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Leitura e escrita no ensino superior Cleuza Cecato Código Logístico 59065 Fundação Biblioteca Nacional ISBN 978-85-387-6565-3 9 7 8 8 5 3 8 7 6 5 6 5 3 Leitura e escrita no ensino superior Cleuza Cecato IESDE BRASIL 2021 Todos os direitos reservados. IESDE BRASIL S/A. Al. Dr. Carlos de Carvalho, 1.482. CEP: 80730-200 Batel – Curitiba – PR 0800 708 88 88 – www.iesde.com.br © 2021 – IESDE BRASIL S/A. É proibida a reprodução, mesmo parcial, por qualquer processo, sem autorização por escrito da autora e do detentor dos direitos autorais. Projeto de capa: IESDE BRASIL S/A. Imagem da capa: primiaou/JosepPerianes/Shutterstock/EnvatoElements CIP-BRASIL. CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ C382L Cecato, Cleuza Leitura e escrita no ensino superior / Cleuza Cecato. - 1. ed. - Curiti- ba [PR] : IESDE Brasil, 2021. 114 p. : il. Inclui bibliografia ISBN 978-85-387-6565-3 1. Leitura - Estudo e ensino (Superior). 2. Redação acadêmica. 3. Lín- gua portuguesa - Composição e exercícios. I. Título. 20-62435 CDD: 469.8 CDU: 811.134.3 Cleuza Cecato Doutoranda em Linguística Aplicada pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). Mestra em Linguística e graduada em Letras pela Universidade Federal do Paraná (UFPR). Tem experiência nos segmentos da educação básica, com especial dedicação ao ensino médio, além de ministrar aulas relacionadas à área de linguística em cursos de graduação e pós-graduação presenciais e na modalidade EaD. Agora é possível acessar os vídeos do livro por meio de QR codes (códigos de barras) presentes no início de cada seção de capítulo. Acesse os vídeos automaticamente, direcionando a câmera fotográ�ca de seu smartphone ou tablet para o QR code. Em alguns dispositivos é necessário ter instalado um leitor de QR code, que pode ser adquirido gratuitamente em lojas de aplicativos. Vídeos em QR code! SUMÁRIO 1 Tópicos de linguagem 9 1.1 Oralidade e escrita 10 1.2 Estrutura de sentença 24 2 Registros da língua portuguesa: diferenças e semelhanças 29 2.1 Escrita no cotidiano 30 2.2 Norma culta e preconceito linguístico 35 2.3 Variação linguística 38 3 Estratégias para elaboração de textos 46 3.1 Tipos e gêneros textuais 47 3.2 Fatores de textualidade 53 3.3 Coesão e coerência 62 4 Argumentação oral e escrita 67 4.1 O que é argumentação? 68 4.2 Textos argumentativos orais 71 4.3 Textos argumentativos escritos 78 4.4 Principais problemas de argumentação 82 5 Gêneros de escrita acadêmica 91 5.1 Tópicos de escrita acadêmica 91 5.2 Resenha 94 5.3 Relatório 97 5.4 Resumo 103 5.5 Artigo 108 Agora é possível acessar os vídeos do livro por meio de QR codes (códigos de barras) presentes no início de cada seção de capítulo. Acesse os vídeos automaticamente, direcionando a câmera fotográ�ca de seu smartphone ou tablet para o QR code. Em alguns dispositivos é necessário ter instalado um leitor de QR code, que pode ser adquirido gratuitamente em lojas de aplicativos. Vídeos em QR code! Este livro foi elaborado com a intenção de oferecer aos estu- dantes de ensino superior mais uma possibilidade de conhecer, compreender e escrever textos solicitados ao longo da formação acadêmica. Além disso, busca melhorar as nossas estratégias de comunicação no mercado de trabalho e em outras situações do decorrer de nossas vidas. Para tanto, esta obra foi dividida em capítulos que se propõem a estabelecer uma ligação entre o que se deve ter em mente com relação à produção de textos ao final da educação básica e o que se espera progredir nesse sentido nessa nova fase de aprendizado. O Capítulo 1 cumpre a função de oferecer uma revisão sobre algumas diferenças e semelhanças entre língua oral e escrita, além de abordar tópicos específicos de sinais de pontuação – sua utilização normativa e expressiva –, concordância, regência, estruturação de frases e parágrafos. No Capítulo 2, a atenção está voltada para as diferentes ma- nifestações da língua que geram os diversos tipos de variação linguística. O distanciamento entre cada variação e a norma- -padrão pode dar origem a manifestações de preconceito com quem fala de diferentes maneiras, e não deixamos de conside- rar como isso aparece em questões de avaliações oficiais ou no nosso dia a dia. O Capítulo 3 contém análises e exemplos de diferentes gê- neros de texto e das maneiras de elaborá-los, considerando fatores como situacionalidade, informatividade e intertextuali- dade, bem como passando por análises de coesão e coerência com base em exemplos clássicos, na atualização das discussões e no diálogo que podemos estabelecer entre eles. No Capítulo 4, nosso enfoque são os textos argumentati- vos em sua realização oral ou escrita. A ideia é exemplificar e oferecer análises relacionadas a estratégias de elaboração com escolha de estrutura e conteúdo para textos que se propõem a expor e defender um ponto de vista. Para alcançar esses obje- tivos, a abordagem da argumentação se dá pela leitura de pis- tas e sinais, como nas narrativas de detetive, o que facilita as APRESENTAÇÃOVídeo analogias necessárias para a leitura e a produção de textos que demandam interpretação de perspectivas. O Capítulo 5 é destinado a discutir métodos de leitura e escrita de diferen- tes textos acadêmicos. Resumo, resenha, relatório e artigo são gêneros muito solicitados ao longo do ensino superior e por isso mereceram uma atenção especial nesta obra, sempre com aspectos práticos e exemplos para elabora- ção desses textos. Com base nessas propostas de leitura e escrita de textos, esperamos apre- sentar e/ou consolidar estratégias de escolha de vocabulário e organização de ideias, com a finalidade de comunicar melhor, despertando a curiosidade para pesquisar outras obras e desenvolver suas próprias estratégias de autoria e compreensão de textos diversos. Boa leitura e bons estudos! Tópicos de linguagem 9 O ensino superior é uma etapa de formação em nossos estu- dos que exige um passo a mais no entendimento sobre a língua escrita e falada. Até a entrada na faculdade, nossa preocupação está mais relacionada a fazer boas redações escritas que serão exigidas nos vestibulares e no Enem. Agora, nessa nova etapa, precisamos exercitar mais e melhorar a utilização oral e escrita da língua, pois seremos exigidos e estimulados a fazer isso em dife- rentes ocasiões ao longo de nossa formação. Por isso, no ensino superior, é fundamental fazermos algumas perguntas, como: o que sabemos sobre língua escrita e falada? Quais são nossas principais dúvidas? Onde podemos nos orientar melhor a respeito de fala e escrita? Como melhorar nossa rela- ção com a leitura, a fala e a escrita? Todas essas e outras tantas questões podem nortear nossa curiosidade e nosso aprendizado, melhorando nossas estratégias de comunicação. Perguntar sobre como podemos utilizar nosso idioma em favor de nosso aprendi- zado, em qualquer momento de nossa formação como estudan- tes, deve ser uma ação constante, que nos ajude a melhorar nosso entendimento sobre o mundo à nossa volta. Nossa intenção é começar por tópicos que frequentemente ge- ram medo de escrever, ou até informações incorretas sobre como devemos utilizá-los. Nosso ponto de partida é trabalhar com algu- mas reflexões sobre a escrita, que é uma ação mais complexa que a fala, e sobre elementos essenciais à comunicação pelo registro escrito: pontuação e organização de palavras em frases. Contudo, primeiro apresentamos uma breve discussão sobre a oralidade, que precede a escrita. Assim, passo a passo, conseguimos enten- der e utilizar a escrita nas situações em que mais precisamos dela, inclusive compartilhando nossos desafios, receios e sucessos. Tópicos de linguagem 1 10 Leitura e escrita no ensino superior 1.1 Oralidade e escrita Vídeo Ao elaborarem, no final dos anos 1990, um manual para ensino de língua portuguesa e escrita no ensino superior,Faraco e Tezza (2003) didatizaram e trouxeram uma proposta de reconhecimento de regis- tros de língua muito importante para o cotidiano de estudantes de graduação. Nesse manual, eles reafirmaram o que Bakhtin já havia consolidado em seu livro Estética da criação verbal (2011): a escrita foi criada pelo ser humano como uma maneira de continuar a oralidade, ou seja, de completar o processo de comunicação em circunstâncias em que a oralidade somente já não conseguia mais fazê-lo (FARACO; TEZZA, 2003). As menções à escrita e à oralidade são muitas, e poderíamos ex- plorar de várias maneiras essa dualidade no processo de registro e utilização de uma língua. No entanto, o que não devemos deixar de considerar é que, muitas vezes e há até bem pouco tempo, a orali- dade era considerada um registro de menor importância ou que dis- torcia a realidade da língua. Isso mudou bastante quando, no início do século XX, a linguística passou a dar uma atenção mais cuidadosa às possibilidades de explicar fenômenos de linguagem com base em registros da fala. Outro processo muito importante a ser compreendido nessa con- tinuidade – ou complementaridade – da fala e da escrita é que a fala é adquirida e desenvolvida por nós em situações simples do dia a dia, enquanto a escrita geralmente só é adquirida de maneira mais formal, em ambientes como a escola, no processo de alfabetização. Podemos explorar um pouco mais essa concepção de aprendizado natural e não natural lendo um trecho do livro Guia de escrita, escrito pelo linguista Steven Pinker (2016, p. 41): A fala e a escrita diferem em seus mecanismos, é claro, e essa é uma das razões pelas quais as crianças precisam lutar com a escrita: reproduzir os sons da língua com um lápis ou com o teclado requer prática. Mas a fala e a escrita diferem também de outra maneira, o que faz da aquisição da escrita um desafio para toda uma vida, mesmo depois que seu funcionamento foi dominado. Falar e escrever envolvem tipos diferentes de rela- cionamentos humanos, e somente o que diz respeito à fala nos chega naturalmente. A conversação falada é instintiva porque Oficina de texto é o nome de um manual, elaborado por Carlos Alberto Faraco e Cristóvão Tezza, que já passou por diversas reedições desde seu lançamento, no final dos anos 1990. As propostas de exercícios são feitas com base em diferentes gêneros de leitura e escrita, contemplando as dúvidas e dificuldades mais significativas dos estudantes, principalmente naquele pe- ríodo, quando a internet ainda não era popularizada como fonte de produção e divulgação de conteúdo sobre ensino de língua e escrita. Em Estética da criação verbal, traduzido e publicado no Brasil no final da década de 1990, Bakhtin trabalha com as definições relacionadas à teoria literária, como as relações entre as personagens e o papel do autor. Para tanto, empregou muitas concepções e aborda- gens relacionadas à escrita e à oralidade, que foram depois utilizadas em vários materiais para ensino de habilidades de comunicação. Leitura Tópicos de linguagem 11 a interação social é instintiva: falamos às pessoas “com quem temos diálogo”. Quando começamos um diálogo com nossos interlocutores, temos uma suposição de que já sabem e do que poderiam estar interessados em aprender, e durante a conver- sa monitoramos seus olhares, expressões faciais e atitudes. Se eles precisam de esclarecimentos, ou não conseguem aceitar uma afirmação, ou têm algo a acrescentar, podem interromper ou replicar. Neste trecho, Pinker (2016) evidencia a naturalidade da fala, e a escrita como invenção. Além disso, o autor antecipa a ideia de como ambas mobilizam diferentes habilidades a serem realizadas em nosso processo de comunicação. Por essa razão, é importante destacar o va- lor da fala para a inserção social e a possibilidade de reelaboração que ela permite ao longo das interações de comunicação. Podemos cons- tatar, desse modo, que escrever é uma ação artificial, uma maneira de “fazer de conta”, já que não recebe os retornos imediatos dos interlocu- tores, como acontece com a fala. Para entender melhor as relações entre oralidade e escrita, é preci- so, dentre outras ações, mudar a perspectiva de análise: não se pode apenas observar a língua (o código) para termos uma percepção com- pleta dos dois registros, mas também é necessário ver seu uso no coti- diano, em nossas práticas sociais. Podemos nos perguntar: por que às vezes a fala é suficiente e, em outras ocasiões, é imprescindível utilizar a escrita? A resposta a essa pergunta passa pelas práticas sociais es- tabelecidas pelo uso da língua. Por exemplo, quando precisamos que determinada informação seja documentada e arquivada como com- provação de uma transação (como a compra e venda de uma casa), utilizamos a escrita. Porém, quando precisamos de alguma informação rápida, que não precisa ser armazenada como comprovação (como perguntar onde é certo lugar), preferimos utilizar a fala. Em situações de maior informalidade, nas quais podemos ficar mais descontraídos, além de a fala ser o veículo de comunicação, utilizamos também palavras mais simples e gírias, fazemos brincadeiras com a linguagem e não nos preocupamos tanto com as formalidades mais es- pecíficas da comunicação. Costumamos chamar esse processo de fle- xibilização dos usos da língua de adequação linguística. Isso quer dizer que, quando falamos – ou mesmo escrevemos – em contextos mais ou menos familiares, podemos escolher o grau de formalidade com que O cenário do filme Nar- radores de Javé é a cidade de Gameleiro da Lapa, no interior da Bahia. O enredo está centrado na necessi- dade que surge de os mo- radores de uma localidade chamada Javé contarem sua história, já que o lugar está ameaçado por cau- sa da construção de uma usina hidrelétrica e não há registro da existência des- sa comunidade. O conflito começa a se desenrolar quando os moradores se dão conta de que quase todos são analfabetos. A função de contar a histó- ria concentra-se no per- sonagem Biá (o único que sabe ler), vivido por José Dumont. Para contar a história, ele começa a pere- grinar pelas casas e colher informações dos morado- res. É aí que nossa atenção precisa ficar mais aguçada: nessas entrevistas, a cul- tura, os costumes, a iden- tidade e a relação com a construção do idioma se revelam e intensificam Direção: Elaine Caffé. Brasil, França: RioFilme, 2004. Filme 12 Leitura e escrita no ensino superior vamos nos comunicar. Para exemplificar esses movimentos de adequa- ção, podemos fazer comparações com as vestimentas que usamos: ir à praia de paletó não é adequado, assim como ir apresentar um seminá- rio não condiz com chinelos e calção de praia. Esses estereótipos exa- gerados são empregados justamente para que possamos mobilizar a imagem de adequação ou inadequação de usos da linguagem, conside- rando a formalidade e a informalidade, tanto na escrita quanto na fala. Será que a fala sempre teve lugar de destaque na representação e na reflexão sobre a língua? No Brasil, por exemplo, a fala começou a ter lugar de discussão, inclusive nas artes, somente a partir do início do século XX, no movimento modernista. Assim como a escrita, a fala faz parte da construção da identidade nacional, e foi o Modernismo que conseguiu introduzir registros de oralidade na representação do que é a identidade brasileira. Um exemplo de registro de que não só a fala é diferente da escrita, como também existem variações dependendo da situação de comuni- cação (e de outras características que envolvem o universo dos falan- tes), foi feito por Oswald de Andrade no poema Pronominais 1 . Nele, o poeta relata como as regras estabelecidas pela gramática tradicional prescrevem um simples pedido de cigarro, com o verso “Dê-me um ci- garro”, e como as pessoas, no cotidiano, pedem dizendo “Me dá um cigarro”. Essa simples variação de colocação do pronome oblíquo me antes ou depois do verbo ainda hojeé tratada de maneira diferente em diversas ocasiões, quando se obedece ou não à prescrição gramatical. É possível constatarmos que, se hoje a oralidade é objeto de es- tudos e análises linguísticas, isso foi acontecendo com o passar do tempo, principalmente com a identificação de que a fala é parte fun- damental de nossa relação com o mundo e de que a escrita é im- prescindível para que isso ocorra (quando a fala não consegue). Por exemplo, neste livro, utilizamos a escrita para registrar e organizar uma série de informações e orientações a respeito dos estudos da linguagem. Isso ocorre porque o registro escrito nos permite procurar alguma informação especificamente em páginas e parágrafos, e não contamos apenas com a memória para armazenar o que ouvimos ou falamos. A escrita é, desse modo, responsável por transmitir informa- ções padronizadas para um maior número de pessoas e deixarmos isso registrado para consulta. Atividade 1 É importante entender a orali- dade e a escrita como registros que se complementam em uma língua? Por quê? Caso a resposta seja afirmativa, como podemos fazer isso? Para a leitura do poema Pronominais, acesse o link: https://www.escritas.org/ pt/t/7793/pronominais. Acesso em: 20 jan. 2020. 1 Prescrição gramatical é a orientação ou determinação de uso feita pela gramática tradicional para que se obedeça ao padrão formulado a partir de usos considerados corretos da língua. É importante destacar que a prescrição gramatical não se altera de maneira tão rápida, por exemplo, quanto a fala, pois ela segue estruturas já cristalizadas e estabelecidas na língua. Isso nos leva a perceber uma grande diferença entre o que a gramática determina e o que utilizamos em diferentes ocasiões de comunicação (faladas ou escritas). Saiba mais+ https://www.escritas.org/pt/t/7793/pronominais https://www.escritas.org/pt/t/7793/pronominais Tópicos de linguagem 13 Uma das características essenciais para diferenciar a escrita em re- lação a qualquer outro tipo de manifestação de linguagem é o uso dos sinais de pontuação. Por isso, vamos começar conversando um pouco sobre as principais ocorrências desses sinais e como podemos inter- pretá-los e utilizá-los em textos escritos. É importante destacar que não pretendemos listar, como se faz em uma gramática, todo e qualquer uso da pontuação. Como nossa ideia é oferecer a você um manual que interprete e explore as ocorrências mais significativas e estratégicas, é delas que vamos nos valer, inclusive para os exemplos. Vamos analisar juntos? 1.1.1 Pontuação Você já ouviu ou disse que a vírgula aparece no texto escrito para que se possa respirar ao longo da leitura? Pois é, esse e outros mitos sobre a pontuação utilizada na escrita passam de geração para geração e é preciso muita leitura, maturidade e reflexão para que possamos abandoná-los e entender que a relação entre pontuação e escrita tem outras origens e funcionalidades. Para começar esta análise, vamos logo compreender que a vírgula não é sinal de respiração por um simples motivo: a fala veio antes da escrita. O sinal gráfico não comanda a fala, mas procura representá-la, mostrando como ela se realiza; com relação à pontuação, é a fala que orienta como se organiza a escrita. Vamos tratar, desse modo, dos sinais de pontuação em português e das principais funções que eles exercem. É importante lembrar que, para as situações em que vamos utilizar a escrita no ensino superior, saber utilizar adequadamente a pontuação é um passo muito importante para que não haja distorção ou interpretação inadequada do que desejamos comunicar. A organização sintática é a forma ou a ordem em que as palavras são empregadas na língua para que as informações façam sentido. A organização mais comum das frases em português é sujeito, verbo e objeto (então, são colocados outros elementos). Os manuais de língua portuguesa que tratam da sintaxe geralmente chamam essa sequência de ordem canônica, ou seja, é a ordem tradicional e mais utilizada. Saiba mais+ Agora, vamos aproveitar para revisar e, quem sabe, conhecer algum novo emprego dos sinais de pontuação que vemos em textos escritos e que podemos utilizar em nossos textos? O documentário Língua: Vidas em português é uma narrativa muito importan- te, poética e emocionante sobre como, todos os dias, mais de 200 milhões de pessoas pensam, falam, escrevem, sofrem, ficam felizes, declaram seus amo- res e revelam suas tristezas em língua portuguesa. A mistura do português com as línguas locais e de fron- teiras nas ex-colônias por- tuguesas é celebrada nes- sa obra-prima, que conta com depoimentos de José Saramago, Mia Couto, Mar- tinho da Vila, João Ubaldo Ribeiro e outros tantos representantes anônimos e famosos do uso cotidia- no e da reinvenção desse idioma. Diretor: Victor Lopes. Portugal, Brasil: TV Zero, 2001. Documentário Atividade 2 Por que usamos os sinais de pontuação na escrita de textos? Justifique sua resposta. Justifique sua resposta. 14 Leitura e escrita no ensino superior É empregado para fechar os períodos, sinalizando a fi- nalização de um raciocínio, ou em final de abreviações. • Exemplo de finalização de período: “Fui à biblioteca e encontrei três livros que podem ajudar a compor a parte teórica do trabalho de conclusão de curso”. • Exemplo de abreviação: rev. (em vez de revisão), org. (em vez de organizado ou organização). Ponto-final . Vírgula É utilizada para separar itens com mesmo valor em uma sequência ou para indicar o deslocamento de um trecho da frase, de uma oração inteira ou de uma expressão. Há vá- rias outras ocorrências, mas vamos lembrar que não esta- mos listando todas as funções do emprego de pontuação. • Exemplo de enumeração: “Estivemos no ambiente de pesquisa e lá conseguimos colher dados, informar as pessoas e aplicar a metodologia”. A vírgula separa e, ao mesmo tempo, une os itens, uma vez que todos os itens (colher dados, informar as pessoas e aplicar a metodologia) estão ligados ao verbo conseguimos. Repare também que o último item da sequência é introdu- zido por e, e não por vírgulas, pois é a última ação listada. • Exemplo de deslocamento: “Testei, no decor- rer da pesquisa, várias possibilidades de aplicação metodológica”. Note que a expressão no decorrer da pesquisa está en- tre vírgulas justamente porque está deslocada. O lugar a ela destinado, de acordo com a ordem sintática tradicio- nal, é o final da frase, o que dispensaria a vírgula: “Testei várias possibilidades de aplicação metodológica no decor- rer da pesquisa”. (Continua) , Tópicos de linguagem 15 Há situações em que o emprego da vírgula altera o sentido da informação, como em: a. Liguei para minha irmã que tem dois cachorros para perguntar o que fazer com meu gato. b. Liguei para a minha irmã, que tem dois cachorros, para perguntar o que fazer com meu gato. Enquanto a ausência das vírgulas em A marca uma res- trição para a informação (tenho várias irmãs e liguei espe- cificamente para aquela que tem dois cachorros), em B, a inserção das vírgulas indica uma explicação sobre minha irmã (tenho uma irmã e, por acaso, ela tem cachorros). Essa diferença específica na informação revelada pela presença (explicação) ou ausência (restrição) de vírgulas deve ser pensada sempre por nós na elaboração de nossos textos. Guarde esse exemplo e essa informação e utilize como com- paração na hora de elaborar seus textos. Com o passar do tempo, essa percepção da necessidade ou não da vírgula fica mais fácil e você passa a empregá-la automaticamente. Pode separar informações de períodos que se equili- bram em valor de importância ou ser empregada em uma sequência de itens. • Exemplo de informações que se equilibram: “De um lado, as informações foram colhidas; de outro, ainda não sabemos o que fazer com elas”. • Exemplo de sequência de itens: “Para a realização da pesquisa, precisamos considerar: ambiente dispo- nível; esfera de circulaçãode informações; aplicação da metodologia e outras contingências”. Ponto e vírgula ; 16 Leitura e escrita no ensino superior Dois-pontos Em geral, são utilizados para indicar uma sequência de informações ou uma explicação. • Exemplo de sequência de itens: “Para a realização da pesquisa, precisamos considerar: ambiente dis- ponível; esfera de circulação de informações; aplica- ção da metodologia e outras contingências”. • Exemplo de explicação: O dado é muito significa- tivo: cem milhões de brasileiros, quase metade da população, não têm acesso a saneamento básico. : Em geral, aparecem para indicar que há uma informação ou um raciocínio subentendido ou um trecho de texto proposital- mente retirado. Nesse último caso, pode-se empregar o sinal de reticências entre parênteses ou colchetes. • Exemplo de raciocínio subentendido: “Eu gostaria de ter feito a pesquisa, o relatório e todo o texto do traba- lho de conclusão, mas...” • Exemplo de trecho de texto retirado: [...] agora habitamos, de modo sem precedentes, dois mundos diferentes – o “on-line” e o “off-line” –, ainda que sejamos capazes de passar de um para outro de forma tão suave, a ponto de isso ser, na maioria dos casos, imperceptível, de vez que não há nem frontei- ras demarcadas ou controles de imigração entre elas, nem agentes de segurança para verificar nossa ino- cência ou funcionários da imigração checando nossos vistos e passaportes. Com muita frequência conse- guimos estar nos dois mundos ao mesmo tempo [...]. Pode-se fazer uma longa lista de diferenças entre os dois mundos, mas uma delas parece ter mais peso sobre nossas reações aos desafios da “crise migrató- ria’. (BAUMAN, 2017, p. 101) Reticências ... Tópicos de linguagem 17 Travessão Pode ser empregado para indicar falas em um diálogo ou para conter uma informação secundária ou explicativa. • Exemplo de diálogo: “— Quem saiu mais cedo ontem? — Eu saí para fazer as pesquisas do projeto”. • Exemplo de informações extras: “Cem milhões de brasileiros — quase metade da população, portanto —não têm acesso à coleta de esgoto”. A constatação de que 100 milhões de brasileiros perfazem quase metade da população total do país não é necessária para a informação principal. Além do uso de travessões para separá-la do restante do conteúdo, poderiam ser emprega- dos parênteses ou vírgulas sem que houvesse alteração de sentido. Nesses casos, a escolha depende mais do estilo de escrita ou das estratégias de pontuação do autor do texto. — São empregados, em geral, para conter informações secun- dárias ou explicativas sobre o que está escrito fora dos parên- teses. Podem ser substituídos por vírgulas ou travessões. Além disso, como tratamos aqui de escrita, principalmente no ensi- no superior, é importante destacar o uso de parênteses para inserir autor e ano em citações na elaboração de trabalhos acadêmicos. • Exemplo de informações extras: “Cem milhões de bra- sileiros (quase metade da população portanto) não têm acesso à coleta de esgoto”. Note que o exemplo é o mesmo utilizado para ilustrar o uso de travessões. • Exemplo de uso em citação: A tarefa do professor de redação começa a partir do texto escrito pelo aluno e [...] essa tarefa é a orientação da reescrita desse texto para ajudar seu autor a des- cobrir o que ele queria dizer e a reescrever a primeira versão para fazê-la dizer isso. (GUEDES, 2009, p. 13-14) Parênteses ( ) 18 Leitura e escrita no ensino superior Ponto de interrogação Utilizado para fazer perguntas diretas. • Exemplo: “Quanto precisamos ler para ter repertó- rio suficiente para escrever bem? Onde encontra- mos as melhores informações sobre fala e escrita?”. ? Utilizado em frases exclamativas para indicar sen- timentos como surpresa, alegria ou espanto. Tudo isso também pode ser revelado por meio do uso de frases imperativas ou interjeições acompanhadas do ponto de exclamação. • Exemplo: “Capaz que é possível escrever bem sem fazer muita leitura!”. Nesse caso, inclusive, a surpresa é reforçada pelo emprego da palavra capaz, que faz a função de interjei- ção – classe utilizada para indicar surpresa ou quebra de expectativa. Ponto de exclamação ! Aspas Podem ser empregadas para indicar fala em diálogos, citações diretas, mudança de sentido em palavras ou expressões e nomes de obras. • Exemplo de diálogo: “Quem saiu mais cedo ontem?” “Eu saí para fazer as pesquisas do projeto.” Note que o exemplo de diálogo empregado é o mesmo utilizado para ilustrar o uso de traves- são indicando essa ação. • Exemplo de citação: “É mais fácil quebrar um átomo do que um preconceito” (Albert Einstein). • Exemplo de mudança de sentido: “Na aula seguinte, os estudantes foram ‘infor- mados’ sobre os direitos e deveres”. (Continua) “ ” Tópicos de linguagem 19 Observe que o uso de aspas na palavra infor- mados indica que deve ser feita uma interpreta- ção diferente da usual. Pode ser, inclusive, que a maneira como eles foram informados não tenha sido a mais adequada (o uso das aspas permite essa e outras interpretações). Trata-se, aqui, de uma figura de linguagem (ironia), que consiste em dizer exatamente o contrário do que a pala- vra escolhida deveria indicar. • Exemplo de citação de obra: “Com a pu- blicação de ‘Modernidade líquida’, o filó- sofo polonês Zygmunt Bauman explica o comportamento da população ocidental contemporânea”. Como é possível perceber com essa sequência de informações so- bre os sinais de pontuação, eles podem ser empregados em diferentes contextos e indicar diversas interpretações. 