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A L Machado Neto - O Problema da Ciencia do Direito - Ensaio de Epistemologia Juridica - Capitulo VII - Egologismo Existencial - Ano 1958

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C O L E Ç Ã O F O R U M
f
A. L. M a c h a d o N e t o
0 Problem a da C iência do D ireito
(ENSAIO DE EPISTEM0L0G1A JURÍDICA)
AGUIAR & SOUZA LTDA. 
LIVRARIA SONORA
C I Ê N C I A DO D I R E I T O
CAPÍTULO V I I 
O EGOLOGISMO EXISTENCIAL
“La Teoria egologica considera que la Ciên­
cia Dogmática dei Derccho es una ciência de 
la realidod, por Io tanto una ciência de expo- 
riencia; só/o que de la exporiencia cultural o 
humana y no de la cxpsriencia natural o cau­
sai".
(CARLOS COSSIO)
"Selo as! el sabsr de loa juristas alcünzará y 
lucirá su diênidacl de ciência sin par, en tanto 
que es la teoria de Ia libertad compartida, la 
disciplina de la conducta social o — en otros 
términos — la ciência de la peraona".
(ENRIQUE R . AFTALION).
Como um importante marco cio grande movi­
mento filosófico-jurídico que caracteriza a presen­
te centúria, temos, na Argentina, o esplendoroso 
florescimento jusfilcsófico que a escola egológica re­
presenta .
129
M A C H A D O N E T O
Uma particularidade, poi’ém, caracteriza espe­
cialmente a meditação jusfilosófica de Carlos Cos- 
sio e seus discípulos: é o fato de que — no dizer 
do próprio chefe da escola. — , “la teoria egológica 
no cree que pueda hacerse com provecho una filo­
sofia sobre el Derecho a secas” (1 ).
Daí que tcdo o interesse da meditação egológi- 
ca esteja voltado para a ciência do Direito, para a 
tarefa de tporcionar ao jurista o uso dos instru­
mentos mentais que o capacitem ao mellior trata­
mento do Direito positivo.
Com tal objetivo epistemológico, Cossio se aprc- 
pria do instrumental teórico da filosofia contempo­
rânea, daí retirando, em particular, para a sua 
construção teerética, o que êle considera as três 
contribuições fundamentais da filosofia atual para 
o estudo do Direito: a teoria dos objetos, a lógica do 
dever ser e a idéia do tempo existencial (2).
Dizer isso' é revelar que as raízes ideológicas de 
Cossio vão encontrar-se na fenomenologia, na fi­
losofia dos valores e no existencialismo e, especial­
mente, em matéria jurídica, na teoria pura do Di­
reito de Kelsen, que c professor argentino assimi­
lou como bem poucos e tem logrado, como ninguém, 
superar. Vale salientar também uma certa dispo­
sição espiritual de fundo criticista que denuncia 
a influência do filósofo de Kcenigsberg.
130
C I Ê N C I A D O D I R E I T O
E’ valendo-se da teoria dos objetos que Cossio 
parte para a fundamentação de sua ontologia jurí­
dica, onde nos presenteia ccm a descoberta do Di­
reito como conduta em interferência intersubietiva.
Tal teoria dos objetos reconhece quatro regiões 
ônticas ou quatro ontologias regionais, a saber: a) 
os objetos ideais, que se caracterizam por serem ir­
reais, não se darem na experiência e serem neutros 
de valor, e cujo processo cognoscitivo é .a intelecção, 
que se realiza através o método racional-dedutivo; 
b) os objetos naturais, reais, que se dão- na expe­
riência, são neutros ao valor e cujo processo de co­
nhecimento é a explicação, realizável por meio do 
método empíricc-indutivo; c) cs objetos culturais, 
que ião reais, estão na experiência, são positiva 
ou negativamente valiosos e são conhecidos median­
te o processo gnoseológico da compreensão, por meio 
cío método empírico-diaiético; c) os objetos metafí­
sicos, que têm existência real, não estão na expe­
riência sensível e são valiosos positiva ou negativa­
mente .
A cada uma dessas regiões de objetos, por suas 
especiais características, corresponde um determi­
nado tipo de ciência, salvo a última, região' própria
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da metafísica, que a unânime opinião filosófica 
apresenta como o terreno extracieníífico por exce­
lência. Assim é que aos objetes ideais correspon­
dem as ciências formais corno ps matemáticas e a 
lógica, acs objetos naturais, as ciências experimen­
tais ou ciências naturais e aos objetos da cultura as 
chamadas ciências humanas, sociais ou culturais.
