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DIREITO DAS CIDADES PROFESSOR: DIEGO SABÓIA E SILVA1 AUTOR DO TEXTO BASE: JOSÉ ANTÔNIO APPARECIDO JÚNIOR 1 Doutor em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC. Doutor em Ciência Política pela Universidade Federal Fluminense – UFF. Mestre em Direito pela Universidade Federal de Santa Catarina – UFSC. Especialista em Direito Tributário pelas Faculdades Integradas de Jacarepaguá – FIJ. Professor do Curso de Direito da Faculdade Luciano Feijão – FLF. Procurador Jurídico do Quadro Efetivo do Município de Forquilha/CE. Advogado (OAB/CE nº 21.221) Nota de aula 1 * Contextualização do Direito Urbanístico (ou Direito das Cidades) * Noção geral Inicialmente, incumbe ressaltar que o Direito Urbanístico (ou Direito das Cidades) é ramo em evolução, naturalmente ligado à cidade. Etimologicamente urbis, do latim, significa cidade, que representa a expressão criativa do homem, pois resulta da ação humana como agente modificador da natureza para a criação e ampliação do espaço urbano. O conceito desta disciplina jurídica, portanto, permeia as cidades e as necessidades correlatas à convivência dos homens nela. Trata-se, dessa forma, de assunto bastante palatável, em especial pelos muitos pontos de contato com o Direito das Coisas, estudado há pouco. Para se inserir no tema há necessidade de compreender a cooperação dos entes federados para se delimitar um entendimento do desenvolvimento urbano. A CF/88 trata das competências dos entes, estabelecendo os deveres da União, Estados, DF e Municípios para a promoção da política nacional de desenvolvimento urbano com a instituição de normas urbanísticas. