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A MORT� PODE ESPERAR? CLÍNICA PSICANALÍTICA DO SUICÍDIO [ ... ] Assim como amor e ódio por uma pessoa habitam em nosso peito ao mesmo tempo, assim também toda a vida conjuga o desejo de manter-se e o desejo da própria destruição. Do mesmo modo com um pequeno elástico esticado tende a assumir a forma original, assim também toda a matéria viva, consciente ou incons- cientemente, busca readquirir a completa, a absoluta inércia da existência inorgânica. O impulso de vida e o impulso de morte habitam lado a lado dentro de nós. A Morte é a companheira do Amor. Juntos eles regem o mundo. [ ... ] No começo, a psicanálise supôs que o Amor tinha toda a importância. Agora sabemos que a Morte é igualmente importante. Soraya Carvalho A morte pode esperar? Clínica Psicanalítica do Suicídio Salvador - Bahia Setembro de 2014 ~ ----- © Soraya Carvalho, 2014 © para esta edição, 2014 !"edição: setembro, 2014 Projeto gráfico da capa e primeiras páginas Alex Oliveira Revisão Adriana Tellçs Composição eletrônica Jotabele informática Depósito legal Impresso no Brasil / Printed in Brazil Sistema de Bibliotecas - UFBA Carvalho, Soraya. Suicídio / Soraya Carvalho. - 1. ed. - Salvador : Associação Científica Campo Psicanalítico 20 14. 150 p.: il. 1SBN 978-85-89388-18-4 1. Depressão. 2. Melancolia. 3. Suicídio. 4. Psicanálise. I. Título. A morte pode esperar? Clínica Psicanalítica do Suicídio CDD - 616.8527 1 Ir 11, 11 1 ij ! i lf ( r 111 11 ' Dedico este livro àqueles que me confiaram seus sofrimentos mais íntimos e a quem eu ofereci em troca apenas uma escuta interessada e despida de preconceitos. ; l Agradecimentos Inicialmente, gostaria de agradecer ao CIAVE, pela oportunidade de trabalhar numa clínica, na qual sou constantemente convocada a novas reflexões éticas e técnicas. Agradeço pelo respeito e reconhecimento ao meu trabalho, e por tornar meu sonho do NEPS uma realidade. Por fim, sou grata pela colaboração na realização deste livro. Aos pacientes, um agradecimento especial, por terem me concedido a chance de fazer parte de suas vidas num momento de extremo sofrimento. Foram os desafios dessa escuta que me motivaram a escrever este livro, e agora compartilhá-lo, para, quem sabe, poder contribuir para aqueles que atuam na clínica do suicídio. Agradeço aos estudantes dos cursos de graduação em Psicologia que, durante o período de estágio, pude participar da sua formação profissional, não somente com conhecimentos, mas, sobretudo, com valores imprescindíveis ao exercício da profissão, como o respeito e a seriedade em relação àqueles com os quais tratamos. Agradeço a oportunidade de dividir meus questionamentos, minhas dúvidas, meu saber, pois, como nos diz o psiquiatra cubano Sergio Perez, "um saber que não se socializa, não é um saber". À minha família, um agradecimento muito especial, pelo apoio incondicional. À equipe do NEPS, com quem divido diariamente a responsabilidade pela manutenção de um serviço sério e eticamente comprometido com o ser humano. Ao Campo Psicanalítico de Salvador, um lugar não apenas de formação, mas de interlocução para minhas inquietações e avanços teóricos. Agradeço também pela participação na editoração deste livro. l~ ·~1 Apresentação Introdução Parte I - Depressão 1. Depressão Sumário 2. Depressão não é sintoma 3. A relação sexual não existe, e eu com isso? 4. Sintoma e fantasia fundamental Parte II - Melancolia 5. Melancolia, um pouco de história 6. Melancolia e psicanálise 7. Melancolia: neurose ou psicose? 8. O objeto a no luto e na melancolia Parte III - Suicídio 9. Suicídio, um ato 10. Suicídio, uma escolha 11. Suicídio nas estruturas clínicas Parte IV - Clínica do suicídio 12. Ética e suicídio 13. Na clínica do suicídio a resposta do analista é orientada por que ética? 14. · O bonde chamado desejo não circula mais ... só a van filosofia 1 5. A interpretação no discmso melancólico 16. A morte pode esperar por uma análise? ; Apresentação Este livro é o produto de inquietações despertadas a partir de uma prática clínica de mais de duas décadas, acompanhando, em psicanálise, sujeitos que tentaram o suicídio ou que corriam o risco de fazê-lo, em contextos público e privado - respectivamente, no Centro de Informação Antiveneno/Núcleo de Estudo e Prevenção do Suicídio (CIAVE/NEPS), um ambulatório de saúde mental ligado à rede pública de saúde do estado da Bahia, e em consultório particular. Na clínica do suicídio encontramos sujeitos mergulhados numa angústia desmedida, perdidos nos emaranhados de uma existência marcada pela falta de sentido, desesperança e sofrimento. Esses sujeitos, quando nos chegam, na maioria das vezes, já tomaram sua decisão pela morte, de maneira que não estão em busca de ajuda ou tratamento. A morte não lhes faz enigma, razão pela qual não há uma questão a ser dirigida ao analista. Ao contrário, a morte é a certeza de uma saída para sua dor de existir. Essa é, portanto, uma clínica do limite, da urgência e do sofrimento psíquico extremo, com especificidades que nos 11 A MORTE PODE ESPERAR? colocam, em muitos momentos, diante de impasses técnicos e éticos, que nos levam a repensar e, por que não dizer, reinventar alguns conceitos. O desejo de compartilhar as inquietações vivenciadas nessa clínica, bem como as elaborações teóricas desenvolvidas a partir dessa prática, foi o que motivou a produção deste livro, que reúne artigos já publicados anteriormente, em coletâneas do Campo Psicanalítico de Salvador e em capítulos de livros diversos, além de trabalhos inéditos. Partindo da concepção do suicídio como uma manifestação 1 humana, como uma das respostas do sujeito frente ao real, isto é, à impossibilidade, este livro não tem como :finalidade concluir, mas, sobretudo, ampliar a discussão em tomo do ato suicida, desmitificando-o e convocando os analistas a não recuarem diante desse ato, tal como propôs Lacan diante da psicose. Yale salientar que não temos a pretensão de explicar o fenômeno do suicídio, reduzindo-o a causas psicológicas, sociais ou hereditárias. Em outras palavras, não iremos responsabilizar o ambiente, muito menos a biologia, na intenção de compreender tal fenômeno. Nosso enfoque será no suj eito, naquilo que ele tem de mais íntimo e particular, posto que, mesmo portador de uma história e inserido nwn contexto sociocultural, trata-se, sobretudo, de um ser de linguagem, um jàlasser, cujo corpo é sensível ao significante e cujas escolhas se orientam por outra lógica, a do inconsciente. Dessa forma, este livro tem como objetivo permitir ao leitor um maior entendimento sobre o que leva alguns sujeitos à enigmática escolha pela morte, e a reflexão se, diante do seu 12 APRESENTAÇÃO anúncio, há tempo de e o que fazer - ou seja, por que as pessoas decidem morrer e se a morte pode esperar por urna análise. Para isso, serão discutidas, à luz da psicanálise, algumas questões específicas dessa clínica e da consequente direção do tratamento. O livro está dividido em quatro partes: as três primeiras são dedicadas à discussão de alguns conceitos psicanalíticos importantes na clínica do suicídio, como depressão, melancolia e o próprio suicídio; a quarta parte destina-se a questões referentes à clínica propriamente dita. A primeira parte, DEPRESSÃO, está distribuída em quatro capítulos: o capítulo I traz as referências do conceito de depressão na obra de Freud e de Lacan; o capítulo 2 trata de uma afirmação de Freud no seu artigo Inibição, sintoma e angústia, retomado por Lacan em seu Seminário 1 O, de que depressão não é sintoma, mas inibição, para Freud, e afeto, para Lacan; o capítulo 3 apresenta o axioma lacaniano A relação sexual não existe, axioma que orienta a clínica psicanalítica, tornando indispensável sua compreensão paraa leitura deste livro; e o capítulo 4 esclarece a relação entre sintoma e fantasia, conceitos que fundamentarão a hipótese sobre os fatores determinantes do suicídio desenvolvida nos capítulos sobre a clínica. A segunda parte, MELANCOLIA, está dividida em quatro capítulos: o capítulo 5 conta com um breve histórico sobre a melancolia; o capítulo 6 introduz o conceito de melancolia e sua relação com a depressão, com o luto e a tristeza, a partir da perspecbva da psicanálise, percorrendo esse conceito nas teorias freudiana, lacaniana e pós-lacaniana; o capítulo 7 traz à tona a discordância entre autores psicanalistas acerca da posição 13 A MORTE PODE ESP ERAR? nosológica da melancolia, classificada como neurose ou psicose, debate crucial para a direção do tratamento; e o capítulo 8 discorre sobre o conceito de objeto na clínica do luto e da melancolia, uma distinção não menos importante na clínica do suicídio. A terceira parte, Surcioro, compreende três capítulos: o capítulo 9, Suicídio, um ato, retoma as características do ato no sentido analítico, definindo o ato suicida a partir do acting out e da passagem ao ato; o capítulo 1 O discute o suicídio como uma escolha do sujeito, partindo de duas situações - quando a morte escolhe o sujeito e quando o sujeito escolhe f morte - , exemplificando com um recorte de caso; o capítulo 11 salienta as particularidades do suicídio neurótico e do suicídio melancólico, tomando como referênCLa as respostas do sujeito diante do significante da falta no Outro, S(A), e do objeto a, objeto causa de desejo, correlacionando o ato suicida com a posição de objeto de gozo que um sujeito ocupa diante do Outro. A quarta parte, CLÍNICA oo Su1címo, está dividida em cinco capítulos: o capítulo 12, Ética e suicídio, define a ética para a psicanálise e, através de um fragmento de caso, questiona qual a posição ética do anal ista diante do anúncio de suicídio de um paciente; o capítulo 13 dá continuidade à discussão do