Baixe o app para aproveitar ainda mais
Prévia do material em texto
ANOTAÇÕES PSICODIAGNÓSTICO Texto: Contexto Geral do Diagnóstico Psicológico - Marília Ancona Lopez. O termo “diagnóstico” A palavra diagnóstico origina-se do gênero diagnõstikós e significa discernimento, faculdade de conhecer, de ver através de. Compreendido dessa forma, o diagnóstico é inevitável, pois, sempre que explicitamos nossa compreensão sobre um fenômeno, realizamos um de seus possíveis diagnósticos, isto é, discernimos nele aspectos, características e relações que compõem um todo, o qual chamamos de conhecimento do fenômeno. Para chegarmos a esse conhecimento, utilizamos processos de observações, de avaliações e de interpretações que se baseiam em nossas percepções, experiências, informações adquiridas e formas de pensamento. É nesse sentido amplo que a compreensão de um fenômeno confunde-se com o diagnóstico do mesmo. Em sentido mais restrito, utiliza-se o termo diagnóstico para referir-se à possibilidade de conhecimento que vai além daquela que o senso comum pode dar, ou seja, à possibilidade de significar a realidade que faz uso de conceitos, noções e teorias científicas. Quando procuramos ler determinado fato a partir de conhecimentos específicos, estamos realizando um diagnóstico no campo da ciência ao qual esses conhecimentos se referem. Uma folha de papel pode ser compreendida através de um estudo do material que a compõe, de seu custo, da sua utilidade social ou de seu surgimento histórico, dependendo dos conhecimentos colocados a serviço da busca de compreensão. O diagnóstico psicológico A psicologia se insere no conjunto das ciências humanas. Utilizamos seus conhecimentos para a compreensão de qualquer fenômeno humano. Esse mesmo fenômeno poderá também ser objeto de estudo de outras ciências, o que permitirá integrar conhecimentos, enriquecendo nossa compreensão. Os conhecimentos dentro do campo da Psicologia, como de qualquer outra ciência, não se agrupam indiscriminadamente. Constituem e estão constituídos em teorias das quais decorrem os procedimentos e as técnicas. Na história da Psicologia encontramos inúmeras teorias que definem de forma diferente seu objeto de estudo e o método a utilizar. Algumas tomaram métodos emprestados das ciências naturais, definindo em função dos mesmos o fenômenos a estudar, e algumas buscaram criar métodos próprios. Mesmo a classificação da Psicologia como ciência humana, ou como ciência natural, e o reconhecimento da existência de teorias psicológicas foram e são muitas vezes questionados pelos estudiosos do conhecimento. Aqui trataremos do diagnóstico psicológico, este busca uma forma de compreensão situada no âmbito da psicologia. Em nosso país, é uma das funções exclusivas do psicólogo garantidas por lei (Lei número 4119 de 27-8-1962), que dispõe sobre a formação em Psicologia e regulamenta a profissão de psicólogo. Como são muitas as teorias existentes, e nem sempre convergentes, a atuação do psicólogo em diagnóstico, assim como nas outras funções privativas da profissão, varia consideravelmente. O próprio uso do termo várias, de acordo com essas concepções. A Psicologia Clínica e as abordagens psicodiagnósticas. O termo Psicologia Clínica foi utilizado, pela primeira vez, em 1896, referindo-se a procedimentos diagnósticos utilizados junto à clínica médica, com crianças deficientes físicas e mentais. O interesse por esse diagnóstico surgiu a partir do momento em que as doenças mentais foram consideradas semelhantes às doenças físicas. Passaram, então, a fazer parte do universo de estudo da ciência, e não mais da religião, como anteriormente, quando eram consideradas castigos divinos ou possessões. Pareadas com as doenças físicas, foi necessário observar as doenças mentais, verificar sua existência como entidades específicas, descrevê-las e classificá-las. Dessa forma, a par da Psiquiatria, atividade médica destinada a combater a doença mental, desenvolveu-se a Psicopatologia, ou seja, o ramo da ciência voltado ao estudo do comportamento anormal, definindo-o, compreendendo seus aspectos subjacentes, sua etiologia, classificação e aspectos sociais. Do mesmo modo, a par do desenvolvimento da Psicologia, isto é, do estudo sistemático da vida psíquica em geral, desenvolveu-se a Psicologia Clínica, como atividade voltada à prevenção e ao alívio do sofrimento psíquico. A busca de um conhecimento objetivo. A forma de atuação inicial em psicodiagnóstico refletiu a postura predominante na época entre os cientistas. Estes consideravam possível chegar-se ao conhecimento objetivo de um fenômeno, utilizando uma metodologia baseada em observação imparcial e experimentação (póstuma positivista, predominante principalmente no continente americano). Dentro dessa observação, desenvolveram-se alguns modelos. a. Modelo Médico - o trabalho em diagnóstico psicológico junto aos médicos marcou o início da atuação profissional. Houve uma transposição do modelo médico para o modelo psicológico; este adquiriu algumas características: enfatizou os aspectos patológicos do indivíduo e enfatizou o uso de instrumentos de medidas de determinadas características do indivíduo. Estabeleceram-se também relações de causalidade entre os distúrbios orgânicos e os distúrbios psicológicos, principalmente nas áreas da neurologia e da bioquímica. Os comportamentos considerados patológicos passaram a ser descritos detalhadamente; elaboraram-se testes para determinar e detectar os processos psíquicos subjacentes, inclusive detectar tendências patológicas. O objetivo desses testes, na prática, era fornecer informações aos médicos que as utilizavam, como subsídios para determinar os diagnósticos psicopatológicos. Procuravam-se também, nos testes, sinais de distúrbios orgânicos que, pareados aos dados sintomáticos, justificassem pesquisas médicas mais aprofundadas. As dificuldades encontradas nessa abordagem ligavam-se ao fato de que os quadros sintomáticos nem sempre se adequam ao quadro apresentado pelo sujeito; além disso, os mesmos sintomas podiam ter muitas vezes causas diversas e, vice versa, as mesmas causas podem provocar diferentes sintomas. Do ponto de vista do psicólogo, a grande ênfase nos aspectos psicopatológicos deixava em segundo plano características não patológicas do comportamento das pessoas, limitando o estudo e o conhecimento sobre o indivíduo. Apesar dessas dificuldades, utilizam-se até hoje classificações psicopatológicas, principalmente no que se refere aos grandes grupos nosológicos. b. O Modelo Psicométrico - o desenvolvimento dos testes foi, aos poucos, estabelecendo um campo de atuação exclusivo para o psicólogo e garantindo sua identificação profissional, embora precária, já que condicionada à autoridade do médico a quem cabia solicitar esse teste e receber os resultados dos mesmos. Na atuação, foi com o uso de teste, principalmente junto às crianças, que os psicólogos ganharam maior autonomia. Neste trabalho, esforçam-se por determinar, através dos testes, a capacidade intelectual das crianças, suas aptidões e dificuldades, assim como sua capacidade escolar. Na utilização dos resultados dos testes, tornou-se menos importante detectar distúrbios e classificá-los psicopatologicamente, mas sim estabelecer diferenças individuais e orientações específicas. A visão de homem subjacente ao modelo psicométrico implicava a existência de características genéricas do comportamento humano; essas, de ordem genética e constitucional, eram consideradas relativamente imutáveis. Os testes visavam a identificá-las, classificá-las e medi-las. O desenvolvimento da Psicologia nessas direções foi bastante influenciado por acontecimentos históricos, principalmente nos EUA ( na segunda guerra mundial). c. O Modelo Behaviorista - Enfatizando a postura positivista, desenvolveram-se aos teorias behavioristas, partindo do princípio de que o homem pode ser estudado como quaisquer outros fenômeno da natureza, inclui a Psicologia entre as ciências naturais e transportamseus métodos para o estudo do homem. A fim de poder aplicar o método das ciências naturais, necessitavam de um objeto de estudo observável e mensurável, e declararam o comportamento observável como o único objetivo possível de ser estudado pela psicologia. Consideraram que o comportamento humano não decorre de características inatas e imutáveis, mas é apreendido, podendo ser modificado. Os behavioristas criaram formas próprias de avaliação do comportamento a ser estudado. Não utilizaram o termo psicodiagnóstico, valendo-se dos termos “levantamento de repertório" ou "análise de comportamento”. A importância da subjetividade. Paralelamente a essas tendências, desenvolveu-se uma nova forma de conhecimento que repercutiu consideravelmente na Psicologia. Desde o início do século, alguns filósofos insurgiram-se contra a visão de ciência que considerava possível uma total separação entre o sujeito e o objeto de estudo. Para esses filósofos, todo o conhecimento é estabelecido pelo homem, não podendo negar a participação de sua subjetividade. Dessa forma, não é possível admitir como válida uma psicologia positivista, objetiva e experimental. O homem não pode ser estudado como um mero objeto, fazendo parte do mundo, pois o próprio mundo não passa de um objeto intencional para o sujeito que pensa. Desse modo, os métodos das ciências naturais não poderiam ser transpostos para as ciências humanas, já que estas possuem características específicas. Partindo dessa posição frente ao homem e à ciência, inúmeras escolas surgiram e encararam de formas diversas a questão do psicodiagnóstico. 