1.1.2 Concordância Algumas relações entre as expressões dentro das frases são mais evidentes em algumas línguas. Por exemplo, em português, as relações de concordância e regência são muito produtivas e alteram o sentido das mensagens faladas ou escritas. Vamos iniciar nossa exploração pe- las relações de concordância. Para começar, em uma afirmação como “Os trabalhos de conclu- são de curso foram entregues no prazo”, as palavras em negrito estão todas no plural por causa das regras de concordância verbal e nominal. Podemos definir concordância como a relação entre uma palavra e outra dentro de uma frase, que promove a influência entre elas para que fiquem todas no singular ou no plural, no masculino ou no fe- minino. No caso dos verbos, a concordância de número e de pessoa surge no lugar do gênero. Nesses casos, há palavras específicas que se relacionam entre si – por exemplo, em “os trabalhos”, o artigo os (masculino plural) é chamado de determinante e acompanha a forma do substantivo trabalhos (masculino plural). Nas relações de concor- determinante: é o nome dado a palavras que acompanham os substantivos. Assim, ao lermos ou falarmos o determinante em uma frase (antes do substanti- vo), já sabemos as informações sobre singular ou plural e feminino ou masculino. Glossário 20 Leitura e escrita no ensino superior dância nominal, quem define o número e o gênero é o substantivo. Na concordância verbal, é o verbo, como núcleo da frase, quem selecio- na e define número e pessoa. No caso da concordância verbal, a relação deve se estabelecer entre o verbo e o sujeito a ele relacionado. Em “Os trabalhos foram entre- gues”, é o substantivo trabalhos (plural) que determina a forma verbal plural foram (terceira pessoa do plural). Até esse ponto, parece muito simples e basta obedecer à lógica da língua para não cometer deslizes de concordância. No entanto, existem algumas situações em que as dúvidas podem ser mais difíceis de solucionar. É possível, por exemplo, que você já tenha ficado em dúvida em relação a uma frase como “faz/fazem dez anos que trabalho aqui” ou ainda “haverá/haverão dias melhores”. Nos dois casos, a escolha ade- quada é pela forma singular: “faz dez anos” e “haverá dias melhores”, considerando que “dez anos” e “dias melhores” não são expressões que se tornam sujeito das orações. Também é uma relação de lógica,como nas outras situações de concordância, mas é preciso identificar a lógica das orações sem sujeito e o uso de verbos impessoais, como ocorre nesses dois casos. Em outras situações como em “O grupo de mulheres foi/foram levado/ levadas ao escritório”, o verbo precisa concordar com “o grupo” ou “mulhe- res”? As duas formulações são aceitas, mas a mais comum é “O grupo de mulheres foi levado ao escritório.” Em outras situações, como quando se emprega o verbo ter, o singular ou o plural de terceira pessoa é identifica- do apenas por um acento: “A pesquisa tem chance de publicação” (terceira pessoa do singular) ou “As pesquisas têm chance de publicação” (terceira pessoa do plural). Como você já deve ter percebido, não estamos fazendo uma se- quência de regras sobre os tópicos de que tratamos neste capítulo, mas abordando as principais dúvidas e exigências que podem apare- cer pelo caminho, ao longo de sua experiência na graduação. Como os problemas e dúvidas em relação à concordância verbal são sempre em maior número e mais expressivos, a maioria de nossos exemplos aqui é sobre esse tipo de concordância. Você pode considerar os exemplos aqui empregados como pontos de partida para explicar e entender me- lhor as relações de concordância que definem os usos do português padrão na contemporaneidade. Objeto direto é um complemento que se liga a verbos transitivos diretos. É assim denominado porque a ligação entre o verbo e esse complemento não é interme- diada por preposição. Ex.: “Comi arroz e feijão ontem” (não há preposição entre a forma verbal comi e o complemento arroz e feijão). Já objeto indireto é um complemento que se liga a verbos transitivos indiretos. É assim denominado porque a ligação entre o verbo e esse complemento é intermediada por preposição. Ex.: “Cheguei ao consultório mais cedo” (há preposição entre a forma verbal cheguei e o complemento consultório). Saiba mais+ Tópicos de linguagem 21 1.1.3 Regência Você já percebeu que, em alguns casos, o à se escreve assim, com acento grave? E será que existe diferença entre “Você assistiu ao filme” e “Você assistiu os doentes”? As duas situações, tanto do à quanto do uso do verbo assistir, são exemplos de regência, que é uma espécie de relação de comando estabelecida entre nomes (substantivos, adjetivos e advérbios) ou verbos e seus complemen- tos (objetos diretos e indiretos). Assim como no caso da concordância, os exemplos de regência de que vamos tratar aqui são os que mais geram dúvidas quando preci- samos utilizá-los na fala ou na escrita. Por isso, não é necessário se as- sustar com termos como objeto direto e indireto, ou outros que vamos encontrar nos exemplos; basta entender, mais uma vez, que a língua não é um objeto ou um instrumento estático e que questões de regên- cia também estão em constante transformação. As duas perguntas sobre o verbo assistir que iniciam este tópico es- tão relacionadas à diferença de sentido atribuída às ocorrências desse verbo quando se afirma ter assistido a algo (em que alguém viu algo) ou ter assistido algo (em que alguém ajudou). Caso você não perceba mais essa diferença na fala ou mesmo encontre muitos textos escritos sem que haja essa diferenciação de regência, fique tranquilo: você não é o único, e o verbo assistir é nosso tema justamente por isso. O que precisamos compreender é que há uma mudança em curso. E o que isso quer dizer exatamente? Quer dizer que as regras gramati- cais não controlam o uso da língua e, por isso, os falantes promovem alterações que, às vezes, passam a ser incorporadas na escrita. Esse é o caso, por exemplo, desse verbo. Com o passar do tempo, a diferença entre assistir e assistir a vem sendo apagada pelos falantes, e a regên- cia predominante, inclusive em textos escritos, tem sido a regência de verbo transitivo direto (sem o a). Isso quer dizer que, quando alguém afirma “Assisti o debate para realizar a pesquisa”, não está se referindo a ter ajudado o debate a acontecer, mas a ter visto o debate, mesmo não utilizando a preposi- ção. Nesse ponto, você pode se perguntar: o que está certo e o que está errado? Vamos lá: para estar em conformidade com a norma-padrão, ou seja, se você vai escrever um texto para submetê-lo a uma avaliação Como as línguas mudam com o tempo, quando há uma trans- formação acontecendo (que passamos a perceber na fala ou na escrita), afirmamos que há uma mudança em curso, ou seja, que estamos presenciando uma mudança acontecer em relação à língua. Saiba mais+ norma-padrão: conjunto de regras prescritas para o uso da língua falada e escrita em situa- ções formais de comunicação. Glossário 22 Leitura e escrita no ensino superior ou publicá-lo em algum lugar, é importante manter a diferença entre as duas regências (com ou sem a), deixando claro, por exemplo, que “Todos os alunos assistiram ao debate para realizar a pesquisa”. Há vários outros verbos que passam pelo mesmo processo e apre- sentam, inicialmente, sentidos diferentes devido à regência, como visar: a. “A pesquisa visa a responder a uma questão muito importante” (visar a = ter o objetivo de). b. “O jogador visou o gol e chutou com efeito” (visar = mirar). E aspirar: a. “O pesquisador aspira a uma publicação acadêmica” (aspirar a = desejar, querer, almejar). b. “Depois de escrever o relatório, precisava aspirar o ar fresco da manhã” (aspirar = cheirar, inalar). O que é importante guardar e compreender quanto à regência em geral é o que estamos explorando aqui: às vezes, há mudança de sen- tido quando um verbo é empregado com objeto direto ou indireto. En- fim, a melhor estratégia para saber qual é a regência adequada para um verbo é ver como ele já foi utilizado em outros textos, em situações e contextos parecidos com aquele em que você deseja empregá-lo. No entanto, um caso de regência merece atenção especial. No come- ço desta subseção, uma das questões que levantamos é sobre o a escrito com acento grave. Nesse caso, o acento indica que houve a soma entre dois a (o artigo e a preposição), ou seja, uma crase. É uma questão que merece cuidado, principalmente porque, em um texto, uma crase em local inapropriado fica bastante visível e pode sugerir falta de compreen- são sobre os mecanismos que regem a organização da língua. Vamos à compreensão do processo que gera a crase em português. São sempre dois a somados. Mesmo quando temos pronomes como àquela, àquele ou àquilo, o que se soma são os dois a. Isso quer dizer que o ambiente linguístico precisa proporcionar essa ocorrência, ou seja, é preciso que um verbo exija a preposição a, que será contraída com o artigo a que antecede um substantivo feminino, nome de loca- lidade ou expressão de modo ou circunstância (vamos tratar de cada item a seu tempo). Assim, temos “Vou à escola hoje”, pois: Tópicos de linguagem 23 a. Quem vai, vai a algum lugar (o verbo ir exige a preposição a para se ligar a seu complemento, pois é transitivo indireto). b. Escola é substantivo feminino, antecedido pelo artigo a. Mas qual é a diferença entre as duas frases a seguir? a. Precisamos chegar à configuração adequada para o programa (chegar a + a configuração). b. Precisamos chegar a configurações adequadas para o programa (chegar a + configurações). É preciso perceber, nesse caso, que o substantivo configuração está no singular em (a) e no plural sem artigo precedendo-o em (b). Caso houvesse esse artigo em (b), ele precisaria estar no plural e, então, te- ríamos ocorrência de crase. Como temos apenas a preposição, o acen- to grave não deve ser colocado. Há outros casos de ocorrência de crase que precisam ser observa- dos: ela ocorre em expressões adverbiais formadas a partir de substan- tivos femininos, como à toa, à beira e à vista. Mas cuidado: por causa de expressões como à vista, é comum que as pessoas escrevam a prazo ou a partir também com acento grave. O raciocínio pode parecer adequa- do: se à vista tem acento grave, as outras expressõestambém teriam. No entanto, prazo é palavra masculina (que não pode ser antecedida pelo artigo feminino a) e partir é verbo. Nesse ponto, chegamos a mais uma descoberta: verbos e substanti- vos masculinos não podem ser antecedidos por artigo feminino. Assim, com relação à crase, procure sempre observar se: a. a antecede um substantivo feminino; b. a e o substantivo estão no singular ou no plural. Se ainda ficar difícil identificar a ocorrência ou não de acento grave, substitua a palavra depois do a por um substantivo masculino. Assim: a. Vamos à escola hoje Caso você não saiba se deve colocar acento grave ou não nesse caso, troque escola por colégio. b. Vamos ao colégio hoje Como a estrutura ficou ao colégio, significa que temos a preposição a (exigida pelo verbo ir) e o artigo o (a + o = ao). Isso quer dizer que, no feminino, teremos também a preposição a e o artigo a (a + a = à). Há vários materiais on-line que indicam os usos de pontuação, concordância verbal e nominal e regência em português. Quando as dúvidas surgirem, você pode consultar qualquer manual e utilizá-lo da melhor maneira possível! Uma sugestão é o Manual de Editoração da Embrapa, que apresenta a explicação e alguns exemplos dos usos dessas normas e está disponível para consulta. Disponível em: https://www. embrapa.br/manual-de-editoracao/ gramatica-e-ortografia/normas- gramaticais. Acesso em: 20 jan. 2020. Site https://www.embrapa.br/manual-de-editoracao/gramatica-e-ortografia/normas-gramaticais https://www.embrapa.br/manual-de-editoracao/gramatica-e-ortografia/normas-gramaticais https://www.embrapa.br/manual-de-editoracao/gramatica-e-ortografia/normas-gramaticais https://www.embrapa.br/manual-de-editoracao/gramatica-e-ortografia/normas-gramaticais 24 Leitura e escrita no ensino superior Outra sugestão: quando ficar difícil entender se uma estrutura de regência exige ou não acento grave indicando crase, releia as orienta- ções, organize um esquema de estudos para você do jeito que julgar mais adequado e consulte-o sempre que necessário. O mais importan- te é que você não se esqueça de que, com relação à língua falada ou escrita, estamos sempre aprendendo e precisamos estar dispostos a fazê-lo. 1.2 Estrutura de sentença Vídeo Existe uma organização das frases na fala ou escrita? Quem determi- na essa organização e como isso acontece? O professor Sírio Possenti (1996) já comparou o funcionamento da língua com a astronomia, ex- plicando que entender as regras de fala e escrita como sendo inventa- das pelas gramáticas e impostas a quem fala e escreve é o mesmo que imaginar os astrônomos definindo a órbita dos astros. Esse é um exem- plo bastante visível de como podemos nos relacionar com a língua que utilizamos para nos comunicar: ou aceitamos que ela faz parte de nos- sa cultura e está sujeita a mudanças, ou ficamos restritos a uma sim- ples classificação em certo e errado, de acordo com a norma-padrão. Neste ponto de nossos estudos, quando já tratamos da pontuação como marca importante da comunicação escrita e de segmentos me- nores orientados pela regência e pela concordância, vamos dar mais um passo no sentido da organização de nossa comunicação. Trata-se da organização das palavras em uma frase ou sentença. Em português, assim como em outras línguas que obedecem a uma organização sin- tática, a ordem em que as palavras são colocadas é fundamental para determinar o que é mais importante ou evitar duplo sentido. Para que possamos ser entendidos quando falamos ou escrevemos, precisamos organizar a mensagem que desejamos transmitir em uma estrutura que seja reconhecida por falantes e leitores de nosso idioma como uma informação interpretável. É muito comum, quando se explica essa necessidade, a utilização de exemplos como “Fechou porta João a” justamente para deixar claro que se trata de uma sentença não reconhecível em língua portuguesa. Entretanto, nenhum falante ou autor de texto elabora uma sentença Atividade 3 Como a regência e a concordân- cia ajudam a explicar o funcio- namento da língua portuguesa? Justifique sua resposta. Tópicos de linguagem 25 assim, pois ela não faz parte das possibilidades de distorção de estrutu- ra de frases em português. No entanto, observe as estruturas a seguir: a. Acreditam que a relação dos gestores e professores, um diálogo fará os estudantes entenderem. b. Muitas pessoas atualmente estão sendo prejudicadas de tal forma em que alergias estão bem comuns na nossa comunidade. Com relação a esses dois exemplos, podemos, com algum esforço, entender as informações mais importantes, porque as palavras-cha- ves estão evidentes. Porém, a estrutura inadequada impede uma lei- tura sem obstáculos ou margem para outras interpretações. Quando isso acontece, um bom exercício é tentar elaborar uma reescrita apro- priada que informe o leitor adequadamente. Para (a), por exemplo, podemos propor: a1)Acredita-se que um diálogo dos gestores e professores fará os estudantes entenderem. a2) Acredita-se que, por meio de diálogo, gestores e professores farão os alunos entenderem. E para (b): b1) Atualmente, muitas pessoas estão sofrendo com a ocorrência de alergias em nossa comunidade. b2) A ocorrência de alergias tem afetado muitas pessoas atualmente em nossa comunidade. Quando falamos, é mais fácil refazer o raciocínio, se necessário, para que as pessoas que nos ouvem compreendam nossa mensagem. Mas, quando escrevemos, como saber se as sentenças que elaboramos estão de acordo com o que é necessário para que outros possam ler e entender? Primeiro, procure sempre perceber se as frases que você elaborou têm início, meio e fim (sujeito, verbo e objeto). Isso já ajuda bastante. Outra ação importante é se perguntar: se não fosse você que tivesse escrito a frase, conseguiria se sentir informado completamente pelo que ela contém? Quando escrevemos, fica nítida a necessidade de colocarmos uma frase após a outra. Essa sequência precisa ser encadeada de maneira adequada, e cada frase precisa ter uma relação evidente com o que veio antes e com o que ainda virá. Precisamos, então, cuidar da estrutu- O livro Por que a esco- la não ensina gramática assim? se concentra em explicar e promover dis- cussões sobre análises linguísticas a partir de si- tuações usuais no cotidia- no. É uma importante lei- tura, principalmente para conseguirmos comparar as maneiras como pode- mos entender a língua portuguesa mais didati- camente, com gêneros de texto, exemplos e outros elementos que ajudam a perceber a língua como nossa interface com a realidade. BORTONI-RICARDO, S. M. et al. São Paulo: Parábola, 2014. Livro 26 Leitura e escrita no ensino superior ra de cada sentença internamente, e ela deve poder fazer parte de um todo maior que é o parágrafo. Se você já teve dúvida sobre o que era para fazer quando alguma proposta de escrita solicitava a elaboração de um texto em prosa, saiba que você não é o único a se questionar sobre isso. Na verdade, essa dúvida é mais comum do que pode parecer. Talvez isso se deva às pos- sibilidades de entendimento da palavra prosa. No dicionário, entre os significados encontrados para prosa, estão: 1. expressão natural da linguagem escrita ou falada, sem metrifi- cação intencional e não sujeita a ritmos regulares. 2. aquilo que é material, cotidiano, sem poesia. Ex: a p. da realidade 3. conversa informal. Ex: tive dois dedos de p. com o compadre (HOUAISS, 2009, grifos do original) E o que se quer, de fato, ao indicar a elaboração de um texto em prosa? Espera-se um texto em parágrafos, sem versos, composto de uma frase após outra, escrito de uma margem à outra da página (exata- mente como este texto que você está lendo agora). Em geral, entende- mos que cada parágrafo de um texto deve encerrar em si um raciocínio completo sobre o tema abordado no conjunto e se ligar aos demais parágrafos por conectores específicos e pela visibilidade da progressão de conteúdo. Vamos utilizar um parágrafode texto introdutório de divulgação de uma pesquisa como exemplo: A compreensão dos significados da arte como recurso tera- pêutico para usuários de um Centro de Atenção Psicossocial motivou a mestranda Patrícia Rodriguez Braz a desenvolver a sua dissertação no Programa de Pós-Graduação em Enferma- gem, da Universidade Federal de Juiz de Fora (UFJF). A acadê- mica analisou a visão e os sentidos das pessoas nas oficinas expressivas de arte, oferecidas no ambiente pesquisado. Sete usuários participaram de uma entrevista qualitativa, que bus- cou conhecer a relação deles com a arte. (PESQUISA, 2017) a motivação para realizar a pesquisa a pesquisadora, a instituição à qual a pesquisadora está vinculada, o tema da pesquisa a metodologia da pesquisa resumida. Atenção Fazendo uma reflexão sobre o texto deste capítulo que você leu até aqui, observe que todas as frases, uma após a outra, estabelecem relações de sentido entre si e que, parágrafo após parágrafo, o texto se constrói procurando oferecer ao leitor um entendimento global sobre o tema tratado. Tópicos de linguagem 27 Note que todas as frases têm relação de sentido entre si (todas falam sobre a pesquisa de Patrícia Braz) e que a ordem em que elas aparecem também tem motivo para garantir a progressão das informações (afinal, seria difícil entender o texto se ele começasse pela última frase). O tamanho dos parágrafos é muito variável, mas, em geral, enten- de-se que um parágrafo deve terminar quando um raciocínio sobre o tema em questão foi concluído. Às vezes, pode ser uma afirmação e uma justificativa, um exemplo, uma descrição de prova concreta; en- fim, são várias as possibilidades para se compor um parágrafo. Além disso, em textos com número fixo de caracteres – como jornais ou re- vistas impressos –, o número de parágrafos acaba seguindo a necessi- dade de preenchimento do espaço destinado ao texto. Nosso contato com essas estratégias de organizar as sequências de palavras e frases é constante, acontece quando lemos e também quando escrevemos. As dúvidas são frequentes e nunca chegamos ao ponto de saber tudo sobre a linguagem ou mesmo sobre uma parte dela, como os sinais de pontuação. O importante é utilizar as dúvidas como ponto de partida para melhorar nossa relação com a linguagem, ter curiosidade e entender como as diferentes estratégias podem nos ajudar a melhorar sempre nosso processo de comunicação. Os jornais de maior circula- ção nacional, como o Esta- dão e a Folha de S. Paulo, têm seus próprios manuais de escrita e redação. Es- ses materiais apresentam prescrições quanto a diver- sas normas gramaticais e ortográficas. O Manual de redação do Estadão pode ser consultado on-line e apresenta, inclusive, os erros mais comuns e os mais graves cometidos em língua portuguesa. Disponível em: https://www. estadao.com.br/manualredacao/. Acesso em: 20 jan. 2020. Site CONSIDERAÇÕES FINAIS Neste ponto da abordagem e da reflexão sobre os aspectos tratados neste capítulo, é possível que muitas das ideias que você nutria a respeito do quanto é fácil ou difícil, certo ou errado, simples ou complicado asso- ciar oralidade e escrita estejam mais fortes ou tenham mudado, justa- mente porque procuramos explicar alguns problemas que aparecem com muita frequência em nosso uso cotidiano da língua. Pontuação, concordância, regência, estrutura de sentenças e paragra- fação são os principais tópicos que permitem chegarmos a um texto com- pleto, que possibilite aos nossos interlocutores a leitura e a compreensão adequadas. Essas e outras habilidades contribuem para que, nesta etapa dos nossos estudos, possamos dar mais atenção ao processo de comu- nicação formal falado e escrito que devemos estabelecer como ponto de partida e também como meta em nosso percurso de formação intelectual. https://www.estadao.com.br/manualredacao/ https://www.estadao.com.br/manualredacao/ 28 Leitura e escrita no ensino superior REFERÊNCIAS BAKTHIN, M. Estética da criação verbal. 6. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2011. BAUMAN, Z. Estranhos à nossa porta. Rio de Janeiro: Zahar, 2017. FARACO, C. A.; TEZZA, C. Oficina de texto. Petrópolis: Vozes, 2003. GUEDES, P. C. Da redação à produção textual: o ensino da escrita. São Paulo: Parábola Editorial, 2009. PINKER, S. Guia de escrita: como conceber um texto com clareza, precisão e elegância. São Paulo: Contexto, 2016. POSSENTI, S. Por que (não) estudar gramática na escola. Campinas: Mercado de Letras, 1996. HOUAISS, A. Houaiss Eletrônico. Versão monousuário 3.0. São Paulo: Objetiva, 2009. PESQUISA aborda importância da arte no cotidiano de usuários de um Centro de Atenção Psicossocial. UFJF Notícias. 19 set. 2017. Disponível em: https://www2.ufjf.br/ noticias/2017/09/19/estudo-aborda-importancia-da-arte-no-cotidiano-de-usuarios-de- um-centro-de-atencao-psicossocial/. Acesso em: 20 jan. 2020. GABARITO 1. As diversas abordagens e análises sobre língua já elaboradas consideram a fala e a es- crita como registros complementares. Isso pode ser comprovado, por exemplo, tanto pela explicação feita por Bakhtin (2011) quanto por Faraco e Tezza (2003), que aponta o surgimento da escrita como algo necessário para circunstâncias em que a fala já não era suficiente. Pinker (2016) também explica a concepção não natural da habilidade da escrita. Para compreendermos os registros de fala e escrita como complementares, é preciso sempre refletir sobre as fronteiras de uso entre uma e outra e as situações em que elas podem ser empregadas. 2. Ao contrário do que se possa imaginar às vezes, não é a escrita que determina como se fala ou lê, mas é a entonação empregada na fala que determina a maneira como precisamos escrever um texto e, consequentemente, utilizar os sinais de pontuação. 3. O português é uma língua sintática. Isso quer dizer que o significado do que se fala ou escreve muda de acordo com a ordem das palavras e expressões empregadas. Nesse contexto, a regência e a concordância ajudam a orientar o funcionamento de trechos menores dentro de cada frase. A concordância nominal estabelece a relação entre os artigos, numerais, pronomes e nomes, e a concordância verbal, entre os nomes e verbos. Já a regência nominal estabelece uma relação de complementação entre nomes e adjetivos, e a verbal, entre verbos e seus complementos. Ambas as regências podem fazer com que o sentido do que se pretende informar mude completamente de acordo com a forma com que as utilizamos. https://www2.ufjf.br/noticias/2017/09/19/estudo-aborda-importancia-da-arte-no-cotidiano-de-usuarios-de-um-centro-de-atencao-psicossocial/ https://www2.ufjf.br/noticias/2017/09/19/estudo-aborda-importancia-da-arte-no-cotidiano-de-usuarios-de-um-centro-de-atencao-psicossocial/ https://www2.ufjf.br/noticias/2017/09/19/estudo-aborda-importancia-da-arte-no-cotidiano-de-usuarios-de-um-centro-de-atencao-psicossocial/ Registros da língua portuguesa: diferenças e semelhanças 29 2 Registros da língua portuguesa: diferenças e semelhanças Ter curiosidade sobre nossas origens e a língua que falamos é um passo importante para nosso aprendizado como indivíduos e sociedade. Afinal, o idioma utilizado por nós é fruto e componente de nossa cultura. Mas qual é o tipo de curiosidade que geralmente nutrimos com relação à língua a qual utilizamos para nos comu- nicar? Quais são as estratégias de estudo para compreendermos melhor como funciona a língua? Nos diversos ambientes e etapas de estudo, ao longo da nossa vida escolar, falamos do mesmo jei- to como falamos em casa? Há diferença entre a língua escrita e a língua falada? Se sim, como saber quando empregar cada jeito de falar? Por qual motivo existem tantas maneiras de escrever os porquês se a pronúncia é a mesma? E por que colocamos um h inicial em palavras como homem e horta se ele não tem valor algum de pronúncia? Vale fazer piada com o jeito como os outros falam? São mesmo muitas as perguntas possíveis de nos fazermos quandoprocuramos entender a dinâmica da língua que usamos para nos comunicar. E é por conta dessas e de outras questões que refletiremos a respeito da língua ao longo deste capítulo, até que, ao final, possamos confirmar ou rever várias interpretações que nos acompanharam até agora. 30 Leitura e escrita no ensino superior 2.1 Escrita no cotidiano Vídeo Será que a nossa língua é um patrimônio? Observe o trecho a seguir. “Valorizar a diversidade da língua portuguesa, celebrá-la como elemento fundamental e fun- dador da cultura e aproximá-la dos falantes do idioma em todo o mundo. Foi com esses objeti- vos que nasceu o Museu da Língua Portuguesa” (O MUSEU, 2020). Fr am e Ar t/ Sh ut te rs to ck Podemos ler essa descrição de objetivos na página oficial do Museu da Língua Portuguesa, o qual guarda informações importantes sobre a história da nossa língua escrita e falada. Isso nos leva a considerar que, se a língua pode ser colocada em um museu ou se há um museu específico para preservar a língua como memória, então a resposta à pergunta inicial é sim, ela é um patrimônio (imaterial). Localizado na cidade de São Paulo, no histórico edifício Estação da Luz, região central da cidade, o Museu da Língua Portuguesa foi inaugurado no ano de 2006. W ilf re do r/ W ik im ed ia C om m on s Mas o jeito como costumamos nos relacionar com o nosso idioma não está em geral sob essa perspectiva; está mais próximo de querer- No final de 2015, um incêndio de grandes proporções atingiu o Museu da Língua Portuguesa. Desde então, o prédio tem passado por um processo de reconstrução, com previsão de reabertura para visitação pública em 2020. O museu conta com um acervo permanente de registros de língua falada e escrita de diferentes lugares do mundo, além de abrigar, temporariamente, exposições que homenageiam grandes escritores de língua portuguesa, como Clarice Lispector, Gilberto Freyre, Oswald de Andrade e Machado de Assis. Saiba mais Registros da língua portuguesa: diferenças e semelhanças 31 mos saber o que está certo e o que está errado. Sempre que vamos ver ou rever análises de língua portuguesa, em qualquer tempo de nossa vida como estudantes, fazermos perguntas como: se as on in g_ 17 /S hu tte rs to ck Está certo ou errado? É verdade que em tal lugar se fala o melhor português do mundo? A gente escreve do mesmo jeito que fala? A língua muda ou não com o passar do tempo? Nesse começo de discussão, você já percebeu que há mais pergun- tas do que respostas. Mas não se aflija! As perguntas servem para nos lembrar da maioria das dúvidas que temos a respeito do nosso idioma e oferecer um caminho para procurarmos juntos estabelecer respostas e compreender os fenômenos que unem ou separam a oralidade da escrita, por exemplo. Se refletimos aqui sobre a possibilidade de a língua ser objeto de museu – não como objeto estático, mas como elemento a ser preser- vado –, isso significa que ela é um componente muito importante para nossas relações sociais, as quais são feitas basicamente pela fala e pela escrita, quanto à comunicação. Além disso, quando pretendemos olhar a língua como um código que pode ser empregado de diversas manei- ras, precisamos estar atentos à sua história, à sua atualidade e à sua constante transformação. Neste momento, conseguimos escolher de que maneira abordar o tema: vamos buscar elementos etimológicos, ou seja, da origem das palavras ou vamos nos deter às regras prescritas em manuais que balizam o bom uso da língua escrita? Vamos buscar informação em resultados de pesquisas sobre os diferentes falares em língua portu- guesa? Na verdade, os pontos que podem originar um processo de ensino-aprendizagem sobre a nossa língua são variados e pretende- mos aqui extrair o melhor deles. Vamos exemplificar, a seguir, nossa proposição de raciocínio sobre o tipo de escrita valorizado pelas reda- ções do Enem. O que significa afirmar que a língua é objeto de museu? Discorra. Atividade 1 O Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) foi aplicado pela primeira vez no Brasil em 1998. Ele é uma das etapas de avaliação do ensino previstas pela Lei de Diretrizes e Bases da Educação (LDB) que entrou em vigor em 1996. Em 2009, o Enem ganhou um novo formato e se tornou mais relevante: passou a valer como processo seletivo para diferentes univer- sidades brasileiras, fazendo com que se tornasse também mais visado, inclusive no que se refere à redação. Curiosidade 32 Leitura e escrita no ensino superior 2.1.1 A língua usada no Enem Dentre as tantas análises que a redação do Enem gera todos os anos, destacamos a de Sérgio Rodrigues, escritor e jornalista. Ele fez uma coluna para a Folha de São Paulo em 2019, discutindo as escolhas de palavras feitas por estudantes na elaboração de seus textos para responder às propostas de redação do Enem. Consideramos vários as- pectos levantados pelo colunista para nossa reflexão sobre como es- crevemos no final da educação básica (ensino médio), quando estamos formalmente aptos a ingressar na universidade. A coluna se chama “No país do outrossim”. Por esse título, já é pos- sível antecipar uma crítica às escolhas vocabulares presentes nos tex- tos produzidos pelos estudantes, já que outrossim não faz parte de um vocabulário adequado para o português do século XXI e não parece fazer parte do repertório de estudantes que, em sua maioria, ainda não chegaram aos 25 anos de idade 1 . Alguns trechos, além do título do texto, são muito significativos para acompanharmos o raciocínio proposto pelo autor e chegarmos a algu- mas constatações. Vamos analisá-los juntos! Zeloso de um prestígio fundado em parte em sua incompreen- sibilidade pelos mortais comuns, o juridiquês nunca aceitou bem o banho de soda cáustica que nossa norma culta tomou no século 20. Só que os estudantes premiados por suas bacharelices são can- didatos a cursos variados, não só aos de direito. E nasceram na virada do milênio, quando a lição textual dos mo- dernistas já havia sido atualizada e multiplicada por várias gera- ções de autores de bom texto. O que é isso? (RODRIGUES, 2019) Ao afirmar que nossa norma culta “tomou um banho de soda cáus- tica” no século XX, o autor nos leva a interpretar que houve uma pro- funda transformação, na verdade, uma mudança radical entre o que era aceito como norma culta e o que passou a ser incorporado por ela, ainda que a escrita seja sempre mais conservadora em vista da fala. Ao mencionar o “juridiquês”, ele engloba a noção de um uso excessivo de termos técnicos relacionados ao âmbito jurídico. Na prática, isso signifi- ca escolher um vocabulário que gera dificuldade de compreensão para quem lê. No parágrafo seguinte, ao afirmar que estudantes candida- outrossim: do mesmo modo, igualmente. Glossário Vamos guardar essa informação sobre escolha de vocabulário e faixa etária para a seção em que estudaremos a variação linguística. 1 Registros da língua portuguesa: diferenças e semelhanças 33 tos a cursos variados, não apenas a de direito, cometem “bacharelices”, Rodrigues (2019) enfatiza a quantidade de palavras e expressões crista- lizadas nas sentenças jurídicas pelo uso, mas que são reproduzidas por estudantes na escrita dos textos produzidos como resposta à proposta do Enem. O que há de mais espantoso nisso tudo? De acordo com Rodrigues (2019), no último parágrafo do trecho citado, são pessoas muito jovens que fazem isso: nasceram depois do movimento modernista, ou seja, temporalmente, deveriam inclusive estar mais acostumadas às trans- formações incorporadas pelo nosso idioma a partir da Semana de Arte Moderna de 1922. Em outro trecho da coluna, o autor faz outras constatações importantes: Trata-se de um sistema. Um sistema que confunde o registro formal da língua com platitudes balofas e distantes da realidade dos estudantes – gerador, portanto, de dissociação entre lingua- gem e pensamento. Segundo o Indicador de AlfabetismoFuncional (Inaf) de 2018, apenas 12% dos brasileiros de 15 a 64 anos são plenamente alfa- betizados. (RODRIGUES, 2019) A primeira parte – de que existe uma confusão entre uso formal da língua e dissociação entre pensamento e linguagem – merece um cuidado especial. A densidade dessa afirmação remonta a uma tradi- ção escolar com relação ao ensino e aos usos da língua portuguesa. A própria escola ainda não reconhece integralmente que a norma culta é apenas uma das tantas variantes do idioma. Além disso, não reconhe- ce que as realizações da norma culta também são muito variadas em escolha vocabular, estrutura sintática e estilo. Aliás, a noção de estilo merece aqui um desdobramento a fim de evitar afirmações de senso comum a seu respeito. Ao longo de nos- sa vida, mesmo quando não estamos estudando algo relacionado à linguagem, é possível que já tenhamos ouvido, ou ainda vamos ouvir, que o emprego de uma palavra ou a maneira de escrever seja estilo do autor ou licença poética. Sobre isso, é importante saber que não é qualquer deslize de linguagem que pode se encaixar como estilo. No caso da licença poética, é bem comum que isso aconteça em poemas ou letras de canções, devido à manutenção da rima ou à versificação ou mesmo para manter um registro informal ou regional da língua. A Semana de Arte Moderna foi realizada em São Paulo em feve- reiro de 1922. Ela foi um marco do movimento modernista no Brasil, que pretendia representar o que o brasileiro é de fato nas artes, sem copiar padrões europeus. Ou seja, foi o primeiro movimento artístico e cultural que procurou dar um registro de identidade real à população e à cultura local. Ao utilizar o modernismo como referência para linguagem dos jovens que participam do Enem ou de outros processos seletivos, Rodrigues (2019) faz uma ligação direta entre a renovação pela qual passaram os registros de língua a partir desse movi- mento e a não utilização dessa renovação pelos jovens que, inclusive, estudam modernismo na escola. Saiba mais 34 Leitura e escrita no ensino superior Em casos como nos versos da canção Sentado à beira do caminho, de Erasmo Carlos e Roberto Carlos (1969) – “Meu olhar se perde na poeira dessa estrada triste/ Onde a tristeza e a saudade de você ainda existe” –, a falta de concordância do verbo existe com o sujeito composto a tristeza e a saudade se deve à relação de rima com a palavra triste. Há várias versões dessa canção em que os intérpretes fazem a concor- dância com existem, mas, no original e para manter a rima e a versificação, a forma precisa ficar no singular. Em casos assim, temos uma licença poética, que é essa liberação para transgredir a norma-padrão por um motivo específico. Há outros casos clássicos e exemplos de estilo e licença poética, como a composição Tiro ao Álvaro, de Osvaldo Molles e Adoniran Barbosa (1980), em que se leem versos como “De tanto levar frechada do teu olhar [...]