capítulo anterior, introduzindo a hipótese do suicídio como uma resposta do sujeito ao real, portanto, passível de ser submetido à ética do bem-dizer; o capítulo 14, O bonde chamado desejo não circula mais .. . Só a van filosofia, retoma o conceito de depressão a partir da relação com o desejo, mais precisamente com as vias extraviadas do desejo adotadas pelo deprimido, e sua correlação com a lógica do discurso capitalista; o capítulo 15 apresenta as nuances do discurso melancólico, ilustrando-as com um recorte 14 APRESENTAÇÃO de caso, em que uma interpretação produz efeito de amarração, ao propiciar o surgimento de um significante novo com o qual o sujeito estabelece uma identificação narcísica e a consequente remissão do quadro melancólico; por fim, o capítulo 16 se inicia pela definição dos conceitos de tempo e de transferência para a psicanálise. Trata- se da transferência numa clínica em que a suposição de saber não está posta, pelo menos a priori, estabelecendo um contraponto entre o ato suicida e o ato analítico, em que no primeiro a dimensão do tempo aponta para chronus, o tempo que se conta, o tempo da urgência, e, no segundo, a dimensão temporal é dada pelo tempo lógico, tempo do sujeito, tempo do inconsciente, para responder se, diante da decisão de morrer, há tempo para uma análise. Desse modo, esperamos que os capítulos que englobam os conceitos psicanalíticos, aliados aos capítulos da Clinica do suicídio, possibilitem ao leitor fazer sua própria travessia e, ao final, que ele possa responder à pergunta: a morte pode esperar? Boa leitura! 15 ? , Introdução O sujeito do inconsciente não conhece a motte, isso quer dizer que não existe, no inconsciente, uma representação da morte. Então, por que as pessoas se suicidam? Por que para alguns sujeitos a morte se impõe como única saída? Se, diante do real, a resposta é sempre particular, por que alguns respondem com o sintoma e outros com o ato, e mais precisamente com um ato radical como o suicídio? O suicídio é um ato e, para a psicanálise, o ato é mais do que uma simples ação - ele possui características específicas, tomando seu conhecimento essencial para a clínica. Se, por um lado, o ato comporta uma dimensão de linguagem, a exemplo do ato falho e do Acting out, por outro, ele está além da linguagem, como na Passagem ao ato. O ato, como afirma Lacan no seu Seminário 15, visa acabar com a indeterminação do sujeito, mas, ao mesmo tempo, ele é acéfalo, o que quer dizer que, no ato, o sujeito do inconsciente não se reconhece, está ausente, o ato é agido. Então, no suicídio, de que escolha se trata justamente ali onde o sujeito do inconsciente não está presente? De que escolha se trata, quando 17 117' 1 1 ' --- A MORTE PODE ESPERAR? as dimensões do ato e do gozo se sobrepõem às dimensões do significante e do desejo? Classificado pelo Código Internacional das Doenças, capítulo XX da CID-1 O, como morte violenta por causas externas, isto é, morte não decorrente de doença (OMS, 1 Oª Revisão - CID- 1 O, 1995), o suicídio é um fenômeno complexo que não dispõe de urna explicação universal. Em linhas gerais, podemos dizer que o suicídio é uma manifestação humana, uma forma de lidar com o sofrimento. É até possível afirmar que o suicídio é uma carta na manga, aquilo de que o sujeito pode dispor quando a vida lhe parecer insuportável. 1 Ao longo da história da humanidade, o suicídio ou morte voluntária sempre esteve presente, adquirindo significados e valores diversos, a depender da civilização e do momento histórico. Segundo a Organização Mundial de Saúde (OMS), na atualidade, o fenômeno do suicídio vem ganhando proporções alarmantes, com taxas que ultrapassam um milhão de mortes/ano no mundo, representando uma média de um suicídio a cada 35 segundos, constituindo-se em uma das maiores causas de mortalidade no mundo, especialmente entre os jovens. A despeito de ser considerado um problema de saúde pública mundial e de representar mais da metade das mortes violentas no mundo, o suicídio ainda provoca uma série de questionamentos e embaraços, não apenas nos sobreviventes, isto é, aqueles que estão diretamente ligados ao sujeito que cometeu o ato, mas também nos profissionais que tratam esses suj eitos. Por mais humano e antigo que seja esse ato, ele continua causando perplexidade e indignação, posto que o suicídio ainda se constitui em um tabu, 18 '\ ..., INTRODUÇÃO em tomo do qual persiste um grande preconceito. Tudo isso se reflete na dificuldade das pessoas em geral em lidar com aqueles que fizeram a escolha pela própria morte, o que impede, muitas vezes, que elas possam "enxergar" o sofrimento ou "ouvir" os pedidos de ajuda. Na maioria dos casos, tem1inam reduzindo e rotulando esse ato radical como um meio de chamar atenção e, por esse motivo, não o considerando digno de respeito e cuidado. Mas quem é esse sujeito que diz não à existência, tentando contra a própria vida? Para que lhe servirá o ato suicida? E, ainda, quando alguém já se decidiu pela morte, que ética deve orientar a prática do psicanalista? Há tempo para uma análise? Enfim, a morte pode esperar? 19 PARTE I - DEPRESSÃO ' ' I Capítulo 1 - Depressão [ ... ] onde está presente uma neurose - e não estou me referindo explicitamente apenas à histeria, mas ao status nervosus em geral - temos de supor a presença primária de uma tendência à depressão e à diminuição da autoconfiança, tal como as encontramos muito desenvolvidas e individualizadas na melancolia. 1 A associação entre depressão e suicídio vem sendo citada em diversos estudos e pode ser amplamente verificada na clínica. Desse modo, uma compreensão aprofundada acerca da depressão toma-se indispensável para aqueles que pretendem tratar o suicídio. A depressão, hoje, segundo estimativa da OMS2, é um mal queacomete aproximadamente 100 milhões de pessoas em todo mundo, e, por essa razão, vem sendo considerada uma doença da modernidade. Mas seria a depressão um produto do discurso capitalista, como afirmam alguns? A história faz referências à depressão desde a Antiguidade, e a descrição da depressão pode ser encontrada em textos muito 'FREUD, S. Um caso de cura pelo hipnotismo. [1 892- 1893]. In: Obras psicológicas completas. Rio de Ja-neiro: Imago, 1977, v. !, p. 176-7 20rganização Mundial de Saúde (OMS). Relatório sobre a saúde no mundo 2001 - saúde l,, L I monral oo,a coocepção, ºº" ~ p,ra'I", """" (CH), MS; 200 L 23 A MORTE PODE ESPERAR? antigos, a exemplo da síndrome depressiva do rei Saul, no Antigo Testamento, ou mesmo o suicídio de Ajax, na Ilíada de Homero.3 A depressão é um conceito e, como tal, sofre influências da cultura, já tendo sido associada às artes e às doenças. Aristóteles, por exemplo, compartilhava a teoria dos humores de Hipócrates, e desde o século IV a.C., considerava que os filósofos, políticos, poetas e artistas possuíam um temperamento predominantemente melancólico, determinado por um excesso de bile negra, responsável por lhes tornar pessoas mais profundas em suas emoções e percepções de vida4. De modo que a depressão melancólica foi sinal de genialidade criativa, num período em que a tristeza e o sofrimento profundo eram muito valorizados por manterem uma conexão estreita com a criação. O humor melancólico era um dom reservado a poucos, uma mais-valia no cenário artístico. Segundo Cordás (2002), o homem sempre sofreu de depressão, por isso ele a considera a mais íntima e familiar de todas as doenças mentais. Desse modo, o discurso capitalista não fabrica a depressão, mas faz dela um signo legitimado, ao qual são segregados os sujeitos que não compactuam com sua lógica, isto é: os fracos, os loucos, os deprimidos, posto que estes não consomem, vivem à margem da sociedade, são "marginais". Num discurso regido pelo imperativo do gozo e do sucesso, não há lugar para a falha, dor ou tristeza. Na lógica do capital, a depressão se constitui num signo de deficit, de fracasso e de menos-valia. Dessa forma, a depressão não é um produto do capitalismo, mas este, ao 1 KAJ>LAN & SADOCK, B. J.; SADOCK, V. A. Compêndio de psiquiatria: ciência do comportamento e psiquiatria clínica. 9. ed. Porto Alegre: Artmed, 2007. p. 572. 'CORDÁS, T. A. Depressão: da bife negra aos neurotransmissores. São Paulo: Lemos Editorial, 2002, p. 29-48. 24 " PARTE 1- DEPRESSÃO transformar os "improdutivos" em doentes, multiplica o número de deprimidos, para em seguida excluí-los e, com o auxílio dos psicotrópicos, silenciá-los. O termo depressão5 tem origem no latim deprimere, em que de significa baixar e premere, pressionar; pressionar para baixo ou pressão baixa. A palavra depressão deriva do termo depressus, também do latim, e que significa abatido ou aterrado. Quando aplicada à depressão mental, indica o rebaixamento do estado de espírito de pessoas padecendo de alguma doença. O termo depressão começou a ser utilizado nas discussões médicas sobre melancolia no século XVIII, mas apenas no século seguinte foi utilizado na psicopatologia. Quanto à palavra melancolia6, ela provém do grego me/anos, que significa escuro, preto, e cholia, que significa bife. Melancolia corresponde à transliteração da expressão melaine cole, cujo significado é bílis negra. Desde a Antiguidade, a melancolia foi estudada por Hipócrates, 400 a. C., criador da teoria dos humores. A teoria humoral pregava que a vida era mantida pelo equilíbrio entre os quatro humores: sangue, fleuma ou pituíta, bílis amarela e bílis negra, procedentes, respectivamente do coração, cérebro, fígado e baço. Para ele, a diferença encontrada nas doenças em geral se devia à variação desses humores. A melancolia, em especial, era desencadeada por uma alteração qualitativa ou quantitativa da bílis negra, geralmente associada ao seu excesso. Esse assunto será explorado no capítulo 2 - Melancolia. Em geral, a melancolia designa um estado de tristeza profunda e apatia. ;J<iELElRO, A. Depressão e seus subtipos. Disponível em: <www.desvende.webmeeting. com.br/ ... /modulo03.pdt> 6S0LOMON, A O demônio do meio-dia. Rio de Janeiro: Objetiva, 2002, p. 265. 