O Direito, estando situado nesta última região, 
é, pois, ur5' ;>bjeto cultural, a ciência do Direito 
sendo, assim, uma ciência da cultura.
Mas, nos objetos culturais, Cossio distingue um 
suporte fáctico ou substrato e um sentido suíten- 
tado por êsse suporce, e que é onde reside o caráter 
valioso ou desvalioso do bem cultural, qualquer que 
seja êle. Conforme êsse suporte seja um objeto fí­
sico, como o mármore numa estátua, ou uma con­
duta humana, como num ato moral, teremos os 
objetes culturais divididos em mundanais e egoló- 
giccs, respectivamente.
O Direito, por inexistir, no caso, um cbjeto fí­
sico que lhe constitua o suporte, é um objeto egoló- 
gico, por consistir em conduta, conduta humana 
em interferência intersubjetiva, que é o que o dis­
tingue da moral, segundo a famosa distinção de Del 
Vecchio, que Cossio transporta do plano lógico para 
o ontológico.
132
C I Ê N C I A DO D I R E I T O
Ora, como a conduta humana, mesmo em in­
terferência intersubjetiva. — isto é, enfocada do 
t ponto de vista de sua impedibilidade — é liberdade 
metafísica fenomenizada, 'o estilo de pensamento que 
irá pensar o Direito não pode ser o mesmo capaz 
de “inteligir” os objetos ideais ou explicar a natu­
reza. A lógica especial da ciência do Direito terá 
de ser diversa da que rege os espíritos na formula­
ção das ciências naturais. Nesta, rege &. lógica do 
ser, de que Aristóteles colocou as bases imortais, 
enquanto no mundo da conduta, no plano do Di­
reito, vale uma lógica especial, a lógica, do dever- 
ser, de que Hans Kelsen é, no entender de Cossio, 
o genial descobridor.
Assim, a teoria pura do Direito, entendida co­
mo lógica jurídica formal, é assimilada -ao acervo 
teórico da escola egológica, como o estilo de pensa­
mento próprio do jurista no enfrentar-se com a 
conduta em interferência intersubjetiva, que é o 
Direito.
 ̂ Não é, porém, sem certas profundas alterações
que Cossio assimila a teoria pura do Direito. Entre 
tais modificações está a transformação da estrutu­
ra lógica da norma jurídica em um juízo disjunti-
133
M A C H A D O N E T O
vo, em uma disjunção propcsicional, ao contrário 
de Kelsen, que a admitia como um juízo hipotético.
Em Kelsen a norma jurídica, juízo hipotético, 
apresentaria a seguinte estrutura esquemática: “da­
do A deve ser B” , ou na fórmula propriamente ju­
rídica, “dada a não prestação deve ser a sançãc” , a 
norma que menciona a prestação e o fato jurídico 
(“dado o fato dever ser a prestação” ) aparecendo 
como algo que viria permitir pensar de cutro ângu­
lo a relação j "ídica, mas, em todo o caso, algo mar- 
cadamente pie&nástico, ou, 'na melhor das hipóte­
ses, expletivo. Nunca algo essencial e imprescin­
dível .
Na formulação egológica, ao contrário, ambas 
as normas kelsenianas são engranzadas numa es­
trutura disjuntiva, tanto a prestação como a san­
ção assumindo o seu caráter essencial na relação 
jurídica e na estrutura lógica que a pensa:
“Dado F. deve ser P. por Ao. face a Ap. (en- 
donorma) ou
dado não— P deve ser S. pelo Fo. face à C.p. 
(perinorma), ou mais explicitamente:
“Dada una situación vital como hecho 
antecedente, debe ser la prestación por al- 
guién 'cbligado frente a alguién titular; o dado
134
C I Ê N C I A D O D I R E I T O
el entuerto, debe ser la sanción a cargo de 
un funcionário obligado por la comunidad 
pretensora” (3).
