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□s escritos de UJíliism James figuram entre os clássicas da psicologia e da filosofia do século XX. Nenhum outro pensador demonsfroii tamanho talento v- T־־- !.· *1- —־ . J ■. ; - para fundir uma mente ,,científica" com a inquietação espiritual. R vontade de crer é para muitos a maior expressão dessa capacidade de fusão e se afirmou no decorrer do tempo como a mais completa e coerente afirmação da necessidade da fé na era moderna. Neste ensaio, UUiiiiam James procede à união de sua cienda e de sua filosofia numa afirmação positiva da fé religiosa. Anscoíeles e o logos Barbara Cassin Aristóteles no século XX Ennco Berti Filosofia da Ciência, 2 a ed Rubem Alves A metafora vivo Paul Ricoeur 0 niilismo Franco Volpi O oficio do filósofo estóico Rachel Gazolla A ordem do discurso, 6* ed. Michel Foucault Que é a filosofia amiga Pierre Hadot As razOes de Aristóteles Ennco Bem Saber dos antigos terapia para os tempos atuais Giovanni Reale Sete liçóes sobre o ser Jacques Maritain Transformação da filosofia, vol. 1 Karl-Ouo Apel Transformação da filosofia, vol 2 Karl-Ouo Apel A vontade de crer William James L E I T U R A S 9 0 FILOSÓFICAS WILLIAM JAMES y 4 Vont&òe h Cm Tradução: Cecília Camargo Buruiíoífi r Título original: The Wiü to Believe Conferência dirigida aos grêmios filosóficos da Universidade de Yale e Brown University. publicado em 1896. Diagramação Ronaldo Hideo Inaue Preparação Maurício Balthazar Leal Revisão Renato Rocha Edições Loyola Rua 1822 n° 347 - Ipiranga 04216-000 São Paulo, SP Caixa Postal 42.335 - 04299-970 - São Paulo, SP c£ : (0**11) 6914-1922 (0**11) 6163-4275 Home page e vendas: www.loyola.com.br Editorial: loyola@ loyola.com.br Vendas: vendas@loyola.com.br Todos os direitos reservados. Nenhuma parte desta obra pode ser reproduzida ou transmitida por qualquer forma e/ou quaisquer meios (eletrônico ou mecânico, incluindo fotocópia e gravação) ou arquivada em qualquer sistema ou banco de dados sem permissão escrita da Editora. ISBN: 85-15-02252-4 © EDIÇÕES LOYOLA, São Paulo, Brasil, 2001 http://www.loyola.com.br mailto:vendas@loyola.com.br y4 Vontade òe « - N o recentemente publicado Life, de Leslie Stephen, sobre seu irmão Fitz-James, há o relato de um incidente ocorrido numa escola que este último frequentou quando menino. O professor, um certo Mr. Guest, costumava conversar com seus alunos nos seguintes termos: “Gumey, qual é a dife rença entre justificação e santificação? — Stephen, prove a onipotência de Deus!" etc. Em meio ao nos so livre-pensar e à nossa indiferença “harvardianos", somos inclinados a imaginar que aqui, nesta boa e velha universidade ortodoxa, as conversas continuam a ser um pouco dessa ordem; e, para mostrar a vocês que nós, em Harvard, não perdemos todo o interesse por esses temas vitais, trouxe comigo esta noite algo como um sermão sobre a justificação pela fé para ser lido — ou melhor, um ensaio sobre a justificação da fé, uma defesa do nosso direito a adotar uma atitude de crença em questões religiosas, mesmo que nosso W illiam James intelecto meramente lógico talvez não tenha sido compelido a isso. A vontade de crer, por conseguinte, é o título deste trabalho. Há muito tenho defendido diante de meus alu nos a licitude da íé voluntariamente adotada; porém, assim que eles se tomam íntensamente imbuídos do espírito lógico, têm como regra recusar-se a admitir que minha argumentação seja filosoficamente lícita, mesmo que, na verdade, tenham estado todo o tem po pessoalmente repletos, eles próprios, de uma ou outra fé. Eu, no entanto, mantenho-me sempre tão profundamente convencido de que minha posição está correta, que este convite me pareceu uma boa ocasião para tornar minhas afirmações mais claras. Talvez suas mentes estejam mais abenas do que aque las com que tive de lidar até aqui. Serei tão pouco técnico quanto possível, embora se!a necessário co meçar estabelecendo algumas distinções técnicas que nos ajudarão no final. Vamos dar o nome de hipótese a qualquer coisa que possa ser proposta à nossa crença; e, assim 8 A Vontade de Crer como os eletricistas falam de fios vivos e mortos, falaremos das hipóteses como vivas ou mortas. Uma hipótese viva é a que aparece como uma possibili dade real para a pessoa a quem é proposta. Se eu lhes pedir para acreditar no Mahdi1, a idéia não criará nenhuma conexão elétrica com a natureza de vocês — ela se recusa a cintilar com qualquer cre dibilidade que seja. Como hipótese, é completa mente morta. Para um árabe, porém (mesmo que ele 1. (N. do R.] A crença no maftífi parece ter-se originado da con fusão resultante das lutas religiosas e políticas ocorridas nos primór dios do islamismo, nos séculos VII e VIII. Na escatologia islâmica, o mahdi (em árabe, “aquele que é guia do por Deus") é o libertador messiânico que virá no fim dos tempos para restabelecer a justiça e a equidade no mundo, restaurar a verda deira religião e a pureza dos costumes e anunciar uma breve idade de ouro, que durará entre sete e nove anos antes do fim do mundo. A doutrina do mahdi não consta do Alcorão nem pode ser defi nida de nenhum hadith (sentença de Maomé). Os teólogos sunitas ortodoxos põem em dúvida essa crença, que no entanto é aceita pe los xiitas. Nos tempos de cnse, a crença tende a ganhar força entre os fiéis. Uma vez que o mahdi é tido como restaurador do poder políti co e da ortodoxia religiosa islâmica, o título costuma ser reivindica do pelos líderes revolucionários da comunidade islâmica ,Assim ocor reu, por exemplo, com Ubayd Allah, fundador da dinastia dos fatimidas (909); Moharr.ed ibn Tumart, que fundou no Marrocos, no século XII, o império aimóada; eMnhamed Ahmad, mahdi do Sudão, que se revoltou em 1881 contra a administração egípcia, 9 William James não seja um dos seguidores de Mahdi), a hipótese está entre as possibilidades da mente: ela é viva. Isso mostra que o caráter vivo ou morto de uma hipó tese não é uma propriedade intrínseca, mas está re lacionado ao pensador individual. É medido pela dis posição do indivíduo para agir. O máximo de vida em uma hipótese significa uma disposição irre vogável para agir. Na prática, isso representa crença; mas há alguma tendência de crença sempre que exis te alguma disposição a agir. Em seguida, vamos chamar de opção a decisão entre duas hipóteses, As opções podem ser de vários tipos: 1) vivos ou mortos; 2) forçosas ou evitáveis; 3) prementes ou triviais; e, para nossos propósitos, pode mos chamar uma opção de genuína quando ela é do tipo vivo, forçoso e premente. 1. A opção viva é aquela em que ambas as hi póteses são vivas. Se lhes digo: “Sejam teosofístas ou sejam muçulmanos”, esta possivelmente é uma opção morta, porque é provável que, para vocês, ne nhuma das duas hipóteses seja viva. Mas, se eu digo: “Sejam agnósticos ou sejam cristãos’1, a situação será diferente: pela formação que vocês têm, cada uma dessas hipóteses tem algum apelo, mesmo que pe queno, à sua crença. 