25 A MORTE PODE ESPERAR? Partindo da concepção psicanalítica e, portanto, utilizando sua nosologia, observam-se, na clínica, dois grandes grupos de sujeitos que chegam com diagnóstico de depressão: de um lado, os melancólicos com um quadro clínico específico e, do outro, todos aqueles denominados "deprimidos", por cursarem um estado depressivo, independentemente de sua estrutura neurótica, psicótica ou perversa, mas que apresentam, em sua maioria, o humor triste associado à apatia. A psicanálise mantém-se fiel aos clássicos ao preservar o termo melancolia, para se referir a um quadro depressivo grave com características muito particulares, que se aproxima do que a psiquiatria denominava de psicose-maníaco-depressiva (PMD), ou ao que hoje o CID X classifica de transtorno afetivo e, em alguns casos, corresponde ao transtorno de personalidade. A depressão, segundo a teoria psicanalítica, não se constitui numa categoria nosográfica, nem mesmo pode ser considerada um s intoma no sentido analítico. Ela é, sobretudo, um afeto, ou simplesmente um estado. Verifica-se que sob o rótulo de depressão estão inseridos os mais variados tipos clínicos, tomando necessária a compreensão desse termo nas suas diferentes acepções. Este estudo se restringirá ao seu uso na perspectiva da psicanálise, fazendo um breve contraponto com a psiquiatria na atualidade. Depressão e psicanálise A depressão em Freud As primeiras referências à depressão nos escritos de Freud estão nas correspondências que ele enviou ao amigo F liess, entre 1892 e 1899, e que foram pub licadas em sua obra na 26 PARTE I - DEPRESSÃO seção Rascunhos. Nesses primeiros escritos, Freud se referia à melancolia e aos estados depressivos neuróticos como se fizessem parte do mesmo grupo psíquico, embora, mais tarde, ele tenha mudado sua opinião a esse respeito. Nesse período, ele utilizou os termos depressão periódica, melancolia de angústia, melancolia neurastênica, dentre outros, e somente a partir de 1915, com a publicação do artigo Luto e Melancolia, restringiu o emprego do termo melancolia para se referir a um quadro clínico particular. No Rascunho A 7, Freud (1892) considerava a depressão periódica um tipo de neurose de angústia, por seu desencadeamento estar associado à falta ou à inadequação de satisfação sexual, o que provocaria um acúmulo de energia sexual que se transformaria em angústia e depois em depressão. No Rascunho B8 , Freud (1893) aproximou a depressão periódica à neurastenia, pois, embora a depressão periódica tivesse sua causa relacionada à sobrecarga de energia sexual represada, nela também se verificava a existência de um trauma psíquico desencadeante, como na neurastenia, enquanto à melancolia propriamente dita era atribuída uma etiologia endógena e hereditária. No Rascunho E9 , Freud ( 1894) defendeu a hipótese de que os melancólicos, do ponto de vista sexual, são anestésicos, mas exibem, em contrapartida, uma intensa ânsia de amor, o que ele denominou de tensão erótica psíquica - concluindo assim que a melancolia seria o oposto da neurose de angústia, visto 7F~UD, S'.'fGscunho A [1892). [n: Op. cit., 1977, v. I, p. 246. 81d. Rascunho B [1893). ln: Op. cit., p. 253. 9Jd. Rascunho E [1894) . ln: Op. cit., p. 268. 27 A MORTE PODE ESPERAR? que, enquanto na primeira haveria um acúmulo de tensão sexual psíquica, na segunda haveria um acúmulo de tensão sexual física. E, finalmente, no Rascunho G'º (1895), Freud tratou exclusivamente da melancolia, afirmando ser o luto seu afeto correspondente,caracterizado como o desejo de recuperar algo que fora perdido. Considerando que nesse período o conceito de objeto ainda não havia sido elaborado, a melancolia consistia num luto por perda de libido. Nesse momento, também, ainda não havia sido desenvolvido o conceito de narcisismo, fundamental para uma compreensão mais ampla da melancolia. No Rascunho G, sobre a melancolia hereditária, ele fez referência às suas formas periódicas ou cíclicas de manifestação com estados de mania. Tem-se , portanto, que, para Freud, inicialmente, a melancolia se constituía numa neurose atual e não numa neurose de defesa, uma vez que seu desencadeamento estaria condicionado a uma perda de libido na esfera sexual e não em processos psíquicos de defesa. Posteriormente, contudo, ele abandonou tal hipótese. A clínica também lhe permitiu perceber que não seria possível agrupar a melancolia de angústia e a melancolia neurastênica com a melancolia propriamente dita, por se tratarem de mecanismos distintos. Desde então, passou a empregar o termo depressão, no sentido descritivo, situando-o nas diversas categorias psicopatológicas, enquanto que o termo melancolia ficou restrito a um tipo exclusivo de adoecimento psíquico. De acordo com Freud, [ ... ] onde está presente uma neurose - e não estou me referindo explicitamente apenas à histeria, mas ao status nervosus em geral - temos de supor a presença primária de uma tendência à depressão e à diminuição da autoconfiança, tal como as 'ºId. Rascunho G [1895). ln: Op. cit., p. 276. 28 PARTE I - DEPRESSÃO en111ntramos muito desenvolvidas e individualizadas na m1 lnncolia. 11 Essa "tendência à depressão" na neurose pode ser verificada nos estados depressivos presentes em diversos casos clínicos tratados por Freud, conforme alguns exemplos a seguir: Histeria e Paranoia Frãulein Anna O, paciente de Breuer e Freud, foi descrita como uma moça inteligente e culta, portadora de uma série de sintomas, entre os quais contraturas musculares, redução do campo visual, tosse nervosa e absences alucinatórias. Segundo Freud, 12 Seus estados de espírito sempre tenderam para um exagero, tanto na alegria quanto na tristeza; por conseguinte era as vezes sujeita a oscilações de humor. [ ... ].Uma violenta explosão de excitação era seguida por um profundo estupor. Havia dois estados de consciência[ ... ], ficava melancólica e angustiada, mas relativamente normal [ ... ] e no outro[ ... ] ficava ofensiva. Freud relata o caso da Sra. P 13 - um caso de paranoia, em que os fenômenos depressivos corresponderam ao início de sua doença e foram evoluindo com o aparecimento de alucinações visuais e auditivas, além das ideias delirantes de perseguição. Com relação a Emmy Von N 14, uma mulher de 40 anos que, após a morte precoce do marido, desenvolveu um quadro de histeria, embora seus sintomas psíquicos se manifestassem com uma quantidade pequena de conversão, Freud propôs que: " Id. Um caso de cura pelo hipnotismo (1892-93]. ln: Op. cit. , p. 176-7. 121d. Estudos sobre histeria. II. Casos clínicos: Caso 1 - FrãuleinAnna O. [ 1895). ln: Op. cit., 1974, v.JI, p. 63;;6_§;..--- 13Jd. Novos comentários sobre as neuropsicoses de defesa [1894). ln: Op. cit., 1974, v. III, p. 200-1 l . 14ld. Estudos sobre histeria. 11. Casos clínicos: Caso 2, Emmy Von N., [ 1889). Tn : Op. cit., p. 131-2. 29 A MORTE PODE ESPERAR? [ ... ] eles podem ser divididos em alterações de temperamento (ansiedade, depressão melancólica), fobias e abolias (inibições da vontade). Ela sofria há vários meses de depressão, insônia e era atormentada por dores. Dora, a mais popular de suas pacientes, foi classificada como um caso de petite hystérie15, ou seja, uma pequena histeria com: [ ... ] os mais comuns de todos os sintomas somáticos e mentais: dispneia, tussis nervosa, afonia e possivelmente enxaquecas, juntamente com depressão, insociabilidade histérica e um taedium vitae, que provavelmente não era de todo autêntico. E, finalmente, Miss Lucy R 16, uma jovem governanta que: "sofria de depressão e fadiga e era atormentada por sensações subjetivas do olfato" e "ela estava, além disso, desanimada e fatigada e se queixava de peso na cabeça, pouco apetite e perda de eficiência". Ao analisar esse caso, Freud fez importantes considerações, como associar a depressão de Lucy R. a um trauma vivido por ela ( quando decepcionou-se profundamente com seu patrão, por quem havia se apaixonado), e também torná-la equivalente a um ataque histérico: Em nossas primeiras tentativas de tornar a doença inteligível, foi necessário interpretar as sensações olfativas subjetivas, visto que eram alucinações recorrentes, como sintomas crônicos. Sua depressão talvez fosse o afeto ligado ao trauma. [ ... ] Talvez seja mais correto considerar que as alucinações olfativas recorrentes, conjuntamente com a depressão que as acompanhava, como equivalentes de um acesso histérico. 15 1d. Fragmento da análise de um caso de histeria (1905]. ln: Op. cit. , 1972, v. VH, p. 21-2. ' 6 1d. Estudos sobre his teria. LI. Casos clínicos: Caso 3, Miss Lucy R. (1892]. Op. cit., p. 153-4. 30 PARTE I - DEPRESSÃO Neurose obsessiva Na neurose obsessiva, o sujeito se defende dos seus desejos "impuros" reprimindo-os, e, em seu lugar, produz os mais variados sintomas. Diferentemente da histeria, que elege o corpo como palco para suas conversões, o obsessivo prefere mantê-los na esfera do pensamento, sob o formato de dúvidas, autoacusações, compulsões, podendo evoluir para atos e rituais obsessivos. Nessa neurose, as autoacusações , tão características dos quadros de melancolia, são frequentemente encontradas, merecendo, por isso, uma apreciação especial, com o objetivo de evitar avaliações clínicas equivocadas. Segundo Freud17, na neurose obsessiva, o afeto da autoacusação pode transformar-se em qualquer afeto desagradável, como por exemplo, vergonha, ansiedade hipocondríaca, ansiedade social, ansiedade rel igiosa, delírios de ser observado, entre outros . Por essa razão, os estados depressivos muitas vezes encontrados na neurose obsessiva podem ser formas de afetos e ideias obsessivas se manifestarem, o que levou Freud18 a afirmar: Muitos casos que, superficialmente examinados parecem ser hipocondria (neurastênica) comum, pertencem a esse grupo de afetos obsessivos; o que se conhece como neurastenia periódica ou melancolia periódica parece, em particular, resolver-se, com inesperada frequência, em afetos obsessivos e ideias obsessivas. Além disso , o sujeito obsessivo, mediante a perda do objeto de amor, manifesta uma tendência a desenvolver um luto patológico no Jugir do luto normal. Freud voltou a esse 171d. Novos comentários sobre as neurops icoses de defesa [ 1896). ln: Op. cit., p. 197. 