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A JUSTIÇA ADMINISTRATIVA EM MOÇAMBIQUE: EVOLUÇÃO HISTÓRICA Aspectos gerais da Justiça Administrativa Contextualização O Estado desempenha largo papel na vida dos indivíduos, zelando pelos equipamentos e serviços públicos, supervisionando determinadas actividades privadas, reprimindo outras, emitindo moeda, preservando a segurança externa e interna, etc. Para tanto, busca recursos financeiros, organiza-se administrativamente, selecciona pessoal, firma contratos e disciplina os meios e modos de utilização dos bens públicos. Por conta da amplitude dessas funções, são vastas as possibilidades de conflitos que ponham em lados opostos a face mais visível do Estado, a Administração Pública, e os indivíduos, a exemplo de desacordos contratuais, indeferimento equivocado de direitos e abuso de poder. O componente básico do Estado de Direito, ao lado do respeito aos direitos fundamentais, é a vinculação do Poder Executivo ao direito. Isso se deve à função ordenadora e conformadora incidente sobre a Administração, legitimando, disciplinando e tornando eficaz a actuação administrativa. O catálogo de direitos foi aumentando gradativamente, acompanhando o maior protagonismo e influência da Administração na dinâmica social. Mas, se de um lado há a tendência em manejar a Administração como instrumento de integração social, composição dos conflitos e redução das desigualdades, de outro, cresce o temor em relação aos perigos que ameaçam a liberdade e a propriedade e se delineiam expedientes que possam conter os excessos do intervencionismo estatal 1 . A operacionalização desses direitos - sua concretização no mundo do ser - clama por mecanismos asseguratórios, formais ou informais, sob pena de completa inocuidade. Acerca desses instrumentos de controlo, Marcello Caetano, adoptando a locução garantias da legalidade e dos administrados, classifica-as em políticas, graciosas e contenciosas. Sinteticamente: (i) garantias políticas são as organizadas pela Constituição, para serem dinamizadas através dos órgãos supremos do poder político, a 1 COSTA, Pietro. Teoria e crítica do Estado de Direito. São Paulo: Martins Fontes, 2006. p. 137-138. exemplo da aprovação anual de contas, controle de constitucionalidade, direito de petição, resistência e reclamação; (ii) garantias graciosas são as que se efectivam por meio da Administração activa mediante órgãos internos de superintendência e fiscalização, como os pedidos e recursos administrativos; (iii) finalmente, garantias contenciosas são as que se cumprem com a intervenção de órgãos jurisdicionais 2 . Seabra Fagundes perfilha uma classificação tripartida em controlos administrativos, legislativo e judicial 3 . Hely Lopes Meirelles é mais detalhista: (i) quanto ao poder, órgão ou autoridade que o exercita, pode ser administrativo ou executivo, legislativo ou parlamentar e judiciário ou judicial; (ii) quanto ao fundamento, hierárquico e finalístico; (iii) quanto à localização do órgão que o realiza, interno e externo; (iv) quanto ao momento, prévio ou preventivo, concomitante ou sucessivo, subsequente ou correctivo; (v) quanto ao aspecto controlado, de legalidade ou mérito. Finalmente, Odete Medauar, sob o ponto de vista do agente controlador, apresenta os controlos (i) interno, (ii) da Administração Indirecta pela Administração Directa, (iii) parlamentar, (iv) pelo Tribunal de Contas, (v) pelo Ombudsman, (vi) pelo Ministério Público, (vii) novos controlos [social e das políticas públicas] e, finalmente, (viii) pelo Judiciário 4 . Justiça administrativa Eduardo Gualazzi define justiça administrativa como o complexo de órgãos do próprio Judiciário [sistema de jurisdição una] ou autónomos, distintos, independentes desse Poder [sistema duplo de jurisdição], destinados, mediante provocação, a dirimir, em matéria administrativa, os conflitos entre Administração e administrado. Há, pois, justiça administrativa: (i) em sentido formal, que é a estrutura destinada à resolução dessas controvérsias, cuja conformação varia ao sabor da cultura jurídica de cada país e (ii) em sentido material, isto é, os litígios em si, de direito administrativo e não direito privado 5 . 2 CAETANO, Marcello. Manual de direito administrativo. 9 ed. Coimbra: Almedina, 1983. v. 2. p. 1201-1214. 3 FAGUNDES, Miguel Seabra. O controlo dos actos administrativos pelo Poder Judiciário. 6. ed. Saraiva: São Paulo, 1984. p. 86-87. 4 MEDAUAR, Odete. Controle da administração pública. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2012. p. 42. 