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AULA 3 - A POÉTICA DE LUÍS DE CAMÕES

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AULA 3 - A POÉTICA DE LUÍS DE CAMÕES
Ao final desta aula, o aluno será capaz de:
1. Identificar as especificidades do Classicismo em Portugal;
2. identificar as principais características do lirismo camoniano, em seu aspecto tradicional e erudito;
3. reconhecer a presença do maneirismo na poesia camoniana;
4. reconhecer a influência platônica na poesia lírica de Camões.
1 RENASCIMENTO E CLASSICISMO EM PORTUGAL
O CONTEXTO RENASCENTISTA
Para falarmos sobre o Classicismo em Portugal, é necessário, antes, abordamos um tema já discutido na segunda aula: o Renascimento. O período renascentista português pode ser localizado entre os séculos V e XVI.
As principais expressões literárias do momento deram-se na historiografia, na prosa doutrinária - escrita por reis e nobres, visando à formação integral do homem fidalgo  e na poesia.
A poesia portuguesa, durante o momento renascentista, passou por uma modificação extrema: a ruptura com o ideal trovadoresco, isto é, a separação entre letra e música.
Além disso, há a inserção de novos temas líricos, que resgatados da cultura clássica greco-romana, seguindo um movimento surgido na Itália.
Essas inovações ocorrem dentro do contexto da expansão marítima e do fortalecimento da classe burguesa em Portugal, que enriquece enormemente. É legítimo, inclusive, afirmar que o Renascimento ocorreu no ápice do poder e da riqueza material do país.
Esse enriquecimento possibilitou a constituição de um novo público intelectual e a ruptura com o domínio cultural da Igreja Católica.
É formada uma classe de jovens cujos estudos laicos afastam-se da escolástica e abrem espaço ao resgate e à valorização do pensamento humanista e da visão de mundo clássica, vista como padrão estético e moral, entretanto, não ocorre o predomínio absoluto do Humanismo em Portugal.
Ao contrário, os portugueses do século XV assistiram a uma grande crise de valores, fruto da tensão entre a nova forma de perceber o mundo e os resquícios de um mundo medieval que entrava em declínio. Desse embate nasce o que seria chamado de Fusionismo.
O Fusionismo é a fusão entre o pensamento religioso medieval e o pensamento antropocêntrico do Humanismo, de modo a mesclar os elementos herdados do Cristianismo aos oriundos da cultura clássica greco-romana.
O Antropocentrismo português tendeu a uma fusão com certos valores ainda resistentes do universo medieval, de modo que não é legítimo afirmar o seu caráter antirreligioso.
Apesar disso, há a ciência de que surge um novo Homem, que assiste a profundas transformações, como as grandes navegações, a invenção da imprensa e a emergência do pensamento racionalista, ainda que este tivesse em tensão com resquícios do teocentrismo, como dissemos.
O novo Homem era identificado com a ambição e o lucro, ideais tão caros à burguesia. É um Homem que redimensiona os seus conhecimentos sobre o mundo e volta-se para a razão e os prazeres, ciente da brevidade da vida.
2 ELEMENTOS DA POESIA RENASCENTISTA PORTUGUESA
É nesse momento, justamente, para e sobre esse Homem que surgem as primeiras sementes de uma consciência individual na poesia portuguesa. São poemas nos quais o eu lírico fala sobre questões subjetivas, revelando a percepção e o pensamento sobre a existência individual. Como exemplo, podemos citar o poema Vilancete seu, de Bernadim Ribeiro:
“Vilancete seu” (Bernardim Ribeiro)
Antre mim mesmo e mim
Nam sei que s´alevantou
Que tam meu imigo sou
Uns tempos com grand´engano
Vivi eu mesmo comigo;
Agora no mor perigo
Se me descobre o mor dano
Caro custa um desengano
E, pois m´este nem matou,
Quam caro que me custou!
De mim me sou feito alheo;
Antr´o cuidado e cuidado
Está um mal derramado
Que por mal grande me veo
Nova dor, novo receo
Foi este que tomou:
Assi me tem, assim estou.
No poema, podemos perceber o pensamento do eu lírico sobre a sua condição subjetiva, refletida em um tema que será frequente, também, em outros poetas da época, como Sá de Miranda: o alheamento de si.