181d. [bid., p.197. ""- 31 A MORTE PODE ESPERAR? assunto cm /.,u/o e Melancotid 9 [1915], no qual esclareceu que o luto patológico na neurose obsessiva, expresso sob a forma de autorrecriminaçõcs, se distinguia do luto melancólico, porque na obsessão, diferentemente da melancolia, essas autoacusações ti veram origem em desejos inconscientes. Isso quer dizer que o sentimento de culpa e a autorrecriminação no obsessivo são decorrentes do fato de este ter, inconscientemente, desejado a perda do objeto amado. Todavia, "nos estados obsessivos de depressão que seguem à morte de uma pessoa amada", percebe-se que o conflito gerado pela ambivalência amor e ódio, em relação ao objeto, não é seguido pela concomitante regressão da libido ao eu, como se observa nos casos de melancolia. Em Luto e melancolia, artigo que Freud2º dedicou especialmente à explicação da melancolia, utilizando para isso sua correlação com o fenômeno do luto, ele considerava que tanto o luto quanto a melancolia seriam resultados de uma perda e se manifestavam de forma bastante semelhante: [ ... ] um desânimo extremamentepenoso, a cessação de interesse pelo mundo externo, a perda da capacidade de amar, a inibição de toda e qualquer atividade. Entretanto, apenas na melancolia, se verifica uma diminuição dos sentimentos de autoestima, a ponto de encontrar expressão em auto- recriminações e auto-envilecimento, culminando numa expectativa delirante de punição. Depressão não é sintoma, mas inibição. Essa foi a tese de Freud, publicada em 1925, no artigo Inibição, sintoma e Angústia21• Inibição foi definida como a redução de uma função do 19 1d. Luto e melancolia (1915]. ln: Op. cit., 1974, v. XIV, p. 283-4. 2ºLd. lbicl., p. 276. 21 1d. In ibição, sintoma e angústia (1925]. ln : Op. cit., 1976, v. XX, p. 107, 110 e 11 1. 12 PARTE I - DEPRESSÃO eu, contrapondo ao sintoma, que seria quando uma função passou por alguma modificação ou quando uma nova manifestação surgiu dessa modificação. Para ele, na inibição e, portanto, na depressão, o eu evita entrar em conflito com as exigências provenientes do isso, ou seja, com as exigências pulsionais, não tendo, por esse motivo, que adotar novas medidas de repressão e, por conseguinte, abstendo-se da formação de sintomas. Com essa estratégia, o eu consegue manter sua supremacia sobre o recalque, mesmo que para isso tenha que lidar com limitações funcionais. Freud conclui esse texto afirmando que os quadros nos quais se verifica uma inibição geral das funções do eu são aqueles que caracterizam os estados de depressão na sua forma mais grave, ou seja, a melancolia. Dessa maneira, a psicanálise propõe que, diante da castração, do enigma do desejo do Outro, da impossibilidade do real, o sujeito lança mão de alguns recursos como o sintoma, a fantasia e a inibição. Ora, a castração é a operação que inaugura o sujeito no campo do desejo, mas também pode ser definida como a operação decorrente da sua entrada na linguagem. Por isso, dizer que um sujeito passou pela castração significa ao menos três acontecimentos: primeiro, que houve a constatação da falta no Outro, o que Freud chamou de Behjahum ou ! ª Afirmação; segundo, que dessa operação sobrou um resto, denominado por Lacan de objeto a, um objeto que fora para sempre perdido, razão pela qual ele se constituirá como o objeto causador do seu desejo e será responsável por impulsioná-lo na vida, numa busca cujo fim coincide com a própria morte; e terceiro, que essa perda terá .l 33 A MORTE PODE ESPERAR? um valor de sacrifício e será sempre acompanhada da angústia, afeto que se tomará, por excelência, o afeto da castração. Por isso, sempre que o sujeito se deparar com o real, isto é, com situações em que a castração seja reproduzida, ele será convocado a se posicionar eticamente em relação ao seu desejo e ao seu gozo. Vale ressaltar que esse objeto a, objeto imaterial, mas de consistência lógica, é o mesmo objeto no desejo e no gozo. No primeiro, ele se apresenta como falta, sendo por isso o objeto causa de desejo; no segundo, enquanto objeto de gozo, e le é mais-de- gozar e se apresenta como excesso. O real é um conceito lacaniano que não corresponde à realidade material, mas à falta de um significante na linguagem, o que impossibilita o sujeito de dizer tudo, e por isso se enquadra na categoria da lógica aristotélica do impossível. O real, esse impossível da linguagem que designa a falta no Outro, é outra forma de denominar a castração ( os conceitos de sintoma e fantasia serão novamente abordados nos capítulos: Sintoma e fantasia fundamental e Na clínica do suicídio a resposta do analista é orientada por que ética?). Dessa maneira, frente ao real , ou seja, à falta de um significante na linguagem - o que também pode ser dito como a falta de um significante no Outro ou, simplesmente, a falta no Outro - , o sujeito pode responder com o sintoma, a fantasia, a depressão, o ato. Afirmar que a depressão é uma resposta do sujeito ao real, isto é, à falta no Outro, não esclarece o teor dessa resposta. O deprimido é aquele que não consente a falta no Outro, preferindo adotar como resposta a posição de ceder do desejo, utilizando, para 34 PARTE 1 - DEPRESSÃO isso, o mecanismo denominado de evitação da castração. Evitar a castração é esquivar-se das situações nas quais ele tenha que se posicionar eticamente diante da falta, e, consequentemente, do objeto que causa seu desejo e que mantém seu gozo. Na teoria psicanalítica, o sintoma já adquiriu diversas definições tanto com Freud quanto com Lacan. Para Freud, ele foi uma formação de compromisso, o retorno do recalcado, uma forma substituta de a pulsão se satisfazer; para Lacan, foi uma mensagem cifrada, o modo como cada um goza do seu inconsciente, o que faz suplência à impossibilidade da relação sexual, entre outros. No final do seu ensino, a partir da introdução da topologia, e mais precisamente dos nós borromeanos, Lacan passou a considerar o sintoma como uma resposta ao real, isto é, como um recurso capaz de fazer suplência à falta do significante na linguagem, atribuindo a ele uma função primordial na efetuação da estrutura do falasser. O sintoma, a despeito das limitações que impõe ao sujeito, não o impede de continuar seguindo na vida em busca do seu objeto de desejo, ainda que para isso o sujeito eleja estratégias que reduzam seu desejo à insatisfação ou à impossibilidade, mas segue desejando e gozando com seu s intoma. Na inibição, por sua vez, o eu adota medidas restritivas a seu funcionamento, possibilitando ao sujeito inibido driblar a castração. A inibição identificada à depressão é aquela que vem acompanhada da angústia. Sendo a angústia o afeto da castração, quando um sujeito adota a inibição como defesa, em última instância, é da castração que ele está se protegendo. A inibição permite ao sujeito evitar o confronto com a castração e, através de I uma estratégia antecipada, ele consegue se proteger do encontro 35 A MORTE PODE ESPERAR? com o real, enquanto no sintoma se pressupõe que o sujeito não somente se deparou com a castração como teve que se virar com ela. Desse modo, o sintoma seria uma forma substituta de a pulsão se satisfazer e a inibição uma estratégia para não ter que lidar com as exigências da pulsão, como diria Freud, ou com a impossibilidade do real, como diria Lacan. Então, ao inibir funções do eu, como andar, falar e comer, o sujeito se ocupa com esses impedimentos e não tem que se dar ao trabalho de enfrentar a angústia da castração. Entretanto, segundo Freud22, uma função do eu sofrerá restrições inibitórias somente se os órgãos envolvidos em tal função estiverem acentuadamente erotizados. Além disso, a inibição também não pode ser confundida com um sintoma no sentido analítico, porque, diferentemente dele, o processo da inibição ocorre dentro do eu. Quanto ao sujeito neurótico, qualquer que seja a solução escolhida, sintoma ou depressão, será sempre um meio de obtenção de gozo, isto é, um modo de satisfação com o seu sofrimento. Todavia, ao passo que no sintoma o sujeito sustenta seu desejo, na depressão ele cede do desejo, refugiando-se num gozo mórbido, apático e inibitório, próprio da pulsão de morte. Assim, tristeza, depressão, luto e melancolia, ainda que guardem alguma semelhança entre si, são conceitos distintos. De maneira geral, a tristeza pode ser entendida como um sentimento humano, um afeto normal que expressa desânimo ou frustração, e, por isso, não deve ser tratada como doença. O luto, por sua vez, é uma reação frente à perda de um ente querido e se constitui num processo normal de elaboração dessa perda, em que o afeto da tristeza está presente. A depressão, por seu turno, 22 1d. lbicl., p. 1 1 o. 36 PARTE I - DEPRESSÃO seria um estado em que a tristeza está associada à dor e à perda de capacidade, podendo, por isso, adquirir um aspecto de doença. A melancolia, também definida comoreação à perda de um objeto, se assemelha a um processo de luto, mas um luto gravemente adoecido. Propomos pensar que a tristeza está para a depressão assim como o luto está para a melancolia, e isso quer dizer que, se a melancolia se dá quando o luto ganha um cunho patológico, a depressão se dá quando a tristeza, ao se associar à dor, torna-se doentia. Isso não quer dizer que a depressão tenha sido elevada à categoria de uma doença no sentido nosológico, mas, antes, que se trata de um estado de grande sofrimento psíquico. A depressão em Lacan Nos escritos de Lacan, são raros os momentos em que ele menciona a depressão nos termos em que ela é concebida atualmente. A princípio, ele se referia a ela como dor de existir, expressão que tomou emprestado do Budismo. No ensino lacaniano, a dor de existir diz respeito à dor do desamparo da linguagem ao qual todos os falantes estão submetidos; ela é o preço pago pelo sujeito para se tornar um ser de linguagem. A dor de existir, portanto, é uma condição humana, não sendo exclusiva aos deprimidos, mas a todofalasser. O ser humano é determinado pela linguagem, razão pela qual, para existir, o falasser está condenado a alienar-se a ela. Como um ser de linguagem, entende-se ter sido constituído e afetado por ela. A isso Lacan acrescentou seu axioma: "o inconsciente é estruturado como uma linguagem", o que significa que ele é regido pelas mesmas leis: metáfora e metonímia, que correspondem à condensação e ao deslocamento respectivamente. 