5 GUALAZZI, Eduardo Lobo Botelho. Justiça administrativa, São Paulo: Freitas Bastos. v. 4, 1956. p. 510-511. As finalidades da justiça administrativa A justiça administrativa serve a dois propósitos centrais: (i) garantir os direitos dos administrados nas relações jurídico-administrativas, nos casos em que o particular se vê prejudicado por algum comportamento do Poder Público - aspecto subjectivo; (ii) velar pela obediência, por parte da Administração, dos preceitos jurídicos que regulam seus passos, ainda que sem se referir directamente à esfera subjectiva de alguém - aspecto objectivo. A prevalência de um ou outro variou no tempo, ao sabor das circunstâncias. Vasco Pereira da Silva enumera três momentos memoráveis dessa caminhada: No Estado liberal, a acção pública era vista como agressora da esfera de liberdade individual. Entendia-se que a melhor defesa aos direitos dos cidadãos provinha da lei, que criaria espaços nos quais a Administração não poderia ingressar e essa abstenção, por si, seria suficiente para tutelar os direitos dos particulares. Por isso, a justiça administrativa era compreendida como um autocontrolo da Administração, tendo como alvo primário a prossecução da legalidade e do interesse público e só secundariamente a defesa dos direitos individuais. Recusava-se a condição de partes no processo e o particular não passaria de um colaborador na defesa da legalidade administrativa; em suma, uma espécie de agente do Ministério Público 6 . Já no Estado social, o perfil intervencionista reverbera na justiça administrativa. Esta passa a enxergar o particular como titular de direitos subjectivos em face da Administração. O autocontrolo foi cedendo espaço à jurisdicionalização, promovida por verdadeiros tribunais. Assim, os mecanismos processuais foram redesenhados, modificando aspectos como legitimidade processual, poderes das partes, efeitos das sentenças, suspensão da eficácia dos actos administrativos e outros, sempre com o escopo de aprimorar a eficácia protetiva e servir de instrumento para as novas situações que se apresentavam 7 . Por fim, no Estado pós-social, Vasco Pereira da Silva disserta que o direito administrativo precisa ser refundado. Em lugar de ser o direito especial da 6 SILVA, Vasco Pereira da. Para um contencioso administrativo dos particulares: esboço de uma teoria subjectivista do recurso directo de anulação. Coimbra: Almedina, 1997. p. 30-31. 7 Ibidem. p. 47-51. Administração, deve passar a ser o direito dos particulares face à Administração. Seriam sintomas dessa tendência: 1 - Num apelo crescente à noção dos direitos fundamentais, como forma de melhorar a tutela jurídica das situações individuais. 2 - No modo de entender a posição do particular no processo administrativo como um verdadeiro sujeito processual e não como um mero funcionário da Administração. 3 - Na necessidade de aperfeiçoar, ainda mais, os institutos do contencioso administrativo, a fim de tornar mais efectiva a protecção dos particulares e mais eficaz o controlo da Administração 8 . As principais modelos de Justiça Administrativa De acordo com Vieira de Andrade, “parase apreciar os modelos de justiça administrativa é importante, desde logo, ter em conta a evolução verificada no modo como se concebe a vinculação da Administração à lei e ao Direito, como se entende a divisão dos poderes entre Legislador, Administrador e Juiz, como se encara a sujeição da Administração ao interesse púbico e a garantia da protecção dos direitos e interesses dos administrados”. 9 Critério de diferenciação: escreve Maurice Hauriou, “verificar um duplo critério, o de uma jurisdição administrativas que tem uma competência geral separada da justiça comum e de uma jurisdição de conflitos exercida, quer pelo governo, ele próprio, quer por um tribunal de conflitos a justiça delegada, porque apenas essas instituições são o signo que a administração do direito foi partilhada entre o poder judicial e o poder executivo”. Dois são os sistemas em vigor, ou seja, o sistema do contencioso administrativo, mais conhecido como sistema francês, e o sistema judiciário ou jurisdição única. A caracterização de ambos os sistemas se da pela predominância da jurisdição comum ou da especial para solucionar os casos litigiosos em que administração fizer parte. O Reino Unido é do tipo mais acabado desses estados sem regime administrativo. Com efeito, existem serviços administrativos pouco centralizados, em que todos os agentes da Administração Publica são sujeitos ao controlo dos tribunais comuns e as leis 8 Ibidem. p. 63. 9 Vieira de Andrade, A Justiça Administrativa, cit.ª 4.ª edição, p.