10 A Vontade de Crer 2. Em seguida, se lhes digo: “Escolham entre sair com o guarda-chuva ou sem ele", eu não lhes ofere ço uma opção genuína, pois ela não é forçosa. Vocês podem evitá-la facilmente decidindo não sair. De maneira semelhante, se eu digo: “Amem-me ou odeiem-me”, “Chamem minha teoria de verdadeira ou chamem-na de falsa", sua opção é evitável. Vocês podem permanecer indiferentes a mim, sem me amar nem me odiar, e podem recusar-se a fazer qualquer julgamento a respeito de minha teoria. Porém, se digo: “Aceitem esta verdade ou passem sem ela", eu lhes apresento uma opção forçosa, pois não há ne nhuma posição fora das alternativas. Todo dilema ba seado numa disjunção lógica completa, sem nenhu ma possibilidade de não escolher, é uma opção des se tipo forçoso. 3. Por fim, se eu fosse o doutor Nansen e lhes propusesse participar de minha expedição ao Pólo Norte, sua opção seria premente, pois essa provavel mente seria a única oportunidade semelhante, e sua escolha nesse momento o excluiria de vez da imor talidade proporcionada pela experiência ou, ao con trário, poria pelo menos uma chance disso em suas mãos. Aquele que se recusa a abraçar uma oportu nidade única perde o prêmio tão certameme como se tivesse tentado e falhado. Per contra , a opção é tri- 11 William James vial quando a oportunidade não é única, quando o que está em jogo é insignificante, ou quando a de cisão é reversível se, posteriormente, se revela equi vocada. Tais opções triviais são abundantes na vida científica. Um químico julga uma hipótese viva o suficiente para que passe um ano verificando-a: ele acredita nela a esse ponto. Porém, se suas experiên cias se mostram inconclusivas em algum aspecto, ele está redimido de sua perda de tempo, nenhum dano essencial foi causado. Nossa discussão será facilitada se mantivermos essas distinções em mente. A próxima questão a considerar é a própria psico logia da opinião humana. Quando olhamos certos fa tos, é como se nossa natureza passional e volitiva se encontrasse na raiz de todas as nossas convicções. Quando olhamos para outros, parece-nos que eles não poderiam fazer mais nada após o intelecto ter dado seu veredicto. Vamos examinar este último caso primeiro. Não parece despropositado, diante disso, supor que nossas opiniões possam ser modificáveis de acor- 12 A Vontade de Crer do com a nossa vontade? Pode nossa vontade ajudar ou atrapalhar o intelecto em suas percepções da ver dade? Podemos nós, pelo simples desejo, acreditar que a existência de Abraham Lincoln é um mito e que seus retratos na McClure's M agazine são de algu ma outra pessoa? Podemos nós, por qualquer esfor ço da vontade, ou por qualquer força do desejo de que isso seja verdade, acreditar que estamos bem quando nos encontramos na cama gemendo de reu matismo, ou sentir-nos seguros de que a soma das duas notas de 1 dólar que temos no bolso deve ser 100 dólares? Podemos d izer qualquer uma dessas coisas, mas nos é absolutamente impossível acredi tar nelas; e exatamente dessas coisas é constituída toda a tessitura das verdades em que acreditamos — fatos estabelecidos, imediatos ou remotos, como dis se Hume, e relações entre idéias, que existem ou não para nós na medida em que as vemos assim, e que, se não existirem, não poderão ser introduzidas por nenhuma ação de nossa parte. Nos Pensamentos de Pascal, há uma célebre passa gem conhecida na literatura como a aposta de Pascal. Nela, ele tenta nos convencer a adotar o cristianismo argumentando como se nossa preocupação com a ver dade. se assemelhasse a nossa preocupação com as apostas num jogo de azar. Traduzidas livremente, suas 13 William James palavras são as seguintes: é preciso acreditar ou nào acreditar que Deus existe — o que você fará? Sua ra zão humana não pode dizer. Entre você e a natureza das coisas está acontecendo um jogo que, no dia do juízo» dará cara ou coroa. Pese quais seriam seus ga nhos e suas perdas se você apostasse tudo o que tem na cara, ou na existência de Deus: se você ganhar nesse caso, o prêmio será a beatitude eterna; se per der, não perderá absolutamente nada. Se houvesse uma infinidade de chances e apenas uma para Deus nessa aposta, ainda assim seria aconselhável apostar tudo em Deus, pois, embora certamente você se ar riscasse a uma perda finita por esse procedimento, qualquer perda finita é razoável, mesmo uma perda certa é razoável, caso haja uma mínima possibilida de de ganho infinito. Vá em frente, então, e use água benta, encomende missas; a crença virá e estupidi- ficará seus escrúpulos — Cela \o u s fe ra croire et vous abêtira. Por que não? No fim das contas, o que você tem a perder? Vocês provavelmente sentirão que, quando a fé religiosa se expressa dessa maneira, na linguagem da mesa de jogos, é sinal de que está reduzida a seus úl timos trunfos. Certamente a própria crença pessoal de Pascal em missas e na água benta tinha razões bem outras; e essa sua página famosa não passa de uma 14 A Vontade de Crer argumentação dirigida aos outros, uma última bus- ca desesperada de uma arma contra a inflexibilida de do coração descrente. Parece-nos que a fé em mis sas e água benta adotada mtencionalmente após tal cálculo mecânico seria desprovida da alma interior da realidade da fé; e, se estivéssemos nós mesmos no lugar da Divindade, provavelmente teríamos um pra zer especial em excluir os crentes dessa espécie de sua recompensa infinita. É evidente que, a menos que haja alguma tendência preexistente a acreditar em missas e água benta, a opção oferecida à vontade por Pascal não é uma opção viva. Certamente nenhum turco jamais voltou-se para missas e água benta por causa dessa argumentação; e mesmo para nós, pro testantes, esses meios de salvação parecem impossi bilidades tão previsíveis, que a lógica de Pascal, in vocada especificamente para eles, não nos comove. Seria como se Mahdi nos escrevesse dizendo: “Sou o Esperado que Deus criou em seu resplendor. Se reis infinitamente felizes se professardes vossa fé em mim; caso contrário, sereis excluídos da luz do sol. Pesai, portanto, vosso ganho infinito, se eu for genuí no, em comparação com vosso sacrifício finito, se eu não for!" Sua lógica seria a mesma de Pascal; no en tanto, ele a usaria em vão conosco, pois a hipótese que ele nos oferece é morta. Não há em nós nenhu ma tendência a agir com base nela. 15 W iiltam James A discussão quanto a acreditar por nossa própria vontade parece então, sob certo ponto de vista, sim plesmente tola. Sob outro ponto de vista, ela é pior do que tola, é vil. Quando nos voltamos para o magnífico edifício das ciências físicas e vemos como foi construí do, quantos milhares de vidas morais desinteressadas encontram-se enterradas em suas fundações, que pa ciência e postergação, que sacrifício de preferências, que submissão às leis gélidas do fato externo estão gra vados em suas pedras e em seu cimento, quão absolu tamente impessoal ele se ergue em sua vasta majesta de — diante disso, quão estúpido e desprezível pare ce cada pequeno sentimentalista que vem soprando suas voluntárias espirais de fumaça e pretendendo de cidir coisas a partir de seu próprio sonho pessoal! Po demos ter alguma dúvida de que aqueles criados na escola árdua e briosa da ciência terão vontade de vo mitar tal subjetivismo de sua boca? Todo o sistema de lealdades que cresce nas escolas de ciência ergue-se contra sua tolerância; assim, é natural que aqueles que pegaram a febre científica passem para o extremo opos to e escrevam às vezes como se o intelecto incorrupti- velmente confiável devesse sem hesitação preferir amargor e inaceitabilidade ao coração inebriado. Fortalece m inha alm a saber Que, embora eu pereça, a Verdade é esta — 16 A