a pequenas moléculas geralmente produzidas pelos neurônios, que sinalizam e estimulam grupos de neurônios, os quais, por sua vez, processam e respondem ao estímulo às quais denominamos de neurotransmissores. Os neurotransmissores são formados de substâncias que servem como meio de comunicação entre as células do cérebro. Estimulam a continuidade de um impulso ao efetuar a reação final no órgão ou músculo-alvo permitindo a comunicação celular cerebral. Quando um sinal elétrico passa por um neurônio e atinge o terminal pré- sináptico, um ou mais neurotransmissores podem ser liberados na sinapse. A partir daí, existem receptores pós-sinápticos no outro neurônio aos quais os neurotransmissores se ligam. Todo esse processo é chamado de transmissão sináptica. Os neurotransmissores são conhecidos por promovem respostas excitatórias ou inibitórias entre neurônios que se comunicam por sinapses químicas. Eles podem ser excitatórios (provocam a despolarização da membrana pós-sináptica), ou inibitórios (promovem a hiperpolarização da membrana pós-sináptica). Muitas drogas impactam o sistema nervoso alterando a atividade desses neurotransmissores de várias formas. Essas podem afetar a produção, o armazenamento, a liberação ou a desativação de neurotransmissores, e podem também bloquear os receptores ou conseguir se ligar a eles por serem parecidos com neurotransmissores. Problemas relacionados aos neurotransmissores podem resultar em cansaço, insônia, ganho de peso, ansiedade, prejuízos cognitivos, entre outros. Existem vários tipos de neurotransmissores. Entre os mais conhecidos estão: • Acetilcolina: sua função é estimular a propagação dos impulsos nervosos das células nervosas para células motoras e músculos esqueléticos. Essa molécula está relacionada ao controle do tônus muscular, aprendizado e desempenho sexual. 14 • Endorfina: Esse neurotransmissor relaciona-se a sentimentos como euforia e êxtase. Esse neurotransmissor atua também aliviando a sensação de dor e reduzindo o estresse. • Dopamina: A função da dopamina está relacionada com o local onde ela atua. Assim como a endorfina, essa molécula também está relacionada com a euforia e, além disso, apresenta ligação com a execução de movimentos suaves e regulação das informações advindas das diferentes partes do cérebro. • Noradrenalina: Esse neurotransmissor é responsável pela excitação física e mental, bem como é conhecido por promover o bom humor produzido no locus coeruleus, atuando como mediador dos batimentos cardíacos, pressão sanguínea e conversão de glicogênio em energia, entre outros. • Serotonina: Esse neurotransmissor relaciona-se, por exemplo, com estímulos dos batimentos cardíacos, regulação dos níveis de humor e início do sono. • Ácido Gama Amino Butírico (GABA): O principal neurotransmissor inibitório do encéfalo. O processo inibitório ocorre quando o GABA se liga ao receptor, permitindo dessa forma a entrada de cloro para dentro da célula. Responsável pela sintonia fina e coordenação dos movimentos entre outros. • Glutamato: Principal neurotransmissor excitante do cérebro, vital para estabelecer os vínculos entre os neurônios que são a base da aprendizagem e da memória em longo prazo. A atuação do glutamato é fundamental no processo de memória. TEMA 5 – BASES DA NEUROPLASTICIDADE Neuroplasticidade cerebral é uma característica do sistema nervoso. Refere-se à capacidade do cérebro de se readaptar, alterando algumas das propriedades morfológicas e funcionais em resposta ao ambiente. Está relacionado ao processo de aprendizagem e é fundamental para qualquer atividade que gere um estímulo criativo, o qual faz com que o cérebro se torne flexível e mutável. Quando acontece um estímulo inicial ou adquirido, o controle motor é acionado, ou seja, esse estímulo recebido é maximizado para que se torne um aprendizado. 15 O cérebro é adaptável durante toda a vida do indivíduo. Porém a neuroplasticidade é um processo que ocorre mais facilmente na infância devido ao maior crescimento de neurônios e a capacidade de aprendizagem e, com o passar do tempo, esse processo tende a diminuir, mas não chega a desaparecer. No passado acreditava-se que o cérebro possuía uma capacidade limitada de regeneração, e que ao alcançar certa idade, ou devido a doenças, o indivíduo teria uma diminuição de células cerebrais, perdendo assim funções importantes. No entanto, com o avanço tecnológico principalmente a partir da década de 1970, constatou-se que a plasticidade promove novas interações entre neurônios, criando novos caminhos neurais, modificando toda a rede de conexão. Podemos dizer que uma célula, com capacidade de aprender e de executar funções distintas, pode se modificar e se adaptar como resultado da experiência. Quando uma área cerebral imprescindível para o funcionamento do sistema é afetada, esta poderá ser substituída, mesmo sendo de função diferente. Em outra perspectiva, podemos dizer que na presença de lesões, o sistema nervoso central se utiliza desta capacidade na tentativa de recuperar funções perdidas ou, principalmente, fortalecer funções similares relacionadas às originais. 5.1 Formas de neuroplasticidade Vamos apresentar a seguir, algumas das formas descritas da ocorrência da plasticidade cerebral: • Regenerativa: consiste no recrescimento dos axônios lesados. É mais comum no sistema nervoso periférico; • Axônica (ou ontogenética): ocorre de zero a dois anos de idade. É a fase crítica, fundamental para desenvolvimento do sistema nervoso; • Sináptica: capacidade de alterar a sinapse entre as células nervosas; • Dendrítica: alterações no número, no comprimento, na disposição espacial e na densidade das espinhas dendríticas. Ocorre principalmente nas fases iniciais do desenvolvimento do indivíduo; • Somática: capacidade de regular a proliferação ou a morte de células nervosas. Somente o sistema nervoso embrionário é dotado dessa capacidade. 