Baixe o app para aproveitar ainda mais
Prévia do material em texto
Revista Ibero-Americana de Direito Público . OS PRINCÍPIOS DA BIOÉTICA E OS LIMITES DA ATUAÇÃO MÉDICA Wilson Ricardo Ligiera Advogado, Mestre em Direito Civil e Especialista em Bioética 1. INTRODUÇÃO As decisões sobre tratamento de saúde eram outrora tidas como questões meramente técnicas, tomadas naturalmente pelo conhecedor das ciências médicas. Tal prática, embora cerceasse por completo qualquer possibilidade de exercício de autonomia pelo doente, não era vista como nociva. Naquele contexto, ambas as partes da relação médico–paciente aceitavam que quem sabia o que era “melhor” para o doente era sempre o médico, único e exclusivo detentor do conhecimento científico. À luz dos princípios éticos contidos no Juramento de Hipócrates, era dever do médico prescrever e administrar a terapia que representasse o melhor benefício possível, sem nenhuma preocupação com qualquer participação ativa do paciente. Este apenas sujeitava-se à intervenção médica, sem nada indagar e muito menos levantar objeções. Entretanto, o costume de deixar a cargo do médico a tomada de todas as decisões foi aos poucos sendo questionado. Atualmente, o paciente já não aceita ser um mero objeto da ação médica; antes, deseja tornar-se um sujeito participativo dessa relação. Diante dessa nova tendência, não obstante a ampla invocação do princípio da beneficência pelos discípulos de Hipócrates, em muitos casos o paciente não se sente beneficiado pela intervenção médica. A despeito de todo zelo e empenho do profissional, são freqüentes as situações em que o paciente, ao final do tratamento, simplesmente não visualiza o benefício do procedimento médico. Há ocasiões, ademais, em que o paciente, além de não enxergar nenhum bem, só consegue ver o mal; são situações em que o doente não encara os procedimentos médicos como atos beneficentes, mas como agressões ao seu organismo, desrespeito à sua individualidade e afronta à sua dignidade. Deveras, há intervenções médicas que podem causar mal maior que a própria doença. Com a maior utilização dos procedimentos invasivos e o surgimento de novas drogas e aparelhagens destinadas a preservar a todo custo a vida dos pacientes, houve um significativo aumento dos casos de iatrogenia. Com efeito, ao lado dos danos efetivamente provocados no paciente por tratamento médico errôneo, são hoje freqüentes aqueles causados pelo uso excessivo de medicamentos, bem como os resultantes de procedimentos desnecessários. Com o aumento do tecnicismo, o médico deve estar sempre alerta para não se transformar em mero operador de máquinas e aparelhos. Ao olhar para um paciente apenas como um conjunto de órgãos, o profissional negligencia seus aspectos emocionais, podendo causar malefícios consideráveis à pessoa que necessita de sua ajuda. É de interesse notar que alguns profissionais só conseguem perceber a importância da humanização da medicina quando eles próprios passam para a condição de doentes internados num hospital. Só então chegam a compreender a angústia e o medo normais do ser humano à mercê de uma enfermidade. A deterioração da relação médico–paciente tem contribuído grandemente para o aumento do número de processos judiciais por responsabilidade médica. A falta de um bom relacionamento é também causa de parte expressiva das denúncias de supostos erros médicos perante os Conselhos de medicina. Por outro lado, quando existe uma boa comunicação entre médico e paciente, este encara com mais naturalidade as eventuais conseqüências adversas do tratamento. Quando o médico demonstra respeito e consideração para com os sentimentos e opiniões do enfermo, este se sente como tendo participado das decisões e, conseqüentemente, aceita mais facilmente os resultados do tratamento, ainda que não tão satisfatórios. Todavia, não são poucos os profissionais que encaram como conflitantes os princípios bioéticos da beneficência e da autonomia. Entendem que, se hão de fazer o bem ao paciente, devem pautar-se exclusivamente pelos padrões científicos e pelos ditames de sua consciência. Tais profissionais, porém, acabam por desconsiderar a vontade do paciente, assumindo uma postura autoritária que faz recair sobre eles todo o peso da responsabilidade pelas conseqüências da intervenção. Diante de todos esses fatores, há que se perscrutar o que de fato constitui o “bem” para o paciente e como alcançá-lo. Há que se indagar: é possível conciliar o dever do médico de “usar o melhor do progresso científico em benefício do paciente” (consoante determina o art. 5.º do Código de Ética Médica) com a proibição de “exercer sua autoridade de maneira a limitar o direito do paciente de decidir livremente sobre a sua pessoa ou seu bem-estar” (conforme estabelece o art. 48 do mesmo diploma deontológico)? Como harmonizar a vedação de “efetuar qualquer procedimento médico sem o esclarecimento e o consentimento prévios do paciente” (art. 46), com a exceção do dever de atuar em caso de “iminente perigo de vida” (art. 46, in fine)? A fim de encontrar respostas a essas indagações, inicialmente procedemos a uma ligeira consideração dos quatro princípios de Beuchamp e Childress: beneficência, não maleficência, autonomia e justiça. A partir daí, examinamos o confronto entre os princípios da autonomia e da beneficência, analisando-se este à luz daquele. Por fim, propomos um modo de solucionar aparentes conflitos de interesses, por meio da conciliação dos princípios da bioética, visando o alcance do amplo respeito à dignidade do ser humano. Distanciando-nos de uma bioética exclusivamente principialista, propomos uma análise casuística da relação médico—paciente, pela indagação do que constitui a beneficência em cada situação concreta. Partindo dos princípios bioéticos como formas pacíficas de convívio, e não como regras inflexíveis de conduta, procuramos apontar para a necessidade premente da maior humanização da medicina. 