1. O Humanismo - as correntes humanistas, evitando posições reducionistas ao lidar com o homem, procuraram manter uma visão global do mesmo e compreender seu mundo e seu significado, sem as referências teóricas anteriores, Insurgiram-se contra o diagnóstico psicológico, criticando seu aspecto classificatório e o uso do individuo através de testes. Procuraram restituir ao ser humano sua liberdade e condições de desenvolvimento, repudiando o psicodiagnóstico.Para os humanistas, os procedimentos diagnósticos são artificiais; constituem-se em racionalizações, acompanhadas de julgamentos baseados em constructos teóricos que descaracterizam o ser humano. Esses psicólogos não se utilizam de diagnóstico e de teste, considerando que, através do relacionamento estabelecido com o cliente, durante a psicoterapia, alcançaram uma compreensão do mesmo. 2. A Psicologia Fenomenológico existencial - para esses psicólogos, os dados obtidos em entrevistas ou em testes podem ser úteis e trazer informações a respeito das pessoas, ajudando-as no caminho do autoconhecimento. Esses dados devem ser discutidos diretamente com os clientes, estabelecendo com os mesmo as possíveis conclusões. Utilizam-nas apenas como recursos ou estratégias a serem trabalhadas com os clientes. O psicodiagnóstico é considerado mais do que um estudo e avaliação; salienta-se o seu aspectos de intervenção, diluindo-se os limites que separam o psicodiagnóstico da intervenção terapêutica. 3. A Psicanálise - decorre da mesma postura que não considera possível a completa objetividade e nem a completa subjetividade e atribui significação a todo comportamento humano. Sua influência, sentida inicialmente na Europa, fez-se notar no continente americano, principalmente no período da Segunda Guerra, quando houve uma grande imigração de psicanalistas europeus. A psicanálise provê uma revolução na psicologia, explicitando o conceito de inconsciente e explicando, através de processos intrapsíquicos, os diferentes comportamentos que procura compreender. Embora, desde o início, os estudos psicológicos tenham se preocupado em definir e conhecer a personalidade, foi a psicanálise que propôs o complexo mais completo de formulações sobre sua formação, estrutura e funcionamento. Acentua-se o valor das entrevistas como instrumento de trabalho, o estudo da personalidade através da utilização de observações e técnicas projetivas e se desenvolve uma maior consideração da relação do psi e do cliente. Enfim, desenvolveu instrumentos diagnósticos sutis, que permitem verificar o que se passa com o indivíduo por detrás de seu comportamento aparente. A procura de integração. Apesar dos diferentes marcos referenciais, a conceituação de cada uma dessas tendências é muito ampla e cada uma delas apresenta inúmeros desdobramentos, de tal forma que, na prática Psicológica e, portanto, na prática do psicodiagnóstico, temos, como já foi dito, várias formas de atuação, muitas das quais não podem ser consideradas decorrentes exclusivamente de uma ou de outra dessas abordagens. Em outras palavras, quando olhamos concretamente para a Psicologia Clínica, verificamos grandes variações de conhecimentos e atuações. O fato é que nenhuma teoria, até agora, mostrou-se suficiente para responder a todas as questões colocadas pela Psicologia. O que se nota hoje, na maioria dos psicólogos, já não é uma acirrada batalha no sentido de fazer prevalecer sua posição, mas sim uma postura crítica diante do conhecimento psicológico, e a procura de uma integração entre as diversas conquistas até agora realizadas em seu campo. Este processo de integração reflete-se também no trabalho de psicodiagnóstico. Atualmente, todas as correntes em Psicologia concordam, embora partindo de pressupostos e métodos diferentes, que, para se compreender o homem, é necessário organizar conhecimentos que digam respeito à sua vida biológica, intrapsíquica e oscila, não sendo possível excluir nenhum desses horizontes. Em relação aos aspectos biológicos do sujeito, ao realizarem o psicodiagnóstico, os psicólogos se preocupam com os fatores de desenvolvimento e maturação, com especial atenção à organização neurológica refletida no exercício das funções motoras. A avaliação dessas funções ocupa um local de importância no psicodiagnóstico infantil (ao lado da avaliação cognitiva), pois está diretamente ligada ao pragmatismo e ao sucesso escolar. A avaliação dos processos intrapsíquicos, principalmente da estrutura e dinâmica da personalidade, constitui-se no cerne do psicodiagnóstico. É ao redor dela que se organizam os demais dados. Apesar da busca de integração, sabemos que um psicodiagnóstico, por mais completo que seja, refere-se a um determinado momento da vida do indivíduo, e constitui sempre uma hipótese diagnóstica. Isso porque a Psicologia, como qualquer outra ciência, não pode ser considerada um corpo de conhecimentos acabado, completo e fechado. Teoria e Prática É muito importante conhecermos a situação na qual se encontra a Psicologia, por dois motivos. Primeiro, porque sabendo dos problemas de conhecimento com os quais nossa profissão se depara, não podemos deixar de lado questões de Filosofia e de Epistemologia, que nos impediram de cair numa atuação acrítica e alienados. Em segundo lugar, porque conhecendo com maior facilidade como estas se refletem na prática, e encontrar formas de atuação, junto aos clientes, que nos permitam agir com segurança e tranquilidade. A relação entre a prática e a teoria em diferentes ciências e, portanto, também em psicologia, é uma das questões que ocupa os estudiosos. Para alguns, a prática deve decorrer estritamente de uma postura e métodos teóricos. Para outros, o importante é a explicitação do cinturão dos conceitos e noções no qual o sujeito se apóia, sem que, obrigatoriamente, esse cinturão esteja organizado anteriormente em uma teoria. O fato é que a prática e a teoria se alimentam mutuamente; uma não se desenvolve sem a outra, não podendo haver desvinculação e nem subordinação total entre elas. A prática do psicodiagnóstico Na prática da psicologia clínica visa-se, basicamente, aliviar o sofrimento psíquico do cliente. Na prática do psicodiagnóstico, o objetivo é organizar os elementos presentes no estudo psicológico, de forma a obter uma compreensão do cliente a fim de ajudá-lo. Na concretizaçãodessa prática,muitas atuações baseiam-se em soluções pragmáticas, mais do que em soluções decorrentes de uma abordagem teórica. Ao atuar em psicodiagnóstico, o psicólogo está atendendo a objetivos definidos teoricamente. Está aplicando conhecimentos teóricos, validando-os ou modificando-os. As observações decorrentes dessa aplicação, se pesquisas e informadas, trarão subsídios úteis a revisões e reformulações teóricas. Está também cumprindo sua função profissional de ajudar o cliente. Desempenhando essa função, afirma o papel do psicólogo, preserva o espaço da profissão e atende à necessidade da mesma. Além desses objetivos, inerentes à profissão, o psicólogo estará servindo a outros desígnios que decorrem das condições sociais e organizacionais onde atual. Essas condições determinam o contexto no qual vai se desenvolver a atuação. Assim, ao realizarmos um psicodiagnóstico, tendo definido para nós mesmo as questões ligadas ao conhecimento psicológico e à prática profissional, devemos considerar o contexto no qual essa atuação está inserida. O contexto da atuação O maior desenvolvimento dos modelos de psicodiagnóstico atuais deu-se em consultórios privados, no atendimento a uma clientela socialmente privilegiada. A valorização do psicólogo como profissional liberal contribuiu para a preferência pela atuação autônoma, em detrimento da atuação em instituições. Nestas, a mera transposição dos modelos de psicodiagnóstico utilizados em consultórios mostrou-se ineficiente. A situação passou a incluir, além do psicólogo e do cliente, um terceiro elemento, a instituição, que modificou a estrutura do trabalho. Nem sempre a instituição, os psicólogos e os clientes apresentam necessidades e objetivos coincidentes. O psicólogo, ao atuar em organizações, encontra-se frequentemente sob orientação estranha aos interesses de sua profissão. Apesar da regulamentação prever, como função exclusiva do psi, a direção de serviços de Psicologia, essa regulamentação nem sempre é respeitada. O psicólogo é muitas vezes pressionado a servir primordialmente aos interesses da instituição. Além da influência dessas condições, a demanda da atuação profissional é claramente influenciada por condições sociais. Essa demanda pode ser verificada mais facilmente em serviços institucionais, dado o grande afluxo de pessoas aos mesmos. A maioria dessa clientela pertence a segmentos populacionais desvalorizados socialmente, por não constituírem força produtiva. A procura do serviço também decorre de encaminhamentos de terceiros, verificando-se raramente a busca espontânea. A expectativa, nesses casos, é de adequação rápida às exigências anteriores. O profissional nem sempre encontra a seu dispor as técnicas mais adequadas em seu atendimento. A obtenção de certos materiais implica em alto custo financeiro; nessa situação, com poucos instrumentos disponíveis, o psicodiagnóstico pode transformar-se na repetição estereotipada de uma sequência fixa de