Assim, temos além dos elementos permanen­
tes: o clever-ser e a conjunção ou que marca a dis­
junção proposicional, os seguintes elementos da re­
lação jurídica: 1) — Fato jurídico, 2) — Prestação, 
3) — Sujeito passivo, 4) — Sujeito ativo, 5) — Ilí- 
cit: (“ entuerto” ), 6) — Sanção, 7) — Funcionário 
obrigado como sujeito passivo da perinorma, 8) — 
Comunidade pretensora como sujeito ativo da pe­
rinorma .
De posse dessa estrutura disjuntiva, Cossio pôde 
melhor ainda do que Kelsen ordenar hieràrquica- 
rnente o ccnjunto das normas jurídicas na estrutura 
piramidal que compõe o ordenamento jurídico. Com 
efeito, se a prestação da endonorma não se verifica, 
teremosa sanção que é a obrigação ou prestação 
de uma endonorma que se dirige ao juiz, o qual, 
se nãc a realiza, estará sujeito a uma sanção, que, 
por ?ua vez, será a prestação de uma nova endo­
norma dirigida a quem tenha a competência legal 
para sancionar o juiz prevaricador, e assim até a 
norma fundamental.
Fechando, por todos os lados, essa estrutura 
piramidal, temos o princípio da hermética plenitude
M A C H A D O N E T O
clo ordenamento jurídico, que Cossio “ontologiza” 
ao mcstrar que êle é um juízo sintético a priori,
fundado na intuição da liberdade pura.
1
Assim, cutra vez, como no conceito de Direito, 
o lógico ss ontologiza nas mãos de Cossio, já que o 
princípio lógico “o que não está juridicamente proi­
bido está juridicamente permitido” (lógico, e, como 
tal, conversível em “o que não está juridicamente 
permitido está juridicr^ente proibido” ) passa a 
ser inconversível, por deüorrer da própria condição 
ontológica dc Direito, do próprio ser do Direito, que, 
sendo conduta, é liberdade metafísica fenomenizada, 
e, como tal, não seria possível determiná-la total­
mente. Sempre há de restar certa margem de li­
berdade à conduta, por mais que a norma a pre­
tenda vincular a determinações e proibições. Dêsse 
modo, se o contrato me determina a pagar a obri­
gação x em tal dia, resta-me a liberdade de fazê-lo 
pela manhã ou à tarde. Se determina que a pres­
tação deve ser feita à tarde, eu poderei ainda esco­
lher se antes ou depois das 15 horas, por exemplo. 
Mas se até a hora está marcada e com precisão de 
minuto e segundo, nada me impede que eu vá ves­
tido a rigor ou a passeio, com ou sem chapéu, que 
adote êste ou aquêle meio de condução, esteja ou 
não assobiando o “Bclero” de Ravel ou um samba 
de Heitor dos Prazeres, e etc___
136
C I Ê N C I A D O D I R E I T O
Impensável é, portanto, a vida do Direito sob 
a regência do princípio ontológico convertido em 
“ tudo que não está juridicamente permitido está 
juridicamente proibido” . Daí que o que o princípio 
*iudo que não está juridicamente proibido está ju­
ridicamente permitido” , além de resolver o pro­
blema lógico da plenitude hermética da ordem ju­
rídica, seja o princípio cntológico do Direito, pois 
nada de lógico nos poderia proibir a conversão do 
mesmo, e sim, o próprio ser do Direito (4).
* *
Outro ponto em que a teoria egológica reforma 
a teoria pura é na revalorização do Direito subjeti­
vo que o conceito do Direito ccmc conduta, i . e .: 
como liberdade metafísica fenomenizada vem acar­
retar.
A liberdade é, nessa perspectiva, um prius don­
de há que partir. Originàriamente tôda conduta é 
permitida. Todo Direito é assim um contínuo de 
licitudes e um descontínuo de ilicitudes. Daí que 
o princípio ontológico não seja conversível como 
o é o juízo analítico “ tudo que não é ilícito é lícito” .
Sôbre êsse prius da liberdade humana, êsse 
contínuo de licitudes, a determinação normativa 
vai estabelecendo as ilicitudes.
M A C H A D O N E T O
E’ <a norma, pois, que especifica a conduta em 
interferênêcia intersubjetiva nas quatro formas ge­
rais do Direito: prestação, faculdade, ilícito, sanção. 
Antes da norma não haveria tal especificação.