2. A BIOÉTICA E SEUS PRINCÍPIOS O vocábulo bioética provém da junção do antepositivo “bio” (do grego bíos, vida) e da palavra “ética” (do latim ethìca, derivado do grego éthikê). Bioética é, Revista Ibero-Americana de Direito Público . assim, literalmente, a ética da vida. Constitui “parte da Ética, ramo da filosofia, que enfoca as questões referentes à vida humana”.1 O termo em inglês, bioethics, foi utilizado pela primeira vez, segundo se tem conhecimento, no ano de 1970.2 O movimento da bioética estabeleceu-se nessa mesma década nos Estados Unidos; na década de 1980, na Europa; no início da década de 1990, na Ásia; e a partir daí, em vários dos chamados países em desenvolvimento.3 Não obstante, como observa o professor Marco Segre, “a discussão de temas como o aborto e a eutanásia, apenas para citarmos dois exemplos, vem desde muito antes, acentuando- se durante as últimas décadas”.4 A bioética provém de uma corrente de idéias segundo a qual os avanços científicos “não constituem automaticamente progressos para a humanidade em geral, de tal modo que o que é tecnocientificamente possível não é ipso facto sempre bom nem necessariamente permissível.”5 Muito se tem falado a respeito da bioética atualmente. Ao contrário do que alguns erroneamente imaginam, porém, o termo “bioética” não constitui uma nova nomenclatura para designar a ética médica. Nem se refere exclusivamente aos problemas e implicações morais relacionados às pesquisas científicas nas áreas da biologia e da biomedicina. Na realidade, a bioética é muito mais do que a ética do médico, ou mesmo do profissional de saúde ou do cientista; é a ética da vida humana e, conseqüentemente, a ética de toda a sociedade. Afinal, as discussões relativas à vida e à saúde interessam a todos nós: médicos, advogados, psicólogos, engenheiros, professores,religiosos, sociólogos etc. Nesse sentido, a bioética tem como uma de suas principais características a interdisciplinaridade, entendida como o envolvimento de várias disciplinas que visam conjuntamente proporcionar, ao lado da evolução do conhecimento científico (notadamente em relação a pesquisas e tratamentos médicos), a percepção dos conflitos, o exercício da autonomia e a busca pela coerência. A bioética, outrossim, não é impositiva. Não visa estabelecer normas ou regras de conduta. Ainda assim, não escapou à tendência humana de normatização. Diante da preocupação pública com o controle social da pesquisa científica em seres humanos (especialmente considerando a ocorrência de alguns escândalos envolvendo grande desrespeito para com pacientes negros, crianças e idosos), foi criada pelo Congresso norte-americano, em 1974, a National Commission for Protection of Human Subjects of Biomedical and Behavioral Research, com a finalidade de realizar estudos destinados a identificar os princípios éticos básicos da biomedicina. Quatro anos depois, a referida comissão concluiu um relatório final conhecido como Belmont Report. Este relatório serviu de base para a criação de três princípios éticos básicos, que acabaram sendo sistematizados num livro de Tom L. Beauchamp e James F. Childress, de 1979, _____________ 1 Marco Segre, Definição de bioética e sua relação com a ética, deontologia e diceologia, p. 23. 2 O oncólogo Van Rensselaer Potter utilizou pela primeira vez o vocábulo num artigo escrito em 1970, com o título The science of survival, e no ano seguinte, num volume intitulado Bioethics: bridge to the future. (Elio Sgreccia, Manual de bioética: I – Fundamentos e ética biomédica, p. 23. 3 Léo Pessini e Christian de Paul de Barchifontaine, Problemas atuais de bioética, p. 11. 4 Marco Segre, Da mente e do coração, p. 1. 5 Gilbert Hottois e Marie-Hélène Parizeau, Dicionário da bioética, p. 62. intitulado Principles of Biomedical Ethics.6 Os três princípios estabelecidos no relatório Belmont foram os seguintes: 1) respeito pelas pessoas (posteriormente traduzido como “autonomia”); 2) beneficência (prática ou virtude de fazer o bem, de beneficiar o próximo); e 3) justiça (caráter ou qualidade do que está em conformidade com o que é justo ou equânime). Beuchamp e Childress, todavia, retrabalharam os três princípios em quatro, distinguindo beneficência e não-maleficência. 2.1. O princípio da beneficência O princípio da beneficência (do latim bonum facere, i.e., fazer o bem) tem sido considerado o mais antigo da ética médica.7 Também é o que mais recebeu destaque durante muitos anos, fruto de uma cultura paternalista. Encontramos suas raízes no famoso Juramento de Hipócrates, em que lemos: “aplicarei os regimes para o bem dos doentes [...] na casa onde for, entrarei apenas pelo bem do doente”. As ciências médicas desenvolveram-se, portanto, tendo como objetivo primário fazer ou promover o bem. Tal desiderato tem sido entendido freqüentemente como o dever de recuperar a saúde e preservar a vida. Entretanto, há que se analisar cada caso de modo cuidadoso, a fim de que a pretensão de fazer o bem não se transforme numa obsessão de atuar, mesmo quando as circunstâncias concretas demonstram a insensatez da utilização de determinado procedimento. Apropriadamente, adverte Carlos Neves: “Na defesa do princípio da beneficência tem o médico de se precaver contra a obstinação terapêutica, não mobilizando meios tecnologicamente avançados quando é previsível, sob o ponto de vista científico, que não se vão obter os benefícios esperados. Assim, e particularizando nos doentes terminais, as atitudes terapêuticas deverão estar subordinadas à autonomia, à dignificação da morte e ao grau de sofrimento do doente.”8 Na história da medicina, a beneficência sempre foi acompanhada de uma restrição da autonomia das pessoas enfermas. Não raro procurava-se proteger o paciente de si mesmo, não se lhe permitindo exercer qualquer participação na escolha do método terapêutico. Esperava-se que o doente simplesmente se entregasse por completo às mãos dos “detentores do saber”. Com efeito, o princípio da beneficência presente no Juramento Hipocrático possui um forte caráter paternalista: “Aplicarei os regimes para o bem do doente segundo o meu poder e entendimento”, “segundo meu saber e minha razão”, e ainda, “segundo minha capacidade e juízo”. Daí decorre que o princípio da beneficência passa a ter como regra norteadora da prática médica o “bem” do doente não apenas segundo os critérios fornecidos pela medicina, mas também segundo o entendimento e juízo do próprio médico, vale dizer, de acordo com sua interpretação subjetiva. Isso significaria para o médico poder agir independentemente da concordância do paciente e mesmo que este _____________ 6 Pedro Federico Hooft, Bioética y derechos humanos: temas y casos, p. 6-7. 