Foi, inclusive, Sá de Miranda considerado o precursor de uma lírica renascentista em Portugal, em 1527. Após uma viagem à Itália, o poeta trouxe à sua terra natal o novo fazer poético, caracterizado, principalmente pela adoção de uma nova forma métrica, a chamada “medida nova”, isto é, pelo emprego dos versos decassílabos.
Com a adoção da medida nova, as redondilhas, até então predominantes na lírica escrita portuguesa, passaram a ser conhecidas como “medida velha”.
Apesar da abertura para novidades como a adoção da medida nova, a poesia portuguesa não abandona todo os fazeres poéticos medievais. Assim como houve o fusionismo no pensamento português na época, houve a continuidade de aspectos da poesia medieval que, muitas vezes, apareciam de modo mesclado a elementos mais modernos, oriundos das propostas poéticas italianas e, até mesmo, espanholas.
Além de Sá de Miranda e Bernadim Ribeiro, outros escritores destacaram-se no período, como Antônio Ferreira e Diogo Bernardes. Mas, dentre eles, o mais importante, sem dúvida, foi Luís de Camões.
3 A POESIA DE LUÍS DE CAMÕES
Conheça um pouco sobre a obra de Luís de Camões, considerado um dos maiores poetas de Portugal e do mundo.
A POESIA LÍRICA TRADICIONAL CAMONIANA
A poesia de Luís de Camões pode ser dividida em duas instâncias: lírica e épica. 
Sua obra pode ser dividida em:
Camões lírico: que usa a medida velha, com versos de 5 a 7 sílabas poéticas e se mostra um grande mestre da rima. Ele também é um dos maiores compositores de sonetos (sonetista). 
Camões épico: Um Camões que cultiva a epopeia na sua grande obra “Os Lusíadas”: são 10 cantos; o número de estrofes varia de canto para canto; composto por 1102 estrofes oitavas (ABABABCC – este é o esquema de rimas) e 8816 versos decassílabos (de 10 sílabas poéticas); seguindo a tradição clássica (Roma e Grécia), possui 5 partes (1. Proposição – a presenta o tema; 2 Invocação - o poeta pede inspiração às musas; 3. Dedicatória – ao Rei Dom Sebastião; 4. Narração – conta-se a viagem de Vasco da Gama e principais momentos da história de Portugal; 5. Epílogo).
 
A sua produção lírica, por sua vez, se reparte duplamente, em uma lírica tradicional e uma lírica erudita.
Lírica tradicional (mais voltada ao estilo medieval): 
Mote (tema) – glosas ou voltas (que retomam o mote); 
Redondilhas – maior (7 sílabas poéticas) e menor (5 sílabas poéticas).
Lírica clássica:
Sonetos - composição com 14 versos de mesma métrica, que tem 2 quartetos e 2 sextetos. Ou seja, 2 estrofes de 4 versos e 2 estrofes de 6 versos.
Decassílabos – 10 sílabas poéticas.
O lirismo tradicional camoniano dialoga com as produções medievais, especialmente em seus aspectos populares, como o emprego da medida velha e de temáticas relacionadas à vida no campo.
Além disso, recupera formas poéticas típicas da passagem do medievo para a Idade Moderna, como as esparsas (poemas de temática amorosa, geralmente com única estrofe e seis sílabas poéticas) e os vilancetes (poemas com um mote (motivo) e voltas, ou seja, glosas, usando a medida velha).
Como exemplo de um poema lírico tradicional, em Camões, temos “Perdigão perdeu a pena”:
Mote alheio
Perdigão perdeu a pena
Não há mal que lhe não venha
Voltas
Perdigão que o pensamento
Subiu a um alto lugar,
Perde a pena do voar,
Ganha a pena do tormento.
Não tem no ar nem no vento
Asas com que se sustenha:
Não há mal que não lhe venha.
Quis voar a uma alta torre
Mas achou-se desasado;
E, vendo-se depenado,
De puro penado morre.