16 Vejam que o processo de plasticidade das células nervosas pode ser considerado um marco na neurociência, principalmente quando pensamos nas infinitas possibilidades do desenvolvimento humano. A neuroplasticidade é um precioso conhecimento para a educação. Com base neste conhecimento, podemos ter um novo “olhar” para a diversidade, que nos permite perceber a enorme possibilidade de desenvolvimento no ser humano. Por maiores que sejam as limitações, ao oferecermos um meio ambiente favorável, o conjuntobiológico fará sua parte para responder adequadamente a este meio, em um contínuo processo de evolução e adaptação. FINALIZANDO Nesta primeira aula pudemos percorrer um pouco pelo universo da anatomia e do funcionamento do sistema nervoso humano. Conhecemos a evolução filogenética e observamos que o desenvolvimento de estruturas nervosas foi uma resposta aos estímulos do meio ambiente. Estudamos ainda a divisão anatômica do sistema nervoso humano e suas principais estruturas. Esse conhecimento trouxe subsídios para o entendimento das principais funções nervosas e da bioquímica envolvida. Abordamos também as bases da neuroplasticidade, de grande importância para nós educadores, que passamos a entender a capacidade de adaptação neural como resposta ao ambiente de estímulos. Saiba mais O documentário produzido pela rede Discovery Channel ilustrará nossa aula de maneira bastante agradável. SISTEMA nervoso – completo – Discovery Channel – Ciências Já! Ciências Sem Fronteiras, 4 dez. 2015. Disponível em: <https://www.youtube.com/watch?v=- mQoUyzOJNc>. Acesso em: 12. mar. 2021. 17 REFERÊNCIAS AMABIS, J. M. Biologia em contexto. 1. ed. São Paulo: Moderna, 2013. GOULART, F. Neurotransmissão: sinapses. Disponível em <http://www.marilia.unesp.br/Home/Instituicao/Docentes/FlaviaGoulart/Aula_basi ca%20_SNC.pdf>. Acesso em: 29 ago. 2018. ANNUNCIATO, N. F. Desenvolvimento do sistema nervoso. Temas sobre Desenvolvimento, v. 4, n. 24, São Paulo: Mennon, 1995. BITTENCOURT, S. Neuromoduladores e neurotransmissores, noção geral. Disponível em: <http://www.neurofisiologia.unifesp.br/neuromoduladores_nocaog eral_simonebittencourt.pdf>. Acesso em: 29 ago. 2018. CAGLIUMI, W. A. Cerebelo: revisão de estudos neuro-anátomofuncionais relacionados aos aspectos não motores. Dissertação (Mestrado em Medicina). Universidade Presbiteriana Mackenzie, São Paulo, 2002. GUYTON, A. C. Neurociência básica, anatomia e fisiologia. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan, 1993 KING, M. W. Neurotransmissores: diversidade e funções. Cérebro & mente, 2000. Disponível em: <http://www.cerebromente.org.br/n12/fundamentos/neurotr ansmissores/nerves_p.html>. Acesso em: 30 ago. 2018. LENT, R. Cem bilhões de neurônios: conceito fundamentais de neurociência. 2. ed. Rio de Janeiro: Atheneu; Faperj, 2010. MACHADO, A. Neuroanatomia funcional. 2. ed. São Paulo: Atheneu, 2002. SCHARTZMAN, J. S. Transtorno de déficit de atenção. São Paulo, Memnon; Mackenzie, 2001. AULA 2 NEUROCIÊNCIA EDUCACIONAL Prof. Wagner Allan Cagliumi 2 CONVERSA INICIAL “As pessoas educam para a competição e esse é o princípio de qualquer guerra. Quando educarmos para cooperarmos e formos solidários uns com os outros, nesse dia estaremos educando para a paz.” Maria Montessori Em nosso primeiro capítulo, pudemos conhecer um pouco da mágica anatomia do sistema nervoso e suas relações funcionais gerais, fornecendo uma base para que possamos conhecer agora como todas essas estruturas convergem para as várias formas em que nos relacionamos com o meio ambiente. Pudemos perceber o quanto essas estruturas se desenvolveram com nossa evolução e, consequentemente, como são importantes em nosso cotidiano. Iniciaremos, então, o estudo das funções nervosas superiores, começando pelos sentidos. Falaremos um pouco de visão, audição, tato, gustação, olfato e sistema vestibular, um importante sentido pouco comentado. Os sentidos fundamentais do corpo humano (visão, audição, tato, gustação, olfato e sistema vestibular) constituem as funções que propiciam o nosso relacionamento com o ambiente. Por meio dos sentidos, o nosso corpo pode perceber muita coisa do que nos rodeia; contribuindo para a nossa sobrevivência e integração com o ambiente em que vivemos. CONTEXTUALIZANDO Existem determinados receptores, altamente especializados, capazes de captar estímulos diversos. Tais receptores, chamados receptores sensoriais, são formados por células nervosas capazes de traduzir ou converter esses estímulos em impulsos elétricos ou nervosos que serão processados e analisados em centros específicos do sistema nervoso central, onde será produzida uma resposta voluntária ou involuntária. Com o conhecimento adquirido das percepções, poderemos estudar as bases da memória, que, por sua vez, dependem das percepções, incluindo aí a atenção. A memória, imenso arquivo humano de experiências, impressões e conhecimentos, como base da aprendizagem, será tratada pelo ponto de vista neuroanatomofisiológico, ou seja, sua anatomia, seus sistemas e sua formação. 3 TEMA 1 – BASES NEURONAIS DA PERCEPÇÃO 1.1 Percepção visual O sentido da visão é um dos principais sentidos utilizados neste momento de nossa evolução. A capacidade do olho de distinguir entre dois pontos próximos é chamada acuidade visual, a qual depende de diversos fatores, em especial do espaçamento dos fotorreceptores na retina e da precisão da refração do olho. Para se ter uma ideia da utilização desse sentido, sabe-se que hoje cerca de 65% de todas as informações que chegam ao sistema nervoso central são informações visuais, o que, para nós, educadores, tem importância significativa, pois se para nosso aluno essa não for a melhor maneira de apreender o meio, corremos o risco de sobrecarregar esse sentido em detrimento de outras possibilidades sensoriais que também podem resultar em aprendizagem. A percepção visual é a identificação, organização e interpretação dos dados sensoriais recebidos pelos olhos. Subdivide-se em discriminação, fechamento, figura – fundo, memória visual, planejamento motor e sequência. A discriminação visual pode ser definida como a habilidade de perceber diferenças e semelhanças, o que nos permite distinguir as variadas formas, cores e tamanhos daquilo que vemos e dar-lhes significados diferentes. Quando falamos em fechamento, na percepção visual, estamos nos referindo a habilidade de perceber estímulos visuais e identificar uma figura incompleta. A habilidade de perceber objetos misturados a outros e canalizá-los é denominada figura-fundo. A memória visual é a habilidade de guardar estímulos visuais e de usá-los quando solicitado. Podemos definir como planejamento motor a habilidade de reproduzir, de memória, atividades que já tenham sido previamente demonstradas, como desenhos e letras. Finalmente, sequência é a reprodução da informação em uma determinada ordem. 