No que ao tema da revalorização do Direito 
subjetivo se refere, a. norma, incidindo sôbre a li­
berdade, especifica-a em ilícito e liberdade jurídica 
ou faculdade que, por sua vez, pode ser faculdade 
de senhorio ou de inordinação,,' 'ta última — que 
impossibilita uma escravidão toíál — sendo o Di­
reito de cumprir o próprio dever, seja por comissão 
ou por omissão (5 ).
<í
« *
Se, no plano da lógica formal, a norma é um 
juízo, juízo disjuntivo, como vimos, no plano gno- 
seológico da lógica transcendental, ela é um con­
ceito que pensa a conduta em sua liberdade feno- 
menizada, em seu dever-ser.
A relação entre norma e conduta é, pois, para 
Cossio e sua escola, uma relação de conceito a ob­
jeto, a norma sendo o conceito que pensa a con­
duta em sua liberdade. O juízo enunciativo, pró­
prio das ciências naturais, não poderia pensar a 
liberdade senão matando-a como tal liberdade. Daí
C I Ê N C I A D O D I R E I T O
que, prescindindo da liberdade, a lei científica es­
teja endereçada à previsão: “savoir pour prévoir” .
Juízo para o pensamento (lógica formal), a 
norma é, pois, um conceito para o conhecimento 
(lógica transcendental).
A norma é ainda o momento formal e necessá­
rio da experiência jurídica. Mas outros dois ingre­
dientes compõem essa experiência que é, assim, 
por ser experiência cultural (e, portanto, valorati- 
va), diversa da experiência natural de que se 
ocupam as ciências da natureza.
Além da estrutura normativa, elemento formal 
e necessário, a experiência jurídica encerra o con­
teúdo dogmático, material e contingente e a valo- 
ração jurídica, a um só tempo material e necessá­
ria.
A existência dêsse momento material e neces­
sário, que é a valoração jurídica, leva-nos, por con­
seguinte, ao prcblema dos valores jurídicos. Quais 
são êles?
Cossio responde a essa pergunta indicando co­
mo tais todos os valores bilaterais de conduta que, 
no seu entender, formam o plexo axiológico-juríd- 
co, composto de sete valores: ordem, segurança, po­
der, paz, cooperação, solidariedade e justiça (6) .
139
M A C H A D O N E T O
Há que salientar, nesse ponto, que o Direito 
não está norteado no sentido dêsses valores, como 
pode estar o navegante pela estrela polar, mas que, 
ao contrário, por ser cultura, o Direito é, em qual­
quer de suas manifestações, a realização de alguma 
ordem, alguma segurança, algum poder, alguma 
justiça, e tc ... (7 ). ^
Daí que, embora a ciência seja neutra] para o 
valor (e a ciência jurídica o é graças exatamente 
à lógica do dever-ser, já que à base da lógica do 
ser ela afirmaria valores), a ciênc>a do Direito en­
volva uma certa valoração.
É que, sendo a norma o conceito que pensa a 
conduta, a interpretação não é, em Cossio, da lei, 
e sim da conduta pela norma, por intermédio da 
norma. Mister se faz, portanto, em primeiro lugar, 
na aplicação do Direito ao fato, valorar a norma 
para o caso o que se faz (ac escolhê-la. Trata-se, 
portanto, de uma valoração que pretende realizar 
certa segurança, certo poder, certa justiça, mas 
não.se trata de uma valoração livremente emocio­
nal e sim de uma valoração conceptualmente emo­
cional, já que o juiz terá de, para evitar a “vivên­
cia da contradição” , procurar na intersubjetividade 
que as fontes do Direito lhe proporcionam o crité­
rio da objetividade de sua valoração.
140
C I Ê N C I A D O D I R E I T O
A maior ou menor verdade jurídica será, pois, 
a maior ou menor fôrça de convicção da sentença, 
o êrro jurídico sendo a arbitrariedade.
*
í'.‘ *
Do exposto- até aqui depreende-se que, para Cos­
sio e a escola egológica, a dogmática é uma ciência 
de experiência — embora de uma experiência va- 
lcrativa porque cultural — , uma ciência de objetos* 
reais.
Seu métcdo, como ciência cultural que é, será 
o método da compreensão, o método empírico-dia- 
lético. Empírico, porque trata com objetos reais, 
que se ncs dão na experiência e são, portanto, im­
possíveis de tratar pelo método racional-dedutivo, 
pois não pedem ser deduzidos de uma idéia geral. 