37 A MORTE PODE ESPERAR? É justamente por ter a estrutura de linguagem que o sujeito sofre seus efeitos23 • Ao nascer, o sujeito experimenta o desamparo da linguagem, desamparo que é estrutural e que o lança no campo do Outro, do qual depende sua sobrevivência. Desse lugar, o Outro deverá "ampará-lo" com seu desejo e seus significantes. Mas, para que isso ocorra, é necessário que o sujeito ocupe um lugar privilegiado no seu desejo. Ser fisgado pelo desejo do Outro lhe garante um lugar, que se denomina lugar no Outro. Ao desejar, o Outro mostra sua falta, falta que o sujeito acredita ser capaz de preencher, para finalmente tornar-se objeto do seu desejo. Todavia, o desejo do Outro se constitui num enigma para o sujeito, diante do qual ele responde com a fantasia. Dessa forma, ter um lugar no Outro, ao mesmo tempo em que protege o sujeito da angústia de castração, confronta-o com ela. Ou seja, o desejo do Outro lhe garante um lugar onde possa suportar a angústia de castração que ele mesmo produz. Nos casos em que o Outro não está lá para cumprir sua função - ou mesmo quando ele está, mas não coloca em jogo sua falta - o sujeito não contará com a "proteção" dos seus significantes nem com um lugar no seu desejo. Nessas condições, o desamparo da linguagem será experimentado de forma mais contundente, deixando o sujeito à mercê da própria sorte. Mais tarde, em situações nas quais esse desamparo inicial seja reeditado, muito provavelmente ele irá "reviver" esse sofrimento anterior, e a dor de existir se transformará numa dor perfurante e persistente, como ''LI\CAN, J. Subversão do sujeito e a dialética do desejo [1957]. ln: Escritos. Rio de Junl.liro: Jorge Zahar Editor, 1998, p. 813. 38 PARTE I - DEPRESSÃO é possível constatar nos casos de melancolia e em alguns casos graves de depressão. Na neurose, a dor de existir pode se manifestar sob o título de uma depressão, e, na clínica, se apresentar por meio de um discurso queixoso, em que o sujeito atribui ao Outro a causa do seu sofrimento e da sua tristeza. Isso não ocorre na melancolia, em que o sujeito imputa a si mesmo a responsabilidade de todos os infortúnios que o destino lhe reservar. Além disso, Lacan identificou a presença da "dor de existir em estado puro" nos rnelancólicos24, dor que, segundo ele, não é idêntica à dor vivida como tristeza na neurose. Na melancolia, a dor de existir se transforma em uma existência de dor, alimentada por um culto à pulsão de morte e manifestada por um gozo que muito frequentemente precipita o melancólico num ato suicida. No seu Seminário sobre as psicoses, a propósito da noção de compreensão como o pivô da psicopatologia geral de Jaspers, Lacan criticou o que teria se tornado a finalidade da investigação psiquiátrica: restituir o sentido na cadeia dos fenômenos, o que, para ele, não seria falso. O falso seria conceber que o sentido é aquele que se compreende. Nessa linha, a compreensão seria dada pela evidência, mas nem tudo que é evidente num fenômeno pode servir para explicá-lo. Conforme Lacan25, [ ... ] Isso consiste cm pensar que há coisas que são evidentes, que, por exemplo, quando alguém está triste é porque não tem tudo o que o seu coração deseja. Nada mais falso - há pessoas que têm tudo o que os seus corações desejam e que 24LACAN, J. Kant com Sade [1963]. ln: Op. cit., 1998, p. 788. 25LACAN, J. Seminário livro 3: As psicoses [1955-1956]. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1981, p. 14. 39 A MORTE PODE ESPERAR? ainda assim são tristes. A tristeza é uma paixão de natureza inteiramente outra. Portanto, dizer que a tristeza não é propriamente o afeto experimentado por aquele cujo desejo não realizou é o mesmo que afirmar que a tristeza não é o afeto relacionado ao desejo, muito menos à sua frustração. Se um sujeito deseja, é mesmo porque ele passou pela castração, e o afeto da castração, como já foi mencionado, não é a tristeza, mas a angústia - esta é o sinal da aproximação de um perigo, o perigo da castração. Por essa linha, Colette Soler26 pergunta se o que deprime é o intolerável da castração. Sendo a castração o nome que se dá à perda inerente à entrada na linguagem, certamente ela está implicada na depressão, mas como condição, não como causa do afeto depressivo. Portanto, a castração não é o que deprime um sujeito; ao contrário, ela o lança na vida, numa busca incessante do objeto do seu desejo. Se a causa do desejo depende da eficácia da castração, o que Lacan nomeou de "potência de pura perda", ela é responsável pelo entusiasmo e pelas conquistas daquele que já teria sido "morto" pelo significante. De tal modo que o horror imposto pela verdade da castração não deprime, mas, ao contrário, desperta. Lacan aborda a tristeza depressiva em Televisão, como uma paixão e não como um estado da alma. Ele diz27: A tristeza, por exemplo, é qualificada de depressão, ao lhe dar por suporte a alma, ou então a tensão psicológica do filósofo Pierre Janet. Mas este não é um estado da alma, é simplesmente l<•SOLER, C. Um mais de melancolia. ln: Extravios do desejo: depressão e melancolia. Rio de .Janeiro : Marca d 'Agua, 1999, p. 105. 17 1./\( 'AN, J. Televisão [ 1974]. ln: Outros Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 2003, p. 5?.4. 40 PARTE ! - DEPRESSÃO uma falta moral, como se exprimiram Dante, ou até Spinoza: um pecado, o que significa covardia moral, que só é situado, em última instância a partir do pensamento, isto é, do dever de bem dizer, ou de se referenciar no inconsciente, na estrutura. Nessa passagem, Lacan propõe que a tristeza seja examinada a partir de dois registros: da ética ( e não na sua dimensão afetiva) e do saber. Ética e saber, portanto. Lacan considera a tristeza depressiva um pecado, uma covardia moral, justamente porque o sujeito deprimido se demite do seu dever ético de bem dizer seu desejo e seu gozo, isto é, de orientar-se no inconsciente, posto que ele nada quer saber sobre aquilo que o determina. Curiosamente, em 1892, ao analisar o mecanismo da histeria, Freud fez uma referência à covardia moral, termo uti lizado por Lacan para aludir à tristeza na depressão28 : Assim, o mecanismo que produz a histeria, representa, por um lado, um ato de covardia moral e, por outro, uma medida defensiva que se acha à disposição do ego. Com bastante frequência temos queadmitir que desviar excitações crescentes, provocando a histeria é, nessas circunstâncias, a coisa mais apropriada a fazer; com maior frequência, naturalmente, temos que concluir que uma dose maior de coragem moral teria sido vantajosa para a pessoa em causa. Identificar o recalque, mecanismo de defesa dos histéricos, a uma covardia moral, não significa que histeria e depressão sejam a mesma coisa, ou até que os histéricos sofram da mesma covardia moral que os deprimidos. O que Freud denominou de covardia moral na histeria se referia à submissão da sua sexualidade à moral da sociedade vienense da época. Para não ter que confrontar " FREUD, S. Estudos sobre histeria. II. Casos clínicos: Caso 3, Miss Lucy R. [l 892]. ln: Op. cit., p. 170-1. 41 A MORTE PODE ESPERAR? seus desejos sexuais "imorais" com a moral vigente, a histérica se acovardava, sucumbindo ao recalque dos seus desejos e assim produzindo seus sintomas, sua doença. A covardia moral que Lacan atribui ao deprimido não se refere à moralidade, mas à covardia de ceder do desejo, não pelo aspecto da moral e dos bons costumes, mas para não ter que enfrentar a castração. O deprimido, segundo Soler, é aquele que experimenta o par "dor-tristeza" além de uma diminuição de interesse ou de capacidade 29 • Entretanto, a tristeza não é a causa, mas um efeito. E, por mais variadas que sejam as formas que os estados depressivos se apresentem, eles têm em comum a suspensão da causa do desejo. Posto que o desejo é uma defesa contra o gozo, pode-se dizer que quanto mais o desejo está suspenso, maior será a presença do gozo; a autora conclui que "o estado depressivo é um modo de gozo", mas isso só pode ser operacionalizado se forem consideradas as particularidades de cada caso. O diagnóstico Na clínica psicanalítica, o diagnóstico é feito através do discurso do analisante, baseado nos fenômenos de linguagem que se apresentam nos seus ditos e no dizer. A semelhança entre os fenômenos depressivos na melancolia e na depressão pode gerar confusão no estabelecimento do diagnóstico, se este for baseado em evidências fenomenológicas. Nesses casos, corre-se o risco de reunir melancolia e depressão- isto é, uma categoria nosológica e um estado afetivo, num mesmo grupo psicopatológico - , podendo provocar consequências importantes na direção do tratamento. 