testes, que nem sempre seriam os escolhidos pelo profissional, ou os que melhor serviriam ao cliente. Texto: Psicodiagnóstico Interventivo: Evolução de uma prática. Silvia Ancona Lopez CAP XII Interlocuções entre a clínica psicológica e a escola no psicodiagnóstico interventivo Grande parte das queixas apresentadas no encaminhamento das crianças para atendimento psicológico está relacionada a dificuldades/ problemas na aprendizagem. São queixas que, independentemente de surgirem na escola — a partir das avaliações dos professores, orientadores etc. —ou em casa — em relação à frustração da expectativa dos pais, por exemplo —, aparecem relacionadas com o ambiente escolar. O psicodiagnóstico interventivo tem como pressuposto compreender a criança no seu contexto, do qual faz parte a escola. Propomos a inclusão desse contexto não só como parte do processo de avaliação, mas também como objeto de nossa intervenção, através de devolutivas e orientações em relação à queixa apresentada. Entendemos por escola uma instituição cujas funções são o ensino e a formação dos alunos, sendo ao mesmo tempo um espaço físico e um campo relacional que envolve professores, alunos, funcionários e direção. Essa concepção de escola aproxima-se do conceito de microssistema tal como definido por Brofenbrenner: “Um contexto no qual há um padrão de atividades, papéis sociais e relações interpessoais que são experienciados pela pessoa em desenvolvimento”. Soma-se a esse trabalho compreender a forma como a família se relaciona com a escola da criança e quais as expectativas em relação ao papel que esta deve cumprir. Dessa maneira, é importante conhecer os projetos de futuro que os pais tecem para o filho, que incluem, frequentemente, os sonhos de uma vida melhor como resultado de maior escolaridade. Para compreender a criança nesse contexto, será necessário conhecer o significado que ela atribui ao processo de aprendizagem, à escolarização e ao seu relacionamento com os educadores e os colegas. No processo do psicodiagnóstico interventivo, independentemente de qual seja a queixa trazida pelos pais, realizamos uma visita à escola, pois esta pode abrir novas possibilidades para a compreensão de como a criança está relacionada à queixa, quais significados atribui ao processo de aprendizagem e como se relaciona com o contexto escolar. Pensamos que a visita escolar pode ser considerada obrigatória quando a queixa se refere à escola e ao processo de ensino-aprendizagem. A visita contribui também para aproximar o psicólogo clínico da escola e para desmistificar a sua atuação (que há alguns anos se restringia ao trabalho no consultório, fato que impedia uma visão mais global das queixas apresentadas) e, ao mesmo tempo, reduz os riscos de toda a problemática infantil ser atribuída apenas a problemas intrapsíquicos, culpabilizando a criança por suas dificuldades. Para que a visita escolar contribua efetivamente para uma melhor compreensão da criança, é preciso tomar alguns cuidados: ela deve ser marcada após o primeiro contato com a criança, e tanto ela como seus pais e a escola precisam ser esclarecidos quanto aos seus objetivos, além de concordarem com a sua realização. Avoglia (2006) propõe que na visita escolar observem-se os seguintes aspectos: a. Espaço físico: considerando o espaço por onde as crianças transitam; como está organizado para recebê-las; quais os brinquedos/equipamentos disponíveis; orientações se há presença de inspetores etc. b. Higiene ambiental. c. A disposição do espaço e do mobiliário, avaliando se favorece atividades em grupo, contato com os professores fora da sala de aula, acesso à direção etc. d. A merenda, a qualidade dos materiais pedagógicos, os livros e recursos audiovisuais disponíveis. O conhecimento sobre esses aspectos contribuirá para contextualizar a queixa escolar. Além disso, Maichin (2006) recomenda que o foco da visita escolar se volte para as relações sociais que a criança estabelece com os colegas e professores e como é percebida por eles. Souza (2007) relata como proceder para que a interlocução com a escola seja efetiva. Ela descreve que inicia seu contato com a escola solicitando um relatório e, para tanto, envia um roteiro por meio dos pais. Caso a escola elabore o relatório, este se constituirá no ponto de partida para a visita escolar. No entanto, a não elaboração do relatório não constitui um impeditivo para a visita. A autora ressalta que, ao programar a visita, tem o cuidado de procurar garantir a presença da professora e de um membro das instâncias decisórias, como o coordenador ou diretor. Segundo a autora, com esse procedimento ela sinaliza que o processo de aprendizagem de uma criança é da responsabilidade não só da professora que está com ela no dia a dia, mas também de toda a escola. É oportuno lembrar que, durante a visita, é preciso tomar o máximo cuidado para que a criança não fique exposta diante dos colegas e seja identificada como aquela que está sendoobservada, ou como uma criança problemática. Avoglia (2006) propõe fazer uma entrevista com a professora para saber como a criança se comporta na sala de aula e como é o seu relacionamento com ela e com os colegas. Sugere também que se procure compreender, na perspectiva da professora, como os pais acompanham a escolaridade do filho, se e como participam de festividades e reuniões pedagógicas. Nessa entrevista o psicólogo investigará também como a professora se conduz diante das dificuldades apresentadas pela criança. A opção de fazer ou não uma observação da criança em sala de aula deve ser adotada criteriosamente, considerando a queixa e as características da criança. Quando nos decidimos por ela, sugerimos que a criança seja observada em sala de aula e em atividades mais livres, atividades semi estruturadas ou não estruturadas (merenda, recreio), procurando compreender como se relaciona com os professores e colegas, como se organiza para a realização das tarefas que lhe são propostas, como se relaciona com a aprendizagem, seu envolvimento e interesse. Para Souza (2007), ao conhecer a escola e seus atores, o psicólogo deve buscar uma relação horizontal e a suspensão de crenças, juízos de valores e preconceitos, abrindo-se para a experiência direta com a escola concreta e com pessoas singulares. A realidade é múltipla, pode ser interpretada a partir de diferentes perspectivas, possibilitando inúmeras versões. As várias interpretações a respeito da criança compõem uma visão caleidoscópica da qual emergem concordâncias, divergências, zonas de harmonia e de conflito, fraturas e configurações que nos permitirão avançar na compreensão da queixa trazida pelos pais e fazer intervenções. Para que o contato com a escola se constitua efetivamente como elemento importante do psicodiagnóstico, é necessário que os aspectos escolares façam parte da devolutiva aos pais, e às crianças. Por essa razão, na perspectiva do psicodiagnóstico interventivo. Concluída a visita preparamos uma sessão para os pais na qual expomos nossas impressões sobre o papel da escola na etapa do processo de aprendizagem em que a criança se encontra, as relações pessoais que ela estabelece no ambiente escolar, abordando a estrutura, recursos e condições da escola. O caderno escolar, como instrumento utilizado no cotidiano e como material da criança, oferece o registro de fragmentos do dia a dia escolar e permite apreender as relações que se estabelecem nesse contexto, no que tange às questões de ensino-aprendizagem. O caderno escolar é, entre os instrumentos didáticos, um dos mais tradicionais nos diferentes níveis do sistema educacional. Possui inúmeras funções e adquiriu vários significados tanto para os professores quanto para os alunos. Os cadernos registram o conteúdo das matérias ministradas, são meios de comunicação entre pais e docentes, facilitam o acompanhamento das atividades realizadas pelos professores e pela coordenação da escola. Além disso, são uma fonte de informações que amplia a visão dos professores em relação às possíveis dificuldades de aprendizagem e fornece pistas de como as crianças se relacionam com a escola e como vivenciam o processo ensino-aprendizagem. Os cadernos pertencem às crianças e são utilizados por elas, mas são também uma forma de controlar o que o professor ensina e acompanhar a maneira como o aluno realiza as atividades propostas. Santos (2002) mostra que os cadernos escolares são como um retrato da criança e que a análise deste material permite compreender melhor a sua capacidade de entrar em contato com a realidade, perceber e conhecer os objetos que nela se encontram e fazer uma avaliação das funções cognitivas, tais como memória, linguagem, percepção, habilidades visuais e espaciais. Outro aspecto importante a ser verificado nos cadernos escolares é como a criança expressa o grau de desenvolvimento das funções executivas (Luria, 1981): lógica, estratégia, planejamento, resolução de problemas, raciocínio hipotético dedutivo, organização, manejo de tempo, memória de trabalho (habilidade de manter informações na mente, enquanto executa uma tarefa), atenção sustentada e inibição de impulsos. Para a autora, o ideal é pedir à própria criança que “apresente” seu material, solicitando que vá “explicando” algumas situações, tais como atividades repetitivas; atividades não realizadas ou realizadas parcialmente e os “bilhetes” da professora. Pedir que conte o que pensa sobre o seu caderno, sobre as