Vontade de Crer canta Clough, enquanto Huxley exclama: ‘1Meu úni co consolo está na reflexão de que, por pior que nos sa posteridade possa se tornar, enquanto eles adota rem a regra simples de não fingir acreditar no que não têm razão para acreditar, porque talvez seja vantajo so para eles assim fingir [a palavra “fingir” é cenamen te redundante aqui], não terão atingido o nível mais baixo de imoralidade”. E o delicioso cnfant terríble Clifford escreve: “A crença é profana quando conferi da a afirmações não-provadas e não-questionadas, pelo conforto e prazer pessoal do crente. ... Quem quer que deseje a consideração de seus pares nessa questão deve guardar a pureza de sua crença com um verdadeiro fanatismo de cuidado atento, para que ela não venha a pousar de repente sobre um objeto in digno e adquirir uma mancha que jamais poderá ser removida.., Se ]uma] crença tiver sido aceita com base em evidências insuficientes [mesmo que a crença seja verdadeira, como Clifford explica na mesma página], o seu é um prazer roubado.... Ela é pecadora porque é roubada em desrespeito a nossa obrigação para com a humanidade. Essa obrigação é nos guardar de tais crenças como de uma peste que pode rapidamente dominar nosso próprio corpo e, depois, se espalhar para o resto da cidade. .״ É sempre errado, em toda parte, e para qualquer pessoa, acreditar em qualquer coisa com base em evidências insuficientes”. William James Tudo isso soa muito saudável, mesmo quando expresso, como no caso de Clifford, com um certo ex cesso de pathos ruidoso na voz. A livre vontade e o sim ples desejo parecem, no contexto de nossas convicções, não passar de rodas sobressalentes para o condutor. No entanto, se alguém pressupusesse, em vista disso, que o discernimento intelectual é o que permanece depois que o desejo, a vontade e a preferência sentimental tiverem sido removidos, ou que a razão pura é o que então determina nossas opiniões, estaria voando con tra os fatos de forma igualmente direta. São apenas nossas hipóteses já mortas que nossa natureza volitiva é incapaz de trazer de volta à vida. Mas o que as fez mortas para nós foi, essencialmente, uma ação prévia de um tipo antagônico por parte de nossa natureza volitiva. Quando digo “natureza voli tiva”, não me refiro apenas às volições deliberadas que podem ter estabelecido hábitos de crença dos quais não conseguimos escapar — refiro-me a todos os fa tores de crença, como medo e esperança, preconceito e paixão, imitação e participação, a pressão circundan te de nossa classe e nosso círculo social. Na verdade, nós nos pegamos acreditando sem saber ao certo como 18 A Vontade de Crer ou por quê. O senhor Balfour dá o nome de “autori dade” a todas essas influências, nascidas do clima in telectual, que tornam hipóteses possíveis ou impos síveis para nós, vivas ou mortas. Aqui nesta sala, to dos acreditamos em moléculas e na conservação da energia, em democracia e no progresso necessário, no cristianismo protestante e no dever de lutar pela “dou trina do imortal Monroe”, tudo isso sem nenhuma razão que mereça esse nome. Olhamos essas questões sem mais clareza interior, e provavelmente com mui to menos, do que qualquer descrente poderia possuir. A inconvencionalidade deste último provavelmente te ria alguma base a oferecer para suas conclusões; para nós, porém, não o discernimento, mas o prestígio das opiniões é o que as faz emitir a centelha e acender nosso pavio adormecido da fé. Nossa razão estará per feitamente satisfeita, em novecentos e noventa e nove casos em cada mil de nós, se puder encontrar alguns argumentos para apresentar no caso de nossa credu lidade ser criticada por alguém. Nossa fé é a fé na fé de outro e, nas maiores questões, esse é quase sem pre o caso. Nossa crença na própna verdade, por exem plo, de que existe uma verdade e de que nossa mente e essa verdade são feitas uma para a outra — o que é isso senão uma afirmação apaixonada de desejo, em que nosso sistema social nos dá suporte? Queremos ter uma verdade; queremos acreditar que nossas ex- 19 W illiam James periendas, nossos estudos e nossas discussões devem nos colocar numa posição continuamente melhor para isso; e, seguindo essa linha, concordamos em lutar para levar adiante nossa vida pensante. Mas, se um céptico pirrônico nos perguntar como sabemos tudo isso, será que nossa lógica poderá encontrar uma res posta? Não! Certamente não poderá. É apenas uma vo lição contra outra — nós, dispostos a encarar a vida com base em uma confiança ou pressuposição que ele, por seu lado, não acha importante adotar. Como regra, desacreditamos de todos os fatos e teorias para os quais não temos uso. As emoções cós micas de Clifford não têm nenhum uso para os sen timentos cristãos. Huxley ataca os bispos porque não há uso para o sacerdotalismo em seu esquema de vida. Newman, ao contrário, volta-se para o catoli cismo romano e julga ter todo tipo de boas razões pa ra permanecer lá, porque um sistema sacerdotal é, para ele, uma necessidade e um prazer orgânicos. Por que ião poucos "cientistas” chegam a pelo menos exa minar as evidências a favor da chamada telepatia? Por que acham, como um importante biólogo, já morto, certa vez me disse, que mesmo que tal coisa fosse ver dadeira os cientistas deveriam se unir para mantê-la suprimida e escondida. Ela desfaria a uniformidade da Natureza e todo o tipo de outras coisas sem as 20 A Vontade de Crer quais os cientistas não podem levar adiante seus pro jetos. Porém, se a esse mesmo homem fosse mostra do algo que ele, como cientista, pudesse Jazer com a telepatia, ele talvez tivesse não só examinado as evi dências, mas até as julgado suficientemente boas. Essa própria lei que os lógicos pretendem impor a nós — se posso chamar de lógicos os que descartariam nos sa natureza volitiva nessa questão — é baseada em nada mais do que em seu próprio desejo natural de excluir todos os elementos para os quais eles, em seu atributo profissional de lógicos, não podem encon trar um uso. É evidente, portanto, que nossa natureza não- intelectual influencia de fato nossas convicções, Há tendências passionais e volições que vêm antes e ou tras que vêm depois da crença, e são apenas estas úl timas que estão atrasadas para a festa; e não estão atrasadas quando o trabalho passional anterior já foi em sua direção. O argumento de Pascal, em vez de ser ineficaz, parece então um argumento válido, e é a última pincelada necessária para tomar nossa fé em missas e água benta completa. O estado de coisas, evidentemente, está longe de ser simples; e puro dis cernimento e lógica, o que quer que possam fazer idealmente, não são as únicas coisas que de fato pro duzem nossos credos. 21 William James V Tendo reconhecido esse confuso estado de coisas, nossa próxima tarefa é indagar se ele é simplesmente repreensível e patológico ou, ao contrário, se devemos tratá-lo como um elemento normal ao tomar nossas decisões. Em poucas palavras, a tese que defendo é a seguinte: "Nossa natureza passional não só pode, como deve, licitamente decidir-se por um a opção entre proposi ções sempre que esta fo r uma opção genuína que não pos sa, por suo natureza, ser decidida sobre bases intelectuais; pois dizer, nessas circunstâncias: ‘Não decida, deixe a questão em aberto’ é, por si só, um a decisão passional — assim como decidir sim ou não — e acompanha-se do mesmo risco de perder a verdade״, A tese, assim abstra tamente expressa, logo irá, espero, tomar-se bastante clara. Mas antes é necessário mais um pouco de tra- Será observado que, para os propósitos desta dis cussão, estamos em terreno “dogmático” — ou seja, terreno que deixa o cepticismo filosófico sistemáti- balho preliminar. 