Dialético, porque a compreensão envolve um cami­
nho circular de ida e volta do substrato ao sentido, 
até que o espírito interrompe num ponto essa. pe­
regrinação, por já se julgar convenientemente in­
teirado do sentido e de sua encarnação no respecti­
vo substrato. Essa interrupção da dialética não 
impede, porém, que, se a retomamos, o nosso co­
nhecimento mais e mais se amplie, pois assim como 
o conhecimento matemático forma um todo simples
141
M A C H A D O N E T O
e fechadc-, o natural um tcdo composto e aberto, o 
conhecimento dos objetos culturais forma um todo 
simples e aberto.
Ciência de realidades, como pode a ciência do 
Direito distinguir-se da sociologia jurídica ?
Cossio responde à questão propondf^a aproxi­
mação, para efeito de simples comparafao, entrea ciência do Direitc, a sociologia jurídica e a axio- 
logia jurídica pura, o que faz nos seguintes têrmos:
“Nosotros diremos que la Ciência dei Dereclio, 
en tanto ciência de la realidad, considera el ser de 
la conducta en su deber ser positivo o ideal real. 
La sociologia jurídica en cambio, considera el deber 
ser positivo c. ideal de la conducta en su ser efec- 
tivo. Y la axiologia jurídica pura considera el de­
ber ser puro o ideal verdadero” (7).
Os planos em que se inscrevem, pois, a sociolo­
gia jurídica, a ciência dogmática do Direito e a axio­
logia jurídica pura são, respectivamente, os planos 
do ser, do dever-ser lógico (lógica do dever-ser) e 
do dever-ser axiológico.
Assim é que, fundando-se na lógica do ser, a 
sociologia descreve e propõe significar o dever-ser 
positivo da conduta jurídica em seu ser, e, ao con­
trário, baseando-se na lógica do dever-ser, a ciência
142
C I Ê N C I A DO D I R E I T O
do Direito descreve o ser da conduta em seu dever- 
nser positivo. Sòmente esta última é, pois, inteira­
mente compatível com a liberdade que a conduta 
envolve, a sociologia e a história, por fundadas na 
lógica do ser, enfocando uma liberdade cosificacla, 
petrificada.
Tal é a distinção egológica entre sociologia ju­
rídica e ciência do Direito. E’ fato que elas ficam 
aqui bastante aproximadas. Muito mais do que na 
perspectiva racionalista em que seriam ciências 
inteiramente diversias, por tratar, a dogmática, de 
objetos ideais — as normas — enquanto a sociolo­
gia jurídica trataria de objetos reais — a vida social- 
- jurídica e as interrrelações de sociedade e Direito. 
Não se diga, porém, depois do que ficou acima ex­
plicado, que a posição egológica conflui no socio- 
logismo. O fato de se fundarem em lógicas diver­
sas, diversifica amplamente as duas disciplinas, em­
bora elas sejam ambas, como ciências sociais ou cul­
turais, ciências da realidade.
£ ❖
Também sem fundamento seria a objeção que 
à posição egológica poder-se-ia fazer argüindo que a 
Ciência do Direito não poderá ser a única ciência da
143
M A C H A D O N U T O
conduta, uma vez que, nesse grupo, deveriam ser 
também incluídas a moral e a teologia.
Mas, a moral e a teologia não pedem conservar 
a neutralidade que a norma jurídica como disjun­
ção proporcional permite à ciência do Direito (9).
E se, por acaso, se argumentar que a tunsidera- 
ção do Direito c:mo conduta impediria a ciência 
do Direito histórico como ciência do Direito, Cossio, 
êle próprio, concordaria com essa objeção ao afir­
mar que o horizonte temporal da ciência dogmática 
é o presente existencial (10). Aliás, quanto a esta 
última objeção, não se a pode realmente levar a 
.cério pcis a ciência do Direito histórico, com ser 
história, jamais se identificou oom a. ciência dogmá­
tica dc Direito positive, em qualquer das posições 
teóricas possíveis, salvo, de certo modo, o histori- 
cismo.
De fatc, os prcblemas que suscita a história do 
Direito não ;ão problemas jurídicos e sim proble­
mas históricos, e isso assinala a distinção essencial 
entre essa duas disciplinas jurídicas.