7 Maria Celeste Cordeiro dos Santos, O equilíbrio do pêndulo: a bioética e a lei, p. 42. 8 Carlos Neves, Bioética: temas elementares, p. 15. Revista Ibero-Americana de Direito Público . conhecesse as prováveis conseqüências e alternativas disponíveis. Marcos de Almeida levanta o seguinte questionamento: “Quais os motivos pelos quais devemos tratar nossos semelhantes como agentes racionais, como fins em si próprios e não meramente como meios para um determinado fim? Muitas pessoas sustentam o contrário. Muitos afirmam que quando desejamos ajudar as pessoas, especialmente no contexto médico, somos obrigados a tratar nossos pacientes como meios, meios para sua própria recuperação, por exemplo. O modelo habitualmente oferecido é aquele da relação entre um pai e seu filho, o modelo do paternalismo benevolente.”9 Segundo comenta o autor, a questão apresenta-se como “mais problemática quando tal comportamento não se refere a uma criança de cinco anos, mas a pacientes de maior idade.”10 Sendo o paciente maior e capaz, sob que fundamento dever-se-ia negar-lhe o direito de participar ativamente das questões que envolvem sua própria vida? À medida que os direitos humanos se consolidam, valorizando-se as liberdades individuais e a dignidade do ser humano, tão mais relevante se torna para o médico demonstrar consideração para com a vontade dos pacientes. Oportunas são as admoestações de Joaquim Clotet: “É evidente que o médico e demais profissionais de saúde não podem exercer o princípio da beneficência de modo absoluto. A beneficência tem também os seus limites, o primeiro deles seria a dignidade individual intrínseca de todo ser humano.”11 A beneficência não pode ser confundida com paternalismo. Ainda assim, a atitude paternalista tem caracterizado, em maior ou menor grau, a medicina contemporânea, sob o argumento de que se está fazendo o bem ao paciente. Diante disso, apresentam-se oportunas as observações de Edmund Pellegrino: “El paternalismo no podría equipararse a la beneficencia, como proponen algunos autores. El paternalismo implica la usurpación por parte del médico del derecho moral que tiene el paciente como ser humano de decidir lo que es mejor para sus propios intereses. Esa acción viola la integridad de la persona y en ningún caso podría considerar-se con un acto de beneficencia, ya que _____________ 9 Marcos de Almeida, Comentários sobre os princípios fundamentais da bioética, p. 60. 10 Ibid, mesma página. 11 Joaquim Clotet, Bioética: uma aproximação, p. 65. para ello es esencial respetar los valores y la facultad de elección del paciente.”12 A grande dificuldade dos médicos é saber delimitar a fronteira entre beneficência e paternalismo. Tratar um paciente, por exemplo, sem seu consentimento, ou sem lhe dizer que outros médicos usariam um métodoalternativo, não é beneficência. É paternalismo. Em determinadas circunstâncias, poderá constituir autoritarismo maléfico. A verdadeira beneficência envolve fazer o bem não apenas do ponto de vista do médico, mas também segundo o que o próprio paciente considera bom para si mesmo. 2.2. O princípio da não-maleficência De acordo com Beuchamp e Childress, “o princípio de não-maleficência determina a obrigação de não infligir dano intencionalmente.”13 Na ética médica, relaciona-se intimamente com a máxima “Primum non nocere” (Antes de tudo, não causar dano) — freqüentemente invocada pelos profissionais da área de saúde. No Juramento Hipocrático, encontramos tal princípio no final da frase: “Usarei o tratamento para ajudar o doente de acordo com minha habilidade e com meu julgamento, mas jamais o usarei para lesá-lo ou prejudicá-lo”. Este princípio (de não fazer o mal ao ser humano) e o princípio da beneficência (de fazer o bem) “têm sido as bases da moral da profissão médica ao longo dos séculos”.14 No Relatório Belmonte, ambos os princípios foram tratados como um só.15 Para Beauchamp e Childress, todavia, eles têm uma caráter moral diferente, já que o dever de não fazer o mal apresenta-se como mais vinculativo do que a exigência de fazer o bem.16 De fato, comentam estes autores que “embora a não-maleficência e a beneficência sejam similares e freqüentemente tratadas na filosofia moral como não sendo nitidamente distinguíveis, combiná-las num mesmo princípio obscurece distinções relevantes”.17 Diante disso, concluem: “em geral, as obrigações de não- maleficência são mais rigorosas que as obrigações de beneficência; e, em alguns casos, a não-maleficência suplanta a beneficência, mesmo que o resultado mais útil seja obtido agindo-se de forma beneficente.”18 Beauchamp e Childress passam então a examinar criticamente as distinções entre “matar” e “deixar morrer”, entre a “abstenção” e a “interrupção” do tratamento, bem como as relativas a diversos outros parâmetros desenvolvidos para a especificação dos requerimentos da não-maleficência na assistência à saúde, especialmente no que diz respeito a decisões por tratamentos ou à decisão pelo não-tratamento: _____________ 12 Edmund D. Pellegrino, La relación entre la autonomía y la integridad en la ética médica, p. 387. 13 Tom L. Beauchamp e James F. Childress, Princípios de ética biomédica, p. 209. 14 Carlos Neves, Bioética: temas elementares, p. 15. 15 Pedro Federico Hooft, Bioética y derechos humanos, p. 7. 16 Carlos Neves, Bioética: temas elementares, p. 15. 17 Tom L. Beauchamp e James F. Childress, op. cit., p. 210. 