29S0LER, C. ln: Op. cit., 1999, p. 103. 42 PARTE I - DEPRESSÃO Além disso, se o diagnóstico de depressão for determinado através de e lementos como a insatisfação, a impotência, a inapetência ou a inércia, traços característicos do neurótico, acarretará um vertiginoso aumento da incidência de deprimidos na atualidade. Outro perigo nessa clínica é tomar a depressão como uma doença ou um sintoma, e com isso desresponsabilizar o sujeito quanto às suas escolhas e respostas frente ao real, negligenciando sua estrutura psíquica, seu desejo e seu gozo. Ao concordar que a depressão é um afeto, uma inibição, uma resposta do sujeito, ela deverá ser compreendida a partir de uma estrutura psíquica. E isso quer dizer que, ao se aceitar um deprimido em análise, ele deve ser a princípio acolhido, mas também escutado para além da sua queixa depressiva, não devendo ser reduzido a ela, visto que sua depressão se constitui em um dos recursos para lidar com sua condição de falta-a-ser, ou melhor, defalasser. Depressão e psiquiatria Em linhas gerais, a psiquiatria inclui a depressão no rol das doenças biológicas com etiologia preponderantemente hereditária e cujo principal tratamento é o medicamentoso, podendo, em alguns casos, associá-lo a uma psicoterapia cognitiva, por ser muitas vezes considerada pelos médicos a única psicoterapia capaz de contribuir no tratamento da depressão. Ao entender a depressão como uma doença biológica, a psiquiatria retira do sujeito a responsabilidade pelo seu adoecimento, atribuindo-o a fatores neurobiológicos. Por outro lado, quando se associa a depressão a fatores psicossociais, suas causas são imputadas a acontecimentos externos traumáticos e estressantes, determinados pelo ambiente e não pelo sujeito. 43 A MORTE PODE ESPERAR? O presente trabalho não tem a finalidade de fazer um estudo histórico da depressão no âmbito da medicina, mas apreendê- la a partir da atualidade, estabelecendo um contraste com a psicanálise. Segundo os principais manuais psiquiátricos adotados na comunidade científica mundial, a depressão está incluída no DSM-IV, l 995 (Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais) no item Transtornos do Humor ou no CID-1 O, 1996-1997 (Código Internacional das Doenças), corno Transtornos Afetivos. Os quadros são subdivididos em Transtornos Depressivos, Transtornos Bipolares e Outros Transtornos do Humor. O diagnóstico é determinado pela presença de determinados sintomas em função de sua duração, frequência e intensidade. Como principais sintomas, estão relacionados: humor deprimido ( ou maníaco), alterações no sono, alterações no apetite, agitação ou retardo psicomotor, fadiga, culpa excessiva, pensamentos de morte, ideação suicida, tentativa de suicídio, entre outros. Observa-se que, nas últimas publicações desses manuais, os Distúrbios Afetivos ganharam várias subdivisões: no DSM- 1V30 são 29 subtipos para os Transtornos do Humor, enquanto no CID-10 31 são 36 para os Transtornos Afetivos. Vale salientar que nessas subdivisões estão agrupados tanto quadros psicóticos quanto neuróticos, em razão de uma única interseção entre eles, a alteração do humor. A psiquiatria biológica a:firma32, por um lado, que a razão da tristeza é um drificit neuroquímico ou, por outro, um efeito 'ºAssociação Psiquiátrica Americana (APA). Manual Diagnóstico e Estatístico de 7}anstomos Menlais [2000] 4. ed. Revista. (DSM-IV-TR). Porto Alegre: Artmed, 2002 11 Classificação Eslatística !n1ernacio11a/ de Doenças e Problemas Relacionados à Saúde. 1 O. Revisão (CTD-10). São Paulo: Edusp [J 992), 2000. •?u ERBASE, J. Depressão não é sintoma, mas afeto. Inédito. •l<l PARTE 1- DEPRESSÃO do estresse. Assim, ao aceitar a hipótese de que a dopamina é a substância da alegria, se deduziu que a tristeza seria um déficit de dopamina. Quanto ao estresse, desde que foi compreendido como efeito de uma modificação da homeostase, a tristeza se tomou, por dedução, um estressor. Na opinião de Gerbase, o delicado é que não se considere essas hipóteses como conotativas e que se queira introduzi-las na psicologia sem a necessária redução, o que é exigível ao se tomar emprestado um conceito da física. A psiquiatria, diferentemente da psicanálise, agrupa os sujeitos deprimidos numa categoria única, a dos Transtornos Afetivos ou de Humor, independentemente da sua "patologia de base" ou mesmo de possuírem alguma patologia. Nessa perspectiva, a psiquiatria considera doente o sujeito acometido por alterações no humor, manifestadas num determinado período. Segundo o DSM-V, um sujeito que, após a morte de um ente querido, continue apresentando o humor triste num período superior a três semanas, já pode ser considerado portador de um transtorno. Em outras palavras, o luto, um trabalho absolutamente natural e necessário para a elaboração da perda de alguém essencial, deve ser suprimido num período de duas semanas, pois, caso ultrapasse esse tempo, o sujeito receberá o diagnóstico de um transtorno mental, podendo, inclusive, ser submetido à terapêutica medicamentosa. Restam as questões - por que não se pode mais chorar pelos mortos além de duas semanas? Por que não há mais lugar para a tristeza? A serviço de quem está a recomendação de medicar o luto se ele ultrapassar o tempo previsto, do médico, do paciente ou das indústrias farmacêuticas? 45 A MORTE PODE ESPERAR? Para a psicanálise, os estados depressivos são respostas do sujeito, e não, como entende a psiquiatria, urnadoença produzida pelo organismo. A posição ética do deprimido, em ceder do desejo e nada querer saber sobre isso, não faz dele um doente, mas um sujeito de uma escolha e que, portanto, deve responsabilizar-se pelo seu sofrimento. Ao propor a medicalização do mal-estar e da dor de existir, a medicina tem a pretensão de eliminá-los, enquanto a psicanálise, ao convidar o sujeito a falar, faz vigorar a falta, acenando para o desejo. Se, para Lacan, "o melhor remédio para a angústia é o desejo"33, e sendo a psicanálise orientada pela ética do desejo, ao falar, o sujeito não somente é "obrigado" a traduzir para significantes esse afeto real que é angústia como se empenha na busca do objeto que causa seu desejo. Dessa maneira, se na depressão o sujeito se extravia do desejo sem querer saber sobre sua determinação inconsciente ou sobre sua submissão ao significante, e considerando que a psicanálise se orienta pela ética do bem dizer, ela pode produzir um efeito antidepressivo, uma vez que convoca o sujeito a sair da inércia de um gozo mortífero para se entregar a uma aventura do desejo, ou melhor, de bem dizer seu desejo. Esse assunto será tratado nos capítulos sobre a clínica. 33 LACAN, J. Seminário livro 8: A transferência (1960-1961). Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1992, p. 357. 46 Capítulo 2 - Depressão não é sintoma A partir da constatação clínica da existência de neuroses nas quais se observava a presença de inibições, mas não de sintomas, Freud (1925), no artigo Inibição, sintoma e angústia34, defendeu a tese de que depressão não é sintoma, mas inibição. Segundo ele, inibição diz respeito à restrição de uma função do eu, enquanto sintoma se refere a uma modificação de uma função, descrita como uma formação sintomática. Lacan35, no Seminário da angústia, a ludindo a esse texto de Freud, acrescentou que, na inibição, trata-se de um impedimento - não da locomoção ou da função, mas um impedimento do sujeito. Por sua própria etimologia, impedicare significa ser apanhado na armadilha. O sujeito inibido é aquele que foi apanhado na armadilha narcísica, e, como consequência, experimenta toda uma sorte de impedimentos, embaraços e perturbações. Nesse Seminário, ele argumenta que a angústia é um afeto36 e não um 'FRF.UD, S. Inibição, sintoma e angústia [1925]. ln: Op. cit., p. 107. ' I .ACAN, J. Seminário livro 10: A angústia [1962-1963]. Rio de Janeiro: Zahar Editor, 'OOS, p. 19. lei. lbid., p. 28. 47 ,. \ A MORTE PODE ESPERAR? sentimento, mas, também, que ela é um sinal: "A angústia, de todos os sinais é aquele que não engana"37, posto que ela é sinal do real. Seu surgimento está atrelado ao desejo, mais precisamente ao enigma que representa o desejo do Outro para o sujeito. Tendo em vista a relação essencial que a angústia estabelece com o desejo do Outro, isto é, com a falta no Outro, Lacan deduziu que a angústia é quando a falta falta. Ora, se concordamos que nas depressões o desejo se encontra suspenso, paralisado, e se a angústia mantém com o desejo uma estreita relação, não é possível reduzir a depressão à angústia. Desse modo, se para Freud depressão não é sintoma, mas inibição, e, se para Lacan depressão não é sintoma nem angústia, para Gerbase "depressão não é sintoma, mas afeto"38. Gerbase esclarece a tese freudiana a partir de atualizações propostas por Lacan. Por funções do eu, entendem-se as atividades de andar, tocar, escrever, comer etc., que podem ser simplesmente funções objetivas. Entretanto, quando essas funções sofrem inibição, isso significa que a elas foi atribuída uma função subjetiva. A inibição seria a restrição de uma função subjetiva que estava vinculada a urna função objetiva. Essa vinculação ocorre somente se o órgão responsável por tal função estiver sob erotização. Por isso uma inibição tem finalidades bem específicas. Para atualizar a tese freudiana nos termos lacanianos, recorremos a Gerbase39 : Se, por exemplo, tocar, escrever, andar, comer