* *
Assim, a posição teórica que nasce em Savigny, 
e é por êle próprio bruscamente interrompida, vindo
144
C I Ê N C I A D O D I R E I T O
renascer nos múltiplos sociologismos, posição que 
enfoca a ciência jurídica como ciência de realidades, 
de objetos reais, tem na escola egológica a sua ex­
pressão mais atual, aquela, aliás, que é a única que 
torna êsse objetive compatível com a especial digni­
dade epistemclógica da jurisprudência, já que o his- 
tcricismo a identificaria, com a história do Direito 
e o sociologismo a incluiria como um capítulo es­
pecial na sociologia geral.
J
Também, é verdade, c racionalismo dogmático 
de Kelsen, quer se entenda a teoria pura como 
teoria geral do Direito ou como lógica jurídica 
(porque ciência dogmática do Direito ela não é, 
evidentemente) é compatível com a dignidade epis­
temclógica peculiar à ciência do Direito. Também 
o normativismo kelseniano, hoje a posição domi­
nante no mundo da teoria jurídica, permltè auto­
nomia epistemclógica à jurisprudência. Mas, para 
tal, tem de pagar o alto preço de considerar a 
ciência jurídica como ciência de normas, i.é.: como 
ciência de objetes ideais, tal como a lógica e as ma­
temáticas. E êsse é um preço muito elevado . . . (11)
Com efeito, por que, das disciplinas sociais, a 
ciência do Direito seria a única a desgarrar-se do 
bloco das ciências cuturais e ir inscrever-se na com­
panhia das matemáticas e da lógica ? ! Por que re­
duzir o Direito à simples norma, em seu tratamento
M A C H A D O N E T O
científico, se a quase unanimidade dos jusfilósofos 
de hoje, por êsse ou aquêle caminho, vão dar na con­
clusão de que o Direito é fato, valor e norma, por ser 
um objeto cultural? Tais são(as questões a que o 
normatívismo não pode responder suficientemente.
E o não poder respondê-las faz com qu\*.al po­
sição se enrede em invencíveis contradições,’ que a 
posição egológica pede evitar, a cavaleiro.
Entre tais contradições, está aquela que con­
siste em o normativismo, depois de considerar a 
norma como objeto do Direito e de estar consciente 
de que ela é um objeto ideal, e, como tal, fora do 
tempo e do espaço, considerar questões atinentes à 
ciência jurídica as de vigência e positividade, que 
fazem evidente referência a uma validade aqui e 
agora, o que vale dizer, no espaço e no tempo (12)..
O abismo é, pois, evidente entre a idealidade 
da norma e a temporalidade do Direito, de que a 
ciência jurídica não pode prescindir (13).
Outrossim, se a norma é o objeto da ciência ju­
rídica e pela legislação o jurista cria normas, esta­
mos em face da raridade epistemológica de uma 
ciência construir o seu objeto material. Que a ciên­
cia cria, ou rnelhcr, constroi, até certo limite, um 
objeto é uma verdade que o neokantismo deixou pa­
tente. Mas o objeto de que aí se trata é o formal,
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C l â N C I A D O D I R E I T O
não o material — para usarmos a cômoda distinção 
escolástica — , pois nesse caso além da raridade 
epistemológica, teríamos a contradição vital de o 
homem criar um problema — o objeto rnaterial de 
uma ciência — para tentar depois resolvê-lo — ciên­
cia. E a economia vital se cpõe veementemente a 
tais luxos...
I
Por que então — seria justo indagar — em face 
de tantas contradições teóricas e vitais, o norma ti - 
vismo tem imperado e até hoje impera como posi­
ção líder da epistemologia jurídica ?
t
Talvez a sociologia do saber pudesse responder 
a tal pergunta, acusando o normativismo de lugar 
geométrico do jurista prático. De fato, trabalhando 
sobretudo com as normas, o jurista prático está 
sempre inclinado .a hipostasiá-las como o Direito 
“tout c o u r t O observador mais superficial, porém, 
está em ccndições de verificar que se apenas de nor­
mas se tratasse, o Direito não teria sentido algum, 
já que todos estão de acôrdo em lhe atribuir uma 
tarefa prática de referência à conduta. Ora, assim 
sendo, a ciência do Direito estudaria um instru­
mento que, depois, seria aplicado ao seu objetivo 
vital que é a conduta, quando o comum é que a 
ciência com ser, como o assinala Max Scheler, um 
saber de dominação, seja ela mesma, um instru­
mento que se aplica ao objeto que se pretende do­
147
M A C H A D O NET O
minar. Ora, que se não pretende dominar as nor­
mas e sim a conduta é algo manifesto. Mas o ju­
rista, que vive sobretudo com e das normas, êste 
.sim, êste é quem pretende dominar as normas. Daí 
que confundisse e exagerasse ao admitir que as nor­
mas constituem o objeto de sua ciência, tal como o 
químico prático que entendesse a química como a 
ciência que estude cs provetes.