4 1.2 Percepção auditiva A audição e a visão podem ser consideradas os sentidos mais utilizados pelo ser humano moderno por este motivo iniciarão com um texto que gostaria que lessem e refletissem, pois o considero um dos melhores textos relativos aos sentidos. Na verdade, este depoimento trata da privação dos sentidos da visão, que já estudamos, e da audição que iniciamos. Quero aproveitar esta oportunidade para lembrar que estes estudos que estamos fazendo, convergem para a ilimitada potencialidade humana, a adaptação e a sobrevivência da espécie. Desta forma, veremos um ser humano que supera a desvantagem da dificuldade em comunicar-se após a perda de seus sentidos visual e auditivo. O texto seguinte é um impressionante depoimento de Helen Keller a respeito da descoberta da linguagem: Ela me trouxe o chapéu e eu sabia que iria sair para o sol quente. Este pensamento, se é que uma sensação sem palavras pode chamar-se um pensamento, fez que eu pulasse e saltasse de prazer. Andamos pelo caminho do poço, atraídas pela fragrância das madressilvas que o cobriam. Alguém estava tirando água e a professora colocou minha mão debaixo da bica. Quando a corrente fria jorrou sobre minha mão, ela soletrou, na outra, a palavra água, primeiro devagar, depois rapidamente. Fiquei parada,toda a minha atenção fixa no movimento de seus dedos. De repente, senti uma obscura consciência como de algo esquecido – uma emoção de pensamento que retornava; e, de algum modo, o mistério da linguagem me foi revelado. Soube então que á-g-u-a significava o algo maravilhoso e frio que escorria sobre minha mão. Aquela palavra viva despertou-me a alma, deu-lhe luz, esperança, alegria, libertou-a! Ainda existiam barreiras, é verdade, mas barreiras que com o tempo poderiam ser removidas. Deixei o poço ansiosa por aprender. Tudo tinha um nome, e cada nome deu à luz um pensamento. Quando voltamos para casa, todo objeto que eu tocava parecia tremer de vida. Isto porque eu via tudo com a estranha e nova visão que sobreviera. (Langer, 1971) Após tão belo depoimento de Hellen Keller, seguimos nossa jornada buscando entender melhor o ser humano para que nosso trabalho seja o de propiciar o desenvolvimento e a qualidade de vida para pessoas que, com ou sem deficiências, incapacidades funcionais, ou quaisquer desvantagens que possam permear seu universo, são cidadãos e sobretudo seres humanos em busca de seu lugar. Comecemos pelo som, o qual é produzido por ondas que se propagam no ar de maneira semelhante às ondas na superfície da água. Essas ondas sonoras vão avançando até alcançar nossa orelha. 5 A orelha humana é um órgão cuja sensibilidade possibilita a percepção e interpretação de ondas sonoras de frequências entre 16 e 20.000 Hertz (ondas por segundo). Da captação do som até sua percepção e interpretação, há uma sequência de transformações da energia: Sonora Mecânica Hidráulica Elétrica O pavilhão auditivo capta e canaliza as ondas sonoras para o canal auditivo e para o tímpano. Este transforma as vibrações sonoras em vibrações mecânicas que são comunicadas aos ossículos (martelo, bigorna e estribo), que funcionam como alavancas, aumentando a força das vibrações mecânicas e agindo como amplificadores das vibrações da onda sonora. Na orelha interna, denominada labirinto, existem escavações no osso temporal, que são revestidas por uma membrana e preenchidas com líquido. A parte anterior do labirinto é chamada de cóclea e, à medida em que a vibração sonora penetra na cóclea, o líquido mencionado é lançado mais profundamente – energia hidráulica, e o movimento deste líquido provoca a vibração de uma membrana, denominada basilar, que, por sua vez, flexiona células ciliares. A flexão desses cílios excita células sensoriais e gera impulsos nas terminações nervosas da cóclea. Assim a energia hidráulica é convertida em energia elétrica. Esses impulsos são transmitidos através do nervo coclear até os centros auditivos do tronco encefálico e córtex cerebral. Os centros auditivos do tronco encefálico relacionam-se com a localização da direção da qual o som emana e com a produção reflexa de movimentos rápidos da cabeça, dos olhos ou mesmo de todo o corpo, em resposta a estímulos auditivos. O córtex auditivo, localizado na porção média do giro superior do lobo temporal, recebe os estímulos auditivos e os interpreta como sons diferentes. Após a compreensão do mecanismo básico da audição, vamos entender a percepção auditiva, que, a exemplo da percepção visual, pode ser definida como a identificação, a organização e a interpretação do som. Divide-se em atenção, habilidade de reagir a um som, discriminação auditiva, a habilidade de distinguir sons de ruídos e figura-fundo, habilidade de selecionar sons específicos. 6 1.3 Percepção gustativa e paladar Quando conhecemos o funcionamento de nosso corpo, acabamos por atentar para as sensações de forma mais acentuada. Sentimos o sabor das coisas que comemos, e com uma riqueza e variação enorme, graças ao paladar, que, se não o possuíssemos, nossas refeições seriam totalmente insípidas, servindo somente para repor a energia gasta e alimentar o corpo. A gustação é primariamente uma função da língua, embora regiões da faringe, palato e epiglote tenham alguma sensibilidade. Os aromas da comida passam pela faringe, onde podem ser detectados pelos receptores olfativos. Nossa língua possui em sua superfície dezenas de papilas gustativas, cujas células sensoriais percebem os quatro sabores primários, aos quais chamamos sensações gustativas primárias: amargo, azedo ou ácido, salgado e doce. De sua combinação resultam centenas de sabores distintos. A distribuição dos quatro tipos de receptores gustativos, na superfície da língua, não é homogênea. Cada tipo de comida em sua combinação de sabores básicos ajuda a torná- la única. Muitas comidas têm um sabor distinto como resultado da soma de seu gosto e cheiro, percebidos simultaneamente. Além disso, outras modalidades sensoriais também contribuem com a experiência gustativa, como a textura e a temperatura dos alimentos. A sensação de dor também é essencial para sentirmos o sabor picante e estimulante das comidas apimentadas. Pois bem, então temos na língua as papilas gustativas de onde serão transmitidos os estímulos via nervo lingual para o tracto solitário, localizado no bulbo, que, por sua vez, se localiza no tronco encefálico. Em seguida, os estímulos são transmitidos ao tálamo; do tálamo passam ao córtex gustativo primário e, subsequentemente, às áreas associativas gustativas circundantes e à região integrativa comum, que é responsável pela integração de todas as sensações. E não nos esqueçamos de que este fabuloso sentido do paladar como todos os outros deve ser explorado, sentido, preservado. 