atividades em que se sente competente, de que gosta e de que não gosta (Sadalla, 1999, p. 172). Com esta prática, possibilitamos às crianças e adolescentes a oportunidade de se expressarem em situações que foram vivenciadas na execução destas tarefas, valorizando a sua vivência. No exame dos cadernos, devemos estar atentos a: tamanho e legibilidade da letra; uso da borracha; organização; atenção aos erros cometidos; correções feitas pelos professores; identificar de que modo uma produção foi realizada (cópia da lousa, produção individual, em grupo, qual o auxílio dado pelo professor); observar a diferença de desempenho nestas situações, além do cuidado com o material escolar. Segundo Santos (2002), as crianças que iniciam o processo de escolarização precisam de algum tempo para se familiarizar com as regras para a utilização dos cadernos e para que estas se consolidem. Necessitam adquirir o domínio de algumas normas bastante específicas, como, por exemplo, escrever da esquerda para a direita, de cima para baixo, respeitar as linhas de margem à esquerda e à direita, que delimitam o espaço para a escrita do aluno, e saber que nada deve ser escrito ultrapassando as margens. O aluno aprenderá também que o preenchimento das folhas deve obedecer à sequência cronológica das tarefas, que os títulos enunciam as atividades, quando usar letras maiúsculas e minúsculas, pular linhas, organizar os itens registrados e reproduzir conteúdos apresentados na lousa. Segundo a mesma autora, somente nas séries mais avançadas, a partir do 4 o ano do ensino fundamental, a criança começa a conquistar um espaço próprio no uso do caderno, utilizando-o de uma forma mais livre, não somente para registro dos conteúdos das disciplinas. Passa a ser um lugar de expressão de sua singularidade e, no qual a criança nele pode registrar desenhos, caricaturas, poemas, versos, mensagens de colegas de classe. A análise dos cadernos escolares mostra-se um instrumento útil na compreensão de crianças que são encaminhadas para avaliação psicológica, mesmo quando não há uma queixa escolar, uma vez que traduzem sua maneira de ser no mundo. A sondagem inicial pode ser feita por meio de jogos diversos (disponíveis em lojas especializadas em materiais educativos) que utilizam palavras, sílabas e letras, através dos quais podemos verificar se as crianças conhecem as letras, como associam as palavras e suas iniciais, se juntam desenhos e descobrem como se formam as palavras, se são capazes de associar a figura à letra, e como aprendem a formar e soletrar palavras. Em um segundo momento, realiza-se uma avaliação formal com o objetivo de verificar o nível conceitual da escrita, tomando como referência os níveis identificados por Emília Ferreiro (1999). Nessa avaliação, solicita-se que a criança escreva seu nome e, em seguida, deitam-se cinco palavras relacionadas ao universo de cada criança. Começa-se com palavras polissílabas, depois trissílabas, dissílabas e monossílabas, e por último, pede-se que escreva uma pequena frase. Concluída essa escrita, solicitamos à criança que leia tudo o que escreveu. Ficamos ao lado dela e pedimos que leia devagar e vá indicando, com o dedo apoiado no papel, a palavra que está lendo enquanto fazemos um registro de suas respostas. Essa investigação possibilita identificar em que fase de aquisição de escrita e leitura a criança se encontra: 1. Nível pré-silábico — nesta fase a criança começa a diferenciar letrasde números, desenhos ou símbolos. Este nível é subdividido em duas fases: fase pictórica, na qual a criança registra garatujas e desenhos, e fase gráfica primitiva, em que a criança registra símbolos ou letras misturadas com números. Exemplos: TRAQ (casa); AIVNOAXE (abacaxi). 2. Nível silábico — nesta etapa a criança conta os “pedaços sonoros”, isto é, as sílabas, e coloca um símbolo (letra) para cada pedaço. A noção de que cada sílaba corresponde a uma letra que pode acontecer com ou sem valor sonoro convencional. Exemplos: AO (gato) ou GT (gato) com valor sonoro; LI (gato) ou EI (gato) sem valor sonoro. 3. Nível silábico-alfabético — verificamos que este é um momento conflitante para a criança, pois ela precisa negar a lógica do nível silábico. Nesta etapa o valor sonoro torna-se imperioso, e a criança começa a acrescentar letras principalmente na primeira sílaba. Exemplo: TOAT (tomate). 4. Nível alfabético — a criança reconstrói o sistema linguístico e compreende a sua organização. Exemplo: A criança sabe que os sons L e A são grafados LA, que T e A são grafados TA e que, juntos, significam LATA. 5. Nível ortográfico — nesta etapa dos níveis conceptuais linguísticos, a criança apresenta-se na fase alfabética e necessita de intervenção do professor na ortografia. Exemplos: conheceno, convesa, lipesa, vamus, pasarino etc. No final do processo do psicodiagnóstico interventivo, elaboramos um relatório que sintetiza e organiza o que foi compreendido, focalizando a criança no seu todo a partir da queixa inicial. Incluímos no relatório orientações e recomendações para os pais e professores no sentido de favorecer o processo de aprendizagem. O relatório é apresentado inicialmente aos pais e, obtida sua autorização, será enviado à escola. Em seguida, agendamos uma segunda entrevista com a escola para a entrega e discussão do relatório. Nessa visita procuramos envolver o professor e motivá-lo a colaborar com os ajustes possíveis para atender às dificuldades da criança. Na devolutiva, cabe ao psicólogo estabelecer um diálogo com o professor para, juntos, buscar estratégias de ensino que se mostrem adequadas ou não para aquela criança. Nesse sentido, o psicólogo pode contribuir propondo alternativas para reorientação da prática pedagógica utilizada pelo professor até o momento, sugerindo situações capazes de gerar novos avanços na aprendizagem dos seus alunos, que sirvam também de material de pesquisa para definir as possíveis intervenções e obter dados sobre o processo de aprendizagem de cada criança. Texto: Psicodiagnóstico Interventivo: Evolução de uma prática. Silvia Ancona Lopez CAP I -Psicodiagnóstico fenomenológico-existencial: focalizando os aspectos saudáveis Saúde e doença vêm sendo compreendidas de formas diferentes ao longo do tempo, sendo que as mudanças no modo de entendê-las acompanham a evolução da ciência e da sociedade. Assim é que, na Idade Média, a relação do homem com o mundo era marcada pela vida coletiva, assentada nas tradições e na crença de entidades poderosas que exigiam submissão, pois eram donas do destino. Já no Renascimento, com as descobertas e a ampliação do comércio, a multiplicidade de possibilidades traz consigo a sensação de desamparo e incertezas quanto ao destino. Nasce a necessidade de controle diante do mundo do qual o homem se afastou e que passou a ser sentido como inóspito. Nota-se, então, um progressivo movimento de introspecção via racionalidade. No período chamado de Moderno, o homem criou um método — construção de sistemas lógicos e coerentes que permitam explicar os fenômenos do universo e de si mesmo, com a consequente exclusão daquilo que não é contemplado pela razão. Hoje, sabemos que saúde e doença não podem ser vistas de forma dicotômica, e sim como parte de um único processo no qual saúde não é o simples fato de não ter doença ou vice-versa. Assim, a “doença mental” pode passar a ser pensada como a construção de “outros modos de existência”, diante da dificuldade de responder, de maneira “habilidosa”, aos fatos do existir. Poder-se-ia pensar na possibilidade de outra atitude existencial em face do mundo como ele é vivido. Retomando ideias desenvolvidas por Morato e Andrade, de acordo com Webster (1974), saúde vem do latim salus, significando condição (orgânica ou organizacional) benéfica, de bem-estar, de segurança. Refere-se à cura (healein, em inglês antigo), como promoção de integridade e/ou cuidado. Estas definições nos remetem a uma aproximação de clínica e de cuidado, tarefas que dizem respeito ao universo do fazer psicológico no âmbito da saúde. Pensada a partir destas referências e comprometida com atenção e cuidado para que o sujeito se conduza na direção de seu bem-estar, ou seja, de resgate de sentido, a prática psicológica inclina-se para acolher o sofrimento humano como perda de sentido. Etimologicamente originário do grego pathos, sofrer assume o significado de sentir, experienciar, tolerar sem oferecer resistência, ser afetado. Em latim, sofrer origina-se de subferre, referindo-se a suportar por debaixo, implicando dois significados: tolerar um peso e sustentar um peso. No primeiro, sofrer diz respeito a uma dor, ao passo que, no segundo, diz de uma força ou de um poder ser. Desse modo, em ambas as origens, sofrimento refere-se à situação de ser afetado pela ambiguidade própria da condição humana. Na Idade Moderna, tanto a atividade clínica quanto a pedagógica não fogem a um predomínio da técnica. A clínica, afastando-se de sua peculiaridade originária, que se refere ao debruçar-se sobre o leito do “doente”, passa, cada vez mais, a privilegiar procedimentos técnicos. Desse modo, hoje em dia, o clínico é entendido e valorizado como especialista. Atualmente esse modelo técnico-científico mostra sinais de esgotamento. Em nossa prática, no momento do encontro com o outro, percebemos que o domínio do saber não funciona como lugar seguro; não traz respostas exatas ou verdadeiras nem alivia a angústia perante a alteridade