22 A Vontode de Crer co totalmente fora da questão. O postulado de que existe verdade, e de que é o destino de nossa mente alcançá-la, é algo que estamos decidindo deliberada- mente adotar, embora o céptico náo pense assim. As sim, separamo-nos dele de forma absoluta neste pon to. Mas a fé de que a verdade existe, e de que nossas mentes podem encontrá-la, pode ser mantida de duas maneiras. Podemos falar do modo empirista e do modo absolutista de acreditar na verdade. Os ab solutistas, a esse respeito, dizem que não só podemos chegar a conhecer a verdade como podemos saber quando chegamos a conhecê-la; enquanto os empi- rislas dizem que, embora possamos alcançá-la, náo podemos saber infalivelmente quando. Saber é uma coisa, e saber com certeza que sabemos é outra. É pos sível afirmar que o primeiro é possível sem o segun do; daí os empiristas e os absolutistas, conquanto ne nhum deles seja céptico no sentido filosófico usual do termo, apresentarem diferentes graus de dogma tismo em suas vidas. Se examinarmos a história das opiniões, veremos que a tendência empirista tem, em grande medida, prevalecido na ciência, ao passo que, na filosofia, a tendência absolutista tem tido a última palavra. O tipo característico de felicidade, de tato, que as filosofias produzem tem consistido basicamente na convicção 23 William Jomes sen li da por cada escola ou sistema sucessivo de que, por seu intermédio, a certeza definitiva foi obtida. “Outras filosofias sáo coleções de opiniões, em sua maioria falsas; a minha filosofia oferece uma base só lida para sempre” — quem não reconhece nisto a nota dominante de todos os sistemas dignos desse nome? Um sistema, para que seja realmente um sistema, deve vir como um sistema fechado, reversível neste ou na quele detalhe, talvez, mas, em suas características es senciais, jamais! A ortodoxia escolástica, à qual sempre é preci so recorrer quando se deseja encontrar afirmações perfeitamente claras, fez uma bela elaboração dessa convicção absolutista numa doutrina que ela chama de “evidência objetiva”. Se, por exemplo, sou inca paz de duvidar de que eu agora existo diante de vo cês, de que dois é menos do que três ou de que, se todos os homens sáo mortais, então eu também sou mortal, é porque essas coisas iluminam meu intelec to de forma irresistível. A base decisiva dessa evidên cia objetiva possuída por certas proposições é o adcequatio intellectus nostn cum. re [adequação de nos so intelecto à realidadel. A certeza que ela traz envol ve uma aptitudinem ad extorquendum certum assensum [capacidade de fazer surgir uma anuência segura] por parte da verdade intuída e, por parte do sujeito, 24 A Vontade de Crer uma quietem in cognitione (confiança serena no conhe cimento(, pelo qual, uma vez tendo sido o objeto mentalmente recebido, ele não deixa atrás de si ne nhuma possibilidade de dúvida; e, na transação como um todo, nada opera além do cntitas ipsa [o próprio ser] do objeto e do entitas ipsa da mente. Nós, negli gentes pensadores modernos, não gostamos de falar em latim — de fato, não gostamos de falar em ne nhum termo estabelecido; no fundo, porém, nosso próprio estado mental segue de perto esse modelo sempre que nos abandonamos de forma não-crítica: você acredita em evidência objetiva e eu também. De certas coisas, consideramos estar seguros: sabemos, e sabemos que sabemos. Há algo que dá um “clique״ dentro de nós, um sino que toca as doze badaladas, depois de os ponteiros de nosso relógio mental terem percorrido todo o mostrador e chegado à hora meri diana. Os maiores empiristas entre nós são apenas empiristas em reflexão: quando deixados a seus ins tintos, eles dogmatizam como papas infalíveis. Quan do os Cliffords nos dizem como é pecaminoso ser cris tão com base em tais ״evidências insuficientes”, a in suficiência é, na realidade, a última coisa que eles têm em mente. Para eles, a evidência é absolutamente su ficiente, só que segue o caminho oposto. Eles acredi tam tão completamente numa ordem anlicristã do 25 William James universo, que não há uma opção viva: o cristianismo é uma hipótese morta desde o início. Mas então, já que somos todos absolutistas por instinto, o que, em nossa qualidade de estudantes de filosofia, devemos fazer a respeito desse fato? Deve mos adotá-lo e endossá-lo? Ou devemos tratá-lo como uma fraqueza de nossa natureza da qual precisamos Acredito sinceramente que o segundo curso é o único que podemos seguir como homens reflexivos. Evidência objetiva e certeza são, sem dúvida, ideais muito bons para se trabalhar, mas onde neste pla neta iluminado pela lua e visitado pelos sonhos sáo encontradas? Sou pessoalmente, portanto, um com pleto empirista no que tange à minha teoria do co nhecimento. Vivo, de fato, de acordo com a fé prá tica de que devemos seguir experimentando e refle tindo sobre nossa experiência, pois só assim nossas opiniões podem se tornar mais verdadeiras; porém, acredito ser uma atitude tremendamente equivoca da adotar qualquer uma delas — para mim é total- nos libertar, se pudermos? 26 A Vontade de Crer mente indiferente qual — como se nunca pudesse ser reimerpreiável ou corrigível, e acho que toda a história da filosofia me apoiará nisso. Há apenas uma verdade indefectivelmeme certa, e essa é a verdade que o próprio cepticismo pirrõnico deixa intocada — a verdade de que o presente fenômeno da cons ciência existe. Esse, porém, é o mero ponto de par tida do conhecimento, a simples admissão de algo sobre o que filosofar. As várias filosofias não passam de muitas tentativas de expressar o que esse algo realmente é. E, se formos a nossas bibliotecas, quan ta divergência descobriremos! Onde pode ser encon trada uma resposta seguramente verdadeira? À par te as proposições abstratas de comparação (como dois mais dois é igual a quatro), proposições que nüo nos dizem nada por si sós sobre a realidade concre ta, não encontramos nenhuma proposição que já tenha sido considerada por qualquer um evidente- mente certa, que não tenha também sido chamada de falsa, ou que pelo menos não tenha tido sua ver dade sinceramente questionada por outro alguém. A superação dos axiomas da geometria, não de brin cadeira mas a sério, por alguns de nossos contem porâneos (como Zõllner e Charles H. Hinton) e a re jeição de toda a lógica aristotélica pelos hegelianos são exemplos marcantes. 27 Williom Jomes Nenhum teste concretu do que é realmente ver dadeiro encontrou consenso até hoje. Alguns adotam um critério exterior ao momento da percepção, pon do-o na revelação, o consensus gentium [consenso uni versal das nações], nos instintos do coração ou na experiência sistematizada da raça. Outros fazem do momento da percepção o seu próprio teste — Des cartes, por exemplo, com suas idéias claras e distin tas garantidas pela veracidade de Deus; Reid com seu 1*bom senso”; e Kant com suas formas de juízo sinté tico a priori. A inconcebibilidade do oposto; a capa cidade de ser verificável pelo raciocínio; a posse de completa unidade orgânica ou auto-relação, concre tizada quando uma coisa é seu próprio outro — são padrões que, cada um por sua vez, foram utilizados. A muito louvada evidência objetiva nunca está triun fantemente presente, é mera aspiração ou Grenzhegrifj [conceito sobre o limite], marcando o ideal infinita- mente remoto de nossa vida pensante. Afirmar que certas verdades agora a possuem é simplesmente di zer que, quando as pensamos como verdadeiras e elas s<3o verdadeiras, então sua evidência é objetiva, caso contrário não o é. Porém, na prática, a convicção de uma pessoa de que a evidência que ela adota é de fato do tipo objetivo é apenas mais uma opinião subjeti va acrescentada às demais Que variedade de opiniões contraditórias tiveram reivindicadas para si evidência 28 A Vontade de Crer objetiva e certeza absoluta! O mundo é racional por completo — sua existência é um fato concreto defi nitivo; há um Deus pessoal — um Deus pessoal é in concebível; há um mundo físico extramental imedia- lamente conhecido — a mente só pode conhecer suas próprias idéias; existe um imperativo moral — a obri gação é apenas o resultante de desejos; um princípio espiritual permanente está em todos — há apenas es tados fluidos da mente, há uma infindável cadeia de causas — há uma primeira causa absoluta; uma ne cessidade eterna — uma liberdade; um propósito — nenhum propósito; o Um primordial — um Muitos primordial; uma continuidade universal — uma des continuidade essencial nas coisas; uma infinitude — nenhuma infinitude. Há isto — há aquilo; nào há de fato nada que alguém não tenha julgado absolutamen- te verdadeiro enquanto seu vizinho considerava ab solutamente falso; e nenhum absolutista entre eles pa rece jamais ter suposto que o problema pode todo o tempo ser essencial, e que o intelecto, mesmo com a verdade diretamente ao seu alcance, pode nào ter nenhum smal infalível para saber se ela é verdade ou não. Quando, de fato, lembramos que a mais notá vel aplicação prática à vida da doutrina da certeza ab soluta foram os trabalhos escrupulosos do Santo Ofí cio da Inquisição, sentimo-nos menos tentados do que nunca a dar ouvidos respeitosos a ela, 29 William James Mas, por favor, observemos agora que quando, como empiristas, abandonamos a doutrina da certe za objetiva, não estamos, em consequência, abando nando a busca ou a esperança da verdade propriamen te dita. Ainda centramos nossa fé em sua existência e ainda acreditamos que ganhamos uma posição cada vez melhor em direção a ela ao continuarmos sistema ticamente somando experiências e reflexões. Nossa grande diferença em relação ao escolástico está no lado para o qual nos voltamos. A força do sistema dele en contra-se nos princípios, na ongem, no terminus a quo de seu pensamento; para nós, a força está no resulta do, no desfecho, no termmus ad quem . O que decide a situação para nós não é de onde vem, mas para onde leva. Não importa para um empirista de que pane uma hipótese pode chegar até ele; ele pode tê-la obtido por meios decentes ou não; a paixão pode tê-la sussurra do ou o acidente a sugerido; porém, se a tendência total do pensamento continua a confirmá-la, isso é o que ele leva em conta para considerá-la verdadeira. Mais um ponto, pequeno porém importante, e nossos preliminares estarão encerrados. Há dois mo dos de olhar para nossa tarefa na questão da opimão 30 A Vonlode de Crer — modos inteiramente diferentes, no entanto modos cuja diferença não parece ter sido motivo de muita preocupação, até o momento, para a teoria do conhe cimento. Precisamos conhecer a verdade; e precisamos evitar o e-rro — estes são nossos primeiros e grandes mandamentos como conhecedores potenciais; mas não são duas maneiras de expressar um mandamen to idêntico: são duas leis separadas. Embora de fato possa acontecer que, quando acreditamos na verda de A , escapamos, como conseqüência incidental, de acreditar na falsidade B, quase nunca acontece que, por meramente não acreditar em B, necessariamente acreditemos em A , Podemos, ao escapar de B, cair na crença de outras falsidades, C ou D, tão ruins quanto B; ou podemos escapar de B por não acreditar em absolutamente nada, nem mesmo em A. Acreditar na verdade! Evitar o erro! — estas, como vemos, são duas leis materialmente diferentes; e, ao escolher entre elas, podemos acabar dando um colo- ndo diferente a toda a nossa vida intelectual. Podemos perceber a busca da verdade como fundamental, e a evitação do erro como secundária; ou podemos, por outro lado, tratar a evitação do erro como mais impe rativa, e deixar a verdade arriscar-se. Clifford, na pas sagem instrutiva que citei, exorta-nos a este último curso. Não acreditem em nada, nos diz ele, mantenham a mente para sempre em incerteza, preferivelmente a 31 W illiam James se decidir com base em evidências insuficientes e in correr no risco terrível de acreditar em mentiras. Vo cês, por outro lado, podem achar que o risco de es tar em erro é uma questão muito pequena quando comparada à bênção do conhecimento real, e estar dispostos a se descobrir enganados muitas vezes em suas investigações em vez de adiar indefinidameme a chance de fazer uma suposição verdadeira. Pessoal mente, acho impossível concordar com Clifford. Pre cisamos lembrar que esses sentimentos quanto à nos sa tarefa em relação à verdade ou ao erro são, de qual quer forma, apenas expressões de nossa vida pas sional. Biologicamente considerada, nossa mente está tão pronta para se dedicar à falsidade como à veraci dade, e aquele que diz “Melhor ficar para sempre sem crença do que acreditar numa mentira!” meramente mostra a preponderância de seu próprio horror pes soal a passar por tolo. Ele pode ser crítico em relação a muitos de seus desejos e medos, mas, a esse medo, ele submissamente obedece. Não pode imaginar que alguém questione sua força restritiva. De minha par te, tenho horror a me ver enganado, mas acredito que coisas piores do que estar enganado podem aconte cer a um homem neste mundo: assim, a exortação de Clifford tem, a meus ouvidos, um som completamente fantástico. É como um general informando seus sol dados que é melhor manter-se para sempre fora da ba- A Vonlcde de Crer talha do que se arriscar a um único ferimento. Não é assim que se obtêm vitórias sobre inimigos ou sobre a natureza. Nossos erros seguramente não são coisas tão solenememe terríveis. Num mundo em que é tão certo que venhamos a incorrer neles apesar de toda a nossa cautela, um pouco de leveza de coração parece mais saudável do que esse nervosismo excessivo quan to ao próprio comportamento. De qualquer forma, esta parece ser a atitude mais adequada para o filó sofo empirista. E agora, depois de toda essa introdução, vamos direto à nossa questão. Eu disse, e agora repito, que não só encontramos nossa natureza passional nos in fluenciando em nossas opiniões como um processo natural, como também que há algumas opções entre opiniões em que essa influência deve ser vista como um determinante inevitável e lícito de nossa escolha. Temo que aqui alguns de vocês começarão a pres sentir perigo e passarão a me dedicar ouvidos menos hospitaleiros. Dois primeiros passos passionais vocês já tiveram de admitir como necessários — precisamos 33 W illiam James pensar para evitar ser iludidos e precisamos pensar para chegar à verdade; porém, o caminho mais segu ro para