ª 19. ordenarias como qualquer cidadão e só eles actuam em relação com os particulares com previa intervenção do Poder Judicial. Nesta perspectiva, o direito é “um”, no sentido de que, em princípio são as mesmas regras que regem todas as relações jurídicas dentro de um mesmo Estado, qualquer que seja a natureza dessas relações jurídicas. Para ser mais rigorismo, isto não quer dizer não existe um “Direito Administrativo” nos países anglo- saxónicos. Em bom rigor, em todos os Estados, quaisquer que sejam, existe necessariamente, do ponto de vista material, um conjunto de regras que se chama Direito Administrativo, que rege a organização e as competências das autoridades administrativas e define os direitos e as garantias dos administrados quando eles sofrem um prejuízo em relação a essas autoridades. O que não existe nesses países em um “modelo Europeu” e, sobretudo, um modelo francês de Direito Administrativo. A JUSTIÇA ADMINISTRATIVA EM MOÇAMBIQUE; EVOLUÇÃO HISTÓRICA O surgimento do Direito Processual Administrativo Contencioso em Moçambique é consubstanciado ao próprio surgimento de uma jurisdição administrativa no país o que depende, igualmente, da recepção do sistema de administração executiva em Portugal o que pressupõe, também, a existência de uma jurisdição administrativa para julgar a Administração Pública na sua actuação. Todavia, a referida recepção não se realizou no vazio (Cistac, 1997) A menção de um “Tribunal Administrativo” aparece pela primeira vez na história da Justiça Administrativa de Moçambique, na segunda Carta Orgânica das Colónias Portuguesas aprovada pelo Decreto de 1 de Dezembro de 1869, reformando a Administração Pública. O artigo 5 alínea 3 do texto supracitado dispõe: “Há também na Província um Tribunal Administrativo com o título de Conselho de Província”. Este último figura nas disposições que enumeram os órgãos “Junto ao Governador-geral”, entre os quais, além do Tribunal Administrativo pode destacar-se: “um Conselho do Governo” e “uma Junta Geral da Província”. O Código Administrativo de 18 de Março de 1842 modifica em vários pontos o primeiro Código Administrativo Português promulgado pelo Decreto de 31 de Dezembro de 1836, fortemente influenciado pelo Decreto n.º 23, de 16 de Maio de 1832, que introduziu o sistema administrativo em Portugal. Este código da “Regeneração”, segundo a famosa afirmação de Marcello Caetano, devia permanecer até à Reforma Administrativa de 15 de Agosto de 1914, traduzido na “Lei Orgânica da Administração Civil das Províncias do Últramar”, a base jurídica fundamental, com o Decreto de 1 de Dezembro de 1869, da Organização Administrativa e Judiciária das Províncias do ultramar vem geral e, de Moçambique em particular, e isso, apesar da tentativa de modificação administrativa do regime das Províncias do Ultramar de 1881 e da continuidade do processo de modificação na metrópole”. O artigo 76 do Decreto de 1 de Dezembro de 1869 vem assim redigido: “O código administrativo considera-se em vigor em todas as Províncias, com as modificações actualmente adaptadas em cada uma delas, e assim continuará provisoriamente em tudo quanto n’este decreto se não dispõe por diferente modo”, é apenas uma ilustração do que se poderia classificar de “princípio de assimilação administrativa pragmática”. O Conselho de Província compreende: o governador-geral (presidente), o secretário- geral do governo (secretário do conselho), o procurador da coroa e fazenda onde há relação”, dois vogais, escolhidos pelo governador-geral” sobre proposta em lista tríplice feita pela junta geral 12. (…) A justiça administrativa é exercida pelo Conselho de província, transposição da figura do Distrito da metrópole. Emancipação Relativa da Jurisdição Administrativa (1907 -1924) O Decreto de 23 de Maio de 1907 sobre a Reorganização administrativa da província de Moçambique, tem como ambição, em princípio, de ser o reflexo do “modelo francês, modificado no nosso meio português”, segundo o relatório introdutório ao mesmo decreto. Nominativamente, o Estado de África Oriental toma-se “Província de Moçambique”, tendo por capital a cidade de Lourenço Marques. A província é territorialmente dividida em distritos que, por sua vez, se subdividem em “concelhos” idênticos das disposições do Decreto de I de Dezembro de 1869. O Conselho de Província não podia ficar ao abrigo ou afastado da reforma da organização administrativa da Província. Se o texto do Decreto de 23 de Maio de 1907 conserva a instituição do Conselho de Província, mas enquanto tribunal, a sua composição encontra-se modificada e as suas atribuições alargados. Pode verificar-se as premissas de uma certa emancipação face à administração activa. Os acórdãos dos Tribunais Administrativos da Província são publicados no Boletim Oficial. No âmbito do contencioso administrativo entendido stricto sensu, o novo elemento que o texto regulamentar introduz é a instituição de um duplo grau de jurisdição. De facto, cabe ao Conselho de Província julgar em segunda instância todas as questões cujos conselhos de distritos conhecem como tribunais do contencioso administrativo em primeira instâncias. Estando destinado a permitir um novo exame dos litígios nascidos para os tribunais de distrito pelo Conselho de Província, o Decreto de 23 de Maio de 1907 coloca a regra do duplo grau da jurisdição. Além disso, o Conselho de Província é competente para apreciar, em primeira instância, as reclamações contra as deliberações dos conselhos de distritos. Perda da Identidade da Jurisdição Administrativa em Moçambique (1924 - 1926) O Tribunal Administrativo da Província de Moçambique foi vítima das restrições orçamentais da metrópole. As razões evocadas pelo Decreto n.