/ Tauba de tiro ao Álvaro”. Nesse caso, as transgressões não são de concordância, mas de grafia, para representar exatamente a maneira de falar essas palavras em um determinado grupo social. No entanto, é preciso lembrar que os falantes de uma língua, mesmo quando transgridem a norma, o fazem aplicando outras regras e regularidades que o idioma permite. Por exemplo, ao falar frecha ou frechada, o falante faz uma combinação de sons (fr) que o idioma permite e que existe em outras palavras. Ao falar tauba ou táubua, também existe uma regularização pelo encontro de vogais au, assim como, em vez de alvo, surge o nome Álvaro, que pode ser explicado inclusive pela maior recorrência na língua que falamos. Estudo de caso Depois de analisarmos esses versos, você pode se perguntar: mas por que isso ocorre? Vale tudo na língua escrita ou falada? Não vale tudo. Como você pôde ver, as licenças poéticas acontecem para que se registre, com alguma finalidade específica, formas de falar diversi- ficadas, ocasionadas por outros componentes culturais além do que permite a própria língua. Armazenar e fazer com que essas análises e informações sejam transmitidas de geração em geração é cuidar, com diligência, do patrimônio imaterial que a língua de um povo representa. Isso nos leva a refletir também sobre a segunda constatação feita por Rodrigues (2019) no trecho que mencionamos anteriormente. Se apenas 12% dos brasileiros entre 15 e 64 anos são considerados plenamente alfabetizados, 88% estão em outros graus de alfabeti- zação, o que implica diferentes domínios, contatos e usos da língua para se comunicar, além de diferentes associações entre pensamen- to e linguagem. Quando começamos a identificar os enquadramentos diversos da população em níveis também diversos de alfabetização, nos damos conta de que existem muitos grupos caracterizados por índice de alfabetização/escolarização, faixa etária, classe social, região do país e até região ou bairro dentro de uma mesma metrópole. Isso quer dizer que o uso da língua feito por esses diversos grupos é fruto da construção de identidades linguísticas particulares e gera efeitos de compreensão Registros da língua portuguesa: diferenças e semelhanças 35 ou marcas sociais singulares. Essas marcas estão intimamente ligadas a maior aproximação ou distanciamento do uso da língua feito pelo falante em relação à norma ou à variedade culta da língua. E isso implica diferenças na maneira como as pessoas são tratadas socialmente? Com certeza! Isso acontece de um jeito tão significativo que o preconceito linguístico se tornou, inclusive, tópico de análise na área de estudos da linguagem. Esse é o tema da nossa próxima seção, porque é muito importante saber se, em algum momento, vivenciamos ou presenciamos algum caso de discriminação ou exclusão em virtude dos registros de língua utilizados por alguém. 2.2 Norma culta e preconceito linguístico Vídeo Se a língua faz parte da cultura de um povo e, por isso mesmo, ajuda a compor uma identidade nacional, então ela também está sujeita a transformações, assim como ocorre com qualquer cultura, por elemen- tos internos e externos ao idioma. Mas isso pode gerar preconceito? Talvez a melhor pergunta não seja essa, mas aquela que coloca em evi- dência as maneiras pelas quais a relação dos indivíduos com a língua pode gerar preconceito linguístico. Dá-se o nome de preconceito linguístico às formas de discriminação feitas contra um indivíduo pela maneira como ele escreve ou fala. Assim, como em qualquer outra forma de preconceito, para que aconteça, existe um parâmetro ou padrão de referên- cia. No caso da língua, o distanciamento do indivíduo do conhecimento da norma culta é o que acaba sendo determinante para o estabelecimento de juízos de valor negativos. Geralmente, as ocorrências de preconceito linguístico estão também rela- cionadas a fatores sociais e econômicos. A norma culta é a variante de prestígio do idioma (falado ou escrito), que gera parâmetros, no sentido negativo, para a existência e a reali- zação de preconceito linguístico. Contudo, ela é um registro necessário justamente para que haja um parâmetro (positivo) de comunicação, com o qual as pessoas em qualquer lugar do país consigam se enten- der sem maiores obstáculos. É ela que deve constar principalmente nos registros escritos de documentos, nos livros didáticos e nas rela- ções diplomáticas para que todos entendam. Ou seja, teoricamente, trata-se da realização mais neutra do idioma, sem marcas de região, faixa etária ou segmento social. 36 Leitura e escrita no ensino superior Até este ponto, parece que tudo pode funcionar muito bem quan- do percebemos exatamente como proceder quanto à norma culta e como descrevê-la: ela é o parâmetro de prestígio e de documentação, e é preciso tomar cuidado para não fazer com que seja geradora de preconceito, por exemplo, com relação a pessoas menos escolarizadas. No entanto, é imprescindível fazer uma ressalva: na seção anterior, já ilustramos um pouco do que podeaparecer, principalmente como re- gistro falado, na língua e deixamos claro que descrever e analisar as transformações e ocorrências não se trata de dizer que vale tudo ou que tudo está certo ou adequado. Para podermos entender um pouco melhor essa ideia de que não é porque estudamos as possibilidades de transformação e variação da língua que vale tudo, vamos utilizar como exemplo uma questão da prova de linguagens de uma das edições do Enem 2 Você vai observar que faremos menção a questões que aparecem em processos seletivos como o Enem ou o Enade. Fazemos essa escolha justamente porque elas fazem com que o estudante tenha de mostrar que sabe reconhecer e analisar os diferentes processos de variação pelos quais a língua pode passar. 2 . Vamos analisá-la juntos. Só há uma saída para a escola se ela quiser ser mais bem-sucedida: aceitar a mudança da língua como um fato. Isso deve significar que a escola deve aceitar qualquer forma da língua em suas atividades escritas? Não deve mais corrigir? Não! Há outra dimensão a ser considerada: de fato, no mundo real da escrita, não existe ape- nas um português correto, que valeria para todas as ocasiões: o estilo dos contratos não é o mesmo do dos manuais de instrução; o dos juízes do Supremo não é o mesmo do dos cordelistas; o dos editoriais dos jornais não é o mesmo do dos cadernos de cultura dos mesmos jornais. Ou do de seus colunistas. POSSENTI, S. Gramática na cabeça. Língua Portuguesa, ano 5, n. 67, maio 2011 (adaptado). Sírio Possenti defende a tese de que não existe um único “português correto”. Assim sendo, o domínio da língua portuguesa implica, entre outras coisas, saber a) descartar as marcas de informalidade do texto. b) reservar o emprego da norma-padrão aos textos de circulação ampla. c) moldar a norma-padrão do português pela linguagem do discurso jornalístico. d) adequar as formas da língua a diferentes tipos de texto e contexto. e) desprezar as formas da língua previstas pelas gramáticas e manuais divulgados pela escola. Fonte: Brasil, 2014. O comando solicita que o estudante selecione, dentre as alternati- vas, aquela que é uma ação realizada por quem dispõe de domínio ou Podemos caracterizar a norma-padrão como a realização da língua que segue as regras prescritas (orientadas) grama- ticalmente. Já a norma culta, que muitas vezes é empregada como sinônimo de norma-padrão, é a realização mais próxima das prescrições gramaticais, mas com as características de determinado tempo. Por isso, quando dizemos norma culta contemporânea, essa expressão significa um uso que segue as regras, mas que tem características sintáticas e de vocabulário diferentes daquelas do século XIX, por exemplo. Saiba mais Registros da língua portuguesa: diferenças e semelhanças 37 proficiência em língua portuguesa 3 . A alternativa correta é a sublinha- da (isto é, a letra d) pois as palavras texto e contexto compõem a esfera de comunicação, elemento central do ponto de vista de Possenti. Ele emprega vários exemplos de ocorrências em que se deve mobilizar as normas gramaticais, a norma-padrão e a norma culta para atingir o pú- blico-alvo nas diferentes circunstâncias de comunicação. Isso promove a reflexão de que é preciso conhecer a gramática ou a norma-padrão, inclusive para abrir mão de alguma regra. Todas as demais afirmações vão de encontro ao que o texto-fonte da questão defende. Ao ler o texto do professor e linguista Sírio Possenti, precisamos ficar atentos a alguns aspectos muito importantes: A escola precisa, e deve, ser a instituição responsável por ensinar a língua em sua ocorrência de norma-padrão ou culta, o que não significa que ela não deva ensinar os estudantes a se familiarizarem com outras variantes, bem como analisá-las. Mesmo dentro do que caracterizamos como norma-padrão ou culta, há variações de estilo que o professor deve ilustrar por meio de exemplos de diferentes usos de comunicação no mundo real. Neste ponto da análise, é importante chegarmos à constatação de que, se a língua varia, inclusive dentro do que se chama norma-padrão ou nas realizações de norma culta – que tem maior prestígio e deve ser empregada em situações formais de comunicação –, o fato de ela variar em outras situações não deveria ser motivo para tratar os falantes de maneira depreciativa. Não estamos afirmando que as variações devem ser aceitas ou ignoradas em todas as situações. Vamos supor, por exemplo, que alguém, em uma apresentação de trabalho acadêmico, tenha pronun- ciando palavras como pobrema ou empregue constantemente, para ligar uma ideia à outra, a expressão tipo (“Tipo as engrenagens, tipo como funcionam, tipo precisam ser verificadas, tipo uma vez por mês”). Existem meios cuidadosos de se dizer a essa pessoa que, em determi- nados ambientes, é melhor fazer outras escolhas para que a pronúncia ou o vocabulário não causem incômodos. Repare que essas situações acontecem em geral na fala, e por isso também é importante procurar- mos o melhor jeito de dizer como a pessoa pode se comunicar melhor, sem desconfortos na produção e na recepção das informações. O uso da palavra domínio, empregada no comando (enun- ciado), está nos Parâmetros Curriculares Nacionais (PCNs) de Língua Portuguesa (BRASIL, 1997), embora alguns profes- sores não aprovem a utilização desse conceito como sinônimo de proficiência, por exemplo. 3 O livro Preconceito linguís- tico: o que é, como se faz passou a ser muito utili- zado nas graduações dos cursos de Letras a partir dos anos 1990. Foi um marco para os estudos de variação linguística e ocorrências de precon- ceitos relacionados à fala de pessoas menos escolarizadas e que ocupam uma condição social menos privilegiada. O livro didatiza a teoria desse tipo de situação colocando exemplos bem concretos e fazendo com que o leitor compreen- da os valores sociais e culturais implicados na análise da situação. Vale a leitura para começar a compreender ou para aprofundar o entendi- mento que temos de como o pouco acesso à escola ou a uma variante de fala com maior prestí- gio social são capazes de gerar abismos. BAGNO, M. 15. ed. São Paulo: Loyola, 2002. Livro Que tipos de situação podem levar ao preconceito linguístico? Discorra. Atividade 2 38 Leitura e escrita no ensino superior Assim como vimos que a escola não deve se abster de fazer seu trabalho, apresentando o registro formal da língua e orientando as pessoas a empregarem-no nas situações adequadas, nós também po- demos orientar as pessoas a escolherem as palavras e o jeito de falar adequados – mas com delicadeza. Isso quer dizer também que nin- guém pode rir de ninguém quanto ao uso da língua a qual falamos, porque a variação está em todos os grupos de falantes. Quando a variação já faz parte do nosso cotidiano, possivelmente nem percebemos. Esse é o caso dos usos de infinitivo sem o r final na pronúncia: em frases como “você pode me emprestar suas anotações?”, a pronúncia de emprestar possivelmente acontecerá como “emprestá” e isso não será visto como um problema, porque esse uso faz parte da fala de maior prestígio social, como a empregada nas apresentações de telejornal. Na próxima seção, vamos estudar um pouco melhor alguns pro- cessos de variação, justamente porque, como estudamos, eles são diversos e frequentes, além de poderem provocar tratamentos discri- minatórios a algumas pessoas. 2.3 Variação linguística Vídeo Na seção anterior, nosso raciocínio se estabeleceu com base em como a norma culta é importante, mas também em como ela pode gerar preconceito e alimentar barreiras sociais para todos quando sua função é mal interpretada. Logo, se a norma é uma das formas de uti- lizar a língua, as demais formas existem e são empregadas pelos fa- lantes de diferentes grupos e em diversos meios. Como estudante de curso superior, é muito importante conhecer e saber escolher e indicar as palavras mais adequadas para os diferentesmomentos de comuni- cação. Isso ajuda a melhorar as relações entre as pessoas à sua volta. Mas, para isso, também é essencial conhecermos um pouco melhor como as diferentes variações podem se manifestar em nossas conver- sas ou escritas. Vamos a elas? As línguas mudam naturalmente com o tempo, por causa de fatores culturais e re- gionais. Ao conjunto de fenômenos que fazem parte desse processo dá-se a defini- ção de variação linguística. Quando a primeira edição do livro A língua de Eulália: novela sociolinguística foi publicada, no final dos anos 1990, houve uma grande repercussão, principalmente nos cursos de graduação de Letras e de Comunicação. Pela primeira vez, uma obra tratava com transparência das relações preconcei- tuosas que nutrimos por séculos, pela maneira de nos relacionarmos com a língua que falamos. Ao tratar disso em um texto ficcional, em formato de novela, Marcos Bagno dá a leveza convidativa ne- cessária para a fluidez da leitura, ao mesmo tempo que se ocupa de revelar claramente as relações nutridas pelo preconceito linguístico. BAGNO, M. São Paulo: Contexto, 2004. Livro Registros da língua portuguesa: diferenças e semelhanças 39 Os exemplos utilizados e estudados aqui nem sempre serão reco- nhecidos por nós sem uma explicação, pois podem não fazer parte de nosso repertório de linguagem. Mas não devemos nos afligir porque isso não é um problema; é, ao contrário, uma ampliação de entendi- mento sobre a língua que falamos e seu funcionamento. Começaremos pela variação visível na língua com o passar do tempo. Provavelmente, você fala ou escuta que alguma coisa não se chama mais de um jeito, mas de outro. Se estivéssemos na metade do século XX, por exemplo, alguém poderia dizer que não se usa mais a palavra convescote, mas sim piquenique. Só de usar esse exemplo, já podemos fazer duas constatações: algumas palavras vão tomando o lugar de outras com o passar do tempo e as palavras de origem es- trangeira podem sim ser incorporadas à nossa língua. Afinal de contas, convescote era a palavra utilizada em português e piquenique é um aportuguesamento da palavra original francesa pique-nique. Isso pode acontecer também com as gírias, as quais podem mostrar uma passagem de tempo, marcando também a faixa etária das pes- soas. Como gírias são palavras ou expressões empregadas em sentido figurado para dizer alguma coisa marcante em determinado momento para um grupo específico de falantes, elas podem, por sua força, ser incorporadas aos dicionários ou simplesmente desaparecer. Uma expressão que se usava no Brasil, por exemplo, quando havia os orelhões e se fazia ligação telefônica por fichas, era “um dia a ficha cai” ou “a ficha ainda não caiu ou a ficha só me caiu agora”. A ação de cair a ficha era uma coisa que de fato acontecia quando se estava falando ao telefone, pois, após determinado tempo da ligação, ouvia-se o barulho da ficha, que havia sido depositada no aparelho, cair den- tro dele. Com o tempo, ela se tornou uma expressão e passou a significar entender alguma coisa ou ligar um ponto a outro e estabelecer um raciocínio. Com o desuso dos orelhões, o ponto de partida ou referência dessa expressão ficou mais apagado do uso popular, porque os mais jovens não estabelecem mais a conexão com o objeto real que lhe deu origem. Mas, ainda assim, a frase pode aparecer inclusive na fala de quem nem conhece um orelhão. Estudo de caso Mas será que isso acontece só com as gírias ou com palavras estran- geiras que tomam o lugar de outras? Não. Na verdade, o processo de transformação do uso das palavras de uma língua é constante. Vamos analisar um registro feito por Carlos Drummond de Andrade, escritor modernista que se ocupou de muitas explicações sobre como a língua era usada no Brasil do início do século XX. Este excerto também foi utilizado em uma questão de linguagens da prova do Enem de 2012: 40 Leitura e escrita no ensino superior TEXTO I Antigamente Antigamente, os pirralhos dobravam a língua diante dos pais e se um se esquecia de arear os dentes antes de cair nos braços de Morfeu, era capaz de entrar no couro. Não devia também se esquecer de lavar os pés, sem tugir nem mugir. Nada de bater na cacunda do padrinho, nem de debicar os mais velhos, pois levava tunda. Ainda cedinho, aguava as plantas, ia ao corte e logo voltava aos penates. Não ficava mangando na rua, nem escapulia do mestre, mesmo que não entendesse patavina da instrução moral e cívica. O verdadeiro smart calçava botina de botões para comparecer todo liró ao copo d’água, se bem que no convescote apenas lambiscasse, para evitar flatos. Os bilontras é que eram um precipício, jogando com pau de dois bicos, pelo que carecia muita cau- tela e caldo de galinha. O melhor era pôr as barbas de molho diante de um treteiro de topete, depois de fintar e engambelar os coiós, e antes que se pusesse tudo em pratos limpos, ele abria o arco. ANDRADE, C. D. Poesia e prosa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1983 (fragmento). O Texto II pertence à mesma questão, acompanhe: TEXTO II Palavras do arco da velha Expressão Significado Cair nos braços de Morfeu Dormir Debicar Zombar, ridicularizar Tunda Surra Mangar Escarnecer, caçoar Tugir Murmurar Liró Bem-vestido Copo d’água Lanche oferecido pelos amigos Convescote Piquenique Bilontra Velhaco Treteiro de topete Tratante atrevido Abrir o arco Fugir FIORIN, J. L. As línguas mudam. In: Revista Língua Portuguesa, n. 24, out. 2007 (adaptado). Fonte: Brasil, 2012. Registros da língua portuguesa: diferenças e semelhanças 41 Ao ler os dois textos e a combinação que estabelecem, é possível identificar palavras e expressões equivalentes. Em um primeiro mo- mento, lendo apenas o texto de Drummond (Texto I), nos damos conta de que não conseguimos compreendê-lo devido ao número expressivo de palavras que não conhecemos. Depois, quando vemos o quadro (Texto II), somos informados de que se trata de um registro, feito por Drummond, acerca da variação temporal de nossa língua. A principal constatação a que chegamos, com base nessa leitura, é de que o léxico do português, ou seja, o conjunto de palavras que te- mos na nossa língua, tem como características: ser variável (mudar de acordo com as circunstâncias de tempo, espaço e lugar) e diversificado (oferecer muitas formas para se dizer a mesma coisa). Mas aí você também pode se perguntar: a variação percebida nes- se combinado entre os dois textos gera preconceito, conforme vimos anteriormente? É importante perceber que os exemplos de variação geradores de preconceito estão associados, em geral, à pouca es- colaridade, ou à localização social e regional do falante. Usos assim, como os que vimos no texto de Drummond, podem no máximo causar dificuldade de entendimento entre gerações de falantes diferentes. Agora que vimos alguns exemplos e maneiras de entender a variação temporal em uma língua, vamos observar outro fenômeno que tem a ver com a variação que considera o lugar e a relação do indivíduo com a es- colaridade. Não se esqueça de que indicamos, ao longo da abordagem, variação regional e social como elementos distintos, mas é bem impor- tante que você repare, no texto a seguir, que essa junção entre o espaço e o recorte social tornam a leitura da situação muito mais voltada a uma abordagem poética, que convida o leitor a ver a afetividade que a plastici- dade da linguagem pode acarretar. Veja o exemplo a seguir, que também é um excerto utilizado em uma questão de linguagens do Enem de 2012: Cabeludinho Quando a Vó me recebeu nas férias, ela me apresentou aos amigos: Este é meu neto. Ele foi estudar no Rio e voltou de ateu. Ela disse que eu voltei de ateu. Aquela preposição deslocada me fantasiava de ateu. Como quem dissesse no Carnaval: aquele menino está fantasiado de palhaço. Minha avó entendia de regências verbais. Ela falava de sério. Mas todo mundo riu. Porque aquela preposição deslocada podia fazer de uma informação um chiste.E fez. E mais: eu acho que buscar a beleza nas palavras é uma solenidade de amor. E pode ser instrumento de rir. (Continua) 42 Leitura e escrita no ensino superior De outra feita, no meio da pelada um menino gritou: Disilimina esse, Cabeludinho. Eu não disiliminei ninguém. Mas aquele verbo novo trouxe um perfume de poesia à nossa quadra. Aprendi nessas férias a brincar de palavras mais do que trabalhar com elas. Comecei a não gostar de palavra engavetada. Aquela que não pode mudar de lugar. Aprendi a gostar mais das palavras pelo que elas entoam do que pelo que elas infor- mam. Por depois ouvi um vaqueiro a cantar com saudade: Ai, morena, não me escreve / que eu não sei aler. Aquele a preposto ao verbo ler, ao meu ouvir, ampliava a solidão do vaqueiro. BARROS, M. Memórias inventadas: a infância. São Paulo: Planeta, 2003. Fonte: Brasil, 2012. O texto nos traz uma reflexão profunda sobre como as relações e a vida do indivíduo podem ser afetadas quando não há familiaridade com as amplas possibilidades de realização de uma língua. Por exem- plo, quando o narrador revela que percebia uma solidão ampliada nas palavras do vaqueiro, naquele uso de a antes do verbo ler. A solidão inicial existia porque o vaqueiro estava longe (ao que se entende no texto) da “morena”, figura feminina que era destino de sua atenção e de seu sentimento. Em seguida, ao dizer que não sabia ler dizendo aler, é possível perceber o abismo que se cria entre ele e a figura feminina: ela escreve e ele não tem alfabetização para ler as palavras dela; na oralidade, ele não sabe reproduzir o verbo ler, o que o distancia ainda mais dessa compreensão. É uma imagem singela, simbólica e triste de como a falta de escolarização pode afastar as pessoas. Já ao mostrar as palavras da avó, o narrador revela o bom humor de quem percebe a diferença etária na produção de sentido atribuído às palavras, fazendo uma analogia sobre como se ele tivesse voltado “fantasiado” de alguma coisa por revelar-se ateu no retorno à casa da avó. Isso mostra a força cultural que as palavras têm, inclusive a falta de familiaridade que uma avó – guardados todos os estereótipos que temos delas – do interior tem com a palavra ateu. Ao dar luz à forma verbal disilimina, o narrador mostra a flexibili- dade do idioma e a astúcia inventiva do falante. Vamos à explicação: o verbo eliminar já significa tirar, excluir, deixar de fora (pelo que se lê no texto, era isso que o companheiro de time queria de Cabeludinho, queria que ele tirasse o oponente da jogada). No entanto, em portu- guês, temos um processo muito frequente para mostrar a eliminação Registros da língua portuguesa: diferenças e semelhanças 43 ou retirada de alguma coisa: a inserção do prefixo des-, por exem- plo, deselegante, desmedido, descuidar, desinfetar etc. Logo, para de fato eliminar da jogada, o autor da frase põe o prefixo antes do verbo, como se eliminar já não tivesse essa carga semântica. Além disso, o narrador aproveita para, inclusive, manter a pronúncia, que não foi deselimina, mas disilimina. Esse exemplo serve para consolidar a nossa percepção de que as transgressões feitas pelos falantes em relação à norma não são alea- tórias. Elas sempre encontram algum tipo de legitimidade, senão não conseguiriam encontrar espaço para acontecer. Já recorremos aqui ao exemplo de como o r de final de verbos no infi- nitivo é apagado na fala, inclusive na comunicação de pessoas com maior escolaridade. Esse tipo de situação já é compreendido como uma marca da fala contemporânea do português brasileiro e podemos dizer que é um distanciamento controlado ou licenciado da norma. Observando o falar de alguns habitantes de algumas regiões do Brasil, ainda no início do século XX, Oswald de Andrade, escritor mo- dernista, transformou em poesia algumas informações importantes so- bre essa fala. Ele observou que, para dizer milho, os falantes de certos lugares diziam mio e, para dizer melhor, diziam mió. Pois bem, e o que isso tem a ver com o apagamento do r final de ver- bos no infinitivo? Nossa reflexão aqui precisa ser conduzida no sentido de entender que algumas variações, por serem realizadas em ambien- tes de maior prestígio, não causam estranhamento, enquanto outras, como a observada por Oswald, geram a identificação de um grupo habitante ou originário de um espaço específico, além da percepção de que essa realização de fala não encontra espaço nos falares urbanos de maior prestígio, por exemplo. Mas cuidado com o caminho que nosso raciocínio pode fazer: não estamos aqui afirmando, como já vimos nas palavras do profes- sor Possenti, que a escola deve aceitar tudo ou que essa realização de fala deve entrar para as descrições daquilo que é considerado padrão. Nossa reflexão segue no sentido de perceber as conclu- sões a que se pode chegar sobre como uma realização ou outra são marcas de identidade dos falantes de uma língua. Nossa intenção, portanto, não é esgotar o tema nem fechar a discussão, mas gerar Por que O livro das ignorãças é um excelente exemplo quando se trata de elaborar reflexões sobre variação linguística como formação da identidade individual e coletiva? Porque, além de trazer muitas características das variações encontradas no português falado no Brasil, o autor faz isso com afeto pelas lembranças da infância e das relações com as pessoas mais próximas a ele. O gênero em que ele escreve (poesia) também ajuda a reforçar o emprego figurado de muitas palavras. Vale a pena a leitura! BARROS, M. de. Rio de Janeiro: Alfaguara, 2016. Livro 44 Leitura e escrita no ensino superior pontos de referência para que estudantes, que já passaram pela educação básica e estão no ensino superior, possam compreender um pouco mais sobre como nossa formação cultural está intima- mente relacionada com a língua a qual falamos. Formule um quadro de acordo com o modelo a seguir, depois a preencha conforme a indicação da primeira coluna. Tipo de variação Exemplo 1 Exemplo 2 Temporal Espacial Social Atividade 3 CONSIDERAÇÕES FINAIS E o que mais se pode afirmar a respeito de registros de língua, norma culta, preconceito linguístico e variações? Depois de estudar esses tópi- cos, como fizemos aqui ao longo deste capítulo, o importante é saber que esses processos existem e são todos fenômenos que marcam a língua em suas realizações (escrita e falada). Deve haver, sempre da parte de quem conhece mais a língua, muito respeito e cuidado ao intervir na fala ou na escrita de alguém para apontar inadequações. Além disso, a língua é dinâ- mica, varia no tempo, no espaço e no lugar de onde falam as pessoas. Isso enriquece nossa formação cultural e nossas estratégias de comunicação, as quais devem ser sempre bem cuidadas. É preciso lembrar que a varia- ção e a mudança não indicam deterioração, mas sim transformação que requer adequação para os devidos usos. REFERÊNCIAS BRASIL. Secretaria de Educação Fundamental. Parâmetros curriculares nacionais: Língua portuguesa. Brasília, DF: MEC/SEF, 1997. BRASIL. Ministério da Educação. Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira. Enem 2012. Brasília: INEP/MEC. Disponível em: http://download.inep.gov.br/educacao_ basica/enem/provas/2012/caderno_enem2012_dom_amarelo.pdf. Acesso em: 6 out. 2020. BRASIL. Ministério da Educação. Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira. Enem 2014. Brasília: INEP/MEC. Disponível em: http://download.inep. gov.br/educacao_basica/enem/provas/2014/CAD_ENEM_2014_DIA_2_05_AMARELO.pdf. Acesso em: 6 out. 2020. O MUSEU. Museu da Língua Portuguesa. 2020. Disponível em: http://museudalinguaportuguesa. org.br/o-museu/. Acesso em: 6 out. 2020. http://download.inep.gov.br/educacao_basica/enem/provas/2012/caderno_enem2012_dom_amarelo.pdf http://download.inep.gov.br/educacao_basica/enem/provas/2012/caderno_enem2012_dom_amarelo.pdf http://download.inep.gov.br/educacao_basica/enem/provas/2014/CAD_ENEM_2014_DIA_2_05_AMARELO.pdfhttp://download.inep.gov.br/educacao_basica/enem/provas/2014/CAD_ENEM_2014_DIA_2_05_AMARELO.pdf http://museudalinguaportuguesa.org.br/o-museu/ http://museudalinguaportuguesa.org.br/o-museu/ Registros da língua portuguesa: diferenças e semelhanças 45 RODRIGUES. S. No país do outrossim. Folha de São Paulo. 22 ago. 2019. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/colunas/sergio-rodrigues/2019/08/no-pais-do-outrossim. shtml. Acesso em: 26 maio 2020. SENTADO à Beira do Caminho. Compositores: Erasmo Carlos e Roberto Carlos. Intérprete: Erasmo Carlos. São Paulo: RGE, 1968. 1 LP (4 min.). Letra da música disponível em: https:// genius.com/Erasmo-carlos-sentado-a-beira-do-caminho-lyrics. Acesso em: 6 out. 2020. TIRO ao Álvaro. Compositores: Osvaldo Molles e Adoniran Barbosa. Intérprete: Elis Regina Brasil: Odeon, 1980. 1 CD (2 min.). Letra da música disponível em: https://genius.com/Elis- regina-tiro-ao-alvaro-lyrics. Acesso em: 6 out. 2020. GABARITO 1. A reflexão sobre a língua ser objeto de museu se dá no sentido de entender que ela é patrimônio imaterial, formadora da identidade cultural de um povo. É importante sa- lientar que isso não significa que ela deva ser preservada no sentido de ser inalterada, mas deve ter suas diferentes realizações registradas e conservadas. 2. São situações em que os falantes utilizam registros desprestigiados socialmente, na pronúncia ou na escolha de vocabulário. É importante destacar que, como vimos, nem toda variação gera preconceito, principalmente quando consideramos o fato de algumas escolhas serem licenciadas socialmente e empregadas em situações de comunicação de maior prestígio. Então, uma constatação importante a se fazer é: o preconceito está associado a questões sociais e de escolarização. 3. É importante destacar que podem ser aceitos aqui muitos exemplos, os quais estão neste capítulo ou não. A resposta a seguir é apenas ilustrativa: Tipo de variação Exemplo 1 Exemplo 2 Temporal Vossa mercê (que originou você) Convescote – piquenique (variação temporal com incor- poração de palavra que era originalmente estrangeirismo) Espacial Macaxeira, aipim e mandioca Careca, jacó, cacetinho e pão francês Social Trabaiá, em lugar de trabalhar Galfo, em lugar de garfo https://www1.folha.uol.com.br/colunas/sergio-rodrigues/2019/08/no-pais-do-outrossim.shtml https://www1.folha.uol.com.br/colunas/sergio-rodrigues/2019/08/no-pais-do-outrossim.shtml https://genius.com/Erasmo-carlos-sentado-a-beira-do-caminho-lyrics https://genius.com/Erasmo-carlos-sentado-a-beira-do-caminho-lyrics https://genius.com/Elis-regina-tiro-ao-alvaro-lyrics https://genius.com/Elis-regina-tiro-ao-alvaro-lyrics 46 Leitura e escrita no ensino superior 3 Estratégias para elaboração de textos Será que, depois de concluir o ensino médio, ainda temos de aprender a escrever textos? Quais serão as possibilidades de co- municar o que desejamos na escrita, mantendo a clareza e o estilo? E quais são os gêneros textuais mais utilizados no ensino superior? Pois é, quem lê o nome deste capítulo e pensa em alguns for- matos, estruturas ou descrições que podem servir de modelo para diferentes elaborações de texto não deixa de ter razão. Mas quem pensa que seguir uma estrutura e colocar nela suas marcas de autoria é uma estratégia inteligente também está certo. E quem ainda está na dúvida sobre as perguntas feitas inicialmente tam- bém tem razão de estar. Mas alertamos que são apenas perguntas motivadoras e retóricas, porque todos nós temos de saber elabo- rar textos (orais ou escritos, mais simples ou mais complexos), e sim, existem muitas maneiras de comunicar a mesma informação, desde o jeito mais brando, como “Nossa, como está calor nesta sala!”, até o mais incisivo, como “Por que ninguém ligou o ar condi- cionado ainda, posso saber?” O importante é encontrar a maneira mais adequada de comunicar o que se quer. Neste capítulo, queremos convidar você a conhecer, relembrar e utilizar diferentes estratégias que permitam ampliar suas possibi- lidades de se comunicar oralmente ou por escrito, principalmente no universo acadêmico e do trabalho. Para chegar a esse objetivo, não vamos começar pelas triviais definições do que é um texto, mas pelas convergências necessárias para sua elaboração em de- terminados contextos. Vamos descobrir juntos? Estratégias para elaboração de textos 47 3.1 Tipos e gêneros textuais Vídeo É possível que, em muitos momentos de sua vida escolar até aqui, você tenha se perguntado “para que serve?” ou “onde/quando vou usar/precisar?” a respeito de muitos conhecimentos ou informações que foram apresentados a você. Com a elaboração de textos escritos, não deve ter sido diferente, e, em muitas situações, você provavelmen- te não conseguiu conectar a motivação de escrever determinado texto com sua funcionalidade no mundo. Não é para menos. Ainda temos de reconhecer que existem muitas distâncias entre o conhecimento construído e o aprendizado desejado. Se essa é uma das suas aflições com a elaboração de textos (orais ou escritos, embora a escrita pareça sempre mais desafiadora), trazemos uma dica que pode ser alentadora: fazer um passo a passo bem cui- dadoso de cada texto que for solicitado a você é uma maneira bem prática e eficaz de resolver muitos dos problemas e conflitos que temos quando estamos diante da folha em branco. Para que isso seja possí- vel, vamos começar por um passo a passo que nos permite, inclusive, transitar bem pelos diferentes tipos de manuais de produção de textos que encontramos atualmente. Em geral, os manuais de produção de textos, ou manuais de redação, definem e orientam a produção de textos que têm características muito parecidas. Eles se ocu- pam da descrição de tipos e gêneros textuais com base na análise linguística e nos ambientes pelos quais devem circular esses textos. Além disso, costumam traçar pa- ralelos entre os tipos e os gêneros, com a finalidade de esclarecer as diferenças e as possibilidades de utilização de diversos recursos textuais. Esse caminho que desejamos percorrer precisa passar pelo paralelo ou pela comparação entre tipos e gêneros textuais. Mas, diferentemen- te do que podemos encontrar em diversos manuais de escrita (como aqui nossa finalidade é especialmente lançar mão de estratégias para melhorar nossa leitura e produção de textos em ambiente acadêmi- co), vamos aproveitar esse comparativo para exemplificar estruturas e conteúdos de que você pode se valer em situações distintas. Primeiro, vamos entender qual é a diferença entre tipos e gêneros textuais. 48 Leitura e escrita no ensino superior Tipos textuais São classificações dadas a estruturas linguísticas que seguem um padrão para compor os textos e têm quantidade definida. Gêneros textuais São realizações sociais dos textos, atendendo a características como linguagem, esfera e suporte de circulação e público-alvo. Não têm número definido. Agora, observe o quadro a seguir para facilitar seu entendimento do caminho entre tipos e gêneros textuais. Quadro 1 Tipos e gêneros textuais Descrição N ar ra ti vo D es cr it iv o Ar gu m en ta ti vo Tipo Em que gêneros aparece Gêneros que contam histórias, como crônica, conto, piada, novela, romance, conto de fadas, fábula. Gêneros em que predomine a caracterização de pessoas, lugares, situações etc., como guia de viagem, perfil virtual em rede social, anúncios em classificados. Gêneros que defendem um ponto de vista, como dissertação argumentativa, discursos orais ou escritos, crítica, comentário opinativo. Quando conta uma história. Quando predominam as características, principalmente representadas por adjetivos, para uma pessoa, um objeto, um lugar etc. Quando apresenta justificativas para uma ou mais afirmações. Ex pl ic at iv o ou ex po si ti vo Gêneros em que se expõe uma informação e/ou conhecimento, como aula expositiva, seminário, dicionário, livro didático. Quando predomina aapresentação de um conteúdo construído ao longo do tempo, por exemplo, pela ciência em geral. Gêneros que empregam verbos no imperativo (faça, misture, observe etc.), como receitas culinárias, manuais técnicos, propagandas. Quando se deseja pedir, solicitar ou ordenar a alguém alguma ação. In ju nt iv o ou in st ru ci on al Fonte: Elaborado pela autora. Estratégias para elaboração de textos 49 Para passarmos do “acho que estou entendendo” para o “entendi”, é bem importante exercitar a identificação dos tipos e gêneros em nos- sas leituras diárias. Sugerimos, por exemplo, que você tente descrever conscientemente, ao longo de um mês, sua relação com alguns textos a que esteja exposto. Por exemplo, que tal fazer um quadro como o que segue, respondendo às perguntas fielmente? Assim, você consegue sa- ber também se está abastecendo adequadamente seu repertório de leitura e suas percepções sobre os textos. Quadro 2 Exemplo de roteiro de leitura Roteiro para a prática de leitura Semana 1 Semana 2 Semana 3 Semana 4 Leu textos publicados pela impren- sa? O que predominava neles, infor- mação ou argumentação? Seguiu uma receita ou leu um ma- nual de instruções de algum equipa- mento? Prestou atenção em alguma propaganda ou campanha de cons- cientização? Como era? Produziu quais textos para as disci- plinas do seu curso? O que predomi- nou nesses textos, oralidade ou es- crita? Informação ou argumentação? No trabalho ou em outras situações, o que leu ou produziu? De que eram compostas essas situações de comu- nicação, mais descrição, explicação ou argumentação? Fonte: Elaborado pela autora. A ideia é que, na coluna de cada semana, você seja capaz de descre- ver o que leu ou produziu, conforme a indicação nas linhas. Lembre-se de que não há resposta certa; trata-se de uma verificação de como se deu seu contato com tipos e gêneros textuais. Fazer isso nos ajuda a perceber, na prática, como os gêneros são a combinação dos tipos para a realização dos processos de comunicação, cada um com sua função social específica. Essa visão geral, que você pode entender como uma revisão ou como um primeiro contato com as diferenças e os usos de tipos e gêneros textuais no cotidiano, é o embasamento para nosso próxi- mo aprendizado. Vamos falar de exemplos e estratégias no ambiente acadêmico? 50 Leitura e escrita no ensino superior 3.1.1 Tipos e gêneros no ambiente acadêmico Até aqui tratamos, de maneira mais geral, das diferenças e semelhan- ças de textos que encontramos em nosso cotidiano. Mas, neste ponto da reflexão, precisamos mobilizar nossos conhecimentos em usos especí- ficos de norma-padrão e no reconhecimento e utilização de diferentes fatores que promovem variações no idioma, para compreendermos com mais adequação a discussão sobre tipos e gêneros de texto. Um dos questionamentos que podem voltar a surgir, como já nos referimos neste capítulo, é “para que estou estudando isso?”, e nossa resposta imediata, para não deixar que você perca de vista essa per- gunta, é: para que você consiga transitar com mais facilidade pelos mais diversos textos oferecidos no ambiente acadêmico e seja capaz de produzir textos cada vez melhores, em cada disciplina que requeira de você diferentes manifestações de linguagem. Já estabelecemos alguns pontos do nosso passo a passo (identificar e compreender as características dos tipos e gêneros de texto); agora, vamos avançar mais um pouco: vamos observar juntos um exemplo de texto com o qual precisamos nos familiarizar na etapa de estudos em que estamos. Trata-se de um resumo de artigo acadêmico. Procure não se afligir caso não entenda todas as características desse gênero de imediato. Lembre-se de que, assim como outros processos de apren- dizagem, nosso contato com os diferentes tipos e gêneros de texto vai acontecendo e se tornando mais familiar à medida que exercitamos esse trabalho mais vezes. Além disso, sinta-se sempre convidado a exercitar a curiosidade e a ler de novo o mesmo texto, abrindo diferentes campos de interpretação. Vamos ler o texto e a seguir responder com cuidado às questões que conduzem a compreensão do que está apresentado no resumo. Resumo Introdução – Destaca a influência da internet no processo da comunicação cien- tífica de pesquisadores da área de saúde pública do Brasil. Objetivo – Conhecer a influência da internet nas atividades acadêmico-científicas dos docentes da área de saúde pública e as alterações provocadas pela inserção das novas tecnologias da informação no processo da comunicação científica. Métodos – A população foi constituída por 372 pesquisadores vinculados aos Programas de Pós-Graduação em Saúde Coletiva das Instituições de Ensino Superior (Continua) Estratégias para elaboração de textos 51 no Brasil, nos níveis Mestrado e Doutorado, cadastradas no sistema CAPES (Coordena- ção de Aperfeiçoamento de Pessoal de Nível Superior), no ano de 2001. Para a obtenção dos dados, optou-se pelo uso de questionário via internet. Para os que não responderam o instrumento eletrônico, foram enviados questionários impressos. Resultados – A taxa de retorno dos questionários eletrônicos e impressos foi de 64,8%. O uso da inter- net foi apontado por 95,0% dessa comunidade, sendo o correio eletrônico (92,1%) e a web (55,9%) os recursos mais utilizados, diariamente. A influência mais marcante da internet foi na comunicação informal entre os docentes, principalmente para o desen- volvimento de pesquisas, propiciando maior colaboração com colegas de instituições brasileiras e de outros países. Quanto à divulgação de resultados de pesquisa, ainda há predominância dos formatos impressos, sendo principalmente, em artigos de periódicos de circulação nacional. Os docentes que declararam não utilizar a internet destacaram a falta de tempo e a facilidade de conseguirem de seus colegas o que precisam. Con- clusões – Os dados mostram que a internet influenciou no trabalho dos acadêmicos e vem afetando o ciclo da comunicação científica, principalmente na rapidez com que a informação pode ser recuperada, porém com forte tendência em eleger a comunicação entre os pesquisadores como a etapa que mais passou por mudanças desde o advento da internet no mundo acadêmico brasileiro. Descritores: Programas de Pós-Graduação; Pesquisadores; Tecnologia da Informação; Internet; Saúde Pública. Fonte: FSP-USP, 2020, grifos do original. Reflita sobre: • Que tipo de linguagem foi empregada no texto (formal/informal; denotativa/conotativa)? • Qual é o tipo textual predominante no gênero apresentado como exemplo? • Quais são as principais características que nos fazem identificar esse texto como um resumo de artigo acadêmico? É importante que você só siga a leitura após tirar suas próprias constatações sobre o resumo, porque vamos tecer considerações aqui – você pode complementá-las com seu raciocínio. Trata-se de um texto acadêmico, assim, o que se espera e o que se vê no texto em relação à linguagem é a formalidade no vocabulário e na estruturação sintática e o emprego denotativo das palavras, ou seja, não há linguagem figurada ou brincadeiras com o sentido do vo- cabulário 1 Aqui você já percebe um emprego muito importante do que estudamos e revisamos a respeito da adequação das diferentes variações da língua, considerando que a norma culta é a variação de maior prestígio e deve ser empregada em textos como o que acabamos de ler. 1 . 52 Leitura e escrita no ensino superior A segunda questão nos coloca diante do que procuramos desen- volver e exemplificar anteriormente no capítulo: a relação entre tipos e gêneros textuais. Note que, como temos um resumo de texto acadê- mico, o principal objetivo é informar, por meio da descrição das etapas, a respeito do tema e do caminho percorrido pelo autor do artigo. Nesse sentido, temos dois tipos textuais bem evidentes na composição desse gênero: a descrição e a exposição. Para além dessas características,que podem se fazer presentes em outros textos, a terceira questão nos leva a procurar outras evidências mais determinantes de que o texto atende aos pré-requisitos do resu- mo. Na verdade, a característica que buscamos está destacada no texto e pode ser indicada pelo fato de haver introdução, objetivos, métodos, resultados e conclusões, o que não deixa dúvida sobre o gênero de que estamos tratando. É importante destacar aqui que essas partes indica- das no resumo devem aparecer de maneira bem sucinta, pois elas vêm detalhadas em geral no corpo do artigo. É como se o resumo fizesse a função de sumário para o detalhamento dessas partes no texto maior. Antes que você pergunte como é possível reconhecer um resumo sem ter visto outros antes, já formulamos a resposta: o reconhecimen- to imediato de um resumo de texto acadêmico, ou de qualquer outro gênero, só é possível a partir do momento em que nos familiarizamos com a leitura e produção desse texto em diferentes circunstâncias. Familiarizar-se com os gêneros de texto é um dos percursos ou es- tratégias possíveis para identificação da convergência entre tipos e gê- neros que consolidam um texto, que tem função social, público-alvo e esfera de circulação definidos. Mas podemos pensar ainda em passos anteriores à elaboração do texto, que estão no princípio de sua construção, antes mesmo da primei- ra versão. Como podemos enxergá-los e realizá-los? Para a elaboração de todo e qualquer texto, precisamos, antes de tudo, escolher tópicos e desenvolvê-los aos poucos, de modo a obedecer a determinadas carac- terísticas, que resultarão na versão final do texto. Para compreender um pouco melhor essas estratégias desde o começo, convidamos você a estudar os fatores de textualidade, explicados a seguir. Explique, com suas palavras, como um gênero de texto acadêmico emprega diferentes tipos textuais para realizar seus objetivos de comunicação. Atividade 1 Alguns sites de uni- versidades, como o da Universidade de São Paulo (USP), oferecem orientações e modelos para a produção de tex- tos acadêmicos com as mais diversas finalidades. Vale a pena conferir! Disponível em: http://www. biblioteca.fsp.usp.br. Acesso em: 24 nov. 2020. Site http://www.biblioteca.fsp.usp.br http://www.biblioteca.fsp.usp.br Estratégias para elaboração de textos 53 3.2 Fatores de textualidade Vídeo “Deve-se escrever da mesma maneira como as lavadeiras lá de Alagoas fazem seu ofício. Elas começam com uma primeira lavada, molham a roupa suja na beira da lagoa ou do riacho, torcem o pano, molham-no novamente, voltam a torcer. Colocam o anil, ensaboam e torcem uma, duas vezes. Depois enxáguam, dão mais uma molhada, agora jogando a água com a mão. Batem o pano na laje ou na pedra limpa, e dão mais uma torcida e mais outra, torcem até não pingar do pano uma só gota. Somente depois de feito tudo isso é que elas dependuram a roupa lavada na corda ou no varal, para secar. Pois quem se mete a escrever devia fazer a mesma coisa. A palavra não foi feita para enfeitar, brilhar como ouro falso; a palavra foi feita para dizer.” Graciliano Ramos (1948), em uma entrevista para um jornal (apud SILVEIRA, 1998) Não são poucos os autores (ainda bem) que já se ocu- param de explorar as características globais e específicas envolvidas na elaboração de textos. Isso quer dizer que po- demos escolher, para nossa orientação, aqueles que con- siderarmos mais didáticos ou que conduzem análises e detalhamentos para os textos com que desejamos ter con- tato em dado momento. Em muitos manuais de escrita, encontramos textos li- terários como referência para o bom uso da língua, mas é importante destacar e guardar a seguinte informação: as- sim como qualquer outra escolha de vocabulário ou orga- nização, o texto literário também é um recorte carregado de valores e informações culturais, sociais e subjetivas do indivíduo. E o que isso quer dizer? Quer dizer que escrever um bom texto, que comunique exatamente aquilo que se pretende, é uma tarefa trabalhosa inclusive para quem vive de escrever, como os autores literários. Esse aspecto é bem ilustrado pela analogia feita por Graciliano Ramos, na epígrafe escolhida para esta seção: ao comparar as diferentes, repetidas e contínuas ações feitas pe- las lavadeiras de Alagoas ao processo de criação e elaboração de escrita, o autor oferece ao leitor um pouco da concretude do que é a experiência de escrever e reescrever um texto até encontrar o melhor jeito de dizer alguma coisa. Além disso, o texto que parece enfeitado não necessaria- mente é o que melhor comunica; ao contrário: na maioria das vezes, empregar palavras difíceis ou de pouco uso no português brasi- Há mais de 30 anos, Luiz Antonio de Assis Brasil criou o que é hoje a mais antiga oficina de criação literária em ambiente acadêmico. Essa proposta originou diversos cursos acadêmicos, além da obra Escrever ficção: um manual de criação literária, que indicamos como leitura por fazer uma descrição muito original de como as pessoas em geral têm, ao mesmo tempo, muito medo e muita curio- sidade em relação ao universo da escrita. Antes que você diga que sua prioridade não é escrever ficção, destacamos que as referências para ajudar os estudantes a desen- volver textos ficcionais são muito produtivas para qualquer tipo de texto. São intertextos que podem não só promover um raciocínio diferente sobre os mesmos temas, mas também uma am- pliação sobre as interpre- tações da realidade. BRASIL, L. A. A. São Paulo: Companhia das Letras, 2019. Livro 54 Leitura e escrita no ensino superior leiro contemporâneo piora as possibilidades de comunicação. É o que podemos depreender da constatação feita por Graciliano Ramos: pa- lavra não é feita para enfeitar, mas para dizer. Se compreendermos a força dessa afirmação e nos lembrarmos dela quando precisarmos escrever, uma boa parte das possíveis barreiras que impedem a comu- nicação produtiva já terá sido vencida. Realizamos essa reflexão com você antes de trabalhar com o que chamamos de fatores de textualidade, porque, para além das simples definições desses fatores, não po- demos perder de vista aquela pergunta que pode nos assombrar quando não faze- mos o caminho didático adequado: “Para que serve ou quando/como vou utilizar isso?” Propomos, assim, mais uma analogia, muito comum e produ- tiva para quem se põe a escrever: a colcha de Penélope. No Ociden- te costumamos estabelecer como início de nossos registros literários dois poemas épicos: Ilíada e Odis- seia, ambos criados pelo autor grego Homero. O primeiro conta o período fi- nal da lendária guerra de Troia, exaltando os feitos de seus principais personagens, Aqui- les e Heitor. Já o segundo relata o retorno de Odisseu (também chamado de Ulisses entre os latinos) à ilha de Ítaca, sua casa, onde é esperado pela esposa Penélope. Ao longo de dez anos, Penélope esperou pelo retorno do esposo, mas como se tratava de uma mulher muito bonita e de posses, sempre havia muitos pretendentes, e ela se sentia cada vez mais pressionada a se decidir por algum dos cortejadores. Para manter a diplomacia e, ao mesmo tempo, seguir firme em seu propósito de esperar por Odisseu, Penélope começou a tecer uma colcha e informou a todos que, assim que terminasse o artefato, escolheria o pretendente. O que Penélope não disse é que todas as noites desmanchava quase tudo o que havia tecido ao longo do dia, até que, ao final de dez anos, Odisseu retornou como um estranho, para ver como a esposa o receberia caso fosse um Intertextualidade Situacionalidade Informatividade Fatores da textualidade Aceitabilidade Intencionalidade Estratégias para elaboração de textos 55 novo pretendente. O plano não funcionou integralmente porque a cria- da que lavou seus pés reconheceu uma cicatriz que ele tinha desde antes de viajar (HOMERO, 2011). Mas o que o relato dessa história tem a ver com fatores de textua- lidade e com nossaproposta de nos familiarizarmos mais com textos acadêmicos? Saber encadear histórias, tal como Penélope encadeava retalhos, é uma habilidade importantíssima e básica para entender que as informações têm lugar específico em cada texto. Além disso, a ação de Penélope pode ser facilmente comparada ao processo trabalhoso de quem escreve: não são poucas as vezes em que escrevemos de dia e apagamos à noite, em que não ficamos satisfeitos com o resultado ou não temos certeza do caminho a ser trilhado pela escrita. E este texto que você está lendo agora também é fruto desse pro- cesso da colcha de Penélope? Com certeza! Escolher as melhores pala- vras e os jeitos mais eficazes de comunicar não é uma tarefa fácil, e é preciso sempre pensar no público-alvo com respeito e benevolência, sem, contudo, deixar de obedecer aos propósitos discursivos do texto e às intenções ou informações necessárias. Considerando essas motivações, destacamos que os fatores que vamos descrever, detalhar e exemplificar a seguir devem fazer parte de todas as construções e análises de texto, em qualquer nível de es- colarização. Mas aqui, para aproveitarmos bem nosso ponto de partida e nossos objetivos, vamos relacioná-los a exemplos e situações do uni- verso acadêmico. 3.2.1 Informatividade Vamos supor, para abordar esse assunto, que um texto comece do seguinte modo: “O presente artigo tem como objetivo maior, mostrar os impactos causados pelas novas tecnologias e pelas mudanças cau- sadas na sociedade devido às redes sociais” (BARROS; CARMO; SILVA, 2012, p. 2). Nesse trecho, temos um exemplo clássico de tentativa de uso da pontuação para segmentar o período, mas é um uso de vírgula que não se aplica, considerando a ordem das informações. Contudo, é preciso destacar que o uso inadequado da vírgula não impede que o texto te- nha a informatividade necessária e adequada ao que pretende: indicar Leitura e produção de tex- tos na universidade trata- -se de uma obra bastante didática que aborda, com outros exemplos, vários gêneros textuais exigidos no ambiente acadêmico. É sempre muito interes- sante diversificar as vozes pelas quais nos chegam as análises sobre o que estudamos. Com relação à produção de textos, isso permite que o leitor/ estudante chegue a suas próprias constatações com base na ideia do que seja se tornar um leitor competente. COSTA, D.; SALCES C. D. Campinas: Alínea, 2013. Livro 56 Leitura e escrita no ensino superior qual é o objetivo principal do artigo, a saber: “mostrar os impactos cau- sados pelas novas tecnologias e pelas mudanças causadas na socieda- de devido às redes sociais” (BARROS; CARMO; SILVA, 2012, p. 2) 2 Destacamos que o encadeamen- to adequado para apresentar o objetivo de um texto é sempre feito por um verbo, de preferên- cia na forma de infinitivo, como é o caso de mostrar. 2 . É importante que você perceba que a informatividade está estrei- tamente ligada ao conteúdo do texto, e, para medir a quantidade e a qualidade das informações, podemos fazer algumas perguntas, como: • O tema indicado para a elaboração do texto foi mantido ao longo da abordagem? • As informações estão relacionadas adequadamente ao tema? • Existe uma cronologia (ordem das informações) adequada ao que é esperado/proposto? • Ao finalizar a leitura, na condição de interlocutor da mensagem, consigo me sentir informado/contemplado em relação à aborda- gem proposta? Essas são questões que podem nortear a medição do grau de infor- matividade de um texto, seja ele curto ou longo, com maior ou menor grau de cientificidade, com a finalidade de informar ou convencer. Para oferecer mais um exemplo de como a informatividade está re- lacionada à possibilidade de apresentar bem um conteúdo, vamos ima- ginar juntos uma situação: é possível que você se pergunte como pode, por exemplo, um professor de determinada área do conhecimento se sentir mais informado ao ler o texto de um aluno sobre um tema da área. Aí o raciocínio a ser feito, em termos de quantidade e qualidade, não é de que o professor busque informação no texto do aluno ao rea- lizar a leitura, mas de que consiga perceber como o aluno é capaz de mostrar que dispõe das informações adequadas em sua elaboração das ideias e sabe organizá-las de modo a divulgar para o público-alvo específico o que foi proposto. Esse é apenas um dos tantos exemplos de raciocínios possíveis com base nas noções de informatividade, que podem ser identificadas em um texto e também embasar sua construção. O caminho para identi- ficar a informatividade de um texto, ou como e quanto ele dispõe de conteúdo sobre o tema de que trata, pode ser feito quando analisamos outros exemplos, como a escrita de textos acadêmicos. Estratégias para elaboração de textos 57 Essa identificação pode ser feita também no exemplo a seguir, con- siderando que nossa proposição aqui é utilizar a leitura e a produção de textos acadêmicos como exemplos para os conceitos apresentados – os quais direcionam a produção de textos, melhorando nossos processos de comunicação. Assim, sugerimos as seguintes etapas para melhor en- tendimento do ciclo de produção de um texto que pode ser publicado: É o questionamento inicial, com a informatividade necessária, que permite começar a discussão. É preciso escolher um problema ou uma situação a ser discutida. Para utilizar como exemplo o texto caracterizado como objetivo de pesquisa que citamos no início desta seção, podemos elaborar o problema assim: existem impactos causados pelas novas tecnologias e pelas mudanças causadas na sociedade devido às redes sociais? Criar/conceber É preciso colocar a proposição em teste de acordo com a metodologia indicada e escolhida, a fim de levantar os dados a respeito do problema. Deve-se conhecer as diferentes metodologias e ter em mente a mais adequada ao propósito específico. Colocar em teste Identifica-se a responsabilidade que toda pesquisa tem em relação ao meio social em que é realizada e as transformações que pode gerar. Considerando nosso exemplo, seria possível mudar para melhor o comportamento das pessoas em relação ao uso das tecnologias e redes sociais? (Continua) Gerar cooperação e colaboração Depois da identificação do problema, deve-se organizar uma sequência cronológica e metodológica amparada nas teorias e experiências anteriores adequadas, a fim de construir algo novo com base no que já existe, ainda que seja um relato de aplicação e entendimento do que já existe. Elaborar um projeto Colhidos os dados com base na metodologia adequada, é hora de “separar o joio do trigo”: ver o que os dados têm de importante para serem transformados em informação. É preciso entender que os dados contam uma história a respeito do tema, por isso insistimos em descobrir o que a Literatura tem a nos oferecer como analogia em relação aos aprendizados, a nossas ações e à nossa vida. Nunca se esqueça de que fazer análise de dados é mostrar como um número pode ser lido em contexto e os desdobramentos que ele pode gerar. Fazer análise 58 Leitura e escrita no ensino superior Os cuidados de textualização para trazer a público todo o ciclo envolvido em uma pesquisa são fundamentais. Utilizar a linguagem adequada, as estruturas textuais mais expressivas e saber informar a respeito do tema são ações primordiais, não importando o meio de circulação. Tornar público o texto final Existem diversos meios na atualidade de fazermos chegar a mensagem que produzimos, com todas as suas características e sua contingência, ao público- -alvo. Não basta tornar um texto público, é preciso saber informar a quem de fato interessa. Para manter o diálogo com nosso exemplo, se desejamos indicar como mudar comportamentos nas redes sociais, talvez estas sejam o melhor meio de divulgação, porque atingem o público que de fato as utiliza. Divulgar para o público interessado Com essas etapas descritas, aproveitamos para explorar a informa- tividade de umtexto com base na organização da sequência de itens exigida pela metodologia científica requerida para a realização do ciclo completo de uma pesquisa. Além da informatividade, há outros fatores bastante importantes a serem obedecidos na concepção adequada de um texto em diferentes e possíveis contextos. Vamos tratar de um de- les, a situacionalidade, a seguir. 3.2.2 Situacionalidade Entre as características a que um conjunto de palavras deve obede- cer para ser identificado como um texto, está a situacionalidade. Tra- ta-se de uma condição básica para que se torne possível o processo de comunicação. Observe e analise a efetivação do processo que estamos fazendo aqui, no curso do aprendizado que continuamos construindo: trata-se de uma atividade social que não acontece sem propósito, mas faz parte de um processo sociocultural. A situacionalidade pode ser identificada como o contexto em que a comunicação de determinada informação acontece. Em nosso caso, o contexto ou situação sociocultural é o momento de aprendizado, cujo suporte é o livro. Isso nos leva a constatar que, todos os dias, realiza- mos inúmeras ações de linguagem, que levam em conta o contexto e têm diferentes objetivos, como informar, resumir, explicar, defender, pedir, oferecer e brincar. Para mantermos nosso diálogo com os exemplos de texto, vamos fazer referência a um trecho do resumo que citamos na Seção 3.1: Estratégias para elaboração de textos 59 “Objetivo – Conhecer a influência da internet nas atividades acadêmi- co-científicas dos docentes da área de saúde pública e as alterações pro- vocadas pela inserção das novas tecnologias da informação no processo da comunicação científica” (FSP-USP, 2020, grifo do original). Como ilus- tração para a situacionalidade, trazemos apenas o objetivo, mas pode- ríamos citar qualquer outro item que compõe o resumo. O contexto em que a discussão da temática se dá é o ambiente acadêmico, em que estão envolvidos docentes da área de saúde pública. Além disso, são abordadas quais são as relações estabelecidas pelos docentes com as novas tecnologias de informação para a comunicação científica. Se esse exemplo nos parece complexo, podemos observar algo bem mais trivial, como uma mensagem de texto enviada pelo celular, em que alguém deseja pedir ou informar alguma coisa a alguém ou, ainda, fazer rir pelo envio dos inúmeros memes que fazem parte desse tipo de comunicação. Nesse caso, que é absolutamente informal, também temos uma situacionalidade, em que ocorre o emprego da linguagem com uma finalidade específica. Para continuarmos nosso entendimento dos fatores que devem aparecer em nossos processos de comunicação, vamos tratar de mais dois deles, os quais são uma via de mão dupla na relação entre os in- terlocutores de uma mensagem: a intencionalidade e a aceitabilidade. 3.2.3 Intencionalidade e aceitabilidade Quando lemos intencionalidade, em geral a primeira interpretação que fazemos é de que o tópico poderá tratar de quais foram, ou são, as intenções de quem elaborou um texto. Na verdade, precisamos reo- rientar nosso olhar para a verdadeira característica que esse conceito confere ao texto: entendemos por intencionalidade que a pessoa que produz ou emite uma mensagem teve apenas, e tão somente, intenção de comunicar algo coerente. De outro lado, ao tratar do fator da aceitabilidade, entende-se que o receptor (ouvinte ou leitor) do texto também tenha apenas, e tão somen- te, a intenção simultânea de empregar todo o esforço necessário para atribuir os sentidos e processar as intenções de quem elaborou o texto. Nota-se que essas duas características só podem se completar e se equilibrar quando os interlocutores envolvidos no processo de comuni- cação atendem a uma ou outra das condições a seguir: A história de como surgiu a palavra meme é curiosa, pois quem inventou esse conceito (Richard Dawkins) o fez na área de ciências biológicas, e a princípio essa ideia nada tinha a ver com a cultura digital. Em sua publicação O gene egoísta (1976), Dawkins utiliza a ideia de mímesis (imitação, em grego), mas por uma espécie de licença poética, que ele mesmo relata no texto, sugere utilizar meme para indicar imitação e por parecer com a palavra gene. Na contemporaneidade, porém, a palavra meme ganhou contornos de imitação divertida e viral no mundo virtual. Curiosidade 60 Leitura e escrita no ensino superior 1. Ambos têm repertório sociocultural semelhante e compartilham das mesmas informações a respeito de determinado assunto ou tema. 2. Aquele (emissor ou receptor) que não dispõe do mesmo repertório sociocultural para produzir ou interpretar a mensagem se esforça por alcançá-lo. Essas características precisam caminhar juntas para que a leitura e a produção de textos atinjam o patamar de comunicação ideal, inclusi- ve no ambiente acadêmico e nas relações de trabalho. Para que isso se consolide, um ponto que nunca podemos perder de vista é o enrique- cimento de nosso repertório sociocultural por meio do aprendizado de relações de intertextualidade, o que estudaremos a seguir. 3.2.4 Intertextualidade A intertextualidade é a utilização de um texto já existente como base para a criação ou sustentação de outro. É claro que, em textos acadêmicos, o emprego de intertextualidade é um recurso recorrente e necessário, considerando que estamos o tempo todo nos referindo a pesquisadores, pensadores, conteúdos e definições ou pesquisas cien- tíficas já consolidadas. Isso quer dizer que estamos, na maior parte do tempo, criando autonomamente textos embasados na reflexão de ou- tros textos já produzidos. Ao longo de nossos estudos, você já deve ter percebido que nos referimos inúmeras vezes, direta e indiretamente, a pensamentos, re- ferências, fontes, ideias, pessoas, conceitos e pesquisas que antecede- ram as reflexões que nos propusemos a formular e encaminhar. Isso quer dizer que, de diferentes maneiras e com diversas intensidades, temos estabelecido relações intertextuais recorrentes. Por exemplo, quando citamos exatamente as palavras proferidas por Graciliano Ramos, que comparou o processo de escrita ao de la- var roupas, fizemos uma citação direta. Já quando relatamos a ação de Penélope, fizemos uma citação indireta ou paráfrase. Denominamos paráfrase a interpretação ou explicação de um texto que, reconhe- cidamente, pertence a outra pessoa. Para fazer uma paráfrase, costumamos utilizar nosso próprio repertório de vocabulário, e não usar as mesmas palavras ou a mesma estrutura empregada por esse outro texto. Estratégias para elaboração de textos 61 Existem, inclusive, textos que se tornam clássicos e citam outros clássicos; por exemplo, Machado de Assis, ao escrever o conto “A Car- tomante” – uma história de amor, intriga, traição e morte, cujo cenário é o Rio de Janeiro, mais precisamente Botafogo, no final do século XIX –, não teve dúvida de que citar Shakespeare diretamente seria uma boa ideia, e assim o faz: HAMLET observa a Horácio que há mais cousas 3 As formas cousas e coisas coe- xistem no português brasileiro, mas, ao longo do século XX, coisas foi ganhando espaço no emprego preferencial em todos os textos e contextos. 