são funções objetivas, quando estão inibidas é porque adquir iram uma significação fálica. A significação fálica é o que no dicionário 171d. Ibid., p. 178. "GERBASE, J. Depressão não é sintoma, mas afeto. Op. cit. 1 ' 11d. Jbid. 48 PARTE 1- DEPRESSÃO se chama de significação metafórica, conotativa, em oposição à significação, literal, denotativa. Assim uma função objetiva pode, por alteração de sua finalidade se tornar uma função fálica, uma função de satisfação subjetiva. De modo que se uma função objetiva assume um sentido substitutivo, com uma conotação proibida, esta função objetiva pode ser inibida na medida em que ela representa um ato interditado, quer dizer, uma proibição de uma satisfação subjetiva. Dessa maneira, Gerbase conclui que "o sujeito restringe a função para não ter que adotar outra medida de defesa, tal como o recalque,[ ... ] evitando assim um conflito com seus impulsos", c a formação sintomática. O ponto de vista apresentado por Freud acerca do mecanismo da formação dós sintomas na neurose, presente nos seus primeiros escritos sobre as psiconeuroses de defesa40, baseava-se na ideia de que um representante psíquico (RP) era constituído de ideia (l) mais afeto (A), em que RP = I + A e apenas a ideia ( o significante) poderia ser recalcada, enquanto o afeto (a angústia) livre sofreria o deslocamento, ficando à mercê de vicissitudes específicas: na histeria, e le tomaria o destino do corpo, formando o sintoma de conversão; na neurose obsessiva, ele se ligaria a outras ideias, transformando-as em pensamentos e rituais obsessivos; enquanto na fobia, o afeto se uniria a um objeto, convertendo-o em um objeto fobígeno, constituindo os sintomas fóbicos. Para Freud41 : [ .. . ] Na histeria a ideia incompatível é tornada inócua pela soma de excitação em alguma coisa somática. Para isso eu gostaria de propor o nome conversão. [ ... ] ela opera ao "'FREUD, S. As neuropsicoses de defesa. [1894]. ln: Op. cit., 1976, v. ur, p. 61. " ld. lbid., p. 61. 49 A MORTE PODE ESPERAR? longo da inervação motora ou sensória que é relacionada ... à experiência traumática[ ... ]. Nesse mesmo artigo, ao se referir àqueles sujeitos que, embora tenham uma "disposição" para neurose, não têm a "aptidão" para a conversão, a saber, os neuróticos obsessivos, ele acrescenta42 : [ ... ] a fim de rechaçar uma ideia incompatível, ele se dispõe a separá-la do afeto dela, então tal afeto fica obrigado a permanecer na esfera psíquica. A ideia, agora enfraquecida, é ainda deixada na consciência, separada de toda associação. Mas seu afeto, tornado livre, liga- se a outras ideias que não lhe sejam incompatíveis; e, graças a essa 'falsa conexão', tais ideias desenvolvem-se como obsessivas. Esse afeto, ao qual Freud se referia em seus primeiros escritos sobre a etiologia das neuroses, é a angústia, o mesmo que mais tarde ele atribuirá à castração. Por não poder ser submetida ao recalque, como os pensamentos, a angústia pode deslocar-se metonimicamente até atingir seu exílio no corpo ou no pensamento, lugar em que desfrutará alguma "paz", uma vez que as ideias responsáveis pela angústia estão mantidas no inconsciente, sob a custódia do recalque. Para compreender a asserção de Gerbase, segundo a qual "depressão não é sintoma, mas afeto"43, faz-se necessário retomar a noção de afeto em psicanálise, considerando suas especificidades, principalmente no ensino lacaniano. Apesar de ter sido acusado de não atribuir a devida relevância ao afeto, Lacan reservou todo um 421d. Tbid., p. 64. 43GERBASE, J. Op. cit. 50 PARTE I - DEPRESSÃO Seminário ao estudo daquele que ele considerou o mais importante deles, a angústia. A hipótese lacaniana e que a angústia é um afeto e não uma emoção baseia-se no pressuposto de que o afeto é da ordem de uma perturbação e não de um sentimento e, por isso, ele mantém uma "estreitarelação de estrutura com o que é um sujeito. "44 Quando Lacan atribui à depressão a categoria de um afeto, não é para afirmar que o afeto da depressão é a angústia, embora ela esteja presente nos fenômenos depressivos. O afeto da depressão é a tristeza. Se a tristeza é um afeto, ela é um sentimento, e como todos os outros, ela mente, senti (ment), o quer dizer que os sentimentos, os afetos, camuflam sua causa, como afirmou Lacan no Seminário da Angústia. O único afeto que não engana é a angústia, posto que ela é real45• Por essa razão, quando Lacan considerou a depressão um afeto, foi justamente porque afeto não é um estado de humor nem uma emoção, e concerne ao corpo, não à alma. Sendo o afeto sujeito ao deslocamento, isto é, à metonímia, pode-se concluir que a tristeza depressiva está sujeita a tais efeitos. Por essa perspectiva, Lacan irá afirmar que, na depressão, a tristeza não é a causa, mas um efeito46 . Enquanto a psiquiatria biológica atribui ao estresse ou a um déficit neuroquímico a causa da tristeza, Lacan se inspirou nos clássicos, preferindo compreendê-la corno pecado ou covardia moral. São Tomás de Aquino, um dos grandes pensadores da Igreja Católica, transformou a doença que os antigos gregos 44 LACAN, J. Seminário livro 10. Op. cit. p. 23. 45 1d. Ibid., p. 88. 46 GERBASE, J. Op. cit. 51 A MORTE PODE ESPERAR? denominavam tristeza em pecado, incluindo-a na lista dos pecados capitais - gula, avareza, luxúria, ira, inveja, preguiça e orgulho. Foi nele que Lacan se inspirou para identificar a tristeza depressiva a um pecado - não no sentido da moral, mas no sentido de ceder do desejo e do dever ético de bem dizê-lo. Dante, por sua vez, acrescentou que os homens tristes se encontram no inferno, submersos em seu sofrimento, de onde obtêm satisfação. E a tristeza seria um tipo de punição que as pessoas que não se interrogavam sobre o pecado infligiam a si mesmas, deixando-se levar pelo sentimento de culpa47• A relação entre a tristeza depress iva e a ética do bem dizer, apresentada por Lacan em Televisão, foi inspirada na ética de Spinoza48, que visava determinar a lógica da afetividade. Este supunha a natureza como uma rede de conexões causais, em que a inteligibilidade deveria ser alcançada pelo pensamento. Segundo ele, as paixões con-espondem aos afetos dos quais não somos a causa adequada, pois são ideias que nos chegam de causas exteriores e se revelam confusas. Desse modo, ele reconhecia no afeto da tristeza uma ausência de tensão lógica do pensamento, contrariando os princípios da sua ética. Para combater o vazio do tédio decorrente da tristeza, resta o dever ético do bem dizer. O depressivo pretende sofrer de um estado de alma, quando na verdade comete uma falta do pensamento: ele se recusa a zelar pela tensão necessária à sua vontade para situar logicamente a causa que o determina na estrutura 49• 47TEfXEfRA, Antônio M. R. Depressão ou lassidão do pensamento? Reflexões sobre o Spinoza de Lacan. Psicologia Clinica, v. 20, nº. 1, Rio de Janeiro, 2008. 4Hfc[. lbid. '"lcl. lbid. 52 PARTE I - DEPRESSÃO O sintoma, definido como o retorno do recalcado ou o substituto de uma satisfação pulsional, como pensou Freud, em Lacan, em um percurso da metáfora à letra, foi definido como "a maneira como cada um goza de seu inconsciente"5º, ou "o que faz existir a relação sexual"51 , e, finalmente, o produto dos significantes de alíngua52 • Esses conceitos serão melhor explorados no capítulo seguinte. Qualquer que seja a definição psicanalítica do sintoma, nenhuma se aproxima da conceituação de depressão, visto que esta última não apresenta sua estrutura, sua consistência, nem sua função. Todavia, o fato de ambas se constituírem em formas de sofrimento e, portanto, meios de gozo, pode gerar alguma confusão. A depressão também não é a angústia, o afeto real produzido pela castração. Sua presença representa um sinal de perigo, isto é, um sinal da aproximação do desejo do Outro, enquanto a tristeza depressiva é um sentimento. Embora a angústia seja um afeto habitualmente presente nas depressões, ela não deve ser confundida com a tristeza, que engana sobre sua causa. Nesse sentido , pode-se concluir que a depressão não é um déficit na química cerebral, muito menos um sintoma ou angústia. Para a psicanálise, a depressão é um afeto sujeito ao deslocamento e capaz de produzir sofrimento no sujeito, sofrimento além de uma série de impedimentos. 5ºLACAN, J. Seminário livro 22: RS!, 1975. lné<lito. 51Jd. Seminário livro 23: O sinthoma [l 975-1976]. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2007, p. 98. 52S0LER, C. Corpo fa lante. Caderno de Stylus, EPFCL, 201 O, p. 23. 53 A MORTE PODE ESPERAR? Para concluir, segundo Soler53, a depressão, na clínica, ao se apresentar como tristeza depressiva, embora possa se mostrar como queixa, e em alguns casos até motivar uma demanda, não deve ser compreendida como um sintoma, nem mesmo como angústia, mas, sobretudo, como um estado compatível com qualquer estrutura clínica. 53S0LER, C. ln: Op. c it., 1999, p. 104. 54 Capítulo 3 -A relação sexual não existe, e eu com isso? Desde Freud, sabe-se que a especificidade da realidade sexual para o ser falante gira em torno da impossibilidade, pois, no que diz respeito à pulsão, jamais alcançará a satisfação completa. Para ele, o sintoma faz relação com o sexual, urna vez que o sintoma pode ser definido como um modo substituto de satisfação pulsional. Lacan defende a ideia de que o sexual no ser falante não faz relação, mas, tal como Freud, ele acredita que o sintoma faz relação com o sexual, ou melhor, que o sintoma faz suplência à relação sexual impossível. Lacan54 divide os seres sexuadas de forma que sua pertença sexual não dependa de sua anatomia nem de sua escolha objetal, mas, exclusivamente, das modalidades do seu gozo. Ao introduzir as fórmulas da sexuação, ele distribuiu os sujeitos em duas maneiras de inscrição na função fálica: o sujeito identificado do lado masculino, aquele que se encontra inteiramente submetido s•LACAN, J. Seminário livro 20.