º 9: 340, de 7 de Janeiro de 1924, que vai proceder à extinção momentânea das auditorias administrativas do continente e das ilhas adjacentes assim como do Supremo Tribunal Administrativo, são de duas ordens. A primeira, é de ordem económica, a segunda, jurisdição administrativa em Portugal. A segunda razão evoca a falta de necessidade de tal ordem de jurisdição. Com efeito, mesmo se, do ponto de vista teórico, a jurisdição especializada é a resultante da dinâmica social, segundo o texto abaixo citado, “a jurisdição contenciosa administrativa nuncafoi em Portugal uma organização especializada”. O contencioso não foi por assim dizer o monopólio de uma jurisdição especializada, instituída como tal. Com efeito, vários organismos, tribunais ou autoridades administrativas, eram chamados a tomar conhecimento de questões de contencioso administrativo. Este período de turbulências - cuja primeira etapa termina em 19 de Novembro de 1925 com o Decreto n.º 11: 250 sobre a revogação do Decreto n.º 9:340, que se estende ao Supremo Tribunal Administrativo e a todas as auditorias administrativas (a duração da extinção terá durado pouco mais de dois anos) ” – para a qual foi levada a jurisdição administrativa, devia prosseguir na metrópole durante a primeira metade do século XX. As consequências jurídicas do Decreto n.º 9: 340 de 7 de Janeiro de 1924, analisadas sob o ângulo da coerência da política jurídica do Governo central, manifesta-se através do Decreto n.º 11: 835, determinando que cessem em todas as colónias as funções dos Tribunais Administrativos, Fiscais e de Contas, passando as atribuições desses tribunais aos Conselhos de Finanças: “considerando que, sem prejuízo para o serviço e com notável economia para o Estado, há toda a vantagem de fundir os serviços a cargo dos Tribunais Administrativos, Fiscais e de Contas das Colónias e os Conselhos de Finanças num só tribunal para cada colónia, que pode figurar como nome deste último”. Restauração e Estabilidade da Jurisdição Administrativa em Moçambique (1926 - 1975) Com a chegada ao poder, na metrópole, de António de Oliveira Salazar, no início dos anos 30, vai começar a era de uma produção regulamentar intensiva que será perpetuada pelo seu sucessor Marcello Caetano. Aqui, mencionar-se-á simplesmente a existência dos seus melhores florões que vão do Acto Colonial de 8 de Julho de 1930 até à Lei n.º 5/72, de 19 de Junho de 1972, relativa às bases sobre a revisão da Lei Orgânica do Ultramar, passando pela Constituição Política da República Portuguesa de 19 de Março de 1933, a Carta Orgânica do Império Colonial Português (COIP), a Reforma Administrativa Ultramarina (RAU), o Estatuto do Conselho do Império Colonial, o Estatuto do Conselho Ultramarino e os estatutos Político-Administrativos de cada uma das províncias, particularmente de Moçambique, de 15 de Dezembro de 1972. A Carta Orgânica do Império Colonial Português (COICP) (Decreto-Lei 23.228) entra em vigor em 1 de Janeiro de 1934 e revoga as bases orgânicas da administração colonial aprovadas pelo Decreto n.º 15: 241, todas as cartas orgânicas das colónias e, de uma maneira geral, o conjunto da legislação expresso ou subentendido, contrárias às suas disposições (COICP, Artigo 11.º do Decreto n.º 23:228). Ela prossegue, amplificando “a completa unificação administrativa de cada colónia” (COICP, Artigo 221). A Carta Orgânica aborda, por várias vezes, o estatuto e as competências dos Tribunais Administrativos das colónias. Algumas das suas disposições constituem, virtualmente, ainda hoje, por efeito combinado, por um lado, de uma produção jurídica consuetudinária, e por outro lado, do artigo 203 da Constituição Moçambicana de 1990, uma fonte de legalidade para o Tribunal Administrativo de Moçambique. É particularmente o caso das disposições relativas às competências do Tribunal Administrativo em matéria de “exame” e de “visto” dos contratos que deu lugar a uma jurisprudência abundante. Certos princípios estabelecidos pela Carta Orgânica continuam actuais como o da independência da jurisdição administrativa em relação ao Poder Executivo.
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