1.4 Percepção tátil Sentimos tantas sensações importantes através de nossa pele, pressão, dor, frio, calor entre outras, graças ao sentido do tato. 7 Pois bem, para que possamos processar essas sensações aferidas do ambiente, contamos com o maior órgão do corpo humano: a pele, que chega a dois metros quadrados, e pesar até 4 kg em um adulto. Constitui-se basicamente por duas camadas unidas entre si: uma mais externa denominada epiderme e outra mais interna, a derme. Também é a pele nosso maior órgão sensorial, pois toda sua superfície é provida de terminações nervosas capazes de captar estímulos térmicos, mecânicos ou dolorosos. Globalmente conhecido como sentido do tato, na verdade a pele tem diferentes receptores especializados para percepções separadas: dor, temperatura, pressão e tato propriamente dito. Sua sensibilidade é tamanha que podemos discriminar um ponto em relevo com apenas 0,006 mm de altura e 0,04 mm de largura quando tateado com a ponta do dedo. A polpa dos dedos percebe, em média, cerca de seis impressões táteis de uma só vez. O alfabeto Braile, que permite aos cegos ler, foi criado levando em conta essa característica. Nesse alfabeto, cada letra é uma combinação de até seis pontos. As terminações nervosas encontradas na pele são especializadas na recepção de estímulos específicos. Cada receptor tem um axônio com exceção das terminações nervosas livres. Nas regiões da pele providas de pelo, existem terminações nervosas específicas nos folículos capilares formadas por axônios que envolvem o folículo piloso e recebem forças mecânicas que são aplicadas contra o pelo; e outras chamadas receptores de Ruffini, que são receptores térmicos de calor. Temos ainda receptores que são comuns às regiões cobertas ou não por pelos. São os corpúsculos de Paccini, responsáveis pelos estímulos vibratórios e táteis; os corpúsculos de Meissner são táteis, e os discos de Merkel são relacionados com sensibilidade tátil e pressão. As terminações nervosas livres são sensíveis aos estímulos mecânicos, térmicos e dolorosos e os bulbos terminais de Krause, receptores térmicos do frio. Pois é, amigos neuroleitores, não se esqueçam de que mais que células, neurônios, terminações nervosas, o tato é sobretudo um sentido que compõe nossas emoções. Tocar outra pessoapode ser fonte de sensações que remetem a valores como confiança e carinho. Não é à toa que o mais tradicional cumprimento é o aperto de mãos. 8 TEMA 2 – BASES NEURONAIS DA ATENÇÃO “O cérebro escaneia o ambiente selecionando por meio de mensagens sensoriais para encontrar algo em que prestar atenção.” Sprenger O tema atenção está presente em nossa vida pessoal e profissional todo o tempo e frequentemente nos leva à reflexão do que significa essa habilidade. Quando estamos em um ambiente cheio de estímulos visuais, sonoros, táteis dentre outros, conseguimos estar atentos à conversa com nossos amigos e sequer percebemos a quantidade de luzes, cores ou sons que nos rodeia. Não percebemos a pressão do calçado em nossos pés ou a camisa sobre nossa pele, no entanto, todos esses estímulos estão chegando de alguma forma até nosso sistema nervoso central e sendo processados. Mas nossa atenção continua na conversa com nossos amigos. Então, que habilidade é essa que consegue ao mesmo tempo levar várias informações ao nosso cérebro e somente o que é “relevante” chega à nossa consciência? Primeiramente devemos entender que não se trata de uma única habilidade ou sentido, mas sim um conjunto de habilidades que envolvem grau de alerta, concentração, orientação, seleção e exploração e que o desempenho dessas funções depende da atividade conjunta de diversas estruturas situadas em diferentes níveis do sistema nervoso central, conforme relata Schwartzman (2001). Estruturas nervosas corticais e subcorticais, formação reticular, tálamo e sistema límbico, dentre outras, parecem estar envolvidas com funções sensitivo- sensoriais e motoras, incluindo aí a atenção. 2.1 O que é a atenção? A atenção desempenha um papel importante em diferentes aspectos da vida das pessoas, tanto que têm sido muitos os esforços por pesquisadores de diversas áreas do conhecimento a estudá-la e na tentativa de definir seu status entre os processos neuropsicobiológicos. Embora não haja um consenso, os estudos científicos tentam definir o processo de atenção e localizar áreas do sistema nervoso central envolvidas nessas habilidades. Vários autores definem a atenção como um processo, relatando que a atenção possui fases, dentre as quais se destacam a sua orientação, seleção e manutenção. 9 Assim, podemos dizer que a atenção é um processo discriminativo e complexo que acompanha todo o processamento cognitivo. Também é responsável pela filtragem da informação bem como pela evocação de recursos para permitir a adaptação interna do organismo em relação às demandas externas. Alguns autores definem ainda a atenção como um processo pelo qual dirigimos nossos recursos mentais sobre aspectos mais relevantes do ambiente, ou na execução de certas ações que consideramos mais apropriadas entre as possíveis. Refere-se ao estado de observação alerta e nos permite ter consciência do que está ocorrendo ao nosso redor. Em outras palavras, a atenção é a capacidade de gerar, gerir e manter um estado de ativação para o processamento das informações. Para a psicologia, a atenção é uma qualidade de percepção que funciona como uma espécie de filtro de estímulos, avaliando quais são os mais relevantes e os priorizando para um processamento mais profundo. Obviamente esse processo neuropsicológico é básico para o processamento de qualquer modalidade de informação externa ou interna para a realização de qualquer atividade. Dentre todas as tentativas de definir a atenção ou localizar as áreas neuroanatômicas envolvidas, realizadas por diversos estudos; a atenção pode ser definida como a capacidade de selecionar e se concentrar em estímulos relevantes. 2.2 Desenvolvimento da atenção Como pudemos perceber no tema anterior, embora não tenhamos alcançado ainda um consenso para definir com sucesso a atenção, devido à diversidade de critérios, estudos e atividades envolvidas e sistemas neuroanatômicos relacionados, a maioria dos autores em suas tentativas de consegui-lo, fornecem uma descrição de suas características. Podemos observar, dentre os vários aspectos envolvidos com a atenção, que algumas características emergem como base desse processo. Dentre as características, podemos citar a amplitude, ou seja, a quantidade de informações ou tarefas que podem ser realizadas simultaneamente: a seletividade, ou atenção seletiva, e a concentração. 