\ ❖
* *
Se a posição egológica pode esquivar-se a tôdas 
as contradições do ncrmativismo, pode ainda, mais 
resolver certas questões que até iaqui tinham sido a 
pedra no sapato do jurista. Tais são as questões das 
mudanças de jurisprudência, do desuso da lei e da 
sentença contra legem.
Por menosque o normativismo possa conve­
nientemente explicar essas questões, iou melhor, êsses 
fatos, êles são constantes da experiência jurídica, 
que uma teoria da ciência do Direito precisa expli­
car, dar razão.
E isso é o que ccnsègue, brilhantemente, o ego- 
logismo, como decorrência, exclusivamente, de sua
148
C I Ê N C I A D O D I R E I T O
posição epistemológica, que considera a ciência do 
Direito como ciência de objetos reais, per ter por 
objeto a conduta em interferência inter-subjetiva.
As mudanças de jurisprudência provam, a con­
tento, a verdade egológica de que não se interpreta 
a lei, e sim a conduta, pois em tais casas a lei é a 
mesma. Foi interpretando a conduta em sus. cir­
cunstância temporal que o juiz entendeu realizaria 
mais convenientemente cs valores jurídicos se sen­
tenciasse em oposição aos precedentes judiciais, acs 
quais se ateria outrora, como base para a inter-subje- 
tividade de sua valoração.
No desuso da lei (ãesuetudo), uma lei perdeu o 
conteúdo axiológico e viveu algum tempo sob o 
apoio do valor ordem. Mas coma o Direito é con­
duta e não norma, sobrevêm, um dia, o desuso. E 
pouco importa que as legislações o proíbam . . . 
t
Quanto à sentença contra legsm, Ccssio dira que 
não há tal (salvo o caso de revclução individual, 
que aqui está, logicamente, afastado). O que há 
é sentença com ou sem íôrça ds convicção. N,a. cha­
mada sentença contra legem, a lei não serviria a 
fundamentar a fôrça de convicção.
Em todos êsses três casos, trata-se de que a nor­
ma, era um conceito que não coincidia com a intui­
ção, e, com tal, não se adaptava ao seu mister, que
149
M A C H A D O N E T O
é pensar a conduta. Mas como, no dizer de Cossio, 
só a norma verdadeira é verdadeiramente norma, 
pcrque o Direito é ccnduta, ali se afastou o juiz do 
precedente, aqui da lei, e no desuétudo, o próprio 
particular apartou sua conduta do estabelecido na 
lei decaida.
*
* *
Com Carlos Cossio e a escola egológica fecha-se 
a ilustre tradição, que parte de Savigny e passa por 
Comte, Spencer e Wundt (14) e po,r todo o sociolo- 
gismo e histcricismo.
Se do normativismo kelseniano e seu purismo 
metodológico poderíamos dizer que tudo que, em ma­
téria jurídica, o desconhece tem um ar inevitável 
de passado, de demodé, do egologismo poderíamos 
dizer que é a esplendorosa conclusão do purismo me­
todológico de Kelsen. E com o saldo favorável que 
é o colocs,r a ciência jurídica em sua exata posição, 
como ciência da realidade. Essa, sua conquista de­
finitiva. Graças a isso- é possível escrever, como faz 
R. Aftalaión, um dos mais ilustres e produtivos 
membros da escola, que “sólo asi los juristas cleja- 
rón de remedar las actitudes científicas próprias de 
otros ordenes dei saber. Sólo así el saber de los
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C I Ê N C I A D O D I R E I T O
juristas alcanzará y lucirá su dignidad de ciência 
siti dar, en tanto que la teoria de la libertad com- 
partida, la disciplina de la conducta social, o — en 
otros términos — la ciência de la persona” (15).