18 Ibid., p. 211. Revista Ibero-Americana de Direito Público . “O desconforto dos profissionais de saúde com a interrupção dos tratamentos de suporte de vida parece refletir a idéia de que essas ações os tornam responsáveis — e, portanto, culpáveis — pela morte do paciente, enquanto não são responsáveis se não derem início ao tratamento. Uma outra fonte de desconforto para os profissionais, referente à interrupção de tratamentos, é a convicção de que iniciar um tratamento muitas vezes cria a expectativa de que ele prosseguirá, enquanto interrompê-lo parece contrariar as expectativas, promessas ou obrigações contratuais para com o paciente e a família. As expectativas e promessas equivocadas deveriam ser evitadas desde o princípio. A expectativa ou promessa apropriada é a de que os profissionais agirão de acordo com os interesses e os desejos do paciente (dentro dos limites dos sistemas defensáveis para a alocação dos serviços de saúde e das regras sociais defensáveis sobre matar). Interromper um tratamento particular, incluindo o de suporte de vida, não envolve necessariamente o abandono do paciente. A interrupção pode seguir as diretrizes do paciente e ser acompanhada e seguida por outras formas de cuidado.”19 De fato, parece-nos prescindível a divisão entre os dois princípios, beneficência e não-maleficência, desde que não se esqueça que este se insere naquele. Expresso de outro modo, se a atuação “beneficente” provocará um dano maior do que a não intervenção, levando-se em consideração o paciente como um todo, o médico deve reavaliar sua conduta e pensar melhor antes de intervir. 2.3. O princípio da autonomia No decorrer dos séculos, o princípio da beneficência recebeu bem maior destaque do que o da autonomia. De fato, no juramento hipocrático, este princípio está totalmente ausente. Aliás, longe de aceitar a autonomia do paciente, as palavras de Hipócrates revelam nítido paternalismo, ou quiçá, verdadeiro autoritarismo: “aplicarei os regimes para o bem dos doentes, segundo meu saber e a minha razão”. Ou seja, somente o “saber” e a “razão” médicos é que poderiam conhecer e estabelecer o que seria o “bem” do paciente, sem nenhuma consideração para com seus sentimentos e sem levar em conta suas vontades. Ao princípio da autonomia só se deu amplo destaque nos Estados Unidos, nas últimas décadas, com a necessidade de se melhorar o relacionamento entre o usuário do serviço de saúde e o profissional que lhe atende, evitando com isso as crescentes demandas judiciais. Ideologicamente, porém, o respeito à individualidade humana provém do Iluminismo europeu, desenvolvendo-se a partir de Descartes, Montesquieu, _____________ 19 Ibid., p. 218-9. Russeau e, posteriormente, Kant.20 O princípio da autonomia, estabelecido originalmente no informe Belmont, indicava que o respeito pelas pessoas incorpora ao menos duas convicções éticas: a primeira, de que os indivíduos deveriam ser tratados como entes autônomos; a segunda, de que as pessoas cuja autonomia está diminuída deveriam receber proteção. Entendia-se por ente autônomo o indivíduo capaz de deliberar sobre seus próprios objetivos pessoais e atuar sob a direção dessa determinação. Sustentava-se, também, que respeitar a autonomia significava dar valor às opiniões e escolhas de cada pessoa, evitando interferir nas suas ações, a menos que estas prejudicassem a terceiros. Por outro lado, constituiria um desrespeito ao sujeito autônomo repudiar os critérios por ele estabelecidos, impedindo-o de atuar livremente de acordo com tais critérios, ou negando-lhe informações necessárias a fim de poder emitir um juízo correto. Autonomia é, portanto, a capacidade de atuar com conhecimento de causa e sem coação externa.21 A palavra autonomia provém de “auto”, do grego autos (por si mesmo), e “nomia”, do grego nómos (lei). Significa, literalmente, “lei para si mesmo” e expressa o direito que cada ser humano possui de se autogovernar, de acordo com suas próprias leis. “Num sentido mais amplo, autonomia tem sido usada para referir diversas noções, incluindo autogoverno, liberdade de direitos, escolha individual, agir segundo a própria pessoa.”22 Maria Celeste Cordeiro dos Santos comenta: O princípio da autonomia, denominação mais comum pela qual é conhecido o princípio do respeito às pessoas, exige que aceitemos que elas se autogovernem, ou sejam autônomas, quer na sua escolha, quer nos seus atos. Esse princípio requer, por exemplo, que o médico respeite a vontade do paciente, ou do seu representante, assim como seus valores morais e crenças.23 O conceito de autonomia é empregado por Beauchamp e Childress para examinar a tomada de decisão no cuidado da saúde, a fim de identificar o que é protegido pelas regras de consentimento informado e recusa informada. Conforme revelam os autores, “desde os julgamentos de Nuremberg, que apresentaram relatos horrendos de experiências médicas em campos de concentração, a questão do consentimento tem estado em primeiro plano nas discussões da ética biomédica.”24 O consentimento informado apresenta-se, outrossim, como extremamenterelevante para o alcance do pleno respeito à autonomia do paciente. Durante muito tempo, o médico sentiu-se exonerado do dever de obter o consentimento do paciente com supedâneo no argumento, não raro falacioso, de que o doente, além de afetado em suas condições psíquicas em virtude da enfermidade, também era leigo e ignorante, não possuindo conhecimento suficiente para decidir se desejava ou não um determinado tratamento. _____________ 20 Marco Segre, Considerações críticas sobre os princípios da bioética, p. 176-177. 21 Pedro Federico Hooft, Bioética y derechos humanos, p. 7. 22 Claudio Cohen e José Álvaro Marques Marcolino, Relação médico-paciente: autonomia e paternalismo, p. 53. 23 Maria Celeste Cordeiro dos Santos, O equilíbrio do pêndulo: a bioética e a lei, p. 43. 24 Tom L. Beauchamp e James F. Childress, op. cit., p. 161. Revista Ibero-Americana de Direito Público . Aos poucos, a idéia milenar, proveniente da tradição hipocrática, de que a decisão do tratamento que há de se aplicar ao enfermo é de competência exclusiva do médico, passou a ser questionada. Atualmente, já não se admite uma postura autoritária do profissional de saúde. Qualquer intervenção só pode ser realizada após a obtenção do consentimento do paciente, depois de ser ele suficientemente esclarecido dos possíveis riscos, benefícios e alternativas disponíveis. Na definição de Joaquim Clotet, o consentimento informado consiste na “decisão voluntária, realizada por pessoa autônoma e capaz, tomada após um processo informativo e deliberativo, visando à aceitação de um tratamento específico ou experimentação, sabendo da natureza do mesmo, das suas conseqüências e dos seus riscos.”25 Prelecionam Elena Highton e Sandra Wierzba: “El consentimiento informado implica una declaración de voluntad efectuada por un paciente, por la cual, luego de brindársele una suficiente información referida al procedimiento o intervención quirúrgica que se le propone como médicamente