10 2.3 Classificação da atenção Para entendermos melhor esse processo de atenção, destacamos alguns dos principais tipos: Atenção seletiva: ocorre a seleção das informações, evidenciando o foco principal. Algumas vezes o cérebro não consegue assimilar todos esses sinais, e usa como saída a atenção seletiva para omitir informações irrelevantes. Atenção alternada: alternar o foco sem perdê-lo. Ajudando em tarefas que requerem mais de um nível de compreensão, por exemplo, no trânsito, permanecer atento às placas, sinais, pedestres, entre outras das muitas informações enquanto se dirige, sem perder a concentração no todo. Atenção sustentada: habilidade de se manter focado durante uma mesma atividade extensa e contínua. Por exemplo, manter-se atento durante reuniões longas, sustentando o foco da atenção nesse período. Atenção concentrada: capacidade de direcionar a atenção para apenas uma atividade. Em casos específicos pode se relacionar com o estado flow. Em entrevista à Revista Wired, Mihaly Csikszentmihalyi (criador do conceito) descreve esse estado como “estar completamente envolvido em uma atividade em si. O ego desaparece. O tempo voa. Toda ação, movimento e pensamento segue naturalmente. Todo o seu ser está envolvido, e você está usando o máximo de suas habilidades” (Csikszentmihalyi, 1990). TEMA 3 – MEMÓRIA: BASES DA APRENDIZAGEM Aprendizagem e memória são funções abrangentes e específicas que são ativadas por estímulos ambientais e capazes de modificar o comportamento. Além dos estímulos, o comportamento também é influenciado pela interação do programa genético individual, ou seja, nosso comportamento final está relacionado aos fatores genéticos e epigenéticos. Podemos definir que a aprendizagem é um processo pelo qual adquirimos informação que se traduz em conhecimento. A memória é um termo amplo que se refere a uma série de funções nervosas distintas. A característica comum entre elas é a capacidade de recriar experiências pelo disparo sincrônico dos neurônios envolvidos na situação original. 11 Podemos dizer que a formação da memória envolve o aprendizado e a reconstrução parcial ou total de uma experiência passada. Durante o evento, as informações são levadas até o cérebro, onde células nervosas são acionadas em conjunto. Estas células são alteradas e tendem a disparar juntas novamente reconstruindo a experiência original, o que produzira a “lembrança”. A repetição do evento aumenta a probabilidade dessas células dispararem novamente em conjunto facilitando a evocação da lembrança. Assim, a formação da memória é dependente de vários estágios espontâneos, como seleção, consolidação, recordação, mudança e esquecimento. Definiremos o estágio de seleção da memória pela utilidade da informação que chega ao sistema nervoso central. O ser humano é neurologicamente programado para armazenar informações que serão úteis no futuro, o restante das informações passa sem registro. Eventualmente experiências importantes são negligenciadas e informações irrelevantes são retidas. No estágio da consolidação, as experiências selecionadas para a memorização são armazenadas, associadas a memórias relevantes preexistentes e retidas por um período apropriado. Para que possamos definir o estágio da recordação, devemos compreender que os acontecimentos vigentes devem evocar memórias úteis como nomes, eventos e palavras, acessando a informação de forma adequada.Pequenas modificações ocorrem quando a memória é evocada. Para que haja a acomodação de nova informação (que pode ser definida como o estágio da mudança), no estágio do esquecimento, as informações desnecessárias serão apagadas. TEMA 4 – ANATOMIA E SISTEMAS DE MEMÓRIA Atenção leitores neurocuriosos, para que possamos entender a formação da memória, precisaremos estudar sua anatomia, ou seja, precisamos conhecer estruturas nervosas envolvidas nessa função. Podemos afirmar que, de alguma forma, todo o encéfalo está envolvido nos processos de memória, no entanto algumas estruturas, à luz da neurociência, têm destaque nessa função que protagoniza a evolução do ser humano. O sistema límbico responde pelos comportamentos primitivos, por emoções profundas e impulsos relacionados à sobrevivência, como medo, prazer, impulso 12 sexual e ira. Esse importante sistema forma uma ponte entre o córtex cerebral, área de consciências superiores e o tronco encefálico, regulador das funções corporais. Esse complexo sistema tem importantes relações com a memória, por meio de estruturas como hipocampo, amígdalas e corpos mamilares. Outras estruturas corticais e subcorticais também estão implicadas na memória. Uma dessas estruturas é o hipocampo. Não podemos pensar na anatomia da memória sem destacar essa estrutura. O hipocampo está localizado no sistema límbico, possui entre uma e três camadas de células nervosa e seleciona informações provisórias para memorização, para depois passá-las para áreas de memória de maior duração. Podemos afirmar que o hipocampo transforma experiências em memórias. As amígdalas também estão localizadas no sistema límbico e possuem forma de amêndoas, formando um conglomerado de neurônios que estão relacionadas com a memória emocional, Os corpos mamilares são pequenos blocos de células nervosas que retransmitem sinais ao tálamo, contribuindo para a prontidão e a formação da memória. Também relacionados à memória, temos os núcleos da base, denominados assim, por estarem na base do cérebro. São agrupamentos de corpos de neurônios com fibras que se projetam para várias áreas do encéfalo. Essas estruturas são como ilhas de substância cinzenta em meio à substância branca das fibras neuronais. Os núcleos da base estão localizados no interior dos hemisférios cerebrais: lateralmente ao tálamo, temos os núcleos caudado, putâmen e globo pálido; e abaixo do tálamo, temos o núcleo subtalâmico e a substância negra, importante área de produção de dopamina. O putâmen é um núcleo localizado lateralmente ao tálamo, recebendo fibras aferentes do córtex pré-motor, da área motora suplementar e do córtex somatossensorial primário. Essa estrutura está relacionada com o planejamento de padrões motores aprendidos. Já o núcleo caudado está localizado lateralmente ao tálamo, recebe aferências de todo o córtex cerebral, mas principalmente de áreas associativas, como o córtex pré-frontal, pré-motor e parietal posterior. Relaciona-se mais com aspectos cognitivos da atividade motora – com a escolha de padrões motores adequados à situação percebida sensorialmente e às informações armazenadas na memória de longo prazo. 