que aparece no encontro. Neste caso, temos o homem teórico, portador de um saber racional que explica as irracionalidades (os desvios) e acredita deter os meios de controlá-las ou ajustá-las à norma. O que se propõe, antes de tudo, é um deslocamento do saber, uma outra postura ética em que não existe um saber dado a priori ou uma verdade a ser transmitida, mas uma construção conjunta de sentidos. Faz-se necessário, pois, que o psicólogo se despoje do lugar de especialista, portador de um saber a ser transmitido, e passe a funcionar como um mediador, um “entre”, que acolhe a produção emergente nos diversos encontros. Não se trata aqui de descaracterizar o psicólogo de seu saber de ofício. Pelo contrário, trata-se de um resgate desta dimensão ética que deveria ser própria e específica do saber de ofício do psicólogo. Este, em sua prática cotidiana, exerceria a função de acolher o cliente, em um processo permanente de desmistificação de verdades naturalizantes e universalizantes geradoras de injustiças e exclusão sociais. Um trabalho voltado para "transformações" das relações sociais exige um desmonte permanente das cristalizações que impedem a instituição de outros modos de estar no mundo, de outras “formas” de afetamento, em que a diferença não aparece como algo a ser negado ou excluído, mas exatamente como aquilo que possibilitará a criação, as mudanças nos sistemas — pensamento, relações, crenças, entre outros — cristalizados. No entanto, o homem só é capaz de chegar ao outro pela palavra, vale dizer, a cultura, e, nesse âmbito, encontram-se sempre usos, costumes, preceitos e normas, ou seja, todo um corpo moral normativo. Nessa medida, o comprometimento social implicado na prática de orientação fenomenológica existencial é uma dimensão que não pode ser negada nem recusada. A perspectiva fenomenológica existencial foi o referencial de fundamento dessa clínica, pois considera que a condição constituinte daexistência do ser humano é relacional, ou seja, revela-se pelo encontro com o outro. O Psicodiagnóstico As instituições que oferecem atendimento psicológico gratuito à comunidade são procuradas por uma porcentagem significativa de pais de crianças com algum distúrbio de comportamento, dificuldade escolar ou outra. Por um lado, os pais são geralmente encaminhados pela escola, pelo médico ou por uma assistente social para atendimento psicológico do filho. A instituição, por sua vez, em geral oferece um psicodiagnóstico, uma vez que, no caso de uma criança, o distúrbio pode ter a concorrência de várias causas (intelectuais, emocionais, neurológicas, fonoaudiológicas), sendo importante investigar qual área deve ser prioritariamente atendida. O psicodiagnóstico infantil efetuado nos moldes tradicionais consta de uma ou duas entrevistas iniciais com os pais, para que o psicólogo possa entrar em contato com a queixa, a dinâmica familiar e o desenvolvimento da criança. Em seguida, a criança é testada, são avaliados os testes com ela realizados e integradas as informações obtidas. Os pais que comparecem aos atendimentos indicados a partir desta maneira de desenvolver o psicodiagnóstico, quando comparecem, mostram pouca motivação para eles. Se questionados a respeito do atendimento anterior (o psicodiagnóstico), revelam desconhecimento do processo pelo qual passaram, limitando-se a repetir a queixa inicial, às vezes adicionando a ela a indicação terapêutica. Assim, a questão que se coloca é: será que tanto para os pais como para a criança o atendimento somente deve tornar-se efetivo na psicoterapia? Tal questionamento, produzido a partir de insatisfações de uma equipe de psicólogos que trabalhavam em clínicas-escola, levaram-na a buscar outras formas de atender aos clientes que buscam atendimento psicológico, procurando torná-lo mais significativo e satisfatório. O processo psicodiagnóstico fenomenológico-existencial com crianças e seus pais. Passarei, agora, a uma descrição do processo psicodiagnóstico infantil que se desenvolve em 10 ou 12 sessões. Destas, frequentemente, 6 ou 7 são com os pais e o restante com a criança. Do ponto de vista fenomenológico-existencial, considera-se todo ser humano mergulhado no mundo que, embora sempre presente, muitas vezes lhe é despercebido. O sentido dos objetos está na relação que eles têm com um conjunto estruturado de significados e de intenções inter-relacionadas. Consequentemente, o mundo não é obstrutivo nem o são os objetos do mundo com os quais nos relacionamos diariamente. Entretanto, quando há “ruptura”, quando falta algo que deveria haver, passamos a notar certos objetos. Similarmente, quando a criança começa a apresentar atitudes e comportamentos que rompem com algumas expectativas dos pais, dos professores ou de outros agentes da comunidade, surge o encaminhamento ou a busca espontânea pelo psicólogo. É neste contexto que o psicodiagnóstico se propõe explicitar o sentido da experiência do cliente. No caso do psicodiagnóstico infantil, o trabalho com os pais visa explorar o significado da queixa trazida, dos sintomas apresentados pela criança, a compreensão que eles têm de sua própria situação e de sua relação com o filho. Por isso, considero que, mesmo sendo a criança a precisar de atendimento psicológico, são os pais que arcam com muitos dos custos do atendimento infantil: o tempo para levar e buscar o filho, o pagamento das sessões e os possíveis efeitos transformadores do atendimento infantil na dinâmica da família. Assim, sem informações, apoio, motivação e empenho para esse atendimento, fica difícil esperar que os pais estejam dispostos a levá-lo adiante. Por isso, quando o psicólogo recebe pais encaminhados pela professora ou outro agente, é importante que trabalhe, desde o início, o significado que este encaminhamento tem para eles mesmos. Deste modo, a primeira sessão com os pais desenvolve-se, em geral, a partir do questionamento a respeito do motivo da consulta. Enquanto para eles a necessidade do atendimento psicológico não tiver sentido fica mais difícil, senão impossível, contar com sua colaboração ativa. Outro ponto importante a focalizar é como os pais entendem o atendimento psicológico e qual sua expectativa em relação a ele. São-lhes oferecidos esclarecimentos a respeito da proposta de trabalho, dizendo-lhes que se trata de uma tentativa de compreensão do que está acontecendo com a criança no contexto pessoal, familiar e social. Ao psicólogo cabe compreender a pergunta trazida. Compreender é participar de um significado comum, do projeto do cliente, de sua abertura e limitações para o mundo. É importante identificar os acontecimentos e a forma como se desenvolveram em relação a seu contexto, gerando a pergunta, precipitando a crise e levando ao pedido de atendimento. Nas sessões seguintes, através da anamnese, o psicólogo procura conhecer as condições familiares e sociais, os vínculos estabelecidos e os papéis desempenhados, explicitando-os à medida que os vai percebendo e compreendendo. O roteiro de anamnese, utilizado na sequência do atendimento, permite o conhecimento do desenvolvimento biopsicossocial da criança, mas é, sobretudo, uma oportunidade para os pais se debruçaram sobre sua experiência passada e presente com o filho, podendo clarificar sentimentos e expectativas que atuam no relacionamento com a criança. Antes de marcar, em torno da terceira ou quarta sessão, o primeiro contato com a criança, orienta os pais no sentido de dizerem ao filho que estão vindo consultar um psicólogo e por que o estão fazendo. Nesta hora, às vezes é necessário voltar às fantasias dos pais em relação ao atendimento, pois, muitas vezes, eles não conseguem dizer ao filho por que estão consultando um psicólogo. Pensamos que a dificuldade dos pais em conversar com a criança a respeito da ida ao psicólogo e do motivo da consulta revela a relação que eles mesmos mantêm com o atendimento a ser desenvolvido, mesmo que, aparentemente, estejam colaborando com ele. O primeiro encontro do psicólogo com a criança se desenvolve através de uma observação lúdica ou de uma entrevista acompanhada da execução de desenhos, dependendo de sua idade, capacidade e possibilidade de expressão verbal e gráfica. A partir daí, as sessões com os pais e com a criança são intercaladas. Algumas vezes, a partir da observação da criança, é necessário pesquisar mais amplamente com os pais certos aspectos da vida e do relacionamento que não se tinham mostrado relevantes até este momento. Uma vez que o psicólogo faz uso de certos instrumentos (testes, observações), pertencentes a um cabedal de conhecimentos técnicos e à sua disposição para conhecer a criança, é importante que cada instrumento utilizado seja discutido com os pais. Os pressupostos teóricos sobre os quais este uso se baseia e como o psicólogo chegou às suas próprias observações necessitam ser explicitados. Este procedimento é indispensável para que os pais possam compreender melhor a partir de onde e do que o psicólogo está falando, para poderem participar das decisões. Ao final do processo, o psicólogo elabora um relatório a respeito do atendimento, no qual procura descrever o processo em seus passos. Psicodiagnóstico interventivo, na abordagem fenomenológica existencial: uma mudança de atitude Uma das contribuições do psicodiagnóstico interventivo, na abordagem fenomenológica-existencial, está na reavaliação do papel desempenhado pelo cliente. O cliente, antes agente passivo, torna-se um