essas consumações ideais, vocês provavelmen te considerarão, é, de agora em diante, não dar mais nenhum passo passional. Bem, claro, concordo na medida em que os fatos permitam. Sempre que a opção entre perder a verda de ou ganhá-la não estiver premente, poderemos jogar fora a chance de ganhar a verdade e pelo menos pou parmo-nos de qualquer chance de acreditar em falsida des, não fazendo nenhuma escolha até que apareçam evidências objetivas, hm questões científicas, este é quase sempre o caso; mesmo em assuntos humanos de uma forma geral, a necessidade de agir raramente é tão urgente a ponto de ser melhor agir com base numa crença falsa do que em crença nenhuma. Os tribunais de justiça, de fato, têm de decidir com base nas me lhores evidências obteníveis no momento, porque a tarefa de um juiz é tanto fazer a lei como verificá-la, e (como um juiz douto certa vez me disse) poucos ca sos são merecedores de que se gaste muito tempo ne les: o bom é decidi-los com base em qualquer princí pio aceitável e tirá-los do caminho. Porém, em nossa relação com a natureza objetiva, somos evidentemen te registradores, e não criadores, da verdade; e decisões tomadas com o simples propósito de decidir sem de- 34 A Vontade de Crer mora e passar para o próximo assunto seriam totalmen te inadequadas. Por toda a extensão da natureza físi ca, os fatos são o que são, independentemente de nós, e é raro que haja tanta pressa em relação a eles que pre cisemos enfrentar os riscos de ser iludidos por acredi tar numa teoria prematura. As questões aqui são sem pre opções triviais, as hipóteses dificilmente são vivas (de qualquer forma, não são vivas para nós, especta dores), a escolha entre acreditar na verdade ou na fal sidade raramente é forçosa. A atitude de meio-termo céptico será, portanto, a mais sábia se desejarmos es capar de enganos. Que diferença faz, de fato, para a maioria de nós se temos ou não uma teoria sobre os raios Röntgen, se acreditamos ou não nas coisas da mente ou se temos uma convicção quanto à causalida de dos estados conscientes? Não faz nenhuma diferen ça. Tais opções não são forçosas para nós. Em todos os sentidos, é melhor não as fazer e, em atitude de indi ferença, continuar pesando razões pro et contra. Falo aqui, claro, nos termos da reflexão puramen te crítica. Para propósitos de descoberta, tal indiferen ça seria menos altamente recomendável, e a ciência seria muito menos avançada do que é, se os desejos passionais dos indivíduos de ver suas próprias fés con firmadas tivessem sido mantidos fora do jogo. Vejam, por exemplo, a sagacidade que Spencer e Weismann 35 William James agora apresentam. Por outro lado, se quiserem ver um néscio absoluto numa investigação, deverão pegar al guém que não tenha nenhum interesse em seus resul tados: ele é o incapaz rematado, o indiscutível inep to. O investigador mais útil, por ser o observador mais sensível, é sempre aquele cujo interesse por um lado da questão é equilibrado por um receio igualmente ansioso de estar enganado. A ciência organizou esse receio numa técnica regular, seu chamado método de verificação, e se apaixonou de tal forma por esse mé todo que seria mesmo possível dizer que deixou de se preocupar com a verdade em si. É apenas a verda de tecnicamente verificada que interessa a ela. A ver dade das verdades poderia vir numa forma meramente afirmativa, e ela se negaria a tocá-la. Uma verdade como essa, poderia repetir com Clifford, seria rouba da em desrespeito à sua obrigação para com a huma nidade. As paixões humanas, porém, são mais fortes do que as regras técnicas. “Le coeur a ses raisons”, como diz Pascal, “que la raison ne connaít pas” (“O coração tem suas razões, que a razão desconhece”], e, por mais indiferente que o juiz, o intelecto abstrato, possa ser a tudo que esteja fora das puras regras do jogo, os jogadores concretos que o suprem do mate rial a ser julgado geralmente estão, cada um deles, apaixonados por alguma “hipótese viva" favorita pes soal. Vamos concordar, porém, que, não havendo 3ó A Vontade de Crer nenhuma opção forçosa, salvando-nos pelo menos de ser iludidos, o intelecto crítico não-passional, sem nenhuma hipótese favorita, deve ser nosso ideal. Surge a próxima questão: não haverá, em algum ponto, opções forçosas em nossas questões especula tivas, e podemos nós (como homens que podem es tar pelo menos tão interessados em obter a verdade quanto em meramente evitar ser iludidos) sempre esperar impunemente até que as evidências coercivas cheguem? Parece improvável, a priori, que a verdade deva estar tão bem ajustada a nossas necessidades e a nossos poderes. Na grande hospedaria da natureza, os bolos, a manteiga e o mel raramente saem tão bem e deixam os pratos tão limpos. De fato, deveríamos olhá- los com desconfiança científica se isso acontecesse. Questões m orais apresentam-se imediatamente como questões cuja solução não pode esperar por uma prova sensível. Uma questão moral não é uma ques tão do que existe no plano sensível, mas do que é bom, ou do que seria bom se existisse. A ciência pode nos dizer o que existe, mas, para comparar os valores tan- 37 W illiam James to do que existe como do que não existe, precisamos consultar não a ciência, mas o que Pascal chama de nosso coração. A própria ciência consulta seu coração quando afirma que a infinita determinação do fato e a correção da falsa crença são os bens supremos para o homem. Desafie-se a afirmação, e a ciência só poderá repeti-la oracularmente, ou então prova-la mostrando que tal determinação e tal correção trazem ao homem todo tipo de outros bens que seu coração, por sua vez, declara. A questão de ter ou não crenças morais é de cidida por nossa vontade. São nossas preferências morais verdadeiras ou falsas, ou são elas apenas fenô menos biológicos casuais, que tomam as coisas boas ou más para nós, mas em si mesmos são indiferentes? Como o intelecto puro pode decidir? Se seu coração não quiser um mundo de realidade moral, sua cabeça certamente nunca o fará acreditar em um. O cepti- cismo mefistofélico, de fato, satisfará muito melhor os instintos lúdicos da cabeça do que qualquer idealismo rigoroso. Alguns homens (mesmo na idade de estudan tes) são tão naturalmente desapaixonados que a hipó tese moralista nunca tem para eles nenhuma vida pun gente, e, em sua presença desdenhosa, o jovem mora lista inflamado sempre se sente estranhamente pouco à vontade. A aparência de conhecimento está do lado daqueles, a de naiveté e credulidade, do lado dele. No entanto, em seu coração inartículado, ele se agarra à 38 A Vontade de Crer idéia de que não é um tolo, e de que há um domínio em que (como diz Emerson) toda a perspicácia e su perioridade intelectual deles não é melhor do que a astúcia de uma raposa. O cepticismo moral não pode ser mais refutado ou provado pela lógica do que o cepticismo intelectual. Quando insistimos em que hâ verdade (seja ela de um ou de outro tipo), fazemos isso com toda a nossa natureza e nos decidimos a perma necer de pé ou cair pelos resultados. O céptico adota com toda a sua natureza a atitude de suspeita; mas qual de nós é o mais sábio, apenas a Onisciência sabe. Voltemo-nos agora dessas questões amplas do bem para uma certa classe de questões de fatos, ques tões que se referem a relações pessoais, estados de mente entre um homem e outro. Você