aconsejable, éste decide prestar su conformidad y someterse a tal procedimiento o intervención.”26 O consentimento informado, também chamado de consentimento livre e esclarecido, consentimento pós-informação ou consentimento após-informação, tem-se caracterizado como um dos elementos condicionantes do exercício legítimo da medicina. Hubert Lepargneur, citando Jean-Marie Mantz, expõe que a “noção de consentimento esclarecido que garante a autonomia do doente é a pedra angular de toda a ética médica ocidental.”27 No mesmo diapasão encontramos os ensinamentos de Pablo Simón Lorda: “La esencia del consentimiento informado no es otra que considerar que las decisiones sanitarias, para ser moralmente aceptables, deben ser decisiones autónomas tomadas por los afectados por ellas, los propios pacientes. Evidentemente en las decisiones sanitarias entran en juego más factores, como la corrección científico-técnica o la adecuación a los recursos disponibles. Pero para la teoría del consentimiento informado — que constituye el núcleo de la moderna bioética — todos estos factores sólo sirven para modular a posteriori la idea de que lo esencial es que la decisión clínica sea una decisión autónoma del paciente.”28 _____________ 25 Joaquim Clotet, O consentimento informado nos comitês de ética em pesquisa e na prática médica: conceituação, origens e atualidade, p. 52. 26 Elena I. Highton e Sandra M. Wierzba, La relación médico-paciente: el consentimiento informado, p. 11. 27 Hubert Lepargneur, Bioética, novo conceito a caminho do consenso, p. 72. 28 Pablo Simón Lorda, La evaluación de la capacidad de los pacientes para tomar decisiones y sus problemas. In: Lydia Feito Grande, Estudios de bioética, p. 119. O péssimo costume, cada vez mais combatido, de deixar de fornecer ao doente as devidas informações, reflete a ausência de uma boa comunicação entre médicos e pacientes. De fato, a questão do consentimento esclarecido constitui um dos pontos críticos dessa relação, como mencionou Júlio Cézar Meirelles Gomes em artigo publicado no jornal Medicina: “O consentimento esclarecido é outro aspecto pontual de grande importância na construção de uma relação médico-paciente rica e consistente. [...] A medicina técnica não pode sufocar uma relação entre seres vivos, não pode suscitar no paciente indefeso o pavor de defrontar-se com um piloto de máquinas, um exterminador de doenças mascarado de aparência técnica e fria — como ocorre em filmes de ficção científica”.29 A necessidade da captação do consentimento para a atuação médica decorre, na realidade, do direito que o paciente tem de opor-se ao tratamento, optando por outro que lhe pareça menos invasivo, ou até mesmo rejeitando toda e qualquer intervenção em seu corpo. Destarte, se o paciente pode livremente consentir no tratamento, também pode livremente recusá-lo. Afinal, de nada adiantaria assegurar-lhe o direito ao consentimento se, mesmo discordando do tratamento, o paciente fosse obrigado a ele submeter-se. Destarte, o direito do paciente ao consentimento informado não se subsume ao direito de simplesmente ouvir do médico as explicações sobre o tratamento ao qual deverá se submeter para em seguida concordar. Inclui, obviamente, o direito de escolha entre diversas opções terapêuticas e, por conseguinte, o direito de recusa de algumas delas. Trata-se, com efeito, da expressão máxima do seu exercício de sujeito autônomo. 2.4. O princípio da justiça Diversos termos já foram empregados na tentativa de explicar o que é justiça, como eqüidade, merecimento e prerrogativa. Estas concepções interpretam a justiça como “um tratamento justo, eqüitativo e apropriado, levando em consideração aquilo que é devido às pessoas”.30 O princípio bioético da justiça visa “garantir a distribuição justa, eqüitativa e universal dos benefícios dos serviços de saúde.”31 Essa interpretação é feita tendo como base a visão da justiça distributiva, que busca a distribuição igualitária dos recursos de saúde a todos aqueles que têm as mesmas necessidades. Se dois indivíduos semelhantes, em condições semelhantes, receberem tratamentos diferenciados, sendo fornecido melhor tratamento a um, e pior ao outro, estará havendo claramente uma distribuição desigual dos riscos e benefícios. A correta distribuição dos recursos de saúde, porém, não é tão simples, pois nem sempre é fácil reconhecer que são os iguais que devem ser tratados igualmente. Afinal, _____________ 29 Júlio Cézar Meirelles Gomes, A bioética e a relação médico-paciente, p. 9 30 Tom L. Beauchamp e James F. Childress, op. cit., p. 352. 31 Maria Celeste Cordeiro dos Santos, O equilíbrio do pêndulo: a bioética e a lei, p. 45. Revista Ibero-Americana de Direito Público . as pessoas encontram-se em diferentes situações clínicas e sociais.32 Dentre as teorias desenvolvidas para especificar e tornar coerentes os princípios da justiça distributiva, podem ser mencionadas as seguintes: teorias utilitaristas, que enfatizam uma mistura de critérios com o propósito de maximizar a utilidade pública; teorias comunitaristas, que enfatizam as práticas e os princípios de justiça que evoluem dentro da tradição numa comunidade; e as teorias igualitárias, que pregam a distribuição igual dos benefícios e encargos sociais. O tratamento igualitário tendente a proporcionar a aplicação da justiça não significa, porém, tratar a todos de modo exatamente idêntico, sem levar em consideração suas disparidades inerentes. Fazer isso deixaria de constituir tratamento equânime e produziria maior discriminação injusta. As diversidades da natureza física e da estrutura psicológica do ser humano, suas necessidades e tendências, são fatores que precisam ser levadosem consideração. Deveras, a aplicação da justiça distributiva constitui um verdadeiro desafio, principalmente em países subdesenvolvidos. A escassez de recursos, as limitações científicas e a mercantilização da medicina são apenas alguns fatores que dificultam enormemente a distribuição eqüitativa dos benefícios dos serviços de saúde. Ainda assim, aqueles que escolheram utilizar as suas vidas para tratar de seus semelhantes devem ter a justiça diante de si como um ideal a ser buscado diuturnamente. 