parceiro ativo e envolvido no trabalho de compreensão;é corresponsável pelo trabalho desenvolvido. O psicólogo não é mais o técnico, o detentor do saber que procura oferecer respostas às perguntas trazidas pelos pais. Seus conhecimentos teóricos, técnicos e os provindos de sua experiência pessoal representam apenas outro ponto de vista. A situação de psicodiagnóstico torna-se, então, uma situação de cooperação, naqual a capacidade de ambas as partes observarem, aprenderem e compreenderem constitui a base indispensável para o trabalho. Tanto os pais como o psicólogo observam a si mesmos e uns aos outros, procurando compreender o que está sendo vivenciado, já que a compreensão dos pais e a do psicólogo são equivalentes e compartilhadas. Em geral, através de suas intervenções, o psicólogo procura promover novas possibilidades existenciais na medida em que trabalha com o outro a transformação de seu projeto. O conhecimento que o cliente traz é valorizado, sendo a partir dele que as falas do psicólogo terão sentido ou não. Por outro lado, para que a intervenção do psicólogo seja eficiente, ela deve pertencer ao campo de possibilidades do cliente, uma vez que se estiver distante deste campo, poderá não ser entendida ou ser recusada por ele. A partir de seus contatos com a criança, o psicólogo procura descrever como compreendeu os comportamentos que lhe apareceram. Compartilha com os pais sua experiência acerca de como foi o contato com a criança a partir das situações propostas, para favorecer a observação de como esta última se relaciona consigo mesma, com os outros e com o mundo. A partir das conversas com os pais e do conhecimento da criança, ainda durante o psicodiagnóstico, o psicólogo pode sugerir alternativas de ação para os pais. Ele também pode, a partir da compreensão da dinâmica familiar, dar sugestões a respeito daquilo que lhe parecia poder promover um desenvolvimento mais harmonioso. Assim, o psicodiagnóstico fenomenológico-existencial envolve um trabalho de redirecionamento dos pais a partir da compreensão da criança e da dinâmica familiar, com o objetivo de facilitar o relacionamento, propiciar novas formas de interação e abrir novas perspectivas experienciais. O estilo das intervenções do psicólogo No início do atendimento, as intervenções são sobretudo exploratórias e visam entender melhor as preocupações dos pais para com a criança. Em geral, as perguntas não são consideradas intervenções para ajudar os clientes. Entretanto, elas podem ter efeitos terapêuticos, seja diretamente, na medida em que elas focalizam algum aspecto ou tema que não estava explícito, seja indiretamente, através das respostas verbais e não verbais dadas a elas. O psicólogo mostra-se compreensivo e acrítico em relação às vivências relatadas pelos pais. Em certos momentos, suas intervenções se apresentam como possibilidades de compreensão, podendo ser feitas a partir das associações dos pais a elas. Pode lançar mão de confrontações e incitar ativamente os pais a se defrontarem com suas angústias. Em outros momentos, apenas acompanha os pais, permitindo lhes falar, sendo suas intervenções de apoio, questionamento e/ou ampliação, dependendo do momento. Em geral, há uma tentativa de salientar os aspectos positivos, adaptativos e saudáveis, em detrimento dos patológicos. A atitude do psicólogo não é passiva e neutra no sentido de acompanhar as associações dos pais. Como há um limite para a duração do trabalho, estimula-os a se confrontar com suas angústias. Para isto, utiliza o princípio de focalização, que consiste em polarizar sua atenção sobre um conflito central do qual decorreram os problemas principais. A utilização dos testes psicológicos. Para conhecer a criança, o profissional faz uso de diversos instrumentos, pertencentes ao cabedal de recursos dos quais o psicólogo clínico dispõe para atender a um cliente. Entre estes se destacam a observação lúdica, mais utilizada com crianças pequenas, entrevistas e testes. Frequentemente, em se tratando de dificuldades de aprendizagem, é necessário recorrer a testes de nível intelectual. São muitas as críticas que algumas abordagens em Psicologia fazem à utilização deste tipo de instrumento, quando utilizado seguindo as normas da psicometria, mesmo depois de elas serem adaptadas para a população brasileira. Entretanto, a recusa desses instrumentos parece-nos uma atitude extremada, uma vez que pode levar à rejeição de possibilidades de interação com a criança nas situações propostas pelo teste. Desta forma, buscamos compreender com ela a partir de sua maneira de lidar com os estímulos apresentados. O resultado numérico serve apenas de referência para uma classificação em relação àquilo que seria esperado para a idade da criança. Resumindo, consideramos os testes organizadores que possibilitam a emergência de vivências que ocorrem no cotidiano da criança. Referem-se à experiência em outra situação, permitindo-nos compreender, junto com ela, como está sendo percebida sua relação consigo mesma, com os outros e com o mundo. Outros recursos utilizados: a visita domiciliar e a visita à escola a. Visita domiciliar - Propomos, também, a realização de uma visita domiciliar, com o consentimento do cliente. Ela permite a observação, in loco, da família, assim como a ressignificação de falas e observações ocorridas durante as sessões; b. Visita à escola - Outro recurso utilizado é a visita à escola. Por essa ocasião, recorre-se a uma entrevista com a professora, à observação da criança na sala de aula e no recreio. Deste modo, através da visita, podem-se observar e, às vezes, redimensionar queixas em relação à criança. Dependendo da disponibilidade da escola, ainda torna possível orientar a professora a partir da compreensão da criança. As repercussões deste trabalho sobre os pais Em vários casos estudados, nota-se um movimento dos pais que culmina, geralmente, em torno da quinta sessão, quando eles relatam modificações em sua compreensão da criança e tentativas de mudança em sua forma de se relacionarem com ela, ao mesmo tempo que, também, parecem ter perdido seus referenciais, tornando-se dependentes das indicações do psicólogo. Em alguns casos, o trabalho se encerra nesta primeira fase. De fato, quando os pais não estão motivados para o trabalho proposto, por se mostrar distante de suas expectativas ou muito ameaçador, desistem do atendimento. Em outros casos, porém, é possível instalar-se um campo interacional, no qual os pais e o psicólogo viverão experiências. A instalação e eficácia deste campo dependem tanto dos pais como do psicólogo. De fato, ambos precisam estar disponíveis para a possibilidade de irrupção do desconhecido e a vivência da angústia, decorrentes do rompimento da trama do cotidiano pelo surgimento de algo desconhecido a ser renomeado. Entretanto, enquanto esta nova construção ainda não se deu e a antiga encontra-se abalada, é como se os participantes pairassem numa espécie de vazio, com a sensação de que perderam o pé, não sabem o que fazer. Estes movimentos ocorrem mais intensamente em torno da quinta sessão, mas podem surgir até antes. É então que o psicólogo deve estar pronto para acompanhar os pais nesta trajetória, tomando o cuidado de ajudá-los a tornar estes momentos produtivos. O psicólogo também se defronta com momentos de angústia, não sabendo como compreender aquilo que está sendo trazido nem qual o caminho a seguir. Para ele, também, é pelas lacunas e ambiguidades entre a expectativa e a vivência que se pode procurar um novo conhecimento. Desse modo, pode-se compreender a importância da elaboração do relatório final. É frequentemente neste momento que o psicólogo percebe aspectos que não valorizou durante as entrevistas ou que foram sendo esquecidos ao longo do processo. O relatório final permite verificar a consistência e a coerência das conclusões às quais se chegou. Ele tem a finalidade de constituir-se em uma síntese do processo, descrevendo o que ocorreu neste período de atendimento. Para isso, o psicólogo está aberto para alterações do texto, caso eles não concordem com este. Nessas ocasiões, o assunto é retomado e procura-se chegar a um consenso. Quando isto não é possível, registram-se as duas versões, a dos pais e a do psicólogo. O follow-up A entrevista de follow-up é realizada com a finalidade de retomar, passado algum tempo,a experiência vivida pelos pais durante o psicodiagnóstico, a fim de conhecer sua fecundidade e eficácia. Pudemos perceber que, passado um ano do atendimento, as mães sentem-se mais seguras para lidar com o filho. Sua compreensão de algumas atitudes da criança se alterou, gerando mudanças em sua forma de se relacionar com ela. Aqui, nos encontramos em um terreno movediço, já que, por sua própria condição humana, tanto psicólogo como cliente mudam ao longo do tempo. Assim, passados alguns meses, aspectos que não haviam sido valorizados na época da realização do psicodiagnóstico, relegados a um segundo plano, podem aparecer agora como figura, já que o fundo se modificou, tornando necessárias uma reinterpretação e uma rediscussão das necessidades no momento atual. Texto: Psicodiagnóstico Interventivo: Evolução de uma prática. Silvia Ancona Lopez CAP 2 Psicodiagnóstico interventivo fenomenológico existencial Psicodiagnóstico como processo de intervenção Durante muito tempo, o psicodiagnóstico foi entendido como um processo que se desenvolvia a partir de um levantamento de dados do cliente (queixa, história de vida pregressa e atual, funcionamento psíquico etc.), cabendo ao psicólogo analisar esses dados com base na nosologia psicopatológica e dar o encaminhamento possível para o caso. Evitavam-se, nesse processo, estabelecer vínculo com o paciente e fazer intervenção, sendo esses procedimentos delegados aos processos psicoterápicos. Fischer, nos Estados Unidos, nos anos 1970, e M. Ancona-Lopez, no Brasil, na década de 1980, foram as precursoras na introdução do psicodiagnóstico interventivo, o qual rompe com o modelo anterior, fazendo do atendimento um processo ativo e cooperativo. Não se trata apenas de um processo investigativo; ao contrário, o que fundamentalmente o caracteriza é a possibilidade de intervenção. No psicodiagnóstico interventivo fenomenológico-existencial, as questões trazidas pelos clientes são ao mesmo tempo investigadas e trabalhadas, a fim de que se possam construir, em conjunto, possíveis modos de compreendê-las. As intervenções no Psicodiagnóstico Interventivo se caracterizam por propostas devolutivas ao longo do processo, acerca do mundo interno do cliente. São assinalamentos, pontuações, clarificações, que permitem ao cliente buscar novos significados para suas experiências, apropriar-se de algo sobre si mesmo e ressignificar suas experiências anteriores. […] reconhecem a necessidade de fazer certos apontamentos ao paciente durante o processo Psicodiagnóstico por considerarem que o trabalho alcança uma dimensão mais ampla e compreensiva. Também argumentam a favor de devoluções parciais e de realizar um trabalho em conjunto com o paciente. Santiago (1995, p. 17) No caso do psicodiagnóstico infantil, esse processo pressupõe a implicação da família na problemática, atribuída à criança, na queixa. Esse modo de compreender o psicodiagnóstico decorre, como já mencionado, da concepção de homem e de mundo postulada pela fenomenologia existencial, isto é, considera o ser humano como um ser sempre em relação, cuja subjetividade se constitui pelas relações que o indivíduo estabelece no decorrer de sua existência. Psicodiagnóstico como prática colaborativa O psicodiagnóstico é visto como uma prática conjuntamente realizada pelo psicólogo, pelos pais e pela criança. Os pais e a criança têm uma participação ativa nesse tipo de diagnóstico; atribui-se grande valor às informações trazidas pelos pais, à forma de compreensão do problema do filho, às explicações prévias, às fantasias e expectativas construídas antes e no momento da procura do psicólogo. Nessa medida, não há uma relação verticalizada, pois o psicólogo não se põe no lugar de quem “detém o saber” Psicodiagnóstico como prática compartilhada Em tal modalidade de atendimento, o psicólogo compartilha com os clientes suas impressões, permitindo que estes as legitimem ou ainda as transformem. Entende-se que é no compartilhar de experiências e percepções que pode emergir uma nova compreensão, que possibilite diminuir ou eliminar o sofrimento psíquico da criança e da família. Essa é uma posição derivada da Psicologia Fenomenológica, na medida em que entende o indivíduo, em seu “estar no mundo”, como uma pessoa consciente, capaz de fazer escolhas e de responsabilizar-se por elas, diante de quem se abre um leque de possibilidades. As intervenções do psicólogo, obtidas por meio de suas percepções, se oferecem como possibilidades para ampliar o campo de consciência da pessoa, permitindo novas experimentações. Psicodiagnóstico como prática de compreensão das vivências O registro das experiências que as pessoas vão tendo ao longo da vida e às quais atribuem sentido constitui seu campo fenomenal. No psicodiagnóstico interventivo fenomenológico-existencial, o psicólogo busca compreender esse campo fenomenal e evita que as explicações teóricas se anteponham ao sentido dado pelo cliente. A fim de que possa compreender o campo fenomenal, o psicólogo deve, com os clientes, desconstruir a situação apresentada e buscar seu significado principal. A queixa deixou de ser vista de modo isolado para tornar-se via de acesso ao mundo do sujeito, a seus objetos intencionais, e aos conflitos nele instalados, considerando-se o esclarecimento dos significados ali presentes como processo necessário para uma possível re-significação e consequente modificação do modo de estar consigo e com o outro. A identificação da experiência do outro, bem como seu significado, é uma tarefa que exige, de alguma maneira, que o psicólogo se reconheça nesse outro. Portanto, é preciso que haja um envolvimento existencial; é preciso mergulhar no mundo do cliente, compartilhar seus códigos, deixar-se enredar por sua trama de sentidos e, ao mesmo tempo, conseguir uma distância suficiente que permita refletir sobre a situação. M. Ancona-Lopez (1995, p. 94), referindo-se a esse aspecto, observa que ele se apoia no conceito de intersubjetividade, o qual afirma a possibilidade de “reconhecer o outro como um outro eu, que, possuindo um corpo inserido em um mundo, portador de comportamentos e construtor de significados, constitui a si e ao mundo”. O psicodiagnóstico interventivo como prática descritiva O psicodiagnóstico interventivo evita classificações. Não pretende montar um quadro estático sobre o sujeito. É um modelo descritivo na medida em que faz um recorte na vida da pessoa, em dado momento e em determinado espaço, focalizando seu modo de estar no mundo, com os significados nele implícitos. O psicodiagnóstico interventivo e o papel do psicólogo e dos clientes Convém reiterar que os clientes, nesse atendimento, têm um papel ativo, participam da construção de uma compreensão sobre o que acontece com eles. Desse modo, tanto as experiências do cliente quanto as impressões do psicólogo sobre elas são compartilhadas, caindo por terra a ideia de que existem aspectos que não devem ser mencionados pelo psicólogo ao cliente: o importante é como dizer, e não o que dizer. Descrição do atendimento em psicodiagnóstico interventivo na abordagem fenomenológico existencial Essa modalidade de atendimento pode ser realizada individualmente, ou com mais frequência, nas instituições. As etapas do processo são as mesmas, em ambos os casos. 1. Entrevista inicial Para a entrevista inicial convoco somente os pais. Inicio com os cumprimentos e apresentações habituais e deixo-os falar sobre como vieram até mim, por que e o que esperam. Em seguida, converso sobre minha forma de trabalhar, ou seja, compartilho com eles o fato de o psicodiagnóstico ser um processo cujo objetivo é compreender aquilo que ocorre com a criança e com eles, pais, na relação com o filho, dos motivos que levam a criança a apresentar determinados comportamentos, bem como o que é possível fazer para ajudá-la. Explico que parto da ideia de que se a criança tem uma dificuldade, os pais estão implicados nela, e que, poressa razão, a participação deles no processo é fundamental. Enfatizo que não se trata de um diagnóstico feito somente por mim, mas que buscaremos juntos compreender o que se passa, que eles são parte ativa do atendimento, e que tanto as informações por eles fornecidas como seu modo de entender a criança são essenciais para a efetivação do processo. Explico ainda as visitas domiciliar e escolar que fazem parte do atendimento. Deixo que eles falem sem interrupções. As eventuais dúvidas ou perguntas que tenha a fazer deixo para depois que os pais derem sinal de que concluíram o que tinham para comunicar. Procuro observar os temores, as fantasias, as angústias que eles demonstram ao se referir à criança, a si mesmos e à vida de modo geral. No caso de comparecer o casal, tento compreender se ambos têm as mesmas demandas e se atribuem a elas os mesmos significados. Após essa primeira imersão na teia de significados construídos pelos clientes, procuro fazer eventuais intervenções de esclarecimento e pontuações, de tal forma que possa compartilhar com eles minhas impressões e possam ou não legitimá-las. Geralmente, verifico se a sessão atendeu ao objetivo, que é a contextualização da queixa e o esclarecimento da forma de trabalho e, caso ainda existam dúvidas, conversamos sobre o prosseguimento da entrevista no próximo encontro, no qual pretendo também aclarar determinados pontos. 2. História de vida da criança O segundo encontro destina-se à anamnese, que pode ser feita de duas formas. Segundo M. Ancona-Lopez (1995), é possível entregar o questionário de anamnese aos pais, que o levam para casa e lá o respondem. Quando retornam ao atendimento, conversam com o profissional sobre suas respostas e sobre como responderam ao questionário: se apenas o pai ou a mãe o fez ou se a família se reuniu em torno dos temas, revivendo sua história, se consultaram outros membros da família em relação às informações etc. Outra forma de encaminhamento da questão é entrevistar os pais ou responsáveis durante o atendimento. Essa é a maneira que prefiro utilizar em meu trabalho, pois me permite ver, sentir as emoções que os pais refletem a cada pergunta ou cada etapa da vida do filho. Isso me dá condições de observar tanto o comportamento verbal como o não verbal enquanto falam da criança. Começo a história de vida da criança pelo período em que os pais se conheceram. Converso sobre os planos e os projetos daquela época, sobre namoro, casamento e gravidez. A partir daí, sigo o roteiro clássico de anamnese; entretanto, faço perguntas abertas, às quais os pais respondem livremente. Meu objetivo é sempre o mesmo: penetrar naquele mundo repleto de significações, entender o projeto de vida, desvendar o sistema de valores, de crenças, o modo de ser. Nesse ponto, na tentativa de alinhavar os dados da queixa com os da anamnese, formulo aos pais hipóteses sobre o que pode estar acontecendo, para que eles contribuam com elementos que as ampliem. A ideia embutida nesse procedimento é apresentar novas formas de ver a situação, novas possibilidades de pensar o fenômeno em questão. Além disso, procuro verificar como os pais reagem diante delas, como as analisam e o que está em jogo nessa análise. 