Salvador, 15 de dezembrc de 1957.
Madre de Deus, 18 de fevereiro de 1958. 
N O T A S
(1 ) CARLOS COSSIO — Panorama de la Teoria E£oló$ice 
clel Derccho — Faculdad de Darecho y Ciências Socialeo 
de la Universidad de Bueno3 Aires — 1949 — pag ■ 12.
(2 ) C fr. CARLOS COSSIO — El Derccho en ol Derecho Ju­
dicial — Ed. Guillermo Kraft — B . Aires — 1945 — 
cap. I — pags. 10-63.
i
(3 ) CARLOS COSSIO — Lss Actitudes Filosólicas de la 
Ciência Jurídica — in La Ley, 12-6-1956 — B . Aires — 
pag. 3, nota 1.
(4) C fr. CARLOS COSSIO — La Plenitml dei Orden Jurídico 
y la Interpreíadón Judiciai de la Ley — Losada — B. 
Aires — 1939.
(5 ) C fr . sobre o tema CARLOS COSSIO — La Teoria E£o- 
loé ‘ ca dei Derecho y Concepto Jurídico de Libertad — Lo­
tada — B . Aires — 1944 — cap. III — pag. 289 e. segs.
151
<6) Em La Valoración Jurídica y la Ciência dei Derecho —
Arayú — B. Aires — 2.® ed. — 1954. Cossio ainda con­
serva a refência apenas a seis valores jurídicos como os com­
ponentes do piexo axiológico-juríáico. Faltava ainda o valor 
cooperação. Cfr. op. cit. — pag. 83.
(7 ) Isso faz com que Miguel Reale entenda que a teoria ego­
lógica dá “ ao Direito (Positivo as carcterísticas de um ver­
dadeiro Direito Ideal “ in fieri” , de um Direito Natural que 
corre com o tempo” . — Cfr. Miguel Reale — Horizontes 
do Direito e da História — Saraiva — S. Paulo — 1956
— pag. 327. Cfr. também pag. 319.
(8 ) La Teoria Egológica . . . — pag. 114. Cfr. também — 
La Valoración Juridica y la Ciência dei Derecho — pag. 9.
(9 ) Cfr. Teoria de la Verdad Jurídica — pag. 135.
145. Cfr. também •— 
65 e Panorama de la
(10) La Teoria Egológica . . . — pag.
La Valoración Juridica . . . — pag.
Teoria Egologica . . . — pag. 32.
(11) Que entre o normativismo lcelseniano e o egologismo de 
Cario'j Cossio está a decidir-se a solução que poderíamos cha­
mar atusl do problema da ciência do Direito prova-o a fa­
mosa polêmica há pouco sustentada pelos dois ilustres 
jusfilósoíos, polemica em que o observador desinteressado 
não poderia deixar de vislumbrar um certo mal-estar do 
pensador austríaco a um a cavsleiro realmente impressio- 
sssnte do professo* argentino. São documentos dessa polê­
mica ilustre: Kelsen-Cossio — Problemas Escogidon de la 
Tsoría Pura <is! Derecho — (Teoria Egológica y Teoria 
Pura) — Guilherme Karft — B . Aires — 1952 a resposta 
da Kelsen publicada em Revista de Estudos Políticos — 
n° 71 — Madrid — 1953 — pags. 3-40 e o contra-ataque 
de Cossio in Jus — Revista di Sc:onze Giuridiche — (pubJi-
.152
C I Ê N C I A D O D I R E I T O
cata per cura dell’Univerisità Cattolica dei Sacro Cuoro) 
Milano — Settembre — 1956 — Anno VII — Fase. III — 
(separata) .
Cfr. sôbre essa polêmica o comentário de Werner 
Goldschmidt irt Conduta y Norma — Libraria Jurídica Va- 
lerio Abeledo — B. Aires — 1955 — Cossio contra Kslsen
— pags. 19-54.
(12 ) Cfr. La Teoria Egológica . . . — psg . 154.
(13) Idem — pag. 263.
(14 ) Cfr. ENRIQUE R . AFTALIÓN — Critica al Saber do
los Juristas — Arayú Distribuidores Exclusivos — La
La Plata — 1951 — pag. 153.
(15 ) Idem — pag. 282.
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il ' •i '1)

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