3. A ATUAL APLICAÇÃO DO PRINCÍPIO DA BENEFICÊNCIA Ao analisar-se a história da medicina, verifica-se que o princípio da beneficência não raro foi utilizado como camuflagem para a prática de atos de autoritarismo, sendo interpretado apenas para se seguir um sistema de tratamento que, de acordo com a capacidade e juízo do médico, era considerado “benéfico”. Lamentavelmente, não foi incomum, no decorrer dos tempos, comportar-se o esculápio como dono da vida do paciente, dominando-o e constrangendo-o, sob a roupagem de estar agindo para o seu bem. Em alguns casos, essa opressão chegou a extremos inadmissíveis, como revelam as experiências ocorridas em campos de concentração nazistas. Segundo Arthur L. Caplan, o espírito característico do profissionalismo, que afirmava que os interesses dos pacientes são melhor servidos depositando a total confiança no médico e que essa confiança significa cumprir integralmente as ordens do médico, acabou por dar supedâneo à atuação dos cientistas médicos no regime nazista.33 As atrocidades ocorridas na Alemanha nazista são exemplos extremos e, felizmente, deplorados pela maioria dos profissionais. Todavia, o autoritarismo médico ligado à supremacia do pensamento científico perdura até hoje. Comenta Caplan: _____________ 32 Elio Sgreccia, op. cit., p. 167. 33 Arthur L. Caplan, Quando a medicina enlouqueceu, p. 86-7. “Embora durante a formação, tivesse sido ensinada aos médicos a arte de curar e até a preocupação humanitária com o bem estar físico do paciente, também lhes ensinaram que os médicos devem decidir aquilo que é melhor para o paciente. Não foram educados para acreditar que os pacientes devem ser consultados e os seus desejos considerados. Essas idéias revolucionárias eram alheias ao seu pensamento, tal como foram — pelo menos até há pouco — ao pensamento dos médicos em todo o mundo civilizado.”34 Embora esteja o médico proibido de “efetuar qualquer procedimento médico sem o esclarecimento e o consentimento prévios do paciente”, como dispõe o art. 46 do Código de Ética Médica, atitudes arbitrárias ainda ocorrem, conforme menciona Léo Meyer Coutinho: “Certamente por influência da época em que o médico era visto como um semideus, ainda é freqüente um comportamento que reflete essa atitude. Não é raro, em especial os pacientes humildes, informarem, na anamnese, que foram operados e exibem uma cicatriz cirúrgica abdominal. Perguntamos qual cirurgia foi efetuada e ele responde: “Não sei. O doutor não disse.” Outras vezes o médico examina o paciente, no dia seguinte ele recebe a medicação pré- anestésica, é levado para o centro cirúrgico, é operado, e só fica sabendo quando acorda da anestesia. Felizmente já é bem mais raro, mas ainda acontece. É fundamental o médico ter consciência que o paciente não é de sua propriedade. Ele tem, e deve ser respeitada, vontade própria. Até mesmo para prescrever os medicamentos o médico deve informá-lo das finalidades.”35 O extraordinário desenvolvimento do poder médico contemporâneo chegou paradoxalmente a fazer que se esquecesse do doente, que passasse por cima de seus valores, que desprezasse sua vontade, tudo sob o pretexto de fazer-lhe o bem. Significativas são as elucubrações de Philippe Meyer: “A medicina não foge hoje ao paradoxo que ameaça toda ciência ou técnica evoluída, o de se voltar contra si mesma e de não alcançar seu objetivo. Sua força técnica pesa cada vez mais sobre a personalidade humana, da concepção à _____________ 34 Ibid., 277. 35 Léo Meyer Coutinho, Código de ética médica comentado, p. 59-60. Revista Ibero-Americana de Direito Público . morte, correndo o risco de se esquecer de que tratar ainda conta, às vezes, tanto quanto curar.”36 Ocorre que, desde o momento da consulta médica inicial, instala-se em geral uma relação de poder, atribuindo-se o saber ao médico e a ignorância ao paciente. Outrossim, a decisão daquele é tida como soberana, não podendo ser questionada por ninguém, como preleciona Jean Clavreul: “Au nom du principe que le savoir est chez le médecin et l’ignorance chez le malade, il est justifié à décider en maître absolu, chacun ne pouvant dounter qu’il sait mieux que tout autre quel est le bien de son malade, et qu’il ne peut pas ne pas désirer ce bien.”37 A maior conscientização do ser humano acerca de seus direitos, todavia, não mais admite uma atitude autoritária da classe médica. A conduta beneficente não pode mais ser atrelada a um critério unilateral do profissional de saúde. É direito do paciente participar na escolha do que constitui o bem para si mesmo. Para que tal direito não seja violado, é necessário que haja um amplo respeito à autonomia. Como mencionam Beuchamp e Childress, “tradicionalmente, os médicos conseguiram se apoiar quase que exclusivamente em seus próprios julgamentos sobre as necessidades de seus pacientes no tocante a tratamentos, informações e consultas.”38 Todavia, especialmente nos últimos anos, a medicina tem se confrontado cada vez mais com a reivindicação dos pacientes no que tange à escolha dos métodos terapêuticos empregados. Essa mudança na atitude dos pacientes tem sido causada, em grande parte, pelo reconhecimento de seu direito à autonomia. Quanto mais o paciente adquire consciência de seus direitos, porém, tão mais intensos podem se apresentar os conflitos entre a beneficência e a autonomia. 3.1. O confronto entre beneficência e autonomia Um dos problemas centrais da ética biomédica consiste em saber se o respeito à autonomia dos pacientes deve ter prioridade sobre a beneficência do profissional. Os debates entre os defensores da autonomia e os defensores da beneficência deram origem a modos diversos de se encarar a beneficência, dependendo das circunstâncias: para alguns, o princípio da beneficência rivaliza com o princípio da autonomia; já para outros, o princípio da beneficência incorpora a autonomia do paciente (no sentido de que as preferências do paciente ajudam a determinar o que realmente constitui um benefício para ele).39 _____________ 36 Philippe Meyer, A irresponsabilidade médica, p. 11. 37 Jean Clavreul, L’ordre medical, p. 181. Tradução livre: “Em nome do princípio de que o saber está no médico e a ignorância no doente, ele se acha justificado para decidir enquanto mestre absoluto, ninguém podendo questionar que ele sabe melhor que qualquer outro qual é o bem de seu doente e de que ele não pode não desejar este bem.” 38 Tom L. Beauchamp e James F. Childress, op. cit., p. 295. 