3 no céu e na terra do que sonha a nossa filosofia. Era a mesma explicação que dava a bela Rita ao moço Camilo, numa sexta-feira de novembro de 1869, quando este ria dela, por ter ido na véspera consultar uma cartomante; a diferença é que o fazia por outras palavras. (ASSIS, 1994, p. 1, grifo nosso) A frase com que Machado inicia o conto foi dita pelo príncipe Hamlet a seu amigo Horácio em um momento de reflexão na peça Hamlet, um clássico do teatro universal, escrita por William Shakespeare. A peça também trata de intrigas, traição, amor e morte. Ao começar com esse intertexto, Machado já faz um prenúncio ao leitor do que está por vir. Em termos de organização sintática, a citação é uma paráfrase do texto original, em que o autor (Machado de Assis) relata com suaspalavras o que Hamlet havia dito ao amigo Horácio no texto original. Caso Machado preferisse copiar a frase exatamente como está no texto original, ele de- veria citá-la entre aspas, assim: “Há mais coisas entre o céu e a terra, Horácio, do que sonha tua filosofia” (SHAKESPEARE, 1997, p. 28). E com relação a textos de divulgação científica que citam outras pesquisas, podemos dizer que estabelecem uma relação de inter- textualidade? Sim, sempre que fazemos referência a outras pesqui- sas, teorias ou pesquisadores, utilizamos para isso a habilidade da intertextualidade, que, como vimos, pode ser por citação direta ou indireta (paráfrase). Isso pode também ajudar o produtor do texto a estabelecer analogias e outros raciocínios para atingir seus objetivos em relação ao leitor. Além disso, para que as relações textuais, inclusive de intertex- tualidade, possam ser bem empregadas e reconhecidas, caracterís- ticas como coesão e coerência não podem escapar de nosso campo de leitura e escrita. Analisar textos pro- duzidos com diversas finalidades, considerando características como informatividade, coesão, coerência e intertex- tualidade, não é tarefa fácil. No livro Análise de textos, Irandé Antunes apresenta ao leitor as possibilidades de partir da leitura e análise global de textos até chegar a análises mais detalhadas. Isso faz com que seja possível perceber as es- tratégias empregadas em diferentes contextos de produção de textos, além de permitir a identificação do diálogo entre diferen- tes produções. ANTUNES, I. São Paulo: Parábola, 2010. Livro 62 Leitura e escrita no ensino superior 3.3 Coesão e coerência Vídeo Uma vez, ao se referir a como interpretamos tirinhas 4 Trata-se de uma combinação de linguagem verbal e não verbal. 4 , Umberto Eco (1990) formulou a ideia de que elas podem ser abertas ou fechadas. Ao se referir a essa análise, o cartunista brasileiro Laerte Coutinho (2010) estabeleceu uma analogia, afirmando que tiras são como esfihas: mais abertas à medida que o emissor e o receptor da mensagem comparti- lham de conhecimento de mundo e repertório sociocultural parecidos; e mais fechadas à medida que o mundo do emissor não apresenta re- lação direta ou significativa com o receptor. Mas o que isso tem a ver com coesão e coerência de texto, princi- palmente em textos acadêmicos? Primeiro, precisamos entender o que é cada uma: Coerência Atribuição de sentido que permite interpretar um texto. Coesão Relação textual evidente entre as ideias do texto. Portanto, percebemos que a coesão e a coerência estão intimamen- te relacionadas com o universo que o produtor e o receptor da men- sagem compartilham. Mas como é possível identificar se essas duas características estão bem empregadas em um texto? Vamos considerar juntos, com análises e exemplos específicos, as características de coe- são e coerência a seguir. 3.3.1 Tipos de coesão Esta subseção também poderia ser chamada de referências a ele- mentos já citados em um texto ou como empregar palavras e expressões que ligam ideias e conferem diferentes sentidos a elas, porque é desse tipo de relação entre ideias em contexto que a coesão mais deve se ocupar. Para exemplificar essas afirmações, vamos tomar como base dois tre- chos do resumo que citamos na Seção 3.1: Para a obtenção dos dados, optou-se pelo uso de questionário via internet. Para os que não responderam o instrumento eletrô- nico, foram enviados questionários impressos. [...] Os livros A coesão textual e A coerência textual são dois títulos da mesma au- tora, Ingedore Koch, que exploram as relações de sentido conferidas pela coesão e pela coerência em diferentes textos do cotidiano. Valem como leitura de ponto de parti- da para as diferentes re- flexões e os diversos usos que podem ser feitos nos textos que produzimos ao longo de nossa forma- ção acadêmica. KOCH, I. São Paulo: Contexto, 1989. KOCH, I. São Paulo: Contexto, 1990. Livro Estratégias para elaboração de textos 63 Os dados mostram que a internet influenciou no trabalho dos acadêmicos e vem afetando o ciclo da comunicação científica, principalmente na rapidez com que a informação pode ser re- cuperada, porém com forte tendência em eleger a comunicação entre os pesquisadores como a etapa que mais passou por mu- danças desde o advento da internet no mundo acadêmico brasi- leiro. (FSP-USP, 2020, grifos nossos) Agora, vamos analisar cada uma das partes destacadas do resumo, que são os conectores no texto. Quadro 3 Conectores e suas funções Para Indica finalidade e pode ser substituído por a fim de. Observe que no caso do resumo utilizado como exemplo poderíamos ter a construção “a fim de obter os dados” sem que houvesse alteração de sentido. Os que A palavra que é muito versátil em português e pode ser empregada em diversas situa- ções de ligação entre ideias. Nesse caso, a construção os que pode ser substituída por aqueles que, sendo que pronome relativo. Por que classificamos que como pronome? Justamente porque ele tem outros usos, como o que segue. Que Aqui, que é uma conjunção integrante e liga uma oração a outra (a principal a seu objeto direto) – mostram exige objeto direto e é a segunda oração, introduzida por que, que desempenha essa função. Exploramos algumas nomenclaturas para que você possa re- visar e revisitar as diferentes funções que podem ser exercidas por diferentes palavras e expressões que ligam informações em contexto. Principalmente Assim como os demais advérbios de modo (terminados em -mente e formados a partir de um adjetivo, nesse caso principal principalmente), pode ser empregado para dar destaque, tecer alguma consideração ou juízo de valor (como infelizmente, beneficamente). Na estrutura em questão, o advérbio principalmente destaca uma informação das demais. Porém Assim como outros conectores de mesma natureza (como mas, contudo, todavia, entre- tanto e no entanto), estabelece uma relação de oposição entre a informação anterior e a que se segue a ele. Desde Estabelece uma relação de percurso entre um ponto e outro, que pode ser temporal ou espacial, e organiza as informações em anterioridade e posterioridade. Fonte: Elaborado pela autora. Os conjuntos de palavras e expressões empregados para correla- cionar informações são diversos, de acordo com outras características do texto, como o objetivo (informar, argumentar, explicar, relatar etc.). Por isso, estabelecemos aqui apenas um quadro informativo e exem- plificador de como esses elementos são importantes e devem ser bem escolhidos antes de darmos um texto por finalizado. 64 Leitura e escrita no ensino superior Não vamos alongar a discussão com listas de conectores, porque elas podem ser encontradas em abundância em manuais de usos da norma- -padrão, como gramáticas ou sites. Porém, destacamos que a melhor maneira de aprender a ler e utilizar elementos coesivos é destacando-os e procurando atribuir sentidos a eles em todos os textos que lemos. Isso possibilita também a organização e orientação de uma lista própria e autoral. Pense nisso e coloque em prática! Você vai perceber como seu repertório de palavras aumenta e a sua precisão de utilização melhora. Leia o resumo a seguir e analise quais são as relações de coesão e os tipos textuais empregados nesse texto. Autismo é uma complexa desordem do neurodesenvolvimento, caracterizado por um comprometi- mento em três áreas dominantes: interação social e da comunicação e um repertório muito restrito de repertório e interesse. O presente trabalho apresenta considerações resultantes de uma pesquisa sobre o uso da dança como intervenção pedagógica para crianças e adolescentes autistas na cidade de Pelotas, Rio Grande do Sul. Essa pesquisa é originária de uma parceria entre os cursos de medi- cina, educação física e dança. A dança foi utilizada como intervenção pedagógica tendo em vista o aprimoramento das relações interpessoais entre indivíduos do espectro autista e seu círculo social.(SILVA et al., 2013) Atividade 2 A coerência precisa ser entendida com uma característica que não pode ser identificada em apenas uma palavra ou frase, mas no enten- dimento global do texto, pelo que ele apresenta em si e pelo sentido que faz ao se relacionar com o mundo. Quando falamos em coerência interna, estamos avaliando a progressão das informações contidas em um texto, e quando falamos em coerência externa, referimo-nos ao fato de esse texto fazer sentido no mundo. Tomando novamente como exemplo o resumo da Seção 3.1, vemos que se trata de um texto internamente coerente, porque obedece a uma sequência, como de causa e consequência, entre as partes que compõem o resumo. Também é um texto coerente externamente, por- que dialoga adequadamente com uma situação ou problema discutido sem distorcê-lo. Esses dois itens podem ser empregados sempre que desejarmos avaliar se um texto – não importa o grau de complexidade – é coerente ou não. É possível compreender mais funções de palavras em seus contextos estudando obras que abordam a descrição ou a orientação de usos da língua portuguesa, como o livro Aprender e praticar gramática, de Mauro Ferreira. FERREIRA, M. 4. ed. São Paulo: FTD, 2019. Livro Elabore um raciocínio autô- nomo que mostre como você sugere identificar a existência de coerência interna e externa nos textos. Atividade 3 Estratégias para elaboração de textos 65 CONSIDERAÇÕES FINAIS Recapitulando algumas das referências com que trabalhamos ao lon- go das reflexões deste capítulo, passando pela colcha de Penélope, pe- las lavadeiras de Alagoas, pelo intertexto shakespeariano em Machado de Assis e pelas esfihas exemplificadas por Laerte com base no conceito de Umberto Eco, consideramos prudente, ao final, fazer mais uma rela- ção que pode ser entendida como uma pausa lúdica, mas que se associa integralmente ao percurso escolhido: a linha tênue entre a leveza que o aprendizado proporciona e o peso da construção do caminho. Essas analogias, inclusive do contraponto entre a leveza e o peso, estão presentes desde a Antiguidade Clássica, mas nem é preciso se estender tanto no tempo para encontrar uma proposição que susten- te essas constatações. Publicado pela primeira vez em 1984, o livro A insustentável leveza do ser, de Milan Kundera, apresenta vários pontos oponentes, como: luz e sombra, quente e frio. Essa análise pode suge- rir que estar pronto para interpretar o mundo entre essas oposições e atuar sobre elas depende do quanto queremos nos envolver com o que estamos fazendo ou nos propomos a fazer, tanto em aprendizado quan- to em ações cotidianas. Assim, com essa consideração, que é composta de retomada e ao mesmo tempo metalinguagem, desejamos que, com base nos assuntos aqui discutidos e nas reflexões que possamos fazer a respeito dos usos contextuais, sua leitura e produção de textos melhore sempre, ao per- ceber que o texto não precisa (e nem deve) ser um elemento artificial da comunicação, mas um conjunto carregado de sentidos, valores, formação sociocultural e singularidade autoral. REFERÊNCIAS ASSIS, M. Obra Completa. Rio de Janeiro: Nova Aguilar, 1994. v. II. Disponível em: http:// www.dominiopublico.gov.br/download/texto/bv000257.pdf. Acesso em: 24 nov. 2020. BARROS, A. A.; CARMO, M. F. A.; SILVA, R. L. A influência das redes sociais e seu papel na sociedade. Anais do Congresso Nacional Universidade, EAD e Software Livre, Belo Horizonte, v. 1, n. 3, 2012. Disponível em: http://www.periodicos.letras.ufmg.br/index.php/ueadsl/ article/view/3031. Acesso em: 24 nov. 2020. ECO, U. Apocalípticos e integrados. 4. ed. São Paulo: Perspectiva, 1990. FSP-USP. Resumos. 2020. Disponível em: http://www.biblioteca.fsp.usp.br/~biblioteca/ guia/a_cap_05.htm. Acesso em: 24 nov. 2020. HOMERO. Odisseia. São Paulo: Penguin, 2011. http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/bv000257.pdf http://www.dominiopublico.gov.br/download/texto/bv000257.pdf http://www.periodicos.letras.ufmg.br/index.php/ueadsl/article/view/3031 http://www.periodicos.letras.ufmg.br/index.php/ueadsl/article/view/3031 http://www.biblioteca.fsp.usp.br/~biblioteca/guia/a_cap_05.htm http://www.biblioteca.fsp.usp.br/~biblioteca/guia/a_cap_05.htm 66 Leitura e escrita no ensino superior LAERTE. Sobre o entendimento, ainda. Manual do Minotauro, 4 ago. 2010. Disponível em: http://verbeat.org/laerte/perguntas-muito-perguntadas/. Acesso em: 24 nov. 2020. SHAKESPEARE, W. Hamlet. Porto Alegre: L&PM, 1997. SILVA, A. L. M. et al. A dança como intervenção pedagógica em crianças e adolescentes autistas: ensaio clínico. RAM – Revista Acadêmica de Medicina, Pelotas, v. 7, n. 1, 2013. Disponível em: https://periodicos.ufpel.edu.br/ojs2/index.php/RAM/article/view/3059. Acesso em: 24 nov. 2020. SILVEIRA, J. Na fogueira: memórias. Rio de Janeiro: Mauad, 1998. GABARITO 1. Podemos tomar como referência o resumo de texto acadêmico (que é um gênero). Para ser elaborado, ele utiliza como mecanismos diferentes tipos, como a descrição e a exposição. Precisamos considerar que os tipos são modelos estabelecidos pelo em- prego de estruturas linguísticas que lhes são características, enquanto os gêneros são a realização social que circula em esferas específicas, valendo-se dos tipos. 2. Podem ser identificadas várias relações de coesão. Seguem algumas: • para: finalidade. • essa: pronome que retoma o trabalho já citado no resumo. • seu: pronome que relaciona o círculo social aos indivíduos referidos anteriormen- te, com noção de pertencimento. Tipos textuais empregados: o resumo é composto pelos tipos informativo e descritivo. 3. Qualquer texto em que seja possível identificar coerência interna e externa é uma elaboração que apresenta relações lógicas entre as partes que o compõem e entre seu conteúdo e o mundo. Outras respostas que indiquem a necessidade de as partes do texto fazerem sentido entre si e de o conteúdo elaborado ter sentido com o mundo podem ser aceitas. http://verbeat.org/laerte/perguntas-muito-perguntadas/ https://periodicos.ufpel.edu.br/ojs2/index.php/RAM/article/view/3059 Argumentação oral e escrita 67 4 Argumentação oral e escrita “Você não é todo mundo!”. Talvez essa frase remeta muitos de nós à nossa infância e à nossa adolescência. Ou alguém nos disse essa recomendação, ou ficamos sabendo de alguém que a rece- beu, em geral, de algum adulto da família. Quando utilizada, essa frase tem a intenção de desfazer uma generalização e encerrar com vitória uma discussão ou negociação, que pode ser facilmen- te preenchida com um diálogo anterior iniciado por alguém que pede consentimento para fazer alguma coisa. A conversa segue e, antes dessa última frase, ouve-se um “mas todo mundo vai/faz”, que pretende, por sua vez, convencer a outra parte sobre a norma- lidade ou banalidade daquele pedido. Ao desfazer a generalização pretendida, esse interlocutor indica que é preciso encontrar outro caminho para a negociação ou que a discussão está encerrada. E por que estamos revisitando essas memórias em uma intro- dução de capítulo que pretende discutir argumentação oral e es- crita na formação acadêmica e no mundo do trabalho? Justamente para não sermos tomados pelo susto ou pela distorção inicial que poderia nos levar a imaginar que o tema a ser tratado seja algo que só fazemos no mundo acadêmico ou do trabalho. Pelo con- trário! Levamos nossas estratégias de argumentação e negociação para todas as esferas da vida e em todas as idades, com as devidas adaptações. Então, movido pela nostalgia ou pela surpresa, seja bem-vindo, sinta-se em casa e convidado a refletir sobre a argu- mentação oral e escrita! 68 Leitura e escrita no ensino superior 4.1 O que é argumentação? Vídeo “Afinal, eu criei juízo, agora olho para os homens e digo: ‘Esse é um bom homem, aquele é mau’. Não interessa se é búlgaro ou grego, para mim dá no mesmo.” (KAZANTZÁKIS, 2017, p. 40) O título desta seção está sugerido aqui com base no “perguntar não ofende”,principalmente porque muitas vezes não paramos para refle- tir sobre as respostas que podemos dar a perguntas simples e bem iniciais como essa. Será que já paramos, em algum momento de nos- sas vidas, para pensar ou elaborar uma resposta sobre o que significa argumentar? É muito provável que a essa altura de seus estudos você já tenha sido chamado a escrever um texto dissertativo-argumentativo, mas é bem possível também que você nunca tenha observado suficientemen- te a diferença entre expor e defender ideias. O termo dissertativo-argumentativo é empregado para definir textos que expõem um ponto de vista e o defendem pelo emprego de diferentes justificativas (estratégias ar- gumentativas), como exemplos, vozes de autoridade, dados científicos ou históricos e outros. Embora seja mais utilizado para definir textos escritos, esse tipo de elaboração também pode ser feito para textos orais. Trata-se sempre de expor um ponto de vista ou fazer uma afirmação sobre determinado tema e, em seguida, apresentar as razões para que essa afirmação ou defesa possa ser feita. Aí chegamos ao ponto em que se pode falar em elaboração de argumentação. Os caminhos feitos pela argumentação, ou a arte de defender ideias, são múltiplos e podem ser trilhados de diversos pontos de vista. Um exemplo é a epígrafe que abre esta seção: trata-se de um trecho do romance Vida e proezas de Aléxis Zorbás, escrito pelo autor grego Nikos Kazantzákis, em 1943. A narrativa ilustra o choque de dois per- fis completamente diferentes de homens naquele cenário: um deles é urbano, letrado, burocrata e sedento por saber como se faz para apro- veitar melhor a vida; o outro é um camponês rude, com a face marcada por expressões do tempo, cheio de histórias e experiências e que sabe dançar. Na troca promovida pelo encontro casual de ambos, o que pre- domina no final é quanto vale o aprendizado com uma amizade e como é possível dançar (inclusive metaforicamente), ainda que o momento seja de perda (KAZANTZÁKIS, 2017). Argumentação oral e escrita 69 E por que esse pequeno relato dessa narrativa pode nos ajudar a entender melhor os processos de argumentação? Por alguns motivos: Esse romance põe em questão variadas justificativas para a tomada de decisão, que pode ser de qualquer natureza ou sobre qualquer escolha importante na vida. Todas elas têm relação com as estratégias escolhidas, como comparações, constatações, inferências, induções e outros raciocínios possíveis com base em pistas oferecidas pela argumentação. Isso fica evidente quando o relato em primeira pessoa mostra os questionamentos provocativos feitos pelo homem rude ao homem urbano e como isso implica uma mudança de comportamento e destino para ambos. 2 Ao contrário do que podemos ser levados a pensar pelas afirmações de senso comum, nem sempre a força da palavra escrita é a que promove maior ensinamento. No confronto entre o conhecimento dos livros trazido pelo homem urbano e a sabedoria do homem rústico, é a palavra falada que mostra a força da experiência e se torna capaz de convencer quando ambos se encontram e travam uma sequência de diálogos. 1 A última consideração tem relação direta com a observação do protagonista que abre esta seção, descrita como “criar juízo”. Essa expressão pode ser interpretada de diversas maneiras, inclusive como tomar ciência de uma situação e andar pelo caminho certo ou de construir, com base no filtro que utilizamos para as informações e experiências, uma escolha, um posicionamento, uma opinião, ou seja, um juízo sobre alguém ou alguma coisa. O trecho do texto parece mais voltado a essa última interpretação, considerando que, em seguida, o protagonista afirma delinear uma fronteira entre homens bons e maus, estabelecendo seu juízo de valor sobre eles. É importante destacar que a tomada de decisão, o estabelecimento de juízo de valor e a consequente formulação de opiniões são ações possíveis com base na interpretação de estratégias argumentativas, pois o convencimento individual ou coletivo depende disso. 3 Além desse exemplo, vamos conversar sobre mais um caso clássi- co de argumentação e de como as palavras interpretadas literalmente podem se transformar em armadilhas, mesmo para quem julga estar protegido por elas. Você seria capaz de dar uma libra da própria carne como garantia por um empréstimo em uma negociação? Pois é, a ex- pressão “tirar uma libra de carne” de alguém é uma metáfora entendi- da como o ato de explorar uma pessoa. Mas essa frase tem notoriedade no clássico O Mercador de Veneza (1596-1598), de William Shakespeare, em que um homem empenha Vida e proezas de Aléxis Zorbás trata-se de um relato escrito em primeira pessoa, cujo protagonista é um intelectual frustrado com a vida restrita a um mundo urbano e que decide ir a Creta explorar uma mina. É nesse percurso que conhece Zorbás, um homem bruto, mas que tem o talento de se expressar com música e dança quando lhe faltam as palavras. É no encontro entre as narrativas de vida do homem urbano e do camponês que a argu- mentação se estabelece, torna-se questionadora e frutifica como uma reflexão necessária às transformações que a maturidade exige. KAZANTZÁKIS, N. São Paulo: Grua Livros, 2011. Livro libra: unidade de massa que corresponde a aproximadamente 450 g. Glossário 70 Leitura e escrita no ensino superior como garantia a um agiota o peso de exatamente uma libra de sua própria carne, a ser extraída o mais próximo possível do coração, caso ele não pagasse a dívida. É importante ressaltar que, naquela época, os papéis de homens e mulheres eram bastante diferentes do que temos hoje, e as mulheres não podiam sequer representar personagens no teatro. Daí a ousadia do enredo da peça: o homem que empenhou a libra de carne, tendo perdido toda sua riqueza em navios que naufragaram no mar, só foi salvo da morte porque a moça com quem pretendia se casar, travestindo-se de homem às escondidas, defendeu-o no tribunal, argumentando que o contrato deixava explícito que o pagamento deveria ser exclusivamente de uma libra de carne, mas que nenhuma gota de sangue poderia ser derramada sob pena de a punição se voltar ao cobrador da dívida (SHAKESPEARE, 2001). O que esse embate de palavras dentro da peça shakespeariana pode nos ensinar sobre argumentação? Quanto mais exatas forem as palavras escolhidas, menos risco corremos de ser mal interpretados ou de abrir precedente para outras leituras que não estejam no campo denotativo das palavras. Além disso, outro ensinamento é o fato de qualquer gênero textual ou tipo de expressão de linguagem poder conter parte significativa de argumentação – como diálogos principais de uma peça teatral. Por isso (e outras razões), Shakespeare se tornou uma referência densa para todo e qualquer processo de comunicação 1 . Com base nessas referências como ponto de partida, você pode ampliar sua percepção acerca das manifestações de linguagem em que se concentra a argumentação. Podemos mencionar, para ilustrar outras ocorrências, campanhas de conscientização e peças publicitá- rias. Quando o Ministério da Saúde divulga uma campanha de com- bate à dengue com a frase “Só tem um jeito de acabar com a dengue: jogar fora a água parada toda semana!”, ele quer conscientizar e con- vencer cada cidadão atingido pela campanha a fazer sua parte para o benefício coletivo, evitando a possibilidade de proliferação do mos- quito. Quando uma marca de automóvel apresenta um novo modelo afirmando que ele é melhor que os demais de sua categoria, tam- campo denotativo: emprego literal da linguagem, em oposição ao campo conotativo (que abre possibilidades de usos figurados da linguagem). Glossário É possível arriscar afirmar que todos os exemplos de relações humanas que demandam manifestação de linguagem foram registrados na obra desse escritor. 1 Explique, com suas palavras, o que significa argumentar. Atividade 1 Argumentação oral e escrita71 bém está fazendo isso por meio de uma estratégia argumentativa: a comparação. Os exemplos citados aqui também têm uma função argumentativa: a de nos mostrar o quanto e como as estratégias argumentativas mais diversas estão presentes em nosso cotidiano, com maior ou menor in- tensidade. Mas um dos desdobramentos possíveis é o seguinte ques- tionamento: há diferença entre argumentação oral e escrita? Caso a resposta seja sim, como utilizar da melhor maneira possível as estraté- gias de cada uma? Nas seções seguintes, convidamos você a conhecer, comparar e refletir a respeito dessas estratégias. O livro Argumentação apresenta um amplo panorama sobre o assunto, desde os gregos até os dias atuais. Sua abordagem nos ensina e promove uma revisão sobre diferentes estilos de argumentar, reinter- pretados com o passar do tempo. FIORIN, J. L. São Paulo: Contexto, 2015. Livro 4.2 Textos argumentativos orais Vídeo “Fiquei sozinha um domingo inteiro. Não telefonei para ninguém e ninguém me telefonou. Estava totalmente só. Fiquei sentada num sofá com o pensamento livre. Mas no decorrer desse dia até a hora de dormir tive um súbito reconhecimento de mim mesma e do mundo que me assombrou e me fez mergulhar em profundezas obscuras de onde saí para uma luz de ouro. Era o encontro do eu com o eu. A solidão é um luxo.” (LISPECTOR, 1978, p. 64) Vamos cercar e esgotar detalhadamente todas as possibilidades de formulação de argumentação oral? Nem pensar! Não é essa a nossa intenção. Na verdade, ao dividirmos aqui as seções entre oralidade e escrita, queremos especificar um pouco do que cada uma dessas ha- bilidades pode representar em nossos usos de linguagem no dia a dia. Vamos começar refletindo sobre a epígrafe desta seção. Será que falar consigo mesmo e relatar isso em primeira pessoa, como faz Clarice Lispector, pode ser considerado uma estratégia de argumentação? Vamos começar pelo final: “A solidão é um luxo”. Essa é uma frase de constatação elaborada pela narradora, após re- fletir sobre a própria condição. O leitor é levado, pelas pistas anteriores, assim como em uma narrativa de detetive, a che- gar a essa inferência por indução. Como isso acontece? Em alguns momentos, no trecho do texto, podemos pensar que a tendência seja fazer uma constatação triste, negativa, pelo fato de ser domingo e a narradora estar sozinha, ou pelo fato de ela ter se sentido assombrada e mergulhado em profunde- zas obscuras. No entanto, quando ela destaca o pensamento inferência: processo de constatação ou conclusão a que o leitor ou ouvinte do texto pode chegar com base no que ouviu ou leu (informações explícitas), complementadas pela boa lei- tura de entrelinhas (informações implícitas), que vai depender do repertório sociocultural de que ele dispõe. Glossário 72 Leitura e escrita no ensino superior livre ou sua saída para uma luz de ouro, o leitor é levado a antever que a constatação será benéfica, e que ela, por estar bem consigo mesma, consegue estabelecer um juízo de valor positivo para a soli- dão. Esse raciocínio todo, feito assim, com cuidado e integralmente, não é tarefa simples. Esse processo de ler as pistas do texto e completar as lacunas com a relação lógica entre uma informação e outra é uma habilidade muito utilizada em narrativas de detetive. Vamos ver um exemplo? Meu caro Sherlock Holmes, algo horrível aconteceu às três da manhã no Jardim Lauris- ton. Nosso homem que estava na vigia viu uma luz às duas da manhã saindo de uma casa vazia. Quando se aproximou, encontrou a porta aberta e, na sala da frente, o corpo de um cavalheiro bem vestido. Os cartões que estavam em seu bolso tinham o nome de Enoch J. Drebber, Cleveland, Ohio, EUA. Não houve assalto e nosso homem não conseguiu encontrar algo que indicasse como ele morreu. Não havia marcas de sangue, nem feridas nele. Não sabemos como ele entrou na casa vazia. Na verdade, todo assunto é um quebra--cabeça sem fim. Se puder vir até a casa, seria ótimo, se não, eu lhe conto os detalhes e gostaria muito de saber sua opinião. Atenciosamente, Tobias Gregson. (DOYLE, 2017, p. 8) OOOOOO OO OOOOOO OOOOOOOOOOOOOOOOOO Como gênero de texto, é possível reconhecer rapidamente que é uma correspondência, uma carta enviada por Tobias Gregson ao renomado detetive Sherlock, depois de aparentemente ter acontecido um crime. Note que, em determinado momento do texto, Gregson afirma que “não houve assalto”. Para chegar a essa constatação, ele revelou ao leitor uma pista: os cartões da vítima não foram levados. Esse processo de argumentação por relação lógica entre informações é descrito e muito explorado desde os gregos na Antiguidade Clássica, o que nos leva a crer que é um processo muito produtivo. Mas se estamos na seção que trata de argumentação em textos orais, você pode se perguntar o que uma carta está fazendo aqui como exemplo. Vamos explicar: ao final da carta, temos um prenúncio de conversa, com a frase “eu lhe conto os detalhes e gostaria muito de saber sua opinião”. Observe que nas entrelinhas desse texto temos uma previsão do que é possível fazer por escrito e do que é melhor fazer conversando: contar os detalhes. Nessa informação de O ponto de partida da série Lúcifer é o tédio enfrentado por seu protagonista, o próprio diabo, que decide tirar férias em Los Angeles, onde se envolve com o departamento de polícia e colabora com a inves- tigação e resolução de crimes. Trata-se de uma comédia dramática com todos os clichês afetivos de um clássico romance urbano, mas o que nos interessa aqui é o mesmo processo de inferências com base nas pistas, como nos clássicos de detetive. Direção: Alonquel Uchôa; Gerard Jones. EUA: Jerry Bruckheimer Television; DC Entertainment; Warner Bros. Television, 2016-. Série Argumentação oral e escrita 73 “contar os detalhes”, é possível pressupor que haverá impostação de voz, olhar, movimentação corporal e outras características que só a oralidade permite. Neste ponto de nossa conversa, você pode ter se perguntado tam- bém sobre as sustentações orais feitas por advogados e promotores nos tribunais. Certamente, todos nós nos lembramos de alguma cena de filme que mostra o quanto a oralidade com a impostação de voz adequada, aliada a expressões faciais, gestos e outros meios de ma- nifestar linguagem corporal, pode ser capaz de convencer uma plateia ou um júri. Porém, para que esse formato e essa embalagem do conteúdo possam ajudar a surtir o efeito desejado no público, é preciso que o conteúdo do texto a ser dito tenha uma relação lógica muito eviden- te e convincente, que as palavras sejam as melhores e mais precisas possíveis e que atinjam o público-alvo, fazendo-o reconhecer a expla- nação como algo que não é passível de contestação ou que sobrevive a qualquer contestação. Para que isso seja possível, alguns tipos de ela- boração de raciocínio devem ser mobilizados em ocasiões específicas. Vamos estudar como isso acontece? Quando os detetives Sherlock ou Poirot chegarem à cena do cri- me, fizerem suas análises e desvendarem o enigma, o narrador mos- trará ao leitor a sequência de dados e informações que levaram os investigadores a determinadas conclusões. Como isso é feito? Pela revelação de pistas mais ou menos visíveis até que se chegue, passo a passo, a uma generalização. Por isso, podemos perceber o movi- mento de induzir o leitor ou ouvinte a um raciocínio. Esse tipo de raciocínio é o contrário da dedução e é bastante empregado, por exemplo, para relatar uma pesquisa científica, pois permite estabelecer teorias que recobrem fatos bastante diversifi- cados. Logo, podemos concluir que a dedução faz o caminho con- trário: vale-se de uma generalização para chegar a uma constatação particular; por exemplo: todos os dias da semana têm 24 horas, logo o sábado também tem 24 horas. Argumento por indução Há vários e muito bons livros sobre linguagem corporal e como se pode ler melhor as pessoas por aquiloque elas vestem e por seus gestos. Mas aqui parece interessante referir e conhecer com mais cuidado a linguagem das emoções. O livro A linguagem das emoções traz uma sequência de reflexões e exercícios sobre como podemos entender melhor as nossas emoções, lidar com elas e, por conseguinte, entender melhor as emoções de quem está à nossa volta, observando gestos e expressões faciais. EKMAN, P. Amadora: Lua de Papel, 2011. Livro Sugerimos tanto o livro Assassinato no Expresso do Oriente, escrito por Agatha Christie e publi- cado pela primeira vez em 1934, quanto o filme homônimo nas versões de 1974, 2001 e 2017. O enredo clássico de romance policial faz com que o leitor/espectador seja levado a desconfiar dos envolvidos ou inocen- tar todos eles na trama que traz um assassinato cometido num trem, já que todos tinham tanto algum motivo para querer matar a vítima quanto um bom álibi para apresentar ao detetive Hercule Poirot. CHRISTIE, A. Rio de Janeiro: HarperCollins, 2020. Livro 74 Leitura e escrita no ensino superior Esse tipo de estratégia faz com que o público-alvo