13 Importante estrutura, o tálamo está situado no centro do encéfalo. Situado no centro anatômico do encéfalo, o tálamo é a principal estação de retransmissão para os sinais nervosos provenientes de todos os sentidos, exceto o olfato. O tálamo seleciona, inicia o processamento das informações sensoriais e as envia ao córtex cerebral. Está relacionado com a seleção e a filtragem da atenção, importantes habilidades para o processamento da memória. Não podemos deixar de mencionar o cerebelo, implicado nos processos de memória. Alguns neurocientistas relatam que o condicionamento clássico de respostas da musculatura esquelética parece depender do cerebelo, sendo esta uma forma básica de aprendizagem associativa e memória. Também mencionam que o cerebelo atua na catalogação e manutenção de sequências de eventos necessários pra o funcionamento da memória operacional em situações que requeiram o ordenamento temporal das informações. Longas células nervosas denominadas células de Purkinje, encontradas no cerebelo, unem ações de diferentes partes do corpo, coordenando movimentos finos e complexos, estando, portanto, envolvidas na aprendizagem de movimentos novos por mudança de atividade sináptica. Assim, podemos dizer que o cerebelo participa da aprendizagem de movimentos finos e, para que ocorra tal aprendizagem, é necessário que se estabeleça alguma memória operacional na catalogação, no ordenamento temporal e no armazenamento de cada evento para que, posteriormente, possa haver a execução do movimento. Finalmente, devemos citar áreas corticais como os lobos parietais, relacionados com a memória espacial e o lobo frontal associado com a memória de trabalho. 4.1 Sistemas de memória A memória, de uma maneira geral, é a retenção e o armazenamento da informação. Do ponto de vista estrutural, sempre se considerou que a memória seria uma propriedade geral do córtex cerebral como um todo. Entretanto, pudemos observar que existem diferentes formas e sistemas de memória que estão relacionados a diferentes estruturas encefálicas. Vejam que as formas ou tipos de memória são processos em que há o reconhecimento de algo, como um rosto ou um objeto, com base em um determinado tipo de informação (auditiva, visual, tátil, dentre outras). Considerando a forma em que se pode recuperar a memória e as possíveis 14 estruturas envolvidas, a memória pode ser diferenciada em implícita, explícita, declarativa e não declarativa. As memórias explícita e declarativa se caracterizam pela recuperação consciente de informações e experiências passadas e de habilidades motoras, em que, por exemplo, se recorda como fazer as coisas. Seu substrato neuroanatômico se relaciona predominantemente com o lobo temporal medial. Vejamos também que possuímos memórias de curto prazo, que são mantidas somente pelo tempo necessário; e as de longo prazo, que podem ser evocadas até por décadas no ser humano. Entre elas as memórias de médio prazo, que duram entre meses e anos ou simplesmente desaparecem. Fatores como conteúdo emocional, novidade e o esforço de memorização determinam se uma experiência ou conhecimento formará uma memória de curto ou longo prazo. Assim, podemos reconhecer, nos seres humanos, cinco sistemas de memória: memória episódica, memória de trabalho, memória semântica, memória procedimental e memória implícita. A memória episódica reconstrói experiências passadas, sensações e emoções. As estruturas envolvidas dependem do conteúdo da experiência original. No córtex frontal, as áreas de associação asseguram que a memória episódica não seja confundida com a realidade presente. Na memória de trabalho os lobos frontais acessam itens de outras áreas do encéfalo. Dois sistemas em forma de alças neurais para informações visuais e de linguagem funcionam como um rascunho, mantendo os dados temporariamente até que sejam apagados pela tarefa seguinte. A memória semântica é ativada nas áreas do lobo frontal que recorrem ao conhecimento armazenado para guiar o comportamento atual. No lobo temporal há a codificação das informações, sinalizando os fatos evocados. Os eventos que pertencem à memória semântica podem ter tido um contexto emocional, mas permanecem como simples conhecimento. Armazenadas em áreas subcorticais, as memórias procedimentais ou memória corporal permitem a execução de ações motoras comuns, de forma automática, após a aprendizagem. No núcleo caudado estão armazenadas informações de ações instintivas, como o cuidado com a aparência, por exemplo. No putâmen estão armazenadas as habilidades aprendidas, como dirigir ou nadar; e o cerebelo irá controlar a coordenação e tempo.15 As memórias implícitas são aquelas de que não temos consciência. Porém, influenciam nossas ações de forma sutil. Quando associamos um sabor a uma aparência e não gostamos sem ao menos experimentar, pois nos remete a algo desagradável, estamos sendo afetados pela memória implícita. TEMA 5 – FORMAÇÃO DA MEMÓRIA E APRENDIZAGEM A percepção de uma experiência é gerada por um subgrupo de neurônios que disparam em conjunto. A descarga sincrônica os torna inclinados a dispararem juntos novamente, recriando a experiência original e, se esses neurônios disparam juntos com frequência, se tornam sensíveis permanentemente um com os outros, ou seja, quando um dispara, os outros também irão disparar, formando um circuito. Apenas as experiências intensas são codificadas como memória. As memórias de longo prazo incluem experiências da vida pessoal, as chamadas episódicas e semânticas, de fatos impessoais, formando as chamadas memórias declarativas, evocadas de forma consciente. As memórias procedimentais e as implícitas também podem ser armazenadas por longo prazo. 