gosta de m im ou não? — por exemplo. O fato de você gostar ou não depende, em inúmeros casos, de eu fazer ou não con cessões a você, de eu estar disposto a supor que você deva gostar de mim e de eu demonstrar confiança e expectativa em relação a você. A fé anterior de minha parte na existência de. sua disposição favorável é, em tais casos, o que faz essa disposição favorável existir. Porém, se eu permanecer indiferente e recusar a me mover um centímetro até possuir alguma evidência objetiva, até que você tenha feito alguma coisa capaz, como dizem os absolutistas, ad extorquendum assensum 39 William James m eum [de fazer surgir minha anuência segura], as chances serão de dez para um de que você nunca ve nha a gostar de mim. Quantos corações femininos são conquistados pela mera insistência incansável de al gum homem de que elas devem amá-lo! Ele não acei tará a hipótese de que elas possam não o amar. O de sejo de um certo tipo de verdade, neste caso, ocasio na a existência dessa verdade especial; e assim se dá em inúmeros casos de outras espécies. Quem ganha promoções, favores, entrevistas senão o homem em cuja vida essas coisas desempenham o papel de hipó teses vivas, que as antecipa, sacnfica outras coisas por elas antes de terem acontecido e assume riscos de an temão por elas? Sua fé atua sobre os poderes acima dele como uma afirmação e cria sua própria realização. Um organismo social de qualquer tipo, grande ou pequeno, é o que é porque cada membro realiza suas próprias tarefas com a confiança de que os outros membros cumprirão simultaneamente as deles. Sem pre que um resultado desejado é obtido pela coope ração de muitas pessoas independentes, sua existên cia como fato é pura consequência da fé mútua pre viamente nutrida pelos diretamente envolvidos. Um governo, um exército, um sistema comercial, um na vio, uma faculdade, uma equipe esportiva, todos exis- 40 A Vontade de Crer tem sob essa condição, sem a qual não só nada é con seguido, como nada sequer é tentado. Um trem intei ro de passageiros (individualmente muito corajosos) será saqueado por um pequeno grupo de ladrões pelo simples fato de que estes últimos podem contar uns com os outros, enquanto cada passageiro teme que, se fizer algum movimento de resistência, receberá um tiro antes que qualquer outra pessoa o apoie. Se acreditás semos que todo o vagão se levantaria imediatamente conosco, cada um de nós individualmente se levanta ria, e roubos a trens jamais seriam sequer tentados. Há, portanto, casos em que um fato não pode ocorrer a menos que exista uma fé preliminar em sua ocorrên cia. E, nos casos em que a fé num fa to pode a judar a enar o fato , seria uma lógica insana dizer que a fé que vem antes da evidência científica é “o nível mais baixo de imoralidade” a que um ser pensante pode descer. No entanto, tal é a lógica pela qual nossos absolutistas científicos pretendem regular nossa vida! Em verdades dependentes de nossa ação pessoal, portanto, a fé baseada na vontade é, certamente, algo lícito e possivelmente indispensável. 41 William James Porém, será dito» esses são todos casos humanos pueris e não têm nada a ver com grandes temas cós micos, como a questão da fé religiosa. Vamos, então, passar a isso. As religiões diferem tanto em suas cir cunstâncias que, ao discutir a questão religiosa, pre cisamos fazê-lo de forma muito genérica e ampla. A que, então, nos referimos agora ao falar da hipótese religiosa? A ciência diz que as coisas são; a moralida de diz que algumas coisas são melhores do que ou tras; e a religião diz, essencialmente, duas coisas. Primeiro, ela diz que as melhores coisas são as coisas mais eternas, as coisas que se sobrepõem às demais, as coisas no universo que atiram a última pedra, por assim dizer, e têm a palavra final. "A per feição é eterna” — esta frase de Charles Secrétan pa rece uma boa maneira de expressar essa primeira afir mação da religião, afirmação que, obviamente, ainda não pode ser verificada em termos científicos. A segunda afirmação da religião é que, mesmo agora, ficaremos em melhor situação se acreditarmos que a primeira afirmação é verdadeira. Vamos examinar, então, quais são os elementos lógicos dessa situação no caso de a hipótese religiosa em ambas as suas expressões ser de ja to verdadeira. (Claro que precisamos admitir essa possibilidade 42 A Vontade de Crer desde o início. Para que possamos discutir a ques tão, ela deve envolver uma opção viva. Se, para al gum de vocês, a religião for uma hipótese que não pode, por nenhuma possibilidade viva, ser verdadei ra, não é necessário prosseguir. Falo apenas ao ‘1res to fiel”.) Assim procedendo, vemos, primeiramente, que a religião se oferece como uma opção premente. Presume-se que ganhemos, ainda agora, por meio de nossa crença, e que percamos, por nossa não-cren ça, um certo bem vital. Em segundo lugar, a religião é uma opção forçosa no que se refere a esse bem. Não podemos escapar à questão permanecendo cépticos e esperando por mais luz porque, embora evitemos o erro dessa maneira se a religião n ã o jo r verdadeira , perderemos o bem se ela fo r verdadeira, tão certamen te quanto se escolhêssemos definitivamente não acre ditar. É como se um homem hesitasse indefinida- mente quanto a pedir uma certa mulher em casa mento por não ter certeza absoluta de que ela se mostraria um anjo depois que ele a levasse para casa. Não estaria ele negando a si próprio essa possibili dade particular de ela ser um anjo de forma tão de cisiva quanto se decidisse casar com outra pessoa? O cepticismo, portanto, não é o ato de evitar a op ção; é a opção por um certo tipo específico de risco. Ê melhor se arriscar à perda da verdade do que á chan ce de erro — esta é a posição exata daquele que veta 43 William James a fé. Ele está fazendo sua aposta tanto quanto aque le que crê; está se defendendo contra a hipótese re ligiosa, assim como o crente está defendendo a hi pótese religiosa contra seu opositor. Pregar para nós o cepticismo como sendo um dever até que “evidên cias suficientes” em favor da religião possam ser en contradas é equivalente, portanto, a nos dizer, quan do na presença da hipótese religiosa, que ceder a nosso receio de que ela esteja errada é mais sábio e melhor do que ceder à nossa esperança de que ela possa ser verdadeira. Não é, então, o intelecto con tra todas as paixões; é apenas o intelecto com uma paixão estabelecendo a sua lei. E o que, por acaso, garante a sabedoria suprema dessa paixão? Engano por engano, que prova existe de que o engano pela esperança é tão pior do que o engano pelo medo? Eu, pessoalmente, não consigo ver nenhuma prova; sim plesmente recuso obediência à ordem do cientista de que eu imite seu tipo de opção, num caso em que minha própria aposta é importante o suficiente para me dar o direito de escolher minha própria forma de risco. Se a religião for verdadeira e as evidências em prol dela ainda forem insuficientes, não desejo, pela aplicação de seu extintor de incêndio à minha natu reza (que me parece, afinal de contas, ter algo a ver com toda essa questão), ser privado de minha única 44 A Vontade de Crer chance na vida de ficar do lado vencedor — chance que depende, claro, de minha disposição de correr o risco de agir como se minha necessidade passional de encarar o mundo religiosamente pudesse ser pro fética e