se sinta mais esclarecido sobre algum tema ou raciocínio. É uma utilização mui- to adequada para a apresentação de trabalhos acadêmicos que demandam a explicação da escolha de uma metodologia, como seminários. Como funciona? Para facilitar a compreensão, utilizamos um exemplo familiar ao público e estabelecemos, com base nele, uma comparação com a situação específica que queremos apontar ou com o tema tratado no trabalho. As analogias ou comparações po- dem ser feitas dentro das frases ou com o conteúdo mais extenso do texto. Vejamos um exemplo a seguir. Um vídeo do astrônomo Carl Sagan em seu programa dos anos 1980, Cosmos, conta a história de Eratóstenes, demonstrando como os gregos antigos já haviam descoberto que a Terra é uma esfera (geoide). Para fazer isso, Eratóstenes observou a sombra de duas colunas no solstício de verão; uma coluna foi colocada em Ale- xandria e outra em Siena (atualmente Assuan), ambas no Egito. Ele notou que em Siena, ao meio dia, o Sol ficava em seu ponto mais alto e a coluna lá instalada pro- jetava uma sombra com ângulo diferente daquela projetada em Alexandria. Sagan explica então que, se a Terra fosse plana, ambas as estruturas produziriam sombras iguais, mas como o planeta é esférico, o sombreamento varia. (CARL..., 2017) Note que o texto mostra uma explicação que pode ser conside- rada, em sua leitura global, como uma estratégia de indução. Mas, para que isso aconteça, no meio da descrição das ações, o públi- co é convidado a fazer uma comparação entre os tipos de sombra projetados pela incidência da luz solar sobre as colunas, para que chegue à constatação de que os ângulos são diferentes (resultado da comparação) e, portanto, a Terra não pode ser plana (inferência ou conclusão). Argumento por comparação ou analogia Argumentação oral e escrita 75 Alguns estudiosos afirmam que a humanidade, em seu processo civilizatório, voltou-se a compreender as relações entre causa e consequência ou o ordenamento do que é origem de uma situação e do que é efeito dela. E essa perspectiva não é recente; já existia um pensamento entre os latinos para definir essa visão de causa e consequência: post hoc ergo propter hoc (depois disso, portanto, por causa disso). Vamos tomar como exemplo um trecho do mesmo pensamento exposto na explicação anterior: “Sagan explica então que, se a Terra fosse plana, ambas as estruturas produziriam sombras iguais, mas como o planeta é esférico, o sombreamento varia” (CARL..., 2017). Vejamos duas informações presentes nesse trecho: 1) o planeta é esférico; e 2) o sombreamento varia. Qual é a relação de causa e consequência estabelecida entre elas? Quem vem antes ou quem dá origem à situação? Repare que o fato de o planeta ser esférico (causa) faz com que a sombra seja variável (consequência). Argumento por causa e consequência Existem várias outras estratégias de argumentação e sustentação de discurso que podem ser consultadas em manuais que se ocupam exclusiva e extensamente de trabalhar com esse tipo de uso da lingua- gem. Nosso propósito aqui foi de apresentar algumas delas, principal- mente as que você pode utilizar em seu cotidiano, nos estudos e no trabalho. Agora convidamos você a analisar mais alguns itens especí- ficos sobre a formulação de textos argumentativos. Será que o texto falado tem parágrafo? Vamos ver isso juntos! O filme Philadélfia se tornou um clássico do cinema. Na tela, Tom Hanks faz um advogado que tem um relacionamento com o personagem vivido por Antonio Banderas e é dispensado de um grande escritório por ter contraído Aids. Cabe a Denzel Washington, depois de muita relutância, defendê-lo nos tribunais. Para além dos estereótipos – muito bem formulados, por sinal –, o filme é uma aula de argumentação não só nas cenas de tribunal, como era de se esperar, mas nas conversas cotidianas. Direção: Jonathan Demme. EUA: Clinica Estetico, 1993. Filme 4.2.1 A “paragrafação” em textos argumentativos orais O uso de aspas no início desta subseção tem um valor muito signifi- cativo: elas indicam que paragrafação é uma palavra que teoricamente não se utiliza em texto orais, pois é uma marcação empregada para separar fragmentos de textos escritos. No entanto, o parágrafo pode fazer sentido para organização, clareza, estilo e elegância, que não de- vem ser desprezados em textos orais. O parágrafo é uma unidade dentro do texto, composta por um ou mais períodos, com uma ideia central a ser desenvolvida, em torno da 76 Leitura e escrita no ensino superior qual se estabelecem outras informações, com relação lógica. Definido dessa forma, o parágrafo pode parecer um componente fácil de se re- solver dentro do texto, mas não é assim que acontece. Para elaborar um bom parágrafo, é preciso se fazer algumas perguntas: ? Qual é a afirmação ou informação principal que desejo transmitir? Que relações de sentido existem entre essas informações secundárias e a principal? Além da informação principal, o que desejo informar sobre ela ou relacionar a ela nesse ponto específico do texto? Qual é a relação desse parágrafo com os demais do texto? Com a popularização do acesso a computadores, tablets e smartphones, as produções de conteúdo na internet também aumentaram significativamente. Um dos exemplos é a produção e postagem de entrevistas, conversas entre pessoas tratando dos mais diversos temas e de falas para plateias, como palestras, conferências e seminários. Essa produção de conteúdo oral para plataformas virtuais precisa ter unidades de informação muito bem elaboradas para que os espectadores se sintam de fato convidados a permanecer atentos até o fim do raciocínio. Então, estabelecer bons parágrafos ou boas unidades de texto para isolar e, ao mesmo tempo, integrar e ajustar convenientemente o que se está dizendo é uma estratégia muito inteligente para manter a atenção de quem nos vê e ouve. Quando ouvimos uma aula ou um vídeo que pretende informar ou estabelecer um raciocínio completo sobre algum tema, é muito comum e bastante didático que o emissor da mensagem faça um pequeno su- mário no início, para informar exatamente os itens que serão tratados, enunciando também claramente o tema. Em seguida, ele passa a tratar de cada um dos itens até chegar a uma conclusão específica ou um fechamento para o raciocínio. Vamos supor, por exemplo, que estejamos assistindo a uma aula básica de introdução à argumentação e vamos dividi-la no que seriam os parágrafos do texto. Espera-se que o professor, em um primeiro parágrafo, apresente o recorte sobre argumentação que será tratado nessa aula específica e indique quais são os tipos de argumentos ou No filme Obrigado por fumar, um lobista da indústria do cigarro se vê em conflito quando seu filho pequeno começa a se interessar por sua pro- fissão. Os dilemas éticos e outrasquestões contra- ditórias são ilustrados em diálogos interessantes embasados em relações de negociação e/ou argu- mentação. Direção: Jason Reitman. EUA: Room 9 Entertainment; ContentFilm, 2006. Filme Argumentação oral e escrita 77 informações que serão trabalhados. Além disso, ele deve apontar quais são as constatações a que se pode chegar com base nessa abordagem. Depois, cada um dos itens virará um parágrafo novo e deverá ser explicado com clareza e organização de raciocínio. Em seguida, no último parágrafo, a conclusão ou as constatações estabelecidas podem aparecer com mais fluidez, considerando que as informações e relações textuais anteriores foram feitas com assertividade e coerência. Tudo isso nos apresenta a possibilidade de relacionar textos argumentativos orais e escritos, com o objetivo de perceber que há uma organização em blocos coerentes que, na escrita, podem ser identificados em parágrafos. O parágrafo que você acabou de ler pode funcionar como uma re- ceita básica para textos orais que pretendem expor com clareza um raciocínio completo e convencer a plateia de que esse discurso é váli- do. Você também pode adotar essa estratégia em suas apresentações orais de trabalhos ou quando precisar explicar algum tema na sua vida profissional. 4.2.2 Uso de primeira ou terceira pessoa Uma das questões mais frequentes e que pode, inclusive, tornar-se um tabu para o uso adequado da linguagem em diversas situações é a indicação de uso de primeira ou terceira pessoa para apresentar um texto oral ou escrito. Antes de estabelecer algumas reflexões, vamos considerar que a primeira pessoa deve ser reservada a explanações sobre temas de que o emissor da mensagem de fato participa (ou participou) e a terceira, para casos em que ele apenas relata uma situação, com distanciamen- to. Essa diferenciação pode parecer, a princípio, bem simples, mas não são raras as vezes em que estudantes ou profissionais têm dúvida ou reproduzem sem pensar o que já ouviram sobre o uso desse artifício na linguagem 2 . Em alguns casos, o próprio professor que orienta o trabalho suge- re ou exige que seja escolhida uma pessoa do discurso, mas é muito importante que você guarde a informação de que não há incorreção ou prejuízo de conteúdo quando se escolhe uma ou outra forma de apresentar o texto. Por exemplo, ao escrever um relatório, você é capaz de formu- lar a frase “Entrei no laboratório e observei os equipamentos dispostos sobre a mesa” ou “Entrando no laboratório, observam-se os equipamentos dispostos sobre a mesa”. Repare que não há problema algum com nenhuma das frases, mas há uma escolha por primeira ou terceira pessoa. 2 78 Leitura e escrita no ensino superior Além disso, existem situações de inserção de quem fala ou escre- ve um texto em um discurso coletivo, como na frase “A Constituição Cidadã foi promulgada em 1988 no Brasil. Ela prevê nossos direitos e deveres”. Note que o uso de primeira pessoa do plural aqui evidencia a participação de quem escreve no grupo da população brasileira (ampa- rada pelo texto constitucional em questão). No fim das contas, o que escolher? Você escolhe obedecer à solici- tação feita no comando do texto que deve ser produzido, elaborando-o em primeira ou terceira pessoa, conforme orientação. Caso não haja essa indicação, pergunte-se se você participou diretamente da situação ou se faz parte do grupo envolvido nela. Caso a resposta seja positiva, use a primeira pessoa. Isso vale tanto para textos orais quanto escritos. E, por falar nisso, vamos trabalhar um pouco mais com a argumenta- ção em textos escritos? 4.3 Textos argumentativos escritos Vídeo “Produção de texto pressupõe leitores que vão dialogar com o texto produzido: concordar e aprofundar ou discordar e argumentar, tomando o texto como matéria-prima para seu trabalho.” (GUEDES, 2009) É verdade que, da mesma maneira que devemos agir com os textos apresentados oralmente, precisamos ficar atentos na escrita ao meio de circulação e a outros elementos, como a intenção do autor, a lingua- gem e o público a que o texto se destina. A maioria dos exemplos aos quais já recorremos neste capítulo faz parte do repertório sociocultural de textos produzidos e publicados por escrito – o que nos leva a referi-los imediatamente como fazendo parte dos diálogos que mantemos, como leitores, estudantes ou pertencentes ao mundo do trabalho, com o conhecimento já construído até nossos dias. Isso se dá também com a argumentação, que é nosso tema de destaque neste capítulo. A argumentação precisa ter uma estrutura mais ou menos definida, em textos orais ou escritos. Podemos exemplificá-la da seguinte manei- ra, como apresentado no quadro a seguir. A conjuração de Catilina é um dos discursos mais célebres da Roma Antiga. Nele, o orador Cícero desconstrói, pelo discurso, as intenções de Catilina, que tramava um golpe para tomar o poder. O texto é denso, mas os ensinamentos sobre argu- mentação são singulares. Também é uma situação em que a argumentação é oralizada, já que Cícero falou em público para desmascarar Catilina, mas usou um discurso previamente escrito. SALÚSTIO. São Paulo: Hedra, 2018. Livro Argumentação oral e escrita 79 Quadro 1 Estrutura da argumentação Descrição Exemplo Apresentação do tema e dos itens que embasarão a discussão e reforçarão o posicionamento a respeito do assunto ou que permitirão estabelecer um caminho para chegar ao objetivo pretendido. Lembre-se aqui das narrativas de detetive: funciona do mesmo jeito em textos argumentativos. Vamos ver um exemplo considerando a introdução de um texto que pretendesse abordar educação financeira no Brasil e as dificuldades de sua implantação? Note que em [1] e [2] o texto apresenta uma rela- ção geral de abordagem sobre o conhecimento, algo que poderia ser abertura de muitos outros textos. É a partir do emprego de analogamente em [3] que o texto começa a apresentar o motivo e a atualidade da discussão. Depois, na Frase 4, temos as pistas que nos indicam o suporte da discussão ou os itens que irão justificar a argumentação do texto. O verdadeiro conhecimento somente pode ser atingido por meio do racionalismo e da lógica [1]. Essa é a concepção ra- cionalista do filósofo francês René Descartes, o qual enca- rava a matemática como única fonte fiel de conhecimento, diferenciando-se dos sentidos que nos induzem ao erro [2]. Analogamente, a educação financeira é a única que permite ao indivíduo autonomia econômica, enquanto é constan- temente ludibriado pelo consumismo contemporâneo [3]. Desse modo, cabe analisar a inclusão da educação financeira nas escolas brasileiras sob viés do esclarecimento e promo- ção de cidadania [4]. No coração do texto fica o desenvolvimento dos itens apresentados inicialmente. É o espaço reserva- do para empregar definições, exemplos, analogias, relações de causa e efeito e outras estratégias que ajudam o emissor a estabelecer a relação entre suas afirmações iniciais e, basicamente, o que já existe so- bre o tema. Que tal seguirmos observando essa abor- dagem no exemplo ao lado? Primeiramente, vale destacar que o ensino dessa disciplina possui uma enorme potencialidade de melhorar a relação do brasileiro com as finanças. Segundo dados da pesquisa feita pelo Serviço de Proteção ao Crédito, 58% dos entrevistados admitem que não dedicam tempo a atividades de controle da vida financeira. Tal comportamento está diretamente re- lacionado com a falta de acesso à educação financeira. Desse modo, o bombardeamento constante de propagandas esti- mulando o consumo vitimiza grande parte da população que não sabe como administrar as próprias economias. Assim, ins- taura-se um ciclo vicioso de empréstimos e endividamentos, o que compromete economicamente o cidadão brasileiro. Logo, faz-se necessário uma adoção maior do ensino financeiro para reverter essa problemática. Para concluir o texto, é preciso elaborar constata- ções, projeçõesou apontar soluções, dependendo do tipo e do teor da discussão estabelecida. Por exem- plo, se for uma discussão mais abstrata, uma refle- xão final já fica de bom tamanho; se for um problema sobre, o qual é preciso intervir, descrever uma ação plausível é um bom e coerente caminho. Vamos ob- servar novamente o exemplo. Diante do exposto, conclui-se que a inclusão da educação financeira no currículo escolar é extremamente importante. Portanto, cabe ao Ministério da Educação, em conjunto com as secretarias estaduais respectivas, propiciar um maior en- foque das aulas de Matemática a aplicações práticas. Para isso, elas devem elucidar sobre formas de poupar, categorias de investimentos, riscos do endividamento, entre outras in- formações fundamentais contemporaneamente. Além disso, cabe a tal órgão promover a capacitação dos professores – por meio de cursos – para que estes sejam capazes de trans- mitir o conhecimento necessário para a formação do aluno. Somente assim, será possível que a matemática nos guie não só ao verdadeiro conhecimento, conforme preconizado por Descartes, mas para a construção de uma sociedade mais justa e igualitária. Fonte: Elaborado pela autora. 80 Leitura e escrita no ensino superior Uma sugestão para você praticar essa análise das partes e da se- quência de textos argumentativos é passar a lê-los ou ouvi-los aplican- do mais ou menos essas três partes descritas. Isso pode facilitar seu uso quando você precisar elaborar um texto com essas características. Além disso, não podemos nos esquecer de que um texto é sempre di- vidido em unidades menores. Então, que tal tratarmos um pouco do parágrafo, agora em textos escritos? 4.3.1 A paragrafação em textos argumentativos escritos Nos textos escritos, tratar de paragrafação não requer uma abstração como a que foi proposta quando falamos dos textos orais. As relações entre as ideias apresentadas ficam mais visíveis e podem ser observadas com mais detalhamento. Vamos analisar alguns textos com base em descobertas científicas, os quais precisam fazer parte de nossas leituras para formação intelectual e para resolver as situações cotidianas. Vamos começar lendo o trecho de texto a seguir. Óbitos por cepas de bactérias resistentes a antibióticos vêm crescendo. Um estudo do governo britânico estima que, em escala global, os óbitos por cepas resistentes já che- guem a 700 mil por ano. E as coisas têm piorado. Além das bactérias, já estão surgindo fungos resistentes, como a Candida auris. Qualquer solução passa por um esforço mul- tinacional de ações coordenadas. O crescente número de governos isolacionistas e até antidarwinistas não dá razões para otimismo. Há urgência. O estudo britânico calcula que, se nada for feito, em 2050, as mortes por infecções resistentes chegarão a 10 mi- lhões ao ano. (SCHWARTSMAN, 2019) Esse parágrafo abre uma coluna escrita em um jornal e é um bom exemplo de texto argumentativo. Ela se baseia em fatos para fazer constatações; note que a afirmação feita inicialmente vem comprovada na sequência. Isso serve como informação elementar para a elabora- ção de seus textos: não comece afirmando ideias como “O número de mortes no trânsito vem crescendo...” ou “Desde o início da civilização brasileira...” se não dispuser, no primeiro caso, de números que com- provam esse aumento e, no segundo, de um bom livro de história que afirme a situação que você deseja evidenciar. O livro Escrever e argumentar apresenta diferentes estratégias textuais e exercícios relacionados à elaboração e à leitura de textos argumentativos da atualidade, como publicação de campanhas publicitárias e textos da mídia impressa em geral. Além disso, põe o leitor em contato com escolhas de linguagem diferentes para cada situação. KOCH, I. V; ELIAS, V. M. São Paulo: Contexto, 2016. Livro Argumentação oral e escrita 81 Outro ponto a ser observado é quando o autor afirma “E as coisas têm piorado”. Note que, para estabelecer essa gradação de raciocínio, ele traz outra informação que comprova esse pensamento: não são apenas as bactérias, agora os fungos também estão mais resistentes. Além disso, a constatação apresentada por ele, na forma de projeção, é uma citação da observação feita pelo estudo científico em que apoiou sua elaboração de parágrafo. Note também que o autor fez uso de terceira pessoa, distanciando- -se da produção das informações, mas estabelecendo relação de senti- do entre elas e escolhendo o caminho para as constatações desejadas. Vamos observar juntos outro exemplo de texto argumentativo? Há tempos atrás uma deputada brasileira criou projeto de lei que propunha que o cida- dão que presenciasse um pai batendo no próprio filho teria o direito de denunciá-lo. Este pai, por sua vez, poderia vir a ser condenado caso se comprovasse a “agressão”. Curioso, pensei. E perigoso também. Antes de tudo, é preciso diferenciar agressão, espancamen- to e outras barbaridades com o direito – legítimo, penso eu – de pais e mães aplicarem bons “corretivos” nos seus petizes, apesar de isso parecer cada vez mais antiquado neste campo de correções políticas e farta hipocrisia. (BALEIRO, 2011) Repare que o autor começa por revelar a informação de que houve a criação de um projeto de lei e, algo muito importante, ele relata cla- ramente o conteúdo do projeto para seu leitor, pois é com base nisso que deseja estabelecer e expor seu raciocínio. Esta é uma prática muito importante: sempre ofereça a informação completa a seu leitor, nunca pressuponha que ele já leu sobre o assunto ou conhece o conteúdo. Em seguida, ao qualificar, de acordo com seu ponto de vista, algu- mas ações sobre o tema, o autor conduz o leitor a se colocar diante da comparação feita por ele: o que é agressão ou outras barbaridades e o que é direito de aplicar corretivo. Em seguida, ele se posiciona por intermédio da constatação assumida a respeito do tema. Note que aqui o autor utiliza a primeira pessoa do singular, pois a opinião e as constatações apresentadas sobre o tema são de responsa- bilidade dele; é ele quem está se posicionando a respeito, adjetivando algumas ações inclusive como antiquadas e farta hipocrisia. Vários raciocínios estabelecidos ao longo do capítulo foram feitos com base em trechos de livros, porque essas narrativas podem servir de exemplo para que se estabeleçam conceitos e entendimentos acerca da argumentação. Agora é sua vez: escolha, dentre as leituras já feitas por você, um trecho de livro que possa ser utilizado como referência para diferentes exemplos de argumentação. Em seguida, explique com suas palavras como você relaciona esses textos à elaboração de justificativas ou argumentos. Atividade 2 82 Leitura e escrita no ensino superior 4.4 Principais problemas de argumentação Vídeo “Já em 1580, Montaigne afirmava que não existia honra na emoção que chamava tristesse. (Usava esta palavra embora soubesse que ele próprio era um melancólico; anos mais tarde, Flaubert, objeto do mesmo diagnóstico, faria o mesmo.) Montaigne via a tristesse como inimiga do racionalismo e do individualismo autoconfiante. A tristesse, a seu ver, não merecia ser inscrita com inicial maiúscula ao lado das grandes virtudes, a Sabedoria, a Virtude e a Consciência; ele aprovava a associação italiana da tristezza a todos os tipos de loucura e prejuízo, a fonte de males incontáveis.” (PAMUK, 2007) A epígrafe que empregamos nesta seção merece uma interpreta- ção cuidadosa para ser associada ao tema abordado. Afinal, o que tem a ver a escolha de um pensador por uma palavra, pelo emprego ou não de inicial maiúscula, com problemas de argumentação? A res- posta é: tudo! Escolher a palavra tristesse no lugar de melancolia, ela- borar uma análise que permita afirmar não haver orgulho em senti-la e justificar o motivo de não a iniciar com maiúscula são decisões que carecem de justificativas. Pensar em justificativas é trilhar estratégias argumentativas. Por exem- plo, a estratégiaempregada para justificar a não colocação de maiúscula no início da palavra é a de comparação com outras palavras fortes, iden- tificadas como virtudes. Já que a tristesse não seria, segundo o autor, uma virtude, não há motivo para alçá-la ao patamar de ser iniciada com maiús- cula. Note que se trata aí de um raciocínio muito delicado, ao mesmo tem- po bastante profundo e indiscutivelmente argumentativo; trata-se de um argumento ou uma justificativa que funciona principalmente porque faz o interlocutor se sentir localizado quanto à comparação. Se podemos ficar maravilhados com a perspicácia do ensaísta Montaigne sobre a tristesse, devemos também considerar que nem sempre essas estratégias funcionam. Trabalhamos ao longo deste capítulo com diferentes possibilidades de elaboração adequada de argumentos, mas possivelmente nossas lembranças mais expressivas ainda sejam sobre quando o texto não funcionou como deveria, quando os argumentos pareceram válidos, mas não eram. Em linguagem mais informal, essas situações podem ser chamadas de argumentações furadas; em classificação técnica, são as chamadas falácias. Se você perceber que já cometeu algum desses equívocos, não se sinta único: todos nós já passamos até mesmo sem perceber por essas situações. O mais importante é aprender com elas, já que não é de hoje que acontecem e são registradas em inúmeras publicações a respeito Argumentação oral e escrita 83 do tema. Vamos juntos analisar alguns casos e entender como não cair na armadilha das falácias? 4.4.1 Argumento ad hominem Como você pode ver no título, esse tipo de falácia ou argumento equivocado encontra registro e voz ainda entre os latinos, por isso é identificado como ad hominem (ou em português, contra a pessoa). É aquele tipo de argumento que surge quando as discussões ficam mais acaloradas e alguém ou todos os envolvidos se enfurecem. Trata-se do tipo de tentativa que não faz o debate fluir, mas procura constranger o oponente. Provavelmente, lendo com atenção até aqui, você já iden- tificou que atualmente nas redes sociais estamos vivendo tempos em que as pessoas fazem muito esse tipo de raciocínio: não posso vencer a justificativa ou a voz do outro, então vou tentar desqualificá-lo. Observe o exemplo a seguir: Madame Rosa suspirou. — O senhor sabe muito bem por que tenho medo, doutor. O dr. Katz ficou vermelho de tão zangado. — Cale-se, Madame Rosa. A senhora é completamente inculta. Não entende nada dessas coisas e sabe Deus sei lá o quê. São superstições de outra época. Já repeti mil vezes e peço que se cale. Fonte: Gary, 2019, p. 50. Esse exemplo é muito encontrado nos diálogos entre personagens, como é o caso do trecho citado aqui. Na conversa entre o médico e Madame Rosa, percebe-se que, em vez de contra-argumentar os medos da senhora, o doutor tenta desqualificá-la a fim de que se cale. E como resolver ou impedir no mundo real um diálogo agressivo como esse, que tenta desqualificar o outro em vez de responder ao que de fato está em questão? Não se deve atacar as características da pessoa (sua formação, seu suposto caráter ou sua autoridade com relação ao tema discutido). No caso do diálogo entre o médico e a Madame Rosa, se ele respondesse explicando a ela os motivos pelos quais ela não precisaria ter medo ou alimentar superstições (cientificamente), não teria incorrido em uma falácia de argumento ad hominem. 84 Leitura e escrita no ensino superior 4.4.2 Apelo à autoridade Você já ouviu alguém dizendo “Mas se até fulano fez, então...” como uma forma de licenciar um comportamento? Essa frase é muito utilizada para os mais diversos tipos de licença. O problema é que, para haver uma licença, a pessoa citada precisa ser uma autoridade no assunto – o que não acontece quando surge uma falácia do tipo apelo à autoridade. Vamos a um exemplo prático? A frase que ilustrou o início desta subseção pode ser completada de muitas maneiras, por exemplo: quando atores famosos fazem campanha eleitoral direta ou indireta para políticos. Isso já rendeu muitas críticas e muitos arrependimentos porque, quando alguém usa seu poder de influência e formação de opinião por ser uma pessoa famosa (e, em tempos de redes sociais, seguida por milhares de pessoas), tem uma grande responsabilidade por seus posicionamentos. E como não correr esse risco? Para não cometer um engano de apelo à autoridade, é preciso perguntar que conhecimento tem essa pessoa no tema sobre o qual ela está opinando. Lembre-se de que o fato de uma pessoa ser famosa e ter um discurso simpático ou convincente não quer dizer que ela tenha conhecimento que lhe confere autoridade em economia, política ou outras áreas. Observando esses aspectos com cuidado, temos mais segurança de que, quando fizermos referência a alguém como autoridade, essa pessoa de fato tem conhecimento e experiência que lhe conferem status desse tipo de argumento. 4.4.3 Generalização inadequada A generalização é uma das constatações mais interessantes possibilitadas por pesquisas bem feitas, que podem gerar afirmações aplicáveis a um grande número de situações, daí seu poder de convencimento. Existe uma história contada em diversas culturas, com adaptações, como nos mostra o historiador italiano Carlo Ginzburg. Sinais Por milênios o homem foi caçador. Durante inúmeras perseguições, ele aprendeu a re- construir as formas e movimentos das presas invisíveis pelas pegadas na lama, ramos quebrados, bolotas de esterco, tufos de pelos, plumas emaranhadas, odores estagnados. (Continua) Argumentação oral e escrita 85 Aprendeu a farejar, registrar, interpretar e classificar pistas infinitesimais como fios de barba. Aprendeu a fazer operações mentais complexas com rapidez fulminante, no in- terior de um denso bosque ou numa clareira cheia de ciladas. Gerações e gerações de caçadores enriqueceram e transmitiram esse patrimônio cog- noscitivo. Na falta de uma documentação verbal para se pôr ao lado das pinturas rupes- tres e dos artefatos, podemos recorrer às narrativas de fábulas, que do saber daqueles remotos caçadores transmitem-nos às vezes um eco, mesmo que tardio e deformado. Três irmãos (narra uma fábula oriental, difundida entre os quirguizes, tártaros, hebreus, turcos...) encontram um homem que perdeu um camelo – ou, em outras variantes, um cavalo. Sem hesitar, descrevem- -no para ele: é branco, cego de um olho, tem dois odres nas costas, um cheio de vinho, o outro cheio de óleo. Portanto, viram-no? Não, não o viram. Então são acusados de roubo e submetidos a julgamento. É, para os irmãos, o triunfo: num instante demonstram como, através de indícios mínimos, puderam re- construir o aspecto de um animal que nunca viram. Os três irmãos são evidentemente depositários de um saber de tipo venatório (mesmo que não sejam descritos como caçadores). O que caracteriza esse saber é a capacida- de de, a partir de dados aparentemente negligenciáveis, remontar a uma realidade complexa não experienciável diretamente. Pode-se acrescentar que esses dados são sempre dispostos pelo observador de modo tal a dar lugar a uma sequência narrativa, cuja formulação mais simples poderia ser “alguém passou por lá”. Talvez a própria ideia de narração (distinta do sortilégio, do esconjuro ou da invocação) tenha nascido pela primeira vez numa sociedade de caçadores, a partir da experiência da decifração das pistas. O fato de que as figuras retóricas sobre as quais ainda hoje se funda a linguagem da decifração venatória – a parte pelo todo, o efeito pela causa – são reconduzíveis ao eixo narrativo da metonímia, com rigorosa exclusão da metáfora, reforçaria essa hipóte- se – obviamente indemonstrável. O caçador teria sido o primeiro a “narrar uma história” porque era o único capaz de ler, nas pistas mudas (se não imperceptíveis) deixadas pela presa, uma série coerente de eventos. Fonte: Ginzburg, 2007, p. 151-152. Por que a história retratada nesse texto é um exemplo de generaliza- ção apressada?Porque, sem provas, os irmãos foram presos. Na verdade, não eram ladrões ou estavam mal-intencionados, mas tinham a habilida- de de detectar e interpretar pistas e indícios para organizar um conjunto de informações e transformá-las na narrativa que explica um fato. Além de a história contada nos mostrar e lembrar como as narra- tivas nos ensinam a ler o mundo através do tempo, é um exemplo de como a generalização apressada está presente em nosso cotidiano. E como fazer para não cair nessa falácia? Devemos evitar que a visão negativa que temos sobre alguma ação ou algum comportamento in- 86 Leitura e escrita no ensino superior fluencie nossa avaliação sem que haja provas. Além disso, é bom fazer perguntas para não dar margem a estereótipos: o exemplo em questão pode ser estendido para todas as situações? Ou a formulação de um estereótipo está nos impedindo de dar crédito a outras constatações? 4.4.4 Círculo vicioso A ideia de situações cíclicas em que não se sabe mais exatamente qual é o lugar da causa e qual é o da consequência não é nova. Nesses casos, acontece o que se chama de círculo vicioso. Há alguns anos, no Brasil, foi muito famosa uma propaganda de biscoitos que dizia “Biscoito X é mais fresquinho porque vende mais ou vende mais porque é mais fresquinho?”. Trata-se de um exemplo que ilustra bem a ideia de um ciclo de palavras ou informações em que não se consegue identificar o que é causa e o que é consequência. É verdade que o ciclo apresentado na chamada publicitária utilizada aqui como exemplo fez uma brincadeira com essa possibilidade de confu- são entre causa e consequência, mas esse tipo de situação não é bem vista quando se quer defender um ponto de vista em uma situação formal, por exemplo. Como não correr esse risco? É preciso observar bem as afirmações que levam a uma conclusão sem que se escreva ou diga a mesma coisa nos dois itens. Isso é possível quando cuidamos bem da progressão temática dos textos, ou seja, quando cuidamos de mostrar, em cada afirmação, um novo conteúdo. 