5.1 Formação da memória de longo prazo Nem todas nossas experiências se tornam permanentes. Aquelas que, por inúmeras razões, alteram as estruturas neurais formando novas conexões poderão ser recriadas por um longo prazo. Uma memória de longo prazo poderá levar até anos para se formar, com estágios que duram de uma fração de segundos ao estágio que levará mais de dois anos para a consolidação da memória. Estes estágios são atenção, carga emocional, sensação, memória de trabalho, processamento do hipocampo e consolidação. Nosso sistema nervoso tem capacidade de experimentar poucos estímulos por vez ou focar em um único evento e extrair o máximo de informações. No estágio de atenção, com duração de aproximadamente 0,2 segundo, os neurônios que registram o evento disparam com mais frequência, tornando a atividade mais intensa e aumentando a possibilidade de registro na memória. No estágio da emoção, em aproximadamente 0,25 segundo, caso haja grande carga emocional na experiência, haverá aumento de atenção e maior probabilidade de se estabelecer a memória. O estímulo é levado por via 16 inconsciente à amígdala, disparando uma resposta emocional também inconsciente. Devemos lembrar aqui que eventos traumáticos podem ser armazenados permanentemente na amígdala. A sensação é o estágio que dura entre 0,2 e 0,5 segundo, se consideramos que a maior parte das memórias decorre de experiências sensoriais, formando a matéria-prima da memória. Neste estágio, a intensidade do evento determinará a formação de memória. Possivelmente a memória de trabalho envolva dois circuitos neurais nos quais a informação é mantida pelo tempo necessário. Um circuito é destinado às informações visual e espacial e outro ao som. Este processo dura entre 0,5 segundo e 10 minutos. Vejam que esses circuitos neurais envolvem os córtices sensoriais, visual e auditivo e os lobos frontais, este último permitindo a consciência da experiência. O processamento da memória no hipocampo dura entre 10 minutos e 2 anos, e experiências na memória de trabalho se projetam ao hipocampo, onde são processadas. A informação mais significativa é codificada, sendo novamente projetada para áreas onde foram registradas primeiramente. Durante dois anos, o padrão neural que codifica a experiência oscila entre o hipocampo e o córtex. A repetição deste processo promove a transferência do padrão do hipocampo ao córtex, liberando espaço para novas informações. Esse processo ocorre predominantemente durante o sono, e é denominado consolidação. FINALIZANDO Como pudemos estudar neste capítulo, as percepções e a memória são habilidades apaixonantes e altamente complexas. Poderíamos estudar por muitos anos e sempre estaríamos aprendendo, claro, pois acabamos de ver que a capacidade computacional da memória é quase que infinita. Vale lembrar que as percepções não são apenas a aferição das informações relacionadas ao meio, e sim o seu processamento. Aqui estudamos as percepções visual, auditiva, gustativa e paladar e tátil. Com base nas percepções desenvolvemos a memória, a qual se forma baseada em experiências vividas e reconstituídas em nosso cérebro. Várias são as estruturas envolvidas na memória, destacando-se o sistema límbico e o córtex cerebral. 17 Seguramente, se vocês conseguiram acompanhar essas informações, podemos seguir adiante, conhecer um pouco mais das habilidades que tornam o ser humano essa complexa espécie e cada um de nós um ser único. LEITURA COMPLEMENTAR Texto de abordagem teórica FONSECA, V. da. Desenvolvimento Psicomotor e Aprendizagem. CONGRESO INTERNACIONAL EDUCACIÓN INFANTIL Y DESARROLLO DE COMPETENCIAS. Asociación Mundial de Educadores Infantiles (AMEI-WAECE) (Org.). Anais... Madrid, 28-30 nov. 2008. Disponível em: <http://www.waece.org/ameicongresocompetencias/ponencias/victor_da_fonsec a.pdf>. Acesso em: 1 set. 2018. Para aprimorar o conhecimento acerca do desenvolvimento psicomotor e de aprendizagem tão discutidos nesta aula, convido você a realizar a leitura desse artigo, de ninguém menos que Vitor da Fonseca, referência mundial em psicomotricidade. Texto de abordagem prática IZQUIERDO, I. Memórias. Estudos Avançados, v. 3, n. 6. São Paulo, maio- ago., 1989. Disponível em: <http://www.revistas.usp.br/eav/article/view/8522>. Acesso em: 1 set. 2018. Tema extremamente significativo na educação, o entendimento da memória poderá ser facilitado por esse texto. 18 REFERÊNCIAS CSIKSZENTMIHALYI, M. Flow: the Psychology of optimal experience. New York; Harper and Row, 1990. CUNHA, V. L. O.; CAPELLINI, S. A. Desempenho de escolares de 1ª a 4ª série do ensino fundamental nas provas de habilidades metafonológicas e de leitura- Prohmele. Revista da Sociedade Brasileira de Fonoaudiologia, v. 14, n. 1, p. 56-68, 2009. FONSECA, V. da. Psicomotricidade. São Paulo: Martins Fontes, 1988. _____. Psicomotricidade: filogênese, ontogênese e retrogênese. 2. ed. Porto Alegre: Artes Médicas, 1998 FONSECA, V. da. Desenvolvimento Psicomotor e Aprendizagem. CONGRESO INTERNACIONAL EDUCACIÓN INFANTIL Y DESARROLLO DE COMPETENCIAS. Asociación Mundial de Educadores Infantiles (AMEI-WAECE) (Org.). Anais... Madrid, 28-30 nov. 2008. Disponível em: <http://www.waece.org/AMEIcongresocompetencias/ponencias/victor_da_fonsec a.pdf>. Acesso em: 1 set. 2018. GINDRI, G.; KESKE-SOARES, M.; MOTA, H. B. Memória de trabalho, consciência fonológica e hipótese de escrita. Pró-Fono Revista Atualidades Científicas. Barueri (SP), v. 19, n. 3, p. 313-322, jul.-set. 2007. HAINES, D.E. et al. 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AULA 3 NEUROCIÊNCIA EDUCACIONAL Prof. Wagner Allan Cagliumi 2 CONVERSA INICIAL Na aula anterior, pudemos analisar que o processo de formação da memória está diretamente relacionado com as experiências vividas, e que a aprendizagem não pode ser definida apenas pelas funções consideradas executivas. Infelizmente, dissociamosdas habilidades motoras – equivocadamente – habilidades como atenção, memória, linguagem, leitura e escrita. Em nossa primeira aula, discutimos a evolução neuroanatômica do ser humano e o desenvolvimento de suas habilidades: o crescimento do córtex cerebral, o início da marcha bípede, o desenvolvimento das percepções e suas relações espaciais e temporais, que pouco a pouco foram oferecendo ao ser humano um vasto repertório de respostas ambientais, nos tornando seres altamente complexos e adaptados ao meio. Na segunda aula pudemos estudar o desenvolvimento das percepções e da memória. Dessa forma, não poderíamos deixar de discutir as habilidades neuromotoras, para que você possa compreender o desenvolvimento da linguagem e, consequentemente, a aquisição da leitura e da escrita, bens tão preciosos, que nos permitem arquivar memórias externas ao nosso corpo biológico e transferir o conhecimento adquirido para as futuras gerações. CONTEXTUALIZANDO Nesta aula conheceremos os fundamentos do desenvolvimento neuropsicomotor, o desenvolvimento da linguagem e suas relações com a aprendizagem da leitura e da escrita. Muitas vezes pensamos que, para que uma criança possua condições de aquisição da leitura e escrita, basta que tenha um vasto repertório linguístico, sem que consideremos seu desenvolvimento psicomotor. Devemos