certa. Tudo isso se apoia na suposição de que ela real- meme possa ser profética e certa e de que, para nós mesmos que estamos discutindo a questão, a religião seja uma hipótese viva que pode ser verdadeira. Po rém, para a maioria de nós, a religião tem ainda uma outra característica que torna um veto à nossa fé ati va ainda mais ilógico. O aspecto mais perfeito e mais eterno do universo é representado, em nossas reli giões, por uma forma pessoal. O universo não é mais um mero Isso para nós se somos religiosos, mas um Tu; e qualquer relação que possa ser possível de pes soa para pessoa poderia ser possível aqui. Por exem plo, embora, em certo sentido, sejamos partes passi vas do universo, em outro sentido apresentamos uma curiosa autonomia, como se fôssemos pequenos cen tros ativos por nós mesmos. Sentimos, também, como se o apelo da religião nos fosse feito à nossa própria boa vontade ativa, como se as evidências pudessem ficar para sempre ocultas a nós se não fôssemos ao encontro da hipótese no meio do caminho. Dando um exemplo trivial: assim como um homem que, num 45 W illiam James grupo de cavalheiros, não tomasse nenhuma inicia tiva, exigisse uma garantia para cada concessão e não acreditasse na palavra de ninguém sem provas fica ria privado, por tal intratabilidade, de todas as recom pensas sociais que um espírito mais aberto proporcio naria — também aqui, aquele que se fechasse num logicismo ríspido e tentasse fazer que os deuses ar rancassem seu reconhecimento por bem ou por mal, ou então não o conseguissem de forma alguma, po deria privar-se para sempre de sua única oportuni dade de travar conhecimento com os deuses. Esse sentimento — instilado em nós sem nem sabermos de onde — , de que, por acreditar obstinadamente que hã deuses (embora não fazer isso fosse tão fácil tanto para nossa lógica como para nossa vida) esta mos prestando ao universo o maior serviço que po demos, parece parte da essência viva da hipótese re ligiosa. Se a hipótesejosse verdadeira em todas as suas partes, inclusive esta, então o puro intelectualismo, com seu veto a que tomemos iniciativas volitivas, seria um absurdo; e alguma participação de nossa natureza compassiva seria logicamente requerida. Sendo assim, eu, pessoalmente, não vejo como acei tar as regras agnósticas para a busca da verdade, ou concordar voluntariamente em manter minha natu reza volitiva fora do jogo. Não posso fazer isso por 46 A Vontade de Crer esta simples razáo: um a regra de pensam ento que me impedisse completamente de reconhecer certos tipos de verdade, se esses tipos de verdade de fa to estivessem pre sentes, seria um a regra irracional Este para mim é o resumo da lógica formal da situação, quaisquer que possam ser, materiaimente, os tipos de verdade. Confesso que não vejo como escapar a essa ló gica. Mas a triste experiência me faz recear que al guns de vocês ainda possam se recusar a afirmar ra dicalmente comigo, in abstracto , que temos o direi to de acreditar, assumindo nossos próprios riscos, em qualquer hipótese que seja suficientemente viva para atrair nossa vontade. Suspeito, porém, que se isso acontece é porque vocês se afastaram inteira mente do ponto de vista lógico abstrato e estão pen sando (talvez sem ter consciência disso) em alguma hipótese religiosa específica que para vocês é morta. A liberdade de “acreditar no que quisermos” vocês aplicam ao caso de alguma superstição evidente; e a fé, consideram como sendo a fé definida pela crian ça que diz; “Fé é quando você acredita em alguma coisa que sabe que não é verdade”. Só posso repetir que essa é uma idéia equivocada. In concreto, a liber dade de acreditar só pode abranger opções vivas que o intelecto do indivíduo não consegue, por si só, re solver; e opções vivas jamais parecem absurdos para 47 W illiom James aquele que as considera. Quando olho para a ques tão religiosa da fornia como ela realmente se apresenta a homens concretos, e quando penso em todas as possibilidades que ela envolve, tanto na prática como em teoria, essa ordem de que devemos pôr um freio em nosso coração, em nossos instintos e em nossa coragem, e esperar — agindo, claro, nesse meio tem po, mais ou menos como se a religião não fosse ver dadeira — até o dia do juízo, ou até o momento em que nosso intelecto e nossos sentidos, trabalhando em conjunto, talvez consigam reunir evidências su ficientes — essa ordem, repito, parece para mim o ídolo mais estranho jamais fabricado na caverna filo sófica. Fôssemos nós absolutistas escolásticos, pode ria haver mais desculpas. Se tivéssemos um intelecto infalível com suas certezas objetivas, poderíamos nos sentir desleais a tal órgão perfeito de conhecimento se não confiássemos exclusivamente nele, se não es perássemos por sua palavra de autorização. Mas se somos empiristas, se acreditamos que não existe um sino dentro de nós que toca para nos avisar com se gurança quando a verdade está ao nosso alcance, en tão parece um tanto fantástico pregar de forma tão solene nosso dever de esperar pelo sino. Sem dúvida podemos esperar se quisermos —- espero que não pen sem que eu esteja negando isso — , mas, se fizermos 48 A Vontade de Crer isso, assumiremos as conseqüências de nossa decisão tanto quanto se acreditássemos. De uma forma ou de outra, nós agimos, tomando nossa vida em nossas mãos. Nenhum de nós deveria impor vetos aos ou tros, nem nos atacar mutuamente com palavras gros seiras. Deveríamos, ao contrário, respeitar profunda e sensivelmente a liberdade mental uns dos outros: apenas então poderemos constituir a república inte lectual; apenas então teremos esse espírito de tole rância interior sem o qual toda a nossa tolerância ex terior é desprovida de alma; apenas então viveremos e deixaremos viver, tanto nas coisas especulativas como nas práticas. Comecei com uma referência a Fitz-James Ste- phen; vou concluir com uma citação dele: “O que você pensa de si mesmo? O que você pensa do mun do? ... Estas são perguntas com as quais todos têm de lidar da forma como lhes parece bom. São enigmas da Esfinge e, de uma maneira ou de outra, precisa mos lidar com eles. ... Em todas as situações impor tantes da vida, temos de dar um salto no escuro. ... Se decidirmos deixar os enigmas sem resposta, essa será uma escolha; se hesitarmos em nossa resposta, essa também será uma escolha: mas, qualquer que seja a nossa escolha, assumiremos as suas conseqüên cias. Se um homem escolhe dar as costas definitiva- 49 W illiam James mente para Deus e para o futuro, ninguém pode im pedi-lo; ninguém pode demonstrar, sem nenhuma margem de dúvida razoável, que ele está enganado. Se um homem pensa da maneira contrária e age con forme pensa, não vejo também como alguém possa provar que ele está enganado. Cada um deve agir como julga melhor; e, se está errado, o problema é dele. Estamos num desfiladeiro na montanha em meio à neve rodopiante e à neblina que nos cega e, por entre a bruma, temos apenas vislumbres ocasionais de trilhas que podem ser enganosas. Se ficarmos pa rados, congelaremos até morrer. Se tomarmos a estra da errada, seremos despedaçados. Nem sequer sabe mos com segurança se existe um caminho certo, O que devemos fazer? ‘Ser íortes e corajosos.’ Agir da melhor maneira, esperar pelo melhor e assumir o que vier. ... Se a morte for o fim de tudo, não poderemos ter encontro melhor com ela”.