Se a queixumes se socorre
Lança no fogo mais lenha:
Não há mal que lhe não venha
No poema, podemos perceber que o mote é alheio, ou seja, não foi criado pelo poeta, o que era comum, pois o mesmo poderia apropriar-se de um dito popular, por exemplo. A parte das voltas, como convinha aos vilancetes, apresenta estrofes de sete versos. O último verso pode recuperar os versos do mote, como ocorre aqui.
Ao usar a forma do vilancete e a medida velha, Camões revela a continuidade de elementos do universo poético medievo na poética renascentista, como referido. Entretanto, a forma poética medieval,em sua clave popular, tensiona-se com a presença de um jogo intelectualizado de contraposição de ideias. No poema, o pensamento sofisticado revela-se, ainda, no emprego ambíguo da palavra “pena”, como pluma e como castigo.
Além disso, o crítico literário Massaud Moisés demonstra a possibilidade de o perdigão ser uma figuração do próprio poeta, pois “pelo pensamento / Subiu a um alto lugar” (MOISÉS, 2004, p. 83). É importante ressaltar que, segundo o mesmo crítico, o jogo de ideias antitéticas presentes na poética camoniana já anunciaria uma sensibilidade conceptualista, que desabrocharia com força na poesia barroca. Outra manifestação da lírica tradicional camoniana é o poema Descalça vai pera a fonte:
Mote
Descalça vai pera a fonte
Leonor pela verdura;
Vai formosa, e não segura
Voltas
Leva na cabeça o pote,
O texto nas mãos de prata,
Cinta fina escarlata,
Sainho de chamalote,
Traz a vasquinha de cote,
Mais branca que a neve pura,
Vai formosa, e não segura.
Descobre a touca a garganta,
Cabelos de ouro entrançado,
Fita de cor de encarnado,
Tão linda que o mundo espanta;
Chove nela graça tanta
Que dá graça à formosura,
Vai formosa, e não segura.
Aqui, podemos notar, do mesmo modo, a forte dicção popular, de inspiração medieval, presente no emprego da medida velha e da temática, próxima as das cantigas de amigo. Além disso, aqui permanece a tensão entre a simplicidade da poesia popular e o jogo de ideias mais sofisticado. Um outro ponto interessante são os elementos de comparação, que também serão importantes na poesia barroca, posteriormente.
A POESIA LÍRICA ERUDITA CAMONIANA
A poesia lírica erudita de Luís de Camões tem como base, principalmente a poesia italiana. Em termos de formas literárias, privilegiava o soneto. 
O soneto – composição com 14 versos de mesma métrica, que tem 2 quartetos e 2 sextetos. Ou seja, 2 estrofes de 4 versos e 2 estrofes de 6 versos.
Do mesmo modo, a poesia camoniana apresentava-se como odes, écoglas, elegias, oitavas, tercetos e sextetos. A medida era a nova que, como vimos, empregava versos decassílabos.
A temática da lírica erudita camoniana versa sobre questões filosóficas e existenciais e revela um pensamento complexo e tenso. 
Ele é considerado POETA-FILÓSOFO: TENTA COMPREENDER A REALIDADE, SEUS MISTÉRIOS E ENIGMAS. Muitos de seus temas são ideias, abstrações: o amor, a injustiça, a transitoriedade (a vida que passa) etc. Neoplatonismo (Platão dizia que vivemos o reflexo de um mundo ideal. Por trás desse mundo, há o mundo das ideias. O mundo é apenas uma cópia do mundo das ideias. Para Camões, o amor não se realiza nessa vida, mas somente no plano das ideias, somente no mundo ideal). 
Temas camonianos: o desconcerto do mundo (de pernas para o ar); mudança, transitoriedade e amor (suas contradições: a impossibilidade de compreendê-lo; a impossibilidade de realiza-lo: a frustração que ele causa; e suas imposições).
Muito se pensa sobre o desassossego, a inadequação e as contradições do mundo, como podemos perceber no poema Ao desconcerto do mundo.
Ao desconcerto do mundo”:
Os bons vi sempre passar
No mundo graves tormentos;
E para mais me espantar,
Os maus vi sempre nadar
Em mar de contentamentos.
Cuidando alcançar assim
O bem tão mal ordenado,
Fui mau, mas fui castigado.
Assim que, só para mim,
Anda o mundo concertado.
Ao usar o jogo de antíteses, o eu lírico demonstra o desconcerto de um mundo fora do lugar, no qual a lógica da oposição entre a maldade e a recompensa não é respeitada, pois os maus são recompensados e os bons, punidos. 
Com uma única exceção, o desconcerto é rompido: quando se trata do poeta que, com ironia, garante o tom jocoso de um poema filosófico, o que representa um mundo sem sentido e no qual o desejo afasta-se da concretização.
A ideia do desconcerto retorna no soneto Amor é um fogo que arde sem se ver, no qual será o amor o elemento paradoxal a ser discutido:
Amor é um fogo que arde sem se ver,
É ferida que dói e não se sente;
É um contentamento descontente;
É dor que desatina sem doer.
É um não querer mais que bem querer,
É um andar solitário entre a gente;
É nunca contentar-se de contente;
É um cuidar que ganha em se perder.
É querer estar preso por vontade;
É servir a quem vence, o vencedor;
É ter com quem nos mata lealdade.
 
Mas como causar pode seu favor
Nos corações humanos amizade,
Se tão contrário a si é o mesmo Amor?
A temática do paradoxo amoroso e da contradição entre o desejo e o amor são influências da poesia de Petrarca, que ressaltava as dores do querer.
É interessante perceber que, após demonstrar pelas metáforas as contradições do amor, o poema termina com uma pergunta e mantém a dúvida no leitor, afastando as certezas de um universo marcado pelas dúvidas e pela tensão de elementos antagônicos, elencados em uma sucessão de anáforas.
Esse jogo de tensões e paradoxos, como falamos, remeterá aos primeiros sinais de uma estética barroca, mais precisamente do Maneirismo.
O Maneirismo em Camões pode ser percebido pela expressão privilegiada dos paradoxos sentimentais e de um mundo áporo e agônico. 
Em termos formais, o emprego da antítese e das inversões refletiria os aspectos contraditórios de um mundo cujos valores encontravam-se em crise.
Outra influência importante na poesia de Camões é a da filosofia neoplatônica, figurada também na poesia de Petrarca, especialmente na representação da experiência amorosa. A obra do poeta italiano, o amor por Laura, sua musa, mesmo após a morte da amada, cultivando a figuração de um amor idealizado e que transcenderia o desejo carnal.
Como exemplo da influência de Petrarca e do neoplatonismo na poesia camoniana, podemos citar o poema Transforma-se o amador na cousa amada:
Transforma-se o amador na cousa amada,
Por virtude do muito imaginar;
Não tenho, logo, mais que desejar,
Pois em mim tenho a parte desejada.
Se nela está minha alma transformada,
Que mais deseja o corpo de alcançar?
Em si somente pode descansar,
Pois consigo tal alma está liada.
Mas esta linda e pura
Semideia,
Que, como o
acidente em seu sujeito,
Assim com a alma minha se conforma,
Está no pensamento como ideia:
E o vivo e puro amor de que sou feito, 
Como a matéria simples, busca a forma.
Aqui se pode perceber a influência neoplatônica na idealização da amada, tecida pelo eu lírico. Este entra em simbiose com a imagem do objeto amoroso, que não sai de seu pensamento. Essa reflexão desperta a ideia de que nada mais tem a temer, pois a própria amada nele habita.
Todavia, o eu lírico não esgota a reflexão do poema em sua experiência, mas a amplia, investigando a condição do amor. Entretanto, a influência platônica apresenta o seu limite, pois o eu lírico não se conforma apenas com a idealização, demonstrando o anseio pela matéria, pelo amor carnal, ainda que contido, como convinha, aos padrões classicistas.
O QUE VEM NA PRÓXIMA AULA
· A poesia épica em Luís de Camões;
· inovações e características primordiais em Os Lusíadas.     
CONCLUSÃO
Nesta aula, você:
· Identificou especificidades da poesia portuguesa classicista;
· distinguiu a poesia lírica tradicional e a poesia lírica erudita camoniana;
· reconheceu a influência platônica, em parte da produção poética de Camões;
· reconheceu diálogos com o maneirismo, em parte da produção poética camoniana.

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