refletir: O ato de escrever não depende da motricidade? Não existem implicações de um repertório motor, de experiências, de vivências para que o universo seja codificado em palavras escritas? TEMA 1 – DESENVOLVIMENTO NEUROPSICOMOTOR A motricidade pode ser entendida como uma ciência que tem como objeto de estudo o ser humano por meio de seu corpo em movimento e em relação aos 3 seus meios interno e externo. A motricidade está diretamente relacionada aos processos de maturação; corpo e movimento dão origem às aquisições cognitivas, afetivas e orgânicas. A motricidade é sustentada por, basicamente, três áreas: do movimento, do intelecto e da afetividade. Podemos empregar o termo “psicomotricidade” em uma concepção de movimento organizado e integrado, em função das experiências vivenciadas pelo ser humano, cuja ação é resultante de sua linguagem, individualidade e socialização. Em 1993, o então Ministério da Educação e do Desporto e a Secretaria de Educação Especial definiram psicomotricidade como a integração das funções motrizes e mentais, sob o efeito do desenvolvimento do sistema nervoso, destacando as relações existentes entre motricidade, mente e afetividade do indivíduo. Vejam, portanto, que não podemos dissociar o desenvolvimento motor das experiências vividas nos campos biológicos – considerando as neurociências –, tampouco no meio social. Devemos ressaltar que a habilidade de perceber é um conjunto de processos que dependem primeiramente das experiências sensoriais. Dessa forma, essas experiências deverão ser organizadas e posteriormente interpretadas, produzindo as memórias evocadas na interpretação das informações, o que chamaremos de “percepção”. Para tanto, todas as estruturas nervosas deverão ser funcionais, isto é, íntegras, para que os estímulos externos e internos sejam aferidos por meio dos órgãos sensoriais, sendo processados para que possamos interpretar os referidos estímulos. Podemos entender que, em uma criança, para que haja o desenvolvimento de um repertório perceptivo, tanto os receptores nervosos quanto os órgãos dos sentidos e as estruturas superiores do sistema nervoso deverão estar anatômica e funcionalmente íntegros para que não haja um prejuízo no desenvolvimento neuropsicomotor. Ao nascer, o ser humano está biologicamente preparado para receber os estímulos do meio ambiente por meio dos órgãos dos sentidos; ao passo em que experimenta novos estímulos, desenvolve novas interpretações e respostas ambientais. Ainda que o recém-nascido não tenha a capacidade de interpretar determinadas informações, como diferenciar seu próprio corpo do meio que o cerca, sua programação biológica permite que reconheça a voz da mãe, perceba luz e sombra, além de estar programado para uma série de respostas motoras 4 reflexas, isto é, que não dependem de experiências anteriores ou de aprendizagem. Essas respostas são denominadas “reflexos hereditários”, conhecimento genético que permite a sobrevivência dos seres vivos ao nascer, como, por exemplo, o reflexo de sucção, tão importante para os mamíferos. Para ilustrar essa questão, imagine que, num passado distante, precisássemos aprender a sugar. Seguramente não teríamos sobrevivido. Dentre uma variedade significativa de reflexos hereditários, vamos descrever apenas os que de alguma forma têm uma relação direta com os propósitos desta aula. Assim, vamos destacar o reflexo de sucção, de preensão palmar e de marcha reflexa, ou andar automático. O reflexo de sucção refere-se a quando tocamos levemente na boca de um recém-nascido, momento em que ele começa a sugar e a chupar. Esse reflexo tem, obviamente, fundamental importância para a sobrevivência. Devemos lembrar que, por ser um reflexo, o bebê sugará qualquer objeto colocado em sua boca, sejam os seios da mãe para mamar ou seus próprios dedos. O reflexo de preensão palmar é desencadeado por pressão da palma da mão, resultando na flexão dos dedos. Podemos observar essa mesma resposta nos pés do bebê. A marcha reflexa, ou andar automático, ocorre quando oferecemos apoio plantar – apoio na planta dos pés – ao recém-nascido. Haverá inclinação do tronco e um cruzamento das pernas, uma à frente da outra. Quanto a esse reflexo, é curioso mencionar que, de tempos em tempos, podemos ver, sobretudo nas redes sociais, filmagens de recém-nascidos “andando” precocemente. Agora que você conhece os reflexos primitivos, já pode entender quão falsas são essas notícias; não há nada de extraordinário em um recém-nascido “imitar” o andar. Os reflexos hereditários são nada mais que movimentos primitivos que asseguram ao recém-nascido formas de sobreviver no meio externo, posteriormente dando lugar aos movimentos voluntários, refinados e complexos, que permitirão o desenvolvimento de habilidades executivas em nosso meio ambiente. Pouco a pouco, o bebê toma consciência de seu poder de agir e de influenciar o meio que o rodeia. Quando em estado de desconforto, como fome, sede e dor, ele começará a chorar e a gritar. O desenvolvimento motor se relaciona com a coordenação de movimentos amplos e finos. As habilidades motoras amplas são aquelas que envolvem os 5 músculos grandes do corpo, como arrastar, engatinhar, andar, saltar, correr, chutar e arremessar bola. Já as atividades motoras finas envolvem o uso das mãos e dedos, movimentos e ações mais sofisticados, como encaixar, empilhar, atividades que utilizem ferramentas como tesoura, lápis e cola. À medida que a criança cresce, suas habilidades motoras vão se aprimorando, e a capacidade de controlar seus músculos e mover-se com desenvoltura aumenta consideravelmente. Nesse estágio, os estímulos são importantes, mas é necessário tomar cuidado e não forçar esse processo, pois, como já vimos, há uma hierarquia temporal para a maturação neuropsicomotor; o excesso de estímulos poderá causar prejuízos. Devemos oferecer uma variedade de experiências à criança, mas compatíveis com sua idade e ambientes que percorre. É necessário que músculos, ossos e sistema nervoso tenham atingido determinado estágio de desenvolvimento para que, naturalmente, a criança possa desempenhar atividades específicas. 1.1 Teoria da Aprendizagem de Piaget Para que sigamos adiante na compreensão do desenvolvimento neuropsicomotor, não podemos deixar de conhecer a teoria de Jean Piaget, considerado um dos mais importantes pensadores da Educação do século XX. Esse biólogo, epistemólogo e psicólogo tem em sua Teoria da Aprendizagem sua
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