4.4.5 Comparação inadequada ou falsa analogia Conforme mostra o título desta subseção, comparação e analogia nomeiam a mesma ação e ocorrem quando colocamos dois ou mais elementos em contraste para encontrar semelhanças e diferenças, ou para fazer constatações sobre o que é superior, inferior ou igual. Mas, para que a comparação funcione de fato como um argumento, precisa ser válida ou fazer sentido. Um exemplo prático que ilustra bem a ideia de comparação inválida e que ouvimos bastante é a ideia de relacionar governos e empresas, afirmando-se que, para funcionar, um governo precisa agir como uma empresa. Precisamos ter um cuidado muito especial com isso: a finali- Argumentação oral e escrita 87 dade de uma empresa é ter lucro e de um governo, não. Por isso é uma comparação falaciosa. Como evitar isso e utilizar comparações que, de fato, ilustrem o que se quer demonstrar ao público? Observe o exemplo a seguir: “Obama: Excluir mulheres da política é como jogar futebol com metade do time” (UOL NOTÍCIAS, 2020). Essa foi a manchete de uma notícia que divulgava a participação do ex-presidente norte-americano Barack Obama em um programa de entrevistas no Brasil. A analogia feita pelo líder mundial foi motivada por seu posicionamento em relação à eleição de Kamala Harris como primeira mulher a ocupar o posto de vice-presidente na história dos Estados Unidos, em 2020. Essa comparação, ao contrário daquela que se configura como fa- laciosa, é muito didática e bem direcionada ao público. Considerando que a entrevista foi concedida a um veículo do Brasil, dirigida à popula- ção brasileira, e que somos um país muito identificado com o futebol, a exemplificação se torna muito concreta e inteligível para promover a reflexão dos espectadores quanto à importância de incluir as mulheres no cenário político. 4.4.6 Emprego de palavras vagas ou imprecisas Existem ao menos duas maneiras bem perceptíveis de se empregar palavras que não traduzem o sentido que deveriam: quando não conhecemos exatamente a palavra que queremos utilizar e nos valemos de outra parecida ou quando utilizamos uma palavra genérica para significar algo específico. Por exemplo, se dissermos que um motorista infligiu a lei, come- temos uma falácia porque empregamos uma palavra parecida com a que de fato deveríamos empregar: infringiu. A frase adequada seria “um motorista infringiu a lei e por isso a autoridade lhe infligiu (impôs/ aplicou) uma multa”. Outra situação de uso de palavras vagas ou imprecisas ocorre quan- do utilizamos generalizadamente uma palavra com diversos sentidos. Algumas palavras como coisa acabam, no dia a dia, funcionando de um jeito muito abrangente: “Vou arrumar aquelas coisas no cartório”; “Me alcança aquela coisa em cima da mesa, por favor?”; “Deixa eu coisear a Que tal tomar um cuidado especial e colocar o significado para algumas dessas palavras parecidas no quadro a seguir, a fim de evitar equívocos? retificar ratificar sessão seção cessão comprimento cumprimento Desafio 88 Leitura e escrita no ensino superior sala, depois você coloca o tapete”. Os usos de coisa ou do neologismo coisear não são bem-vindos na comunicação formal falada ou escrita. Para essas ocasiões, é importante escolher as palavras adequadas e exatas, por exemplo: “Vou arrumar aqueles documentos no cartório”; “Me alcança aquela bandeja em cima da mesa, por favor?”; “Deixa-me arrumar a sala, depois você coloca o tapete”. Esses são apenas alguns exemplos; poderíamos listar outros tantos, principalmente em relação a palavras parecidas. Por isso, é bem im- portante consultarmos o dicionário quando tivermos dúvida a respeito. 4.4.7 Falso dilema A palavra dilema, em sua definição, prevê caminho duplo, duas opções, e até aí não temos nada de falso. O problema acontece quando estamos diante de um caminho duplo falso. Por exemplo, suponha que você está buscando uma maneira de re- solver uma situação (o desperdício de alimentos): “O desperdício de ali- mentos, no Brasil, tem duas chances de resolução: as pessoas precisam comprar melhor os alimentos no supermercado e os produtores preci- sam acondicionar melhor os produtos para que durem mais”. Trata-se de um falso dilema porque estamos esquecendo ao menos um item: o desperdício durante o transporte dos alimentos. E como evitar esse tipo de falácia? Conferindo sempre se só existem mesmo duas saídas ou se elas são apenas as duas que você deseja es- colher como argumento, mas existem outras. Nesta seção, a ideia foi explorar um pouco os principais problemas que podemos encontrar quanto à elaboração de argumentos, com le- veza e alguns raciocínios que podemos empregar no dia a dia. Mas vale lembrar que nossa intenção nunca é esgotar a discussão; ao contrário: a proposta é mover sua curiosidade e fazer com que você se sinta con- vidado a elaborar seus próprios exemplos e singularizar sua experiên- cia de discurso. Assim, corremos o risco – o excelente risco – de nos comunicarmos melhor. neologismo: palavra nova, inventada com base em outra. Glossário O texto O amor é uma falácia, de Max Shulman, pode ser usado como exemplo dos tipos mais comuns de falácia e como po- dem ser vistas ou interpretadas no comportamento das pessoas. Um toque de sarcasmo para que você entenda que nem todos respondem da mesma maneira aos mesmos questionamentos. É uma leitura interessante e informativa escondida atrás do que parece ser um simples perde e ganha argumentativo. Leitura Identifique o tipo de falácia contida nas informações a seguir, que encerra uma crônica de Antonio Prata (2015): “Todo abacate é verde. O Incrível Hulk é verde. O Incrível Hulk é um abacate”. Atividade 3 Argumentação oral e escrita 89 CONSIDERAÇÕES FINAIS Neste capítulo, compartilhamos a diversidade de possibilidades que nos impossibilita fazer apenas uma – ou várias – consideração que possa ser chamada de final a respeitode um tema tão amplo como a argumentação. Reiteramos que as estratégias empregadas para defender e comprovar um ponto de vista são múltiplas e não se esgotam, podendo ser reinterpretadas e atualizadas à luz de novas problemáticas ou novas situações vividas pela humanidade. Os latinos tinham uma frase que serve de analogia aqui, para ficar no campo das estratégias argumentativas: ne nuntium necare. Essa frase é uma orientação para precaução dos imperadores que recebiam recados por mensageiros: não mate o mensageiro. O texto é sempre nosso men- sageiro e não deve, em situação alguma, ser posto em perigo. Pela escolha do vocabulário mais adequado e das estratégias mais expressivas, podemos expor nosso conhecimento, nosso ponto de vista, nossas considerações e nossas dúvidas e inquietações a respeito de uma ideia, sem agressividade ou perigo, e, mais importante, sabendo ouvir o mensageiro que traz as vozes de outras pessoas e respeitando-as. REFERÊNCIAS BALEIRO, Z. A moral do cascudo. ISTOÉ, 25 mar. 2011. Disponível em: https://istoe.com. br/130038_A+MORAL+DO+CASCUDO/. Acesso em: 16 dez. 2020. CARL Sagan mostra como gregos antigos já sabiam que a Terra era redonda. Galileu, 27 mar. 2017. Disponível em: https://revistagalileu.globo.com/Ciencia/noticia/2017/03/carl- sagan-mostra-como-gregos-antigos-ja-sabiam-que-terra-era-redonda.html. Acesso em: 16 dez. 2020. DOYLE, A. C. Um estudo em vermelho. Cotia: Pé de Letra, 2017. GARY, R. A vida pela frente. São Paulo: Todavia, 2019. GINZBURG, C. Mitos, emblemas, sinais. São Paulo: Companhia das Letras, 2007. GUEDES, P. C. Da redação à produção textual: o ensino da escrita. São Paulo: Parábola, 2009. KAZANTZÁKIS, N. A vida e as proezas de Aléxis Zorbás. Porto Alegre: TAG, 2017. LISPECTOR, C. Um sopro de vida. Rio de Janeiro: Rocco, 1978. PAMUK, O. Istambul. São Paulo: Companhia das Letras, 2007. PAMUK, Orhan. A mulher ruiva. São Paulo: Grua, 2020. PRATA, A. Terrorismo Lógico. Folha de São Paulo, 11 jan. 2015. Disponível em: https://m. folha.uol.com.br/colunas/antonioprata/2015/01/1573334-terrorismo-logico.shtml. Acesso em: 16 dez. 2020. SCHWARTSMAN, H. Mortes anunciadas. Folha de São Paulo, 14 abr. 2019. 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Podem ser aceitas todas as respostas que explicarem que a ação de argumentar está relacionada à elaboração de justificativas ou de estratégias textuais que possam ser empregadas para validar um ponto de vista. 2. A resposta e a escolha são pessoais, mas segue uma sugestão de elaboração, consi- derando as partes que o texto de resposta deve conter: “Eu queria ser escritor. Mas depois dos acontecimentos que passarei a narrar, estudei geologia e me tornei em- preiteiro. Mas os leitores não devem concluir, pelo fato de eu contar a minha história, que agora tudo é coisa do passado, que deixei tudo para trás. Quanto mais penso nela, mais fundo mergulho. Talvez vocês também sigam esse caminho, seduzidos pelo enigma de pais e filhos (PAMUK, 2020, p. 11)”. O trecho do livro adverte os leitores para não fazerem uma generalização apressada, pensando que se o autor conta sua histó- ria, é porque tudo está no passado. Essa é uma ressalva muito importante quando se trata de ler algum texto e dele extrair constatações. Não se deve agir apressadamente; é preciso antes observar as pistas e os sinais. 3. Uma generalização apressada, porque associar a cor do abacate em comparação ao personagem Hulk para constatar que ele é um abacate é não levar em consideração todas as outras características que diferenciam os dois elementos em questão. Gêneros de escrita acadêmica 91 5 Gêneros de escrita acadêmica Como o próprio título deste capítulo evidencia, é hora de dar- mos atenção mais específica a alguns pontos que escolhemos para compartilhar sobre escrita acadêmica. Certamente esta não será a única vez que, ao longo de sua formação, você irá se deparar com recortes e orientações sobre como ler, elaborar e interpretar textos acadêmicos. Nosso objetivo é fazer com que você se sinta convidado a começar, ou a retomar do ponto em que está, a inte- ração com diferentes produções e divulgações desse tipo de texto. E, por certo, toda vez que tratamos da produção de conteúdo encapsulada (guardada) em formatos de textos específicos que requerem nosso cuidado com objetivos, público-alvo e linguagem, temos algumas características a observar. Isso tudo fica mais fácil quando escolhemos um recorte de leitura e produção para esses diferentes textos. É o que faremos juntos nas próximas seções! 5.1 Tópicos de escrita acadêmica Vídeo “Eu viajo quase todos os dias de avião. Se o piloto está na porta do avião, a primeira coisa que eu pergunto é: ‘Você tem medo de avião?’ Se ele disser que tem, eu viajo totalmente sossegado. Por que, se ele tem medo, o que faz? Prepara, organiza, estrutura, vê mapa, faz o melhor.” (CORTELLA, 2017, p. 42) O filósofo e professor Mário Sergio Cortella escreve em várias oca- siões ter sido definitivamente influenciado por um professor ao longo da etapa de estudos que equivale hoje ao ensino médio. Isso porque o professor havia dito a ele que, se desejasse escrever bem, deveria escrever como Machado de Assis. Uma afirmação como essa pode ser interpretada ao menos de duas maneiras. Talvez a mais simples e superficial seja a que afasta a possibilidade de alguém como nós (quando não pretendemos ser escritores, mas apenas e tão somente escrever para nos comunicar) atingir um nível de uso da linguagem em sua excelência, como fazia Machado de Assis. 92 Leitura e escrita no ensino superior No entanto, a segunda interpretação, que é aquela oferecida por Cortella, parece mais justa e afiançável para quem estuda e aprende a ousar nos mais diversos tipos de comunicação: cada um de nós pode escrever como Machado de Assis, não no sentido de imitá-lo, mas de fazer o que ele fez, ser ele mesmo. Como assim? Isso parece confuso, mas se torna mais didático e aplicável quando entendemos que o con- selho sobre escrever como Machado de Assis significa assumir a nossa própria identidade em relação à linguagem, escolhendo o vocabulário, o jeito de construir as frases e o modo de comunicar. Essa explicação inicial, quando se trata de explorar tópicos de escri- ta acadêmica, tem razão de ser porque a ideia aqui não é apenas listar maneiras de elaborar diferentes textos, mas que você faça um exercí- cio de ponto de partida e, com base em um pequenoroteiro, estabele- ça o que já sabe e o que ainda precisa ser identificado e aprendido de modo a melhorar seu conhecimento e sua fundamentação para elabo- rar textos acadêmicos. Nesse sentido, você pode começar seguindo o roteiro do quadro a seguir. Quadro 1 Roteiro para escrita acadêmica Pergunta motivadora Detalhamento/Reflexão Resposta/Elaboração das suas percepções O que vem à sua cabeça ao ouvir a palavra relatório? Sem dúvida, é um texto que depende de dados, em geral numéricos, para ser elabo- rado. Mas é só isso? Uma se- quência de números? Se um professor ou um co- mando de prova solicitar a você a elaboração de uma resenha, qual é o primeiro passo? Talvez haja vários caminhos para dar esse primeiro passo, mas uma indicação válida é apropriar-se do tema de que trata o texto ou objeto a ser resenhado: é preciso revelar o conteúdo e emitir uma análise sobre o quê? Você saberia apontar uma diferença básica entre re- sumo e resenha? Em geral, o resumo faz parte da resenha. É ele que concen- tra as principais informações de um texto sem distorcê-las, fazendo com que, com base nelas, se possa estabelecer relações com outros textos e fazer análises, transformando o conjunto em uma resenha. (Continua) Gêneros de escrita acadêmica 93 Pergunta motivadora Detalhamento/Reflexão Resposta/Elaboração das suas percepções Você se lembra ou estima quantas e quais são as partes de um artigo acadêmico? Não precisa decorar esse tipo de informação, mas é, sem dú- vida, bem importante lembrar- -se de que deve haver resumo, palavras-chave, introdução, desenvolvimento, conclusão/ considerações finais e referên- cias bibliográficas. Você usaria primeira ou terceira pessoa do discurso para elaborar textos acadê- micos? Essa é sempre uma grande questão. Há quem afirme que não gosta de usar ou não se sente à vontade para empre- gar a primeira pessoa do dis- curso em textos acadêmicos. No entanto, é bem comum encontrarmos textos que apre- sentam esse uso e o fazem de maneira a envolver o leitor, sem prejuízo algum de conteúdo. Fonte: Elaborado pela autora. Depois de preencher adequadamente esse pequeno roteiro, você pode se perguntar: qual é a minha obra? Ou ainda, como fazer para que minhas leituras e escritas estejam inseridas no ciclo de construção de conhecimento do qual faço parte? Essas reflexões são bem impor- tantes para que cada um possa se colocar como um sujeito autônomo de seu processo de aprendizado. Por isso, a analogia sobre escrever como Machado de Assis é tão bem-vinda: ninguém consegue se apro- priar de fato de um processo que envolve conhecimento se não o fizer com base em suas perspectivas, sua identidade, sua linguagem e sua vontade de compreender melhor o mundo. Por essas razões, vamos começar com um primeiro gênero que mescla informação e opinião, ou juízo de valor, na seção a seguir. Não deixe de considerar o exercício que você fez (preenchendo o quadro anterior) para, a partir daí, observar com atenção cada novo elemento discutido neste capítulo. Isso retoma a nossa epígrafe: manter o medo do avião mesmo quando já somos pilotos. Já sabemos escrever, mas o respeito pelo planejamento, pela organização e pela orientação ofere- cida pelos mapas nunca deve ser negligenciado. 94 Leitura e escrita no ensino superior 5.2 Resenha Vídeo “It takes two to tango” 1 . Começamos nossa abordagem de textos acadêmicos com a rese- nha, porque ela concentra a possibilidade de relacionar a leitura, a compreensão, a descrição, a enumeração, o comentário e a análise de um objeto específico (o qual pode ser um filme, uma peça, uma partida esportiva, uma entrevista, um programa de rádio ou TV, um álbum, um livro, um artigo ou qualquer outro tipo de produção artística, acadêmi- ca ou científica). Observe que isso significa afirmar que o ponto de par- tida para a elaboração de resenhas pode ser um item muito variável, dependendo da área de conhecimento que vamos explorar. Em seu livro Guia de Escrita, Pinker (2016, p. 93) descreve a seguinte situação: A melhor maneira de lembrar os perigos das abreviações pes- soais consiste em recorrer à piada do homem que entra numa estância das montanhas Catskills 2 pela primeira vez e vê um grupo de humoristas judeus aposentados contando piadas aos colegas em volta de uma mesa. Um deles grita “quarenta e sete!”, e os outros riem ruidosamente. Outro grita “cento e vinte!”, e de novo os outros se dobram de rir. O recém-chegado não tem como imaginar o que está acontecendo, e pede a um dos velhos que explique. O homem diz “esses caras andam juntos há tanto tempo que todos conhecem as mesmas piadas. Então, para pou- par tempo, deram a elas um número, e tudo o que precisam fazer é gritar o número”. O sujeito diz “é brilhante! Deixem-me experimentar”. Levanta-se e grita “vinte e um!”. Segue-se um si- lêncio tumular. Tenta novamente: “setenta e dois!”. Todos olham para ele e ninguém ri. Ele afunda no assento e sussurra para o informante: “o que fiz de errado? Por que ninguém riu?”, ao que o homem responde: “ah, tudo depende do jeito de contar”. Em seu livro, Pinker elabora diferentes percepções sobre como é preciso considerar muito bem o conhecimento que o produtor de um texto tem e o conhecimento de quem lê ou ouve esse mesmo texto para que a comunicação se estabeleça da melhor maneira. Utilizamos esse exemplo porque, apesar de ser uma história que pode parecer mesmo uma piada, é bem simbólica quanto a como funciona uma mensagem que transita de pessoa para pessoa ou é de conhecimento geral em um grupo, mas completamente desconhecida para outro. Ditado popular americano que significa “é preciso dois para dançar tango”. 1 As montanhas Catskills são uma região turística do estado de Nova York que recebe esportistas de inverno e interessados em eventos culturais. Abriga também antigos hotéis onde trabalharam humoristas famosos de origem judaica, que criaram o estilo chamado Borsch Belt comics. 2 Gêneros de escrita acadêmica 95 E como isso tudo está relacionado com a resenha? Um bom texto de resenha apresenta um resumo eficiente do objeto resenhado, rela- ciona-o com outros objetos ou temas semelhantes e convida o leitor a conhecê-lo. Por isso, podemos empregar o exemplo relatado por Pin- ker (2016) como comparativo. O objeto, nesse caso, é o conhecimen- to das piadas, mas não é apenas isso; o tempo de convivência que os envolvidos compartilham é muito relevante e isso faz toda a diferença na hora de interagirem com o conteúdo. Portanto, trata-se também de uma questão de afinidade. Por exemplo, todo o movimento de inter- compreensão e frustração ao fazer uma propaganda entusiasmada so- bre um filme e mesmo assim seus amigos ou familiares não gostarem (ou o contrário, eles estarem entusiasmados e você não) faz parte do processo de composição e entendimento de textos como a resenha. Para além da análise de uma situação que é mais importante pelas afinidades do que pelo conteúdo, como a expressa no texto de Pinker (2016), vamos observar juntos e estudar mais um exemplo? Sigamos juntos lendo um trecho do texto da jornalista Cláudia Laitano. Solo It takes two to tango (“é preciso dois para dançar tango”), dizem os americanos. O di- tado, que costuma valer para o amor e seus contrários, talvez não se aplique bem ao próprio tango – como qualquer um que já assistiu ao solo de um bailarino nas ruas de Buenos Aires é capaz de atestar. Tradicionalmente um jogo em duplas, o xadrez há décadas também dispensa interações: qualquer enxadrista misantropo tem horas de diversão garantida com apenas um computador e uma boa conexão diante de si. Fonte: Laitano, 2020, p. 3, grifo do original. É assim que começa a coluna de Laitano, que faz uma análise da série O Gambito da Rainha, popular desde outubro de 2020 na Netflix. Nessa coluna, o texto elaborado é uma resenha da série. Mas por que podemos afirmar isso? Porque uma resenha, para assim ser caracteri- zada, precisaconter: • Um breve resumo do objeto a ser resenhado; podemos perceber que, nesse trecho do texto, essa parte ainda não apareceu. Como o objeto resenhado aqui é a série O Gambito da Rainha, sugeri- mos uma possibilidade como exemplo: O Gambito da Rainha é uma série da Netflix, exibida a partir de outubro de 2020, cuja 96 Leitura e escrita no ensino superior personagem central é uma órfã que tem habilidades muito acima da média para o jogo de xadrez. • Uma relação entre o conteúdo, o tema, ou um item de destaque do objeto a ser resenhado e outras situações no mundo; observe o comparativo inicial com o tango e a ampliação para um conhe- cimento geral, de senso comum, na sequência, quando a autora mobiliza a experiência do leitor com o jogo ou ferramentas do cotidiano, como o computador. • Um tom de convite, mesmo sem ser escrito, para que o leitor, com base na curiosidade despertada, sinta-se convidado a inte- ragir de alguma maneira com o objeto resenhado. Uma boa resenha, em geral, pode ser assim caracterizada com base principalmente no repertório sociocultural que o autor do texto tem. No exemplo de Laitano (2020), repare que ela relaciona o tango com o movimento do jogo de xadrez; essa relação amplia o alcance do texto, pode despertar curiosidade e não é algo previsível. Aproveitamos para lembrar que, ao longo de seus estudos, serão solicitadas a você resenhas de filmes e livros na maioria das vezes. Ago- ra, antes de seguir com outros tópicos de escrita acadêmica, que tal fazer um exercício e ver como se sai quanto à elaboração de uma re- senha sobre algo escolhido por você? O quadro a seguir vai lhe ajudar a produzir sua resenha; ele também pode ser usado no futuro como consulta na hora de produzir outros textos desse tipo. Quadro 2 Roteiro para produção de resenha Descreva o objeto a ser resenhado (livro, filme etc.). Resuma de maneira bem organizada, cui- dando para que o leitor compreenda suas ideias, o conteúdo do objeto que deseja resenhar. Liste possíveis fatos, ideias, enredos de livros, filmes ou situações que você já presenciou ou viveu para fazer a relação com o que você vê de interessante no tema do item que é objeto de sua resenha. (Continua) Gêneros de escrita acadêmica 97 Estabeleça associações de comparação, por exemplo, por igualdade, superioridade ou inferioridade. A frase “o ditado, que costuma valer para o amor e seus contrários, talvez não se apli- que bem ao próprio tango” que vimos no texto de Laitano (2020) é um bom exemplo para isso. Existe aí uma percepção da autora sobre a aplicabilidade do ditado ao tema e ao objeto resenhado. Para finalizar o texto, sempre procure ofe- recer ao leitor uma percepção extra e um reforço daquilo que você pretendeu expor na resenha. Tomamos mais uma vez um trecho da colu- na de Laitano (2020): “no xadrez, como na vida, não é apenas um rei, ou uma rainha quem decide o rumo da partida”. Observe que é uma frase final que retoma, confirma e finaliza aspectos essenciais que a autora utilizou na elaboração do texto. Fonte: Elaborado pela autora. Percebemos que a resenha precisa combinar nossa destreza em resumir as principais informações, de um jeito convidativo, com o que selecionamos de melhor do nosso repertório de leituras e vivên- cias. Depois desse exercício, essencial para perceber o que temos e o que nos falta em relação à composição desse gênero, vamos trabalhar com um texto que requer mais cuidado técnico em sua elaboração: o relatório. Elabore uma resenha para uma série ou filme assistido por você, considerando que deve tentar convencer outras pessoas a assistirem essa produção. Atividade 1 5.3 Relatório Vídeo “No passado, podiam-se acusar os historiadores de querer conhecer somente as ‘gestas dos reis’. Hoje, é claro, não é mais assim. Cada vez mais se interessam pelo que seus predecessores haviam ocultado, deixado de lado ou simplesmente ignorado. ‘Quem construiu Tebas das sete portas?’ – perguntava o ‘leitor operário’ de Brecht. As fontes não nos contam nada daqueles pedreiros anônimos, mas a pergunta conserva todo seu peso.” (GINZBURG, 2006) O trecho que escolhemos para utilizar como epígrafe pode parecer muito distante do que pretendemos aprender com o estudo e o enten- dimento de relatórios. Porém, aqui fica bem interessante fazermos um pequeno raciocínio de argumentação lógica: muito do que conhecemos hoje, em todas as áreas e ciências, deve-se à documentação. O relatório é um documento. Logo, fazer bons relatórios – legíveis e com escolha adequada de conteúdo – é uma maneira de dar suporte à ciência. 98 Leitura e escrita no ensino superior Em geral, essa tarefa é de quem não se sente menos importante por ser, como diz o texto de Ginzburg (2006), um “pedreiro anônimo”. E o que desejamos exatamente dizer com isso? Que todos nós, na condi- ção de coadjuvantes da construção do conhecimento, somos capazes de contribuir para a elaboração de textos que podem se transformar em documentos imprescindíveis. Isso é possível principalmente quan- do não tratamos um texto técnico (como o relatório) como se fosse um simples preenchimento de fórmula sem outra função. Lembre-se sempre: seu relatório ficará arquivado em algum lugar e poderá ser acessado a qualquer hora; por isso, aja sempre como o pedreiro ou artífice anônimo que não teme a desimportância 3 . O relatório é, de fato, um texto mais técnico, considerando que a ideia encerrada por ele é relatar em ordem cronológica eventos relacio- nados a uma situação ou um fato observado, além de poder ser feito com base em ações desenvolvidas para impactar algum cenário e alte- rá-lo beneficamente. Vamos observar a seguir algumas características do relatório, lendo parte de um documento publicado pelo Ministério da Saúde a respeito da vacinação contra a rubéola no Brasil. Com base no exemplo, vamos com- preender como podemos utilizar esse formato em nossas elaborações. Figura 1 Exemplo de relatório Í N D I C E Apresentação 11 Agradecimentos 13 1. Introdução 15 1.1 Brasil: o país e sua diversidade 15 1.2 A rubéola e a SRC como problema de saúde pública 19 1.3 Eliminação da rubéola nas Américas 20 1.4 Situação epidemiológica da rubéola e SRC no Brasil 21 2. A realização da Campanha de Vacinação para Eliminação da Rubéola no Brasil 28 2.1 Objetivos 28 2.2 Meta e população-alvo 29 2.3 Estratégias e etapas da campanha 31 2.4 Organização e planejamento 33 2.5 Capacitação 35 2.6 Microprogramação 38 (Continua) Isso não é uma ameaça, mas uma inspiração sobre o quanto é bom poder se tornar fonte de pesquisa ou citação para alguém que vem depois de nós. 3 Observe alguns cadernos sobre ciência de diversos jornais do país indicados a seguir. Podemos notar que há uma reocupação convergente entre os principais e mais antigos jornais do país, já que, como podemos ver, todos têm uma seção de ciência em suas publicações. Nela são di- vulgadas descobertas e análises científicas, mas com linguagem que permite ao público leigo acessar essas informações e compreendê-las. • https://www1.folha.uol. com.br/ciencia/ • https://oglobo.globo. com/sociedade/ciencia/ • https://ciencia.estadao. com.br/ • https://gauchazh.clicrbs. com.br/ultimas-noticias/ tag/ciencia/ Acessos em: 28 dez. 2020. Saiba mais https://www1.folha.uol.com.br/ciencia/ https://www1.folha.uol.com.br/ciencia/ https://oglobo.globo.com/sociedade/ciencia/ https://oglobo.globo.com/sociedade/ciencia/ https://ciencia.estadao.com.br/ https://ciencia.estadao.com.br/ https://gauchazh.clicrbs.com.br/ultimas-noticias/tag/ciencia/ https://gauchazh.clicrbs.com.br/ultimas-noticias/tag/ciencia/ https://gauchazh.clicrbs.com.br/ultimas-noticias/tag/ciencia/ Gêneros de escrita acadêmica 99 2.7 Imunobiológicos, outros insumos e logística 38 2.8 Vacinação em área de fronteira 40 2.9 Vacinação segura 41 2.10 Sistema de informação 45 2.11 Supervisão 47 2.12 Monitoramento e avaliação 49 2.13 Dinâmica da campanha noBrasil 52 2.14 Aspectos facilitadores e limitações 55 2.15 Custos da campanha 73 3. Comunicação social 74 3.1 Ações do Ministério da Saúde 74 3.2 Ações de comunicação nos estados 132 4. Resultados da campanha 161 4.1 Cumprimento da meta de cobertura 161 4.2 Homogeneidade dos resultados 164 4.3 Resultados da campanha por UF 165 5. Lições aprendidas 171 Referências 172 Anexo – Divulgação da campanha em sites parceiros 175 Fonte: Brasil, 2009. Podemos seguir um modelo como o índice do documento, com sete partes, para a confecção de um relatório, independentemente de seu tema. A ideia aqui é utilizar como exemplo um cenário de saúde, jus- tamente porque ela é fundamental para qualquer âmbito de nossas vidas, seja qual for a nossa área de atuação. Porém isso vale para todas as áreas. Vamos às partes do documento. Essa parte do relatório precisa apresentar o tema em que se inscreve a situação observada e relatada no documento. No índice em questão, vemos que há um recorte relacionado à formação do Brasil como país. Por que isso é importante? Porque os dados que serão apresentados no relatório dizem respeito à imunização da população brasileira em relação à rubéola. Para falar dos dados, é preciso situá-los. Guarde bem essa informação, pois isso é repre- sentativo para começar a relatar uma situação observada que, em geral, envolve números, por isso se faz em formato de relatório. 1. Introdução 100 Leitura e escrita no ensino superior Em nosso exemplo, temos um relatório sobre como foram ob- tidos e quais são os dados de que o Ministério da Saúde dispõe a respeito da vacinação contra a rubéola no Brasil. Há vários passos que devem ser observados nesse ponto do documento, porque ele é o coração do texto. É o espaço para inserir os objetivos (sempre iniciando com verbos no infinitivo, como “promover a imunização da população [...]”) e descrever as etapas, o método utilizado, como os envolvidos no processo trabalharam etc. Também é a parte em que se deve inserir os dados e relacioná-los entre si. 2. O fato a ser relatado O item do índice que trata da comunicação social deve ser observado com atenção. Como nosso exemplo está diretamen- te relacionado ao Ministério da Saúde, a indicação de ações está creditada a essa pasta governamental. Um segundo tópico traz ideias para ações mais localizadas, que devem ser tomadas pelos estados. Esse é apenas um exemplo, mas qualquer relatório, não importa o tema, pode apresentar a necessidade de ações mais amplas e outras mais restritas e específicas. Por isso é tão impor- tante observar os dados obtidos em uma situação a ser relatada desde a origem até as consequências. 3. As ações que podem alterar o cenário Essa parte da descrição do relatório deve ser observada com cuidado. Caso tenha sido feito o relato de uma pesquisa que levou em consideração algum método, devem ser descritos os resulta- dos alcançados, inclusive com números para comprovar as afir- mações. Caso a pesquisa esteja em curso e o que se tem seja um relatório parcial, com perspectiva de conclusão da pesquisa ou de aplicação de outras edições, o que se deve elaborar são hipóteses com base nos números e indicativos já obtidos. 4. Resultados obtidos ou esperados Gêneros de escrita acadêmica 101 Todo fato observado gera possibilidades de constatação e aprendizado. No exemplo que utilizamos, o acesso aos números promove constatações sobre o alcance que já foi obtido pelas ações de imunização, o que implica a previsão de ações que pos- sam melhorar esse alcance de acordo com as características dos participantes. Além disso, apresenta projeções de cenário, consi- derando o desenrolar das ações. Isso quer dizer que é preciso rea- lizar ações que promovam o aumento da cobertura de vacinação e, consequentemente, melhorem a percepção de imunização. 5. Aprendizados/balanço/conclusão Trata-se do espaço destinado a inserir as informações sobre fontes de pesquisa, como livros, revistas, sites, publicações acadê- micas etc., tudo de acordo com as normas do periódico em que o artigo será publicado. 6. Referências A quantidade e o tipo de anexos dependem muito do que foi objeto do relatório. Aqui podem entrar fotografias, ilustrações, mapas, certidões, declarações e outros itens que tenham sido mo- bilizados para a confecção do documento. 