39 Ibid., p. 296. As divergências acerca de qual princípio ou modelo deve ser considerado prioritário na prática médica não são fáceis de serem conciliadas. Nem pode a questão ser tratada de modo simplista, defendendo-se um princípio contra o outro, ou considerando-se um deles absoluto. Afirmar que princípios éticos são absolutos supõe negar que possam comportar exceções, o que equivale a dizer que não pode haver circunstâncias em que determinado princípio não seja aplicável. Isso demonstra que procurar estabelecer parâmetros extremos é inviável ao se tratar de bioética. Para Joaquim Clotet, apresenta-se como evidente que nem o médico nem os demais profissionais de saúde podemexercer o princípio da beneficência de modo absoluto: “A beneficência tem também os seus limites, o primeiro deles seria a dignidade intrínseca de todo ser humano.”40 De acordo com as ponderações de Soares e Piñeiro, para que se alcance o melhor para o paciente deve haver um equilíbrio entre o princípio da beneficência e o princípio da autonomia: “Nas decisões clínicas, a responsabilidade profissional do médico diante do sofrimento e das mais inusitadas vontades de seu paciente não pode ser desconsiderada, mas não se pode, por outro lado, ignorar a subjetividade, os critérios de valor e o desejo que o paciente tem de ser respeitado e de continuar mantendo a confiança naquele ao qual foi entregue.”41 Sauwen e Hryniewicz ressaltam que, na hipótese de um conflito, deve ser realizada uma minuciosa avaliação, na tentativa de se evitar o mal para os envolvidos.42 O problema, infelizmente, nem sempre é fácil de ser solucionado. Entretanto, o diálogo franco entre médico e paciente pode ajudar, ao menos, a minimizá-lo, permitindo uma colaboração constante no processo de tratamento de saúde. 3.2. O que significa fazer o bem Alex Botsaris tece críticas contundentes à desumanização da medicina. Segundo o autor, “a perda da humanidade é causada, especialmente, por três fatores: o excesso de tecnicismo, o desprezo pela subjetividade dos pacientes e a formação médica incompleta e pouco direcionada para os aspectos humanos.”43 A despeito da boa intenção dos médicos, estes não raro têm desconsiderado que fazer o bem ao paciente envolve dar atenção não apenas ao que o profissional de saúde considera como apropriado ou proveitoso no processo de cura, mas também os valores do paciente. Sauwen e Hryniewicz salientam a importância de se dar atenção a tais fatores: “No caso da medicina, este princípio impõe que se deva agir sempre no real interesse do paciente, evitando paternalismo que, normalmente, leva à realização do _____________ 40 Joaquim Clotet, Bioética: uma aproximação, p. 65. 41 André Marcelo M. Soares e Walter Esteves Piñeiro, Bioética e biodireito: uma introdução, p. 35. 42 Regina Fiuza Sauwen e Severo Hryniewics, O direito “in vitro”: da bioética ao biodireito, p. 25. 43 Alex Botsaris, Sem anestesia: o desabafo de um médico, p. 239. Revista Ibero-Americana de Direito Público . interesse de quem age por ele movido.”44 O paciente não mais aceita ser tratado como um mero objeto. Ao contrário, reivindica o direito tornar-se participador ativo na tomada de decisões referentes à sua saúde. Cada vez mais deseja tomar parte na escolha dos procedimentos diagnósticos e terapêuticos, a fim de conquistar seu espaço e alcançar seu direito de ser tratado da maneira que lhe proporcione o maior bem físico, mental e espiritual. Não se olvide: a medicina não pode prosseguir na busca pelo bem da humanidade se deixar de respeitar os valores morais básicos de uma sociedade fraterna, pluralista e sem preconceitos. A ciência possui, e devem ser respeitados, os limites encontrados na ética e na dignidade da pessoa humana.45 Diego Gracia bem ilustra a necessidade de se buscar o bem para o paciente de acordo com as reais necessidades deste, levando-se em consideração seus valores morais, religiosos e culturais, dentre outros. Explica o autor: “Un acto de beneficencia debe ser dado y recibido libremente, y por tanto se halla intrínsecamente relacionado con la autonomía. En mi opinión autonomía y beneficencia son principios morales estrechamente relacionados, y por tanto del mismo nivel. Por ejemplo, yo defino autónomamente mi sistema de valores, mis objetivos de vida, mi propia idea de perfección y felicidad, y por tanto el conjunto de acciones que considero beneficentes para mí. Algo puede ser beneficente para una cierta persona y no para otra. Para un Testigo de Jehová la transfusión de sangre no es un procedimiento beneficente, en tanto que para los demás sí lo es. Algo beneficente es siempre para mí. La beneficencia lo es siempre respecto al propio sistema de valores religiosos, culturales, políticos y económicos. Este es el nivel en el que todos nosotros somos diferentes, debido a la diversidad de nuestras ideas de perfección y felicidad. Autonomía y beneficencia no sólo nos permiten ser moralmente diferentes, sino que nos obligan a serlo, y obligan a los demás a respetar nuestra idea de vida buena.”46 O médico que realmente busca o bem do paciente não realiza de modo individual e autoritário o que se entende por bom, justo ou adequado. O profissional que assim agir não estará, da fato, sendo beneficente. Estará sendo prepotente e _____________ 44 Regina Fiuza Sauwen e Severo Hryniewics, op. cit., p. 25. 45 Cf. Maria Garcia, Limites da ciência, p. 137-211. 46 Diego Gracia, Cuestión de principios, p. 27. dominador. Fazer o bem, ao contrário, significa levar em conta não apenas o que ele próprio, médico, entende como benéfico, mas o que o paciente entende como bom. Envolve, em suma, levar em consideração os desejos, vontades, aspirações, crenças e sentimentos do próprio paciente. 