· Mais, ainda (1972-1973]. Rio de Janeiro: Zahar Editor, 1985, p. l5. 55 A MORTE PODE ESPERAR? à função fálica, é todo fálico e desfruta do gozo fálico; do lado feminino, encontram-se os sujeitos que não estão todos submetidos à função fálica e, por isso, assumem uma posição não-toda fálica no que diz respeito ao gozo fálico, dispondo do Outro gozo, um gozo a mais, suplementar, no corpo e para além do falo. Da posição dita masculina, existem duas condições necessárias para o sujeito gozar: a primeira é que ele tem que estar submetido à castração e a segunda, que da castração a lgo tenha escapado. Sem a castração não se goza, posto que, ao interditar o gozo, ela institui a falta e o desejo. O que escapou à castração é o objeto a, justamente o que permitirá ao sujeito gozar do corpo da mulher, através da fantasia. De modo que, quando um homem aborda uma mulher, ele está, em última instância, abordando o objeto a, ou seja, a causa de seu desejo. Nesse sentido, pode-se deduzir que o sujeito masculino só tem como parceiro o objeto a, como mostra a fónnula da fantasia (S O a). Fórmulas da sexuação55 3: ,e <f) ,e TI c!JX V X (f> X VX <l>X J! .M <f> O falasser é aquele que sacrificou parte do seu gozo para falar. Mas existe ao menos um que ficou fora dessa inserção: a 11 id. lbid., p. 105. 56 PARTE I - DEPRESSÃO mulher, que, atendendo à fantasia de um homem, pode nela alojar- se como objeto. Dessa maneira, é possível afirmar que o homem goza do objeto, enquanto a mulher goza como objeto, mas não unicamente. No que tange ao gozo feminino, o sujeito pode gozar pela via fálica como histérica (<l>), ou no lugar de objeto de desejo na fantasia de um homem (a), ou no que falta no Outro, S(A), isto é, no Outro gozo, umgozo no corpo, suplementar e fora do significante. Dessa dissimetria entre os gozos masculino e feminino se produz o impasse entre os sexos. O gozo da mulher56 é construído dentro do discurso amoroso e do seu parceiro ela espera que lhe sejam endereçadas palavras de amor; o gozo do homem, por sua vez, implica uma silenciosa abordagem do objeto de sua fantasia. As palavras de amor que as mulheres tanto solicitam podem servir de anteparo simbólico para um gozo sem suporte significante, mas também possibilitam a uma mulher suportar-se na posição de objeto de desejo na fantasia de um homem, justamente porque o amor funciona como uma espécie de proteção para os infortúnios próprios desse lugar, o que propomos escrever: ($0~) . O amor que lhe sustentava na condição de objeto de desejo, ao ser perdido, faz com que ela se experimente na outra face desse mesmo objeto, ou seja, como objeto de gozo. Assim, sem o amor, resta-lhe ser reduzida a objeto de gozo, gozo numa dimensão de resto, de dejeto. Identificada unicamente a objeto de gozo e não mais de causa de desejo para um homem, o sujeito feminino pode 56Jd. ]bid., p . 109. 57 A MORTE PODE ESPERAR? precipitar-se em atos, não raro, em atos suicidas, caracterizados, por vezes, como actings, noutras como passagens ao ato ( esse assunto será tratado no capítulo Suicídio, um ato). Trata-se de tolerar, resistir a servir-se como objeto dor de sustentação nesta condição. A relação sexual não existe "A relação sexual não existe", afirma Lacan em L 'Etourdit e no Seminário 20. A fórmula "não há relação sexual"57 só pode ser articulada graças ao discurso analít ico, visto que a relação sexual só tem suporte na escrita, justamente no que ela não pode se escrever. Lacan introduziu a função da escrita para expl icar seu efeito no discurso analítico. Para ele, a condição de uma escrita é que ela seja sustentada por um discurso e, no discurso analítico, a relação sexual não pode se escrever como um verdadeiro escrito, justamente porque a lógica introduzida por e la aponta para a impossibilidade de escrever um dos gozos, o gozo do Outro, só sendo possível escrever o gozo fálico. Para Lacan, [ ... ] gozar de um corpo não diz respeito à questão do que faz Um, ou seja, à questão da identificação58 ou do amor; diz respeito à questão da escrita. A relação sexual é aquilo que ' não pára de não se escrever'59• Trata-se aí, de uma impossibilidade lógica. Na relação sexual, é necessário disti nguir a maneira masculina ( toda fálica) e a feminina (não-toda fálica) de se posicionar em torno da inexistência60 da relação. A posição diante " ld . lbid., p. 49. '"Id. lbid., p. 14. '"ld. lbid., p. 127. "'GERBASE, J. Os paradígmas da psicanálise. Salvador: Associação Científica Campo Psica nalítico, 2008, p. 44. 58 PARTE [ - DEPRESSÃO do sexo não diz respeito ao gênero ou à anatomia, mas ao gozo eleito pelo falasser. " Il n 'y a pas de rapport sexuel" pode ser traduzida por "não há relação sexual", mas, também, por "não há proporção sexual". Dessa maneira, ele explicará sua fórmula sobre a impossibilidade da relação sexual, a partir de duas vertentes: pela proporção e pela equivalência, isto é, através da matemática e da topologia, respectivamente. Com a proporção matemática, utilizando a teoria dos conjuntos e com a equivalência, através dos nós borromeanos. A relação sexual não existe porque não há proporção A proporção, segundo Gerbase6 1, é uma propriedade matemática dos conj untos usada para se referir a uma relação biunívoca - a relação que associa cada elemento de um conjunto com um único elemento de outro conjunto e vice-versa. Desse modo, a impossibilidade da relação sexual é determinada pela irnpossibi !idade de estabelecer uma relação biunívoca entre o gozo fá lico, que pode ser escrito por (<1>), e o Outro gozo, o gozo não-todo fálico, que só pode ser representado pelo conjunto vazio [(cl>) = (0)]. Se não há relação biunívoca entre o significante do gozo fálico e o significante do Outro gozo, conclui-se que não há proporção sexual, ou seja, não há relação sexual entre aquele que se s itua na posição masculina e o que se situa na posição feminina. Po1tanto, não há relação entre os sexos, não há relação sexual. Enquanto na Instância da Letra o Outro era o lugar da fala, tesouro do significante, no Encore o Outro é o Outro sexo, o Outro gozo, " Jd. Deus é à Mulher: a f eminilidade em Lacan. Conexão Lacaniana, 2009. Vidco conferência. 59 A MORTE PODE ESPERAR? A Mulher. E o Outro sexo é Outro tanto para o homem quanto para a mulher, e para se ter acesso a ele, seja homem ou mulher, é necessário estar numa posição fálica. Nesse sentido, pela vertente da proporção, não há relação sexual porque não há proporção entre os gozos e, por conseguinte, não há proporção entre os significantes que possam escrever os dois gozos no inconsciente. Diante do gozo, o significante tem uma dupla função: por um lado, ele é a causa do gozo e, por outro, é o que lhe faz limite. Dessa forma, o significante torna-se responsável por determinar os modos de gozo. O gozo62 , antes afetado pela linguagem, passa a ser afetado por alfngua. Foi precisamente a definição do inconsciente como um saber sobre o corpo, corpo enquanto substância gozante, que possibilitou a Lacan considerar os efeitos de alíngua, e não mais da linguagem, como primordiais e decisivos na formação da identidade de gozo, e a definir como esses efeitos tomam o corpo63• O significante de alíngua é o significante na dimensão real, e o significante real é aquele que o sujeito escuta antes mesmo de ter assimilado seu sentido, produzindo um efeito de afeto. O significante real afeta o sujeito como uma comoção64 • A alíngua se produz à medida que o sujeito, na aquisição da língua materna, vai acumulando equívocos e mal-entendidos gerados pelos significantes que são ouvidos, mas que ainda não dispõem de sentido. Se "o inconsciente é um saber-fazer com alíngua"65, o significante de alingua faz cicatriz, marca o falasser e seu corpo ''21,ACAN, J. Seminário livro 20. Op. cit., p. 190. º'SOLER, C. Corpo falante. ln: Op. cit., 2010, p. 27. "'rniRBASE, J. Sargento Pimenta. ln: CARVALHO, Soraya (Org.). O inconsciente e o 111Htério do corpo falante. Salvador: Campo Psicanalítico de Salvador, 2009, p. 231-2. °'I ,!\('t\N, J. Seminário livro 20. Op. cit., p. 190. CiO PARTE I - DEPRESSÃO , u111 esses equívocos, que se vão fixando até formar uma identidade d~ gozo, que se constituirá em sua matriz sintomática, a partir da qunl se formarão os sintomas. Assim, a aiíngua cria o mistério do vorpo falante, ou seja, o rea1. Com() seres de linguagem, os sujeitos e seus corpos só se acoplam mediados por ela. Numa relação sexual, estão implicados ao menos dois sujeitos, dois gozos, dois significantes, dois corpos, com identioades que não são asseguradas pela anatomia, mas pelo gozo. Sendo o significante a causa do gozo, pode-se concluir que a identidade sexual é conferida pelo significante e que, na relação sexual, o que está em jogo é a relação entre significantes. Isso levou Lacan a propor que apenas os significantes copulam no inconsciente, ou seja, que "[ ... ] o homem faz amor com seu inconsciente"66. Na relação sexual, o parceiro do sujeito não é o Outro, mas quem vem substituí-lo no fom1ato da causa do seu desejo, o objeto a, que Lacan diversificou em quatro: objeto oral, objeto fezes, objeto olhar e objeto voz67 • Além disso, o Outro não é o Um nem se adiciona ao Um. O Outro é o Um-a-menos68, o que significa que ao Outro falta um significante. A relação sexual não existe porque há equivalência Por equivalência entende-se a correspondência entre proposições lógicas ou a igualdade entre grandezas. No seu Seminário 23, Lacan69 explica a relação sexual pelo viés da topologia, sob a luz dos nós borromeanos.
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