7. Anexos Neste ponto da análise do texto de relatório, você pode se pergun- tar: e a apresentação e os agradecimentos que apareceram no começo do índice? Destacamos que essas partes não necessariamente apa- recem em um texto de relatório, por isso é sempre bom se certificar, quando receber a tarefa de elaborar um texto assim, se a solicitação engloba o emprego desses dois itens. Depois de trabalhar com o exemplo, que tal mais um exercício que nos ajuda a comprovar o que foi apresentado e a perceber quais são nossas dúvidas e dificuldades para elaborar um documento que pode servir como base de pesquisa para outras pessoas? Vejamos então um passo a passo para elaboração do relatório a seguir. Como não vamos tratar aqui da apresentação e dos agradecimentos, que podem ou não aparecer no texto relatório, aproveitamos para sugerir que, quando tiver dificuldades ou dúvidas para elaborar deter- minadas partes de um texto acadêmico, sempre consulte documentos que nos ajudam a acalmar nossas inquietações e encontrar um caminho, como as indicações e os exemplos pre- sentes no site da Universidade de São Paulo (USP), disponível em: https://usp.br/sddarquivos/ arquivos/abnt14724.pdf. Acesso em: 28 dez. 2020. Saiba mais https://usp.br/sddarquivos/arquivos/abnt14724.pdf https://usp.br/sddarquivos/arquivos/abnt14724.pdf 102 Leitura e escrita no ensino superior Quadro 3 Roteiro para produção de relatório Escolha um fato a ser observado. Pode ser uma situação do dia a dia ou algo que seja fruto de uma pesquisa. Você pode, por exemplo, contar quantas pessoas atraves- sam uma rua e como elas fazem isso. Pode parecer ingênuo, mas é um exercício de ob- servação importante para entender como organizar um relatório sobre um fato mais complexo. Na segunda etapa, depois de contextuali- zar a situação e os elementos que a com- põem, veja se você anotou exatamente as quantidades, como elas devem e podem ser relacionadas. Descreva exatamente os elementos envolvidos no processo, na si- tuação, imaginando que seus leitores não conhecem o fato. Depois, caso seja apenas uma observação, como a sugestão sobre a quantidade de pessoas ou veículos que atravessam uma rua em determinado período, você pode pensar em sugestões para melhorar o flu- xo, se necessário. Em seguida, estabeleça constatações pos- síveis e aprendizados compartilháveis. Por exemplo: como a sugestão de intervenção para a situação observada por você pode ser estendida para outros casos semelhantes? Insira as referências Insira os anexos, ou cite quais seriam em- pregados neste exemplo. Fonte: Elaborado pela autora. Depois do exercício realizado com a observação, contextualização e descrição da situação, podemos dizer que as condições para ler e elaborar um relatório foram cumpridas. No entanto, destacamos que há elementos que podem ou não aparecer nesse formato e que algu- mas características apresentam flexibilidade para sua elaboração. Por isso, sempre é muito importante verificar qual é a expectativa quando se recebe a solicitação de elaboração de um relatório, que pode ser, inclusive, de estágio. Gêneros de escrita acadêmica 103 Depois disso, convidamos você a seguir outra parte do aprendi- zado sobre textos acadêmicos: o resumo. Na próxima seção, vamos exercitar um pouco as habilidades necessárias à elaboração de textos curtos que sintetizam as ideias principais a serem observadas em ou- tros mais longos. Leia o seguinte trecho do livro Estranhos à nossa porta, de Zygmunt Bauman, sobre o processo migratório observado no mundo, principalmente de pessoas se deslocando para a costa da Europa pelo mar nas primeirasdécadas do século XXI. A migração em massa não é de forma alguma um fenômeno recente. Ele tem acompanhado a era moderna desde seus primórdios (embora com frequência mudando e por vezes revertendo a direção) –, já que nosso ‘modo de vida moderno’ inclui a produção de ‘pessoas redundantes’ (localmente ‘inúteis’, excessivas ou não empregáveis, em razão do progresso econômico; ou localmente intoleráveis, rejeitadas por agitações, conflitos e dissensões causados por transformações sociais/políticas e subsequentes lutas por poder). Além de tudo isso, contudo, hoje suportamos as consequências da profunda e aparentemente insolúvel desestabilização do Oriente Médio, na esteira das políticas e aventuras militares das potências ocidentais, estupida- mente míopes e reconhecidamente fracassadas. (BAUMAN, 2017, p. 12) Considerando que esse trecho pudesse fazer parte de um relatório a respeito dos movimentos migratórios, identifi- que a qual parte do texto ele poderia pertencer, justificando sua resposta com base em elementos de composição presentes no texto. Atividade 3 Elabore a apresentação para um possível relatório feito por você. Escolha o tema e a situação a ser observada e tome o devido cuidado para ser didático mesmo para quem não conhece o tema nem é especialista na área do conhecimento. Atividade 2 5.4 Resumo Vídeo “— Onde estamos? — pergunto em voz alta. Estas duas palavras, que costumamos pronunciar quando, viajando no estrangeiro, chegamos a algum lugar, são uma espécie de fórmula mágica que tem o dom de nos acordar para a realidade, livrando-nos dessa perigosa dormência ou agitação turística que nos embota os sentidos, levando-nos a aceitar com demasiada naturalidade ou indiferença, e sem verdadeiro proveito e encanto, o fato de estarmos em exóticas geografias dantes tão sonhadas e desejadas. Muitas vezes só depois de voltar a nossa casa no Brasil é que, numa surpresa retrospectiva, nos maravilhamos de ter estado no palácio do rei Minos, na ilha de Creta, no Grande Bazar de Istambul ou no Barrio Gótico de Barcelona.“ (VERISSIMO, 2002, p. 26) Observe que a epígrafe empregada aqui nos apresenta alguns de- safios para que a leitura seja feita adequadamente: o autor relata uma experiência em primeira pessoa (singular e plural) e faz com que nosso entendimento caminhe no sentido de compreendermos que a pergun- ta inicial “onde estou/estamos?” pode ser feita por qualquer um de nós, quando temos experiências de deslocamento espacial e que envolvem mudança de habitação ou de horário. Essa estratégia de perguntas nor- teadoras para a nossa localização em relação a uma referência pode ser feita para compreendermos melhor os passos necessários à elabo- ração de um resumo. 104 Leitura e escrita no ensino superior Ler um novo texto sempre envolve uma sensação de fronteira entre o que já se conhece e a percepção de estar em terra estrangeira. As- sim como o movimento e a sensação descritos por Erico Verissimo na epígrafe – a percepção de onde estivemos só vem mais tarde, depois de voltarmos para casa –, nossa percepção sobre os textos que precisa- mos resumir também pode ser experimentada dessa maneira, em um movimento de aproximação e distanciamento, para guardar apenas o que é essencial e nos impressiona de fato. Desse modo, o que é e como funciona necessariamente o resu- mo de um texto acadêmico? Trata-se de uma redução muito signifi- cativa da quantidade de palavras para informar a mesma mensagem e do estabelecimento de relações específicas entre elas. O resumo não pode distorcer as informações apresentadas no texto-base e não deve conter ideias subjetivas. Para perceber um pouco mais como funcionam as habilidades exi- gidas ao resumir um texto, leia o trecho a seguir, que foi retirado de uma notícia sobre a descoberta do desenho de um gato gigante de 37 metros no deserto de Nazca (Peru). O desenho de um gato gigante em posição de descanso foi descoberto no deserto de Nazca, no Peru. A região, chamada de Linhas de Nazca e considerada como um patri- mônio da humanidade pela Unesco, é conhecida por abrigar vários geoglifos (grandes desenhos feitos no solo) com mais de dois mil anos de idade. Como um gato gigante passou tanto tempo escondido? É porque não havia de onde enxergá-lo. A imagem veio ao conhecimento do público por conta da construção de uma plataforma de observação na região, concedendo o ângulo necessário para que se observe a imagem. Fonte: Desenho..., 2020. Esse trecho trata-se de um texto informativo, cuja função de lingua- gem predominante é a referencial, o que quer dizer que não há figu- ras de linguagem ou vocabulário empregado com a intenção de gerar duplas interpretações, humor ou qualquer outro sentido ligado à co- notação da linguagem. É uma descoberta relatada em um caderno de divulgação científica de um jornal de circulação diária. Portanto, as es- colhas de palavras não podem ser técnicas; precisam ser mais diretas e próximas ao vocabulário do leitor cotidiano. É possível que, ao longo de seus estudos, você seja chamado a elaborar o que muitos chamam de resumo crítico. Caso haja essa orientação, lembre-se de que o resumo crítico pode ser encaixado nas características de uma resenha. Atenção Gêneros de escrita acadêmica 105 Observadas essas características, para fazer um resumo simples apenas desse trecho do texto, vamos começar pelas perguntas 4 : • Onde o texto foi publicado ou qual é a fonte? O texto foi publi- cado no site de notícias UOL em 19 de outubro de 2020. • Qual é o tema ou a informação principal do texto? A desco- berta do desenho de um gato gigante em posição de descanso no deserto de Nazca, no Peru. • Quais são os elementos ou as informações paralelas à princi- pal e que são relevantes para o entendimento da situação? A informação paralela mais importante é de que a imagem do gato não era vista anteriormente, porque não havia distanciamento e ângulo apropriados para observação, porém foi encontrada gra- ças à construção de uma plataforma. Além disso, a região é consi- derada patrimônio da humanidade pela Unesco e já é conhecida por conter outros geoglifos. Vamos elaborar a informação resumida? No dia 19/10/2020, o site de notícias UOL divulgou a descoberta de uma imagem de um gato gigante, encontrada no deserto de Naszca (Peru), já conhecida pela existência de outros geoglifos e considerada patrimônio da humanidade pela Unesco. A observa- ção foi possível graças à construção de uma plataforma de observação naquela região. Esse é um exemplo de como podemos resumir sem distorcer ou acrescentar informações a textos que lemos no dia a dia. Lembre-se de que, no resumo, não se pode fazer telefone sem fio. Como pudemos observar, o resumo de um texto informativo obe- dece a alguns itens básicos, que são verificados também nos resumos de outros textos, como nos artigos acadêmicos, mas de maneira mais complexa. Vamos juntos analisar um exemplo? ANÁLISE COMPARATIVA DOS CONCEITOS ESPORTE EDUCACIONAL E ESPORTE DA ESCOLA Quéfren Weld Cardozo Nogueira, João Paulo de Jesus Mendonça Resumo Este trabalho executa uma análise comparativa dos termos “esporte educacional” e “esporte da escola” [1]. De modo geral, ambos os conceitos podem ser tomados como equivalentes, (Continua) Para conferir a notícia na íntegra e responder às perguntas, acesse: https://noticias. uol.com.br/internacional/ ultimas-noticias/2020/10/19/ desenho-de-gato-com-37-me- tros-e-2-mil-anos-e-descober- to-em-deserto-no-peru.htm. Acesso em: 29 dez. 2020. 4 Telefone sem fio é o nome de uma brincadeira feita em um grupo razoavelmente grande de pessoas. A primeira pessoa fala uma frase ao ouvido da pessoa imediatamente mais próxima e assim sucessivamente. Em geral, a frase que chega até a última pessoa é muito diferente da- quela que foi dita pelo primeiro participante. Curiosidade https://noticias.uol.com.br/internacional/ultimas-noticias/2020/10/19/desenho-de-gato-com-37-metros https://noticias.uol.com.br/internacional/ultimas-noticias/2020/10/19/desenho-de-gato-com-37-metroshttps://noticias.uol.com.br/internacional/ultimas-noticias/2020/10/19/desenho-de-gato-com-37-metros https://noticias.uol.com.br/internacional/ultimas-noticias/2020/10/19/desenho-de-gato-com-37-metros https://noticias.uol.com.br/internacional/ultimas-noticias/2020/10/19/desenho-de-gato-com-37-metros https://noticias.uol.com.br/internacional/ultimas-noticias/2020/10/19/desenho-de-gato-com-37-metros 106 Leitura e escrita no ensino superior todavia, enquanto o conceito de esporte educacional é usado em documentos legais como a Política Nacional de Esporte, o conceito de esporte da escola tem sido funda- mental para intervenções pedagógicas pautadas em perspectivas críticas da Educação Física [2]. O texto busca distinguir conceitos e suas ligações com a prática pedagógica e intervenções políticas no esporte [3]. Palavras-chave: esporte, educação física, conceito. Fonte: Nogueira e Mendonça, 2015, grifos do original. Observamos na leitura desse resumo a indicação do que devemos esperar encontrar ao longo do texto do artigo. Em [1] temos a contex- tualização do tema: a abordagem que diferencia esporte educacional e esporte da escola. Em [2] temos a problematização: por que é im- portante e necessário fazer essa discussão? O resumo nos mostra que são conceitos diferentes, embora sejam tomados como sinônimos e essa discussão será a centralidade do artigo. Já em [3], temos a indica- ção dos objetivos que o texto do artigo pretende atingir: distinguir os dois conceitos e estabelecer sua ligação com a prática pedagógica. É verdade que, dependendo da complexidade do texto a ser sinteti- zado, o resumo apresenta outras partes, como podemos ver no próxi- mo exemplo, que é o resumo de uma dissertação de mestrado. Resumo A viola caipira é um instrumento com forte identificação com a cultura caipira e com sua sonoridade. As músicas caipiras tocadas com viola são conhecidas como modas de violas. O interior do estado de São Paulo (Brasil) possui ligação histórica com a cultura caipira, fruto da integração de variadas culturas em contato com a população nativa Tupi. Uma cultura relacionada a modos de vida no campo, com um dialeto característico e uma sonoridade musical própria. Ao longo do século XX, com as transformações da vida e do trabalho no campo e com a urbanização do estado de São Paulo, imaginou-se a crise das bases da cultura caipira frente à cidade [1]. Ao mesmo tempo, com o desenvolvimento da indústria fonográfica e do rádio a partir do início daquele século, as modas de viola e o gênero de música caipira se tornaram muito populares por todo o país. Em um cenário hoje em que o estado é quase todo urbanizado, com as transformações da vida no campo e com os fluxos globais de comunicação via smartphones, há a continuidade da cultura caipira como referência aos sujeitos e seus processos de subjetivação [2]. (Continua) Gêneros de escrita acadêmica 107 Para pensar esses processos, neste trabalho abordo as emoções e imaginários mobili- zados nas modas de viola entoadas pelo Grupo de Viola Morena da Fronteira, da cidade de Socorro, SP, com quem tive contato entre 2018 e 2020 – explicitando a materialida- de da cultura caipira na relação criada entre violas, violeiros e suas modas [3]. Palavras-chave: caipira; cultura caipira; globalização; modas de viola; música brasileira; viola caipira. Fonte: Salgado, 2020, grifos do original. A pesquisa realizada foi apresentada em três partes diferentes nesse resumo. Em [1] percebemos a ambientação do tema: a viola cai- pira, seu surgimento, consolidação e representatividade identitária em um grupo social. Em [2] apresenta-se a problematização da pesquisa: como a viola caipira encontra e mantém seu lugar no processo de urba- nização e de mudanças da indústria fonográfica? Por fim, em [3] há as indicações do grupo pesquisado pelo autor da dissertação, do período compreendido pela pesquisa e da explicitação das constatações. Além de ser mais longo que o primeiro, o segundo exemplo apresenta mais informações relacionadas à complexidade da pesquisa. Ainda uma observação importantíssima sobre o uso de primeira ou terceira pessoa em textos acadêmicos: no exemplo do primeiro resumo, temos a impessoalidade, isto é, não há manifestação ou apa- recimento dos pesquisadores; já no segundo exemplo, é possível iden- tificar que o pesquisador empregou a primeira pessoa do singular. Em razão da explicitação desses dois exemplos, reiteramos que a escolha da pessoa depende da participação ou observação do pesquisador e da negociação entre orientador e orientando no processo de desenvolvi- mento da pesquisa e do relato. Que tal um exercício para compreender a elaboração das partes de um resumo, dependendo do grau de complexidade do texto a ser sin- tetizado? Uma sugestão é abrir um artigo de pesquisa publicado em um periódico de divulgação on-line. Depois de lê-lo, tente elaborar um resumo para o texto. Em seguida, compare a sua elaboração com o resumo oficial e veja se ficou parecido. Se quiser ou precisar fazer um exercício que leve menos tempo, leia um texto mais curto. Para isso, 108 Leitura e escrita no ensino superior que tal acessar uma divulgação de descoberta científica, como aquela que empregamos como exemplo no início desta seção, sobre o gato gigante localizado no deserto do Peru? 6 Esse exercício é bem impor- tante para que você perceba as habilidades que está desenvolvendo em leitura ao não distorça os fatos observados. Depois de tratarmos da síntese que pode expressar os conteúdos de um texto maior, vamos abordar algumas características que são es- senciais para que você leia e interaja melhor com artigos de divulgação científica ou acadêmicos. Na próxima seção, convidamos você a obser- var as características mais gerais e mais específicas desse gênero de texto, bem como seu ambiente de circulação. 5.5 Artigo Vídeo “Quando eu refletia sobre meus futuros romances, sempre gostava de andar pelo quarto, de um lado para outro. Aliás, para mim, sempre foi mais agradável pensar em minhas obras e sonhar sobre como eu as escrevia, do que escrevê-las de fato e, palavra, não era por preguiça. Mas, então, por que seria?” (DOSTOIÉVSKI, 2003, p. 26) No trecho utilizado como epígrafe, o narrador do livro se coloca uma questão que frequentemente enfrentamos quando se trata de produ- zir conteúdo: a diferença entre como imaginamos algo que produzimos e como o resultado realmente sai. Não é incomum que, ao longo de seus estudos, isso aconteça com alguma frequência. Mas não desani- me e não perca a curiosidade e o entusiasmo pelo conhecimento. Para além disso, o título desta seção restringe-se apenas ao nome artigo, sem especificações. Isso porque o artigo pode ser de opinião, acadêmico ou de divulgação científica. Na verdade, essas especifica- ções dizem mais respeito ao ambiente de circulação desse gênero de texto do que propriamente ao seu formato ou maneira de composição. Por isso, sempre é importante manter a informação geral de que existe um conteúdo a ser tratado; o autor escolhe um ponto de vista sobre esse conteúdo e passa a trabalhar considerando esse aspecto. O trecho a seguir pode nos ajudar a identificar partes importan- tes de um artigo e como transformar conteúdos utilizados em dife- rentes abordagens, por pesquisadores e linhas de trabalho também diversas, em texto próprio, autoral e acessível à leitura. Vamos ana- lisá-lo juntos? Textos assim podem ser encon- trados em cadernos específicos de jornais, como Folha de São Paulo, revista Galileu, jornal Zero Hora, entre outros. 6 Gêneros de escrita acadêmica 109 A humanidade vive um momento crítico: Os próximos 10 anos serão decisivos para evitar que o planeta se aqueça além do “ponto de não retorno”. Grande parte da huma- nidade ainda vive na pobreza e a perda dramática da biodiversidade, a contaminação das águas, do ar e das terras agricultáveis põem em xeque a capacidade da natureza de continuar fornecendo materiais e serviçosdos quais a humanidade depende. A Co- vid-19 fez um milhão de vítimas no mundo em poucos meses, e seu surgimento está diretamente relacionado à relação deturpada que temos com a natureza. É difícil pensar em um assunto que seja de maior urgência existencial para a humanidade do que a emergência ambiental. Por outro lado, a hostilidade em relação à ciência em geral, e à ciência ambiental em particular, coloca em evidência a necessidade de formar cidadãs e cidadãos conscien- tes das suas responsabilidades individuais e coletivas. Esse desafio somente pode ser encarado com o devido rigor através de pesquisa científica interdisciplinar e de ponta. Fonte: Garraffoni et al., 2020. No primeiro parágrafo, temos o que poderia ser a abertura de qual- quer artigo científico o qual coloque em questão as relações estabe- lecidas entre homem e natureza, as consequências advindas dessa interação e a constatação de que a Covid-19 é uma consequência da relação distorcida resultante desse contato. Isso quer dizer que há um cenário identificado, especificado e descrito nesse início de texto, com o cuidado de empregar conhecimento sobre temas de maneira a indi- car o viés de trabalho que será dado ao texto na sequência. No segundo parágrafo, para além da identificação das relações des- critas no primeiro, bem como a indicação de suas consequências, surge a abordagem de quais são os obstáculos e caminhos para a modifi- cação do cenário. Note que esses parágrafos poderiam aparecer em diferentes artigos os quais se referissem a estudos da relação humani- dade-natureza, perpassada pela ciência e pela educação. Esse exemplo é de um artigo que mobiliza a opinião fundamentada, ou o ponto de vista justificado de alguém sobre um tema específico. No entanto, ao longo de sua formação acadêmica, além de um bom leitor de textos publicados em diferentes locais, muitas vezes você será chamado a ler e produzir artigos científicos. Por isso, a seguir, vamos detalhar alguns aspectos importantes para a leitura e a elaboração des- se gênero de texto acadêmico. A Revista Lancet é uma revista com publicações semanais sobre saúde, mais precisamente sobre medicina, fundada no Reino Unido em 1823. Trata-se de uma das revistas mais antigas do mundo nessa área de publicação. Curiosidade 110 Leitura e escrita no ensino superior 5.5.1 Artigo científico Na primeira parte, esse gênero apresenta o título, o resumo e as palavras-chaves. O número de palavras-chaves varia em geral entre três e cinco, e o número de palavras determinadas para a elaboração do resumo também precisa ser verificado de acordo com o local de publicação ou a determinação de quem estabelece as regras para sua elaboração. Sobre a versão do resumo para outras línguas, também é uma questão a ser verificada considerando o local de publicação. Em geral, para artigos a serem produzidos em disciplinas de curso supe- rior, exige-se apenas o resumo em língua portuguesa. A introdução pode apresentar uma epígrafe; não é algo obriga- tório, mas, se for bem empregada, é um trecho de texto que dialoga bem com a proposição do problema elaborada a seguir. Depois, ela apresenta detalhes da problematização proposta no resumo e situa o leitor com relação ao recorte escolhido. Em seguida, é feita uma funda- mentação teórica do assunto tratado no artigo, na qual o autor deve apresentar brevemente alguns conceitos da área que serão usados no seu artigo, empregando outras pesquisas a respeito do tema, fazendo citações e relações entre conteúdos semelhantes ou diferentes. Essa parte pode aparecer dentro da introdução ou em uma nova seção do artigo, dependendo das regras do local de publicação. Na próxima parte do artigo entra a metodologia, na qual aparecem os suportes teóricos escolhidos para explicar a problematização e in- dicar as possibilidades de entendimento do tema. Por exemplo, uma pesquisa pode ser voltada à revisão bibliográfica, comparando as defi- nições e as aplicações dos conceitos em estudos da área. Por ser uma técnica bastante conhecida, não é preciso fazer muitas explicações so- bre o que é uma revisão bibliográfica, mas caso fosse uma metodologia diferente ou pouco conhecida, deveria haver um espaço para explicá-la. Após a metodologia, são descritos os resultados encontrados com base nos dados e informações coletados. Além disso, pode ser feita uma seção de discussão, na qual as conclusões da pesquisa são com- paradas às informações e aos resultados de outros estudos, por se- melhança ou diferença. Nessa parte, costumam aparecer citações de outros textos para que haja uma conversa entre as pesquisas. Observe que quando são feitas referências a outros autores por citação direta Gêneros de escrita acadêmica 111 ou indireta, há sempre uma relação com o restante do texto, uma expli- cação, uma análise, ou uma continuidade de raciocínio. Então, chegamos às considerações finais, que é reservada para se fazer um balanço do que foi apresentado no corpo do artigo, mostrar possibilidades de novas aplicações para a mesma discussão, ou ain- da apontamentos sobre o que pode acontecer com base no que já foi discutido. As referências consultadas costumam aparecer no final do artigo, em ordem alfabética por autor 7 . Em geral, quando há mais de uma obra citada do mesmo autor, elas são apresentadas em ordem cronológica. Agora, vamos observar um esquema que resume a estrutura do ar- tigo científico, com a indicação do que deve haver em cada parte. Quadro 4 Estrutura do artigo científico Título Deve conter uma síntese que oriente o leitor sobre qual é o tema tratado no texto. Resumo É o espaço reservado para sintetizar o tema, a base teórica, o problema, a meto- dologia, os objetivos e os resultados. É preciso obedecer às orientações sobre o número de palavras. Após o resumo, devem ser colocadas de três a cinco pala- vras-chaves. Introdução e fundamentação teórica A introdução apresenta detalhes da problematização proposta e situa o leitor. Na fundamentação teórica, o autor deve apresentar brevemente alguns conceitos da área que serão usados no se artigo. Algumas publicações pedem que o autor separe a fundamentação da introdução e apresente ambas em seções diferentes, mas isso não é uma regra, variando de acordo com o local onde o artigo será publicado. Metodologia Trata-se do jeito como foi realizado o processo de pesquisa. É nesse ponto do tex- to que se deve descrever a amostra, os participantes, o campo em que a pesquisa se inscreve e como foi feita a coleta e a análise de dados. Resultados e discussão Para elaborar bem essa parte do texto, é importante considerar o que foi encon- trado com base nos dados, o que esses resultados representam e as possíveis análises de cenário com base neles. Na discussão, os resultados são comparados com outros estudos semelhantes que tratam do mesmo assunto. Considerações finais Na parte conclusiva do texto, é importante retomar o problema, os objetivos, a metodologia e os resultados, destacando a contribuição do estudo realizado para a área de pesquisa. É o momento também de levantar os pontos fortes e fracos da realização do trabalho e de levantar temas para a continuidade, em estudos posteriores. Referências É preciso manter o padrão, confirmando datas e nomes, além de verificar se tudo o que foi citado no texto aparece nas referências e se tudo o que está nas refe- rências foi, de alguma maneira, utilizado no texto. Fonte: Elaborado pela autora. Quando há citação direta de um trecho de mais de quatro linhas, ela é feita com uma formatação diferenciada: a fonte é menor e há um distanciamento maior da margem esquerda. Saiba mais Você pode verificar isso nas referências no final de cada capítulo deste livro. 7 112 Leitura e escrita no ensino superior Com base no que vimos nesta seção, podemos constatar que existe um formato geral para elaborar artigos, mas existem formatos especí- ficos solicitados pelos diferentes periódicos em que podemos publicaresses textos. Além disso, caso seja solicitada a elaboração de um artigo para alguma disciplina, certifique-se sempre a respeito de quais são as expectativas e busque os intertextos e contextos mais didáticos para fazê-lo. É um caminho de ampliação do conhecimento que a interação com artigos pode nos proporcionar continuamente. Os trechos a seguir são exemplos de textos que foram estudados neste capítulo. Complete a tabela conforme a solicitação. Atividade 4 Trecho de texto Gênero ao qual o texto pode pertencer Características que identifi- cam o gênero do texto “Dia da Consciência Zumbi dos Palmares não lutava para ter vantagens pessoais, conquistar territórios e explorar minas de ouro. Queria a libertação de todos irmãos e irmãs. Inclusão social, respeito, dignidade” (MONJA COEN, 2020) . “Para analisar essa questão, a pesquisa tem como objetivo mapear os atores sociais envolvidos, conhecer os espaços políticos relevantes e compreender as articulações e estratégias entre os entes no campo político que permitem direcionamentos voltados para o modelo da abstinência” (BARROSO, 2020). “Muitas foram as lições aprendidas com a experiência de ter alcançado, com a vacinação contra rubéola, mais de 67 milhões de homens e mulheres no espaço de 20 semanas de trabalho, destacando-se: a enorme capacidade do SUS, por meio de seus gestores e das equipes técnicas, de se organizar e dar conta dessa gigantesca empreitada, mesmo em condições adversas: período concomitante às eleições munici- pais; pouco tempo para planejar e executar a campanha; recursos humanos insuficientes; resistência dos homens em serem vacinados; grande extensão territorial; diversidade sociocultural; dentre outras questões” (BRASIL, 2009). É muito bom se habituar a ler publicações como Galileu e National Geografic Brasil para ver como são publicadas descobertas científicas, qual metodologia é empregada e quais são as falas de especialistas. É um jeito de notar como temas técnicos são apresentados de maneira didática para o grande público. Saiba mais Gêneros de escrita acadêmica 113 CONSIDERAÇÕES FINAIS Neste capítulo, direta e objetivamente, fizemos escolhas que nos orientam a elaborar textos acadêmicos, como resenhas, relatórios, resu- mos e artigos. É importante ter em mente que conhecer bem esses textos desenvolve em nós melhores habilidades de leitura e escrita, que não ser- virão apenas para o universo acadêmico, mas também para o mundo do trabalho e, em maior abrangência, para nos comunicarmos melhor. Man- tenha sempre em mente que, conforme destacamos ao longo de toda a abordagem deste capítulo, apesar de existirem variações de orientação para elaborar todos os tipos de texto solicitados no mundo acadêmico, são as características gerais que identificam o gênero. REFERÊNCIAS BARROSO, P. F. Comunidades terapêuticas como política de estado: uma análise sobre a inclusão deste modelo de cuidado nas políticas sobre drogas no Rio Grande do Sul. 2020. Tese (Doutorado em Antropologia Social) – Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre. Disponível em: https://lume. ufrgs.br/bitstream/handle/10183/213011/001115874.pdf?sequence=1&isAllowed=y. Acesso em: 29 dez. 2020. BAUMAN, Z. Estranhos à nossa porta. Rio de Janeiro: Zahar, 2017. BRASIL. Ministério da Saúde. Brasil livre da rubéola: campanha nacional de vacinação para eliminação da rubéola, Brasil, 2008. Brasília: Ministério da Saúde, 2009. Disponível em: http://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/brasil_livre_rubeola_relatorio.pdf. Acesso em: 29 dez. 2020. CORTELLA, M. S. Qual é a tua obra? Petrópolis: Vozes, 2017. DESENHO de gato com 37 metros e 2 mil anos é descoberto em deserto no Peru. UOL Notícias, 19 out. 2020. Disponível em: https://noticias.uol.com.br/internacional/ultimas- noticias/2020/10/19/desenho-de-gato-com-37-metros-e-2-mil-anos-e-descoberto-em- deserto-no-peru.htm. Acesso em: 28 dez. 2020. DOSTOIÉVSKI, F. Humilhados e ofendidos. São Paulo: Nova Alexandria, 2003. GARRAFFONI, A. R. S. et al. Formação profissional para atuar em ciência, tecnologia e manejo ambiental no Antropoceno – a contribuição da Unicamp. Jornal da Unicamp, 4 nov. 2020. Disponível em: https://www.unicamp.br/unicamp/ju/artigos/ambiente-e-sociedade/ formacao-profissional-para-atuar-em-ciencia-tecnologia-e-manejo. Acesso em: 29 dez. 2020. GINZBURG. C. O queijo e os vermes. São Paulo: Companhia das Letras, 2006. LAITANO, C. Solo. Zero Hora, ano 57, n. 19.869, 16 nov. 2020. MONJA COEN. Dia da Consciência. GaúchaZH, 19 nov. 2020. Disponível em: https:// gauchazh.clicrbs.com.br/colunistas/monja-coen/noticia/2020/11/dia-da-consciencia- ckhnkam7y003t016gtbs51ht3.html. Acesso em: 3 dez. 2020. NOGUEIRA, Q. W.; MENDONÇA, J. P. de J. Análise comparativa dos conceitos esporte educacional e esporte da escola. Cadernos Brasileiros de Educação Física, Esporte e Lazer, Pelotas, v. 1, n. 1, 2015. Disponível em: https://periodicos.ufpel.edu.br/ojs2/index.php/ CEFEL/article/view/4266. 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Guia de escrita: como conceber um texto com clareza, precisão e elegância. São Paulo: Contexto, 2016. VERISSIMO, É. Israel em abril. São Paulo: Companhia das Letras, 2002. SALGADO, L. R. A viola e o caipira no século XXI: o instrumento musical e sua relação nos processos de subjetivação caipira. 2020. Dissertação (Mestrado em Antropologia Social) – Instituto de Filosofia e Ciências Humanas, Universidade Federal do Rio Grande do Sul, Porto Alegre. Disponível em: https://lume.ufrgs.br/bitstream/handle/10183/213055/001116918. pdf?sequence=1&isAllowed=y. Acesso em: 29 dez. 2020. GABARITO 1. Para elaborar uma resenha adequada, considere que você precisa resumir as ideias principais do objeto a ser resenhado, relacioná-las com outras ideias e objetos pareci- dos no mundo e estender sua análise para convencer seu interlocutor de que a série ou o filme escolhido “vale o ingresso”, ou seja, vale o tempo dedicado a assistir. 2. Podem ser aceitas todas as respostas que se baseiem, por exemplo, na estrutura apresentada na seção específica de elaboração para relatório. 3. O texto faz parte de uma etapa introdutória do relatório, pois apresenta o problema ou a situação, com trechos como “A migração em massa não é de forma alguma um fenômeno recente”. Isso faz com que se possa localizar a problematização que deu origem ao texto: existe um processo migratório, ele não é novo e representa alguma preocupação evidente para os nossos dias. Ademais, o trecho apresenta um ponto de vista sob o qual o problema será tratado e os números serão apresentados: “Além de tudo isso, contudo, hoje suportamos as consequências da profunda e aparentemente insolúvel desestabilizaçãodo Oriente Médio, na esteira das políticas e aventuras mili- tares das potências ocidentais, estupidamente míopes e reconhecidamente fracassa- das”. Isso fica evidente nesse último período do texto, em que as políticas de migração são caracterizadas como míopes. 4. Gênero a que o texto pode pertencer Características que identificam o gênero do texto Pode ser resenha ou artigo É um trecho geral de apresentação de texto, mas que já identifica o tema. Por isso, pode fazer par- te de uma resenha ou de um artigo de opinião ou acadêmico. Resumo Essa estrutura de texto indica os objetivos do texto, algo que deve estar explícito em resumos. Relatório Essa é a parte das lições aprendidas com base na descrição da situação ou pesquisa observada. https://lume.ufrgs.br/bitstream/handle/10183/213055/001116918.pdf?sequence=1&isAllowed=y https://lume.ufrgs.br/bitstream/handle/10183/213055/001116918.pdf?sequence=1&isAllowed=y Leitura e escrita no ensino superior Cleuza Cecato Código Logístico 59065 Fundação Biblioteca Nacional ISBN 978-85-387-6565-3 9 7 8 8 5 3 8 7 6 5 6 5 3 Página em branco Página em branco