3. Contato inicial com a criança Inicio o primeiro contato com a criança apresentando-me: informo que sou psicóloga e pergunto-lhe se ela sabe o que faz um psicólogo, bem como se conhece os motivos pelos quais foi trazida a esse atendimento. Caso a criança responda afirmativamente, converso sobre a queixa por ela identificada, buscando que sentido tem isso para ela, que significado dá ao fato de estar ali. Meu propósito é conhecer quais fantasias e temores ela expressa diante do problema e do atendimento propriamente dito. Por outro lado, se a criança responde negativamente à pergunta inicial, explico a ela, genericamente, que um psicólogo conversa com as pessoas para auxiliá-las em suas dificuldades. Comento que as crianças vão ao psicólogo por motivos diversos, como desempenho escolar, relações com mãe, pai, irmãos ou colegas etc. Em seguida, pergunto-lhe se sabe por que razão está ali; se desta feita ela consegue expressar sua visão do assunto, prossigo o diálogo conforme descrevi há pouco. Quando ocorre de a criança negar algum conhecimento a esse respeito, duas condutas são possíveis. Se percebo que a criança não pode se expressar por algum motivo, mas não está em uma posição distante ou defensiva em relação a mim, informo a ela, ou seja, explico que seus pais a trouxeram por estarem preocupados com determinado comportamento seu. Entretanto, se noto que a criança não fala sobre o motivo da consulta, pois este lhe causa ansiedade e sofrimento, e noto ainda que ela se encontra distante e defensiva em relação a mim, digo-lhe que entendo que naquele momento ela não possa falar sobre o fato e que, na ocasião em que se sentir em melhores condições, poderemos voltar ao assunto. Depois dessas preliminares, combino data e horário, falo sobre o sigilo da relação e aviso que manterei contato com seus pais, mas não lhes falarei a respeito do que ela fez ou contou no consultório, e sim de minhas interpretações e percepções sobre seu comportamento e que tudo isso será também conversado com ela. A primeira sessão com a criança é uma observação lúdica. Para realizá-la, trabalho com caixa lúdica. Apresento a caixa fechada para a criança, pois me interesso em observar se ela toma a iniciativa de abri-la, se espera por minha ajuda para fazê-lo, enfim, para ver qual sua reação em situação desconhecida. Digo a ela que pode abrir a caixa e que pode brincar da forma como quiser com o que está lá dentro. Se a criança solicitar que eu brinque com ela, eu a atendo, tomando o cuidado de perguntar o que quer que eu faça, que papel devo representar ou quais são as regras do jogo que pretende jogar. Além disso, procuro observar e compreender a natureza e o conteúdo do seu brincar: se há criatividade; se há agressividade; se reproduz aspectos de sua vida, ou melhor, tento entender qual é sua lógica, sua realidade. Segundo M. Ancona-Lopez (1995, p. 108), é importante, “ao final de cada sessão, conversar com a criança sobre as observações feitas, sempre usando as situações clínicas como metáforas das situações vividas”. 4. Sessões devolutivas com os pais. Esses encontros são realizados alternadamente entre criança e pais. Neles, compartilho minhas percepções sobre a criança, seu comportamento no atendimento e como eles se articulam com a queixa de modo geral. Trabalho também os sentimentos dos pais diante da situação, suas angústias e possibilidades de ajuda à criança. Discuto com eles a respeito dos procedimentos que vou utilizar. Dependendo do que percebo, faço orientações que, a meu ver, permitam melhor desenvolvimento da criança. Entretanto, procuro levar em consideração a disponibilidade, os recursos internos e as características de comportamento dos pais para que tais orientações não tenham o tom de uma “receita médica”. Procuro fazer com que os pais se apropriem delas. Desta forma, o Psicodiagnóstico Fenomenológico-Existencial envolve um trabalho de redirecionamento dos pais a partir de uma compreensão da criança e da dinâmica familiar, com o objetivo de facilitar o relacionamento, propiciar novas formas de interação e abrir novas perspectivas experienciais. 5. Encontros com a criança: uso de testes psicológicos Nas sessões com a criança posso usar testes psicológicos, observação lúdica, recursos como colagens, ou ainda intercalar essas e outras estratégias. Os testes psicológicos, em sua maioria, foram concebidos como instrumentos objetivos, capazes de medir e avaliar aspectos de personalidade, independentemente da relação estabelecida com o examinador e da história de vida da pessoa. Essa não é a forma como compreendo as informações obtidas a partir dos testes psicológicos. Acredito que os resultados de qualquer teste só podem ser compreendidosno contexto das experiências do indivíduo e que as interpretações podem ou não ser legitimadas pelo cliente. Ao usar um teste, minha intenção é conhecer o funcionamento da criança, quais são os mecanismos dos quais se utiliza em sua vida. Valorizo a análise qualitativa dos testes e não tenho a intenção de, a partir deles, categorizar, classificar ou definir patologias no comportamento do cliente. Pretendo compreender o comportamento da criança no teste, articulando-o com suas experiências de vida. Assim, costumo apresentar à criança minhas percepções ou hipóteses sobre suas produções no teste, relacionando-as com sua vida. Procuro verificar se minhas observações fazem sentido para ela e se pode acrescentar algo ao que foi dito. Essas percepções também são discutidas com os pais. 6. Visita escolar e visita domiciliar Essas visitas têm por objetivo entender a criança em relação às circunstâncias em que vive. Procuro comunicar aos pais e à criança as razões da visita escolar. Marco o contato por telefone e, geralmente, deixo a critério da escola a indicação da pessoa com quem devo falar. Na visita, procuro observar as instalações da escola, suas possibilidades, sua conservação. Pergunto ao responsável sobre as condições de ensino, o desempenho escolar da criança e seu relacionamento com colegas e professores. A visita domiciliar só ocorre se a família concordar. Ela é agendada previamente em horário determinado pela família. Peço que ela, na medida do possível, esteja reunida. Durante a visita interesso-me por observar a casa, suas condições de cuidado e higiene, os móveis, enfim, a parte física. Corrêa (2004, p. 62) diz que os espaços cotidianos da vida são modelados e modificados de acordo com a imagem do mundo que cada um carrega dentro de si e que é, por sua vez, constituída por pessoas, lugares, valores, experiências, acontecimentos associados a sentimentos. Esse mundo interno é projetado sobre os espaços e sobre os objetos, o que produz uma configuração, provoca associações, estabelecendo uma via de mão dupla entre o mundo interior — eu — e o espaço exterior — mundo. Ou seja, essa ligação entre o espaço — mundo concreto — e subjetividade — mundo abstrato — estabelece uma relação de similaridade entre eles. 7. Últimas sessões com os pais Nas últimas sessões com os pais, tenho cinco objetivos: a. Alinhar as percepções ocorridas durante o processo, ou seja, estabelecer um fio condutor que delineie o que foi trabalhado aos poucos, produzindo uma gestalt. b. Trabalhar o desligamento do processo de psicodiagnóstico, já que nesse trabalho conjunto se estabelece uma forte aliança com os pais e a criança, cujo rompimento produz sentimentos diversos que merecem ser discutidos e trabalhados. c. Avaliar conjuntamente o processo, em que aspectos atingimos nosso objetivo em comum, no que mudamos etc. d. Apontar os aspectos importantes que podem permitir aos pais e à criança continuar suas vidas mais fortalecidos. e. Trabalhar eventuais encaminhamentos ou o desligamento do consultório ou instituição. 8. Relatório final Ao final do processo, faço um relatório escrito, do qual constam as informações dadas pelos clientes, as questões trabalhadas durante o diagnóstico, enfim, tudo o que fez parte do atendimento. Ele é descritivo e é lido na íntegra para os pais, que podem retirar ou acrescentar algo ou ainda sugerir modificações. 9. Devolutiva final para a criança O fechamento do processo para a criança pode assumir diferentes formas. Uma delas consiste em fazer um livro cuja história é a própria história da criança.Quando monto o livro, faço o texto acompanhado por legendas e gravuras, cujos personagens são representados por animais pelos quais a criança tenha manifestado preferência. O enredo em si contempla a história de vida da criança, seus conflitos e o próprio atendimento psicodiagnóstico. O livro não contém o nome do autor, tampouco o nome da criança, e é lido e entregue a ela no último atendimento. O propósito é que a criança leve consigo algo que lhe permita continuar elaborando aquilo que, por alguma razão, não pôde ser elaborado até aquele momento.
Compartilhar