4. CONCLUSÃO Infelizmente, nem sempre é fácil resolver os conflitos surgidos na relação médico–paciente. Não podemos criar regras fixas, inflexíveis, a fim de estabelecer uma conduta a ser seguida. As circunstâncias precisam ser analisadas caso a caso. Como salienta Marco Segre, sempre que se procura estabelecer “princípios”, na verdade, se está querendo erigir uma norma que venha ao encontro do que sentimos serem nossas tendências. Isso tem ocorrido com a Bioética, de modo a criar maiores dificuldades de entendimento entre os envolvidos numa relação já conturbada. Daí a pertinência de suas palavras: “É sempre oportuno lembrar que a postura ética emerge da percepção de um fenômeno que ocorre dentro de cada um de nós. Essa situação ocorre com relação a três dos tão decantados princípios da bioética: autonomia, beneficência e não- maleficência [...] e não da obediência a regras, códigos ou princípios.”47 Os princípios da bioética devem funcionar como meio, não como fim. Devem servir como caminhos, suportes e supedâneos para reflexões e, se possível, entendimentos. Cada caso precisa ser analisado individualmente. Não se pode estabelecer de antemão o que constitui beneficência, e o que não. Não se deve preconceber o que significa fazer o bem. O que pode ser feito, isto sim, é a promoção do diálogo, do respeito, da compreensão, como meios de humanizar a medicina, a fim de que os maiores bens do paciente possam ser mais facilmente preservados: não apenas sua vida e sua saúde, mas também sua dignidade como pessoa humana. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ALMEIDA, Marcos de. Comentário sobre os princípios fundamentais da bioética. In: PESSINI, Léo; BARCHIFONTAINE, Christian de Paul de. (orgs.) Fundamentos da bioética. São Paulo: Paulus, 1996. Cap. IV, p. 56-67. BARCHIFONTAINE, Christian de Paul de; PESSINI, Léo (orgs.). Bioética: alguns desafios. 2. ed. São Paulo: São Camilo — Loyola, 2002. (Coleção: Bioética em perspectiva) BEAUCHAMP, Tom. L.; CHILDRESS, James F. Princípios de ética biomédica. Trad. Luciana Pudenzi. São Paulo: Loyola, 2002. BOTSARIS, Alex. Sem anestesia: O desabafo de um médico - Os bastidores de uma medicina cada vez mais distante e cruel. Rio de Janeiro: Objetiva, 2001. CAPLAN, Arthur L. Quando a medicina enlouqueceu: a bioética e o holocausto. Trad. Zaira Miranda. Lisboa, Portugual: Instituto Piaget, 1997. (Coleção: Medicina e Saúde) _____________ 47 Marco Segre, Considerações críticas sobre os princípios da bioética, p.175. Revista Ibero-Americana de Direito Público . CLAVREUL, Jean. L’ordre médical. Paris: Éditionsdu Seuil, 1978. CLOTET, Joaquim. Bioética: uma aproximação. Porto Alegre: EDIPUCRS, 2003. ________. O consentimento informado nos comitês de ética em pesquisa e na prática médica: conceituação, origens e atualidade. Revista Bioética. Brasília, DF: Conselho Federal de Medicina, v. 3, n. 1, p. 51-59, 1995. COHEN, Claudio; MARCOLINO, José Álvaro M. Relação médico-paciente: autonomia & paternalismo. In: SEGRE, Marco; COHEN, Claudio. Bioética. 2. ed. ampl. São Paulo: EDUSP, 1999, p. 51-62. COSTA PINTO, José Rui. Questões actuais de ética médica. 4. ed. Portugal: Editorial A. O., 1996. COUTINHO, Léo Meyer. 3. ed. Código de ética médica comentado. Florianópolis: OAB/SP, 2003. CUNHA, Jorge Teixeira da. Bioética breve. São Paulo: Paulus, 2002. (Coleção: Fé e mundo pós- moderno, 4) DURANT, Guy. Introdução geral à bioética: história, conceitos e instrumentos. Trad. Nicolás Nyimi Campanário. São Paulo: São Camilo — Loyola, 2003. GARCIA, Maria. Limites da ciência. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2004. GOMES, Júlio Cézar Meirelles. A bioética e a relação médico-paciente. Jornal Medicina, Conselho Federal de Medicina, Brasília, DF, ano 14, n. 109, p. 8-9, set. 1999. GRACIA, Diego. Cuestión de principios. In: GRANDE, Lydia Feito. (ed.) Estudios de bioética. Madrid, España: Dykinson, 1997. HIGHTON, Elena I.; WIERZBA, Sandra M. La relación médico-paciente: el consentimiento informado. Buenos Aires, Argentina: Ad-Hoc, 1991 HOOFT, Pedro Federico. Bioética y derechos humanos: temas y casos. Buenos Aires, Argentina: Depalma, 1999. HOTTOIS, Gilbert; PARIZEAU, Marie-Hélène. Dicionário da bioética. Lisboa, Portugal: Instituto Piaget, 1998. ISMAEL, J. C. O médico e o paciente: breve história de uma relação delicada. São Paulo: T. A. Queiroz, 2002. LEPARGNEUR, Hubert. Bioética, novo conceito: o caminho do consenso. São Paulo: Loyola, 1996 LOLAS, Fernando. Bioética: o que é, como se faz. Trad. Milton Camargo Mota. São Paulo: Loyola, 2001. LORDA, Pablo Simón. La evaluación de la capacidad de los pacientes para tomar decisiones y sus problemas. In: GRANDE, Lydia Feito (Ed.). Estudios de bioética. Madrid, España: Dykinson, 1997, p. 119-154. NEVES, Carlos. Bioética: temas elementares. Lispoa, Portugal: Fim de Século, 2001. (Coleção: Saúde) PALÁCIOS, Marisa; MARTIS, André; PEGORARO, Olinto A. (orgs). Ética, ciência e saúde: desafios da bioética. Petrópoles, RJ: Vozes, 2002. PALMER, Michael. Problemas morais em medicina: curso prático. Trad. Barbara Theoto Lambert. São Paulo: São Camilo — Loyola, 2002. PELLEGRINO, Edmund D. La relación entre la autonomía y la integridad en la ética médica. Botetín de la Oficina Sanitaria Panamericana. Washington, DC, EUA, 1990. PESSINI, Léo; BARCHIFONTAINE, Christian de Paulo de. Problemas atuais de bioética, 5. ed. rev. e ampl., São Paulo: Loyola, 2000. SANTOS, Maria Celeste Cordeiro Leite. O equilíbrio do pêndulo. A bioética e a lei: implicações médico-legais. 1. ed. São Paulo: Ícone, 1998. SAUWEN, Regina Fiuza; HRYNIEWICZ, Severo. O direito “in vitro”: da bioética ao biodireito. 2. ed. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2000. SGRECCIA, Elio. Manual de bioética. Trad. Orlando Soares Moreira. São Paulo: Loyola, 1996, 2v. V. 1: Fundamentos e ética biomédica. SEGRE, Marco. Considerações críticas sobre os princípios da bioética. In: _______; COHEN, Claudio. Bioética. 2. ed. ampl. São Paulo: EDUSP, 1999, p. 175-180. ________. Definição de bioética e sua relação com a ética, deontologia e diciologia. In: ________; COHEN, Claudio. Bioética. 2. ed. ampl. São Paulo: EDUSP, 1999, p. 23-29. ________. Da mente e do coração. Boletim da Sociedade Brasileira de Bioética, São Paulo, ano 1, n.1, jun. 1999. SOARES, André Marcelo M.; PIÑEIRO, Walter Esteves. Bioética e biodireito: uma introdução. São Paulo: São Camilo — Loyola, 2002. (Coleção: Gestão em saúde) LIGIERA, Wilson Ricardo. Os princípios da bioética e os limites da atuação médica. Revista Ibero-Americana de Direito Público. (Coord. Ives Gandra da Silva Martins) Rio de Janeiro, ano 5, n. 20, p. 410-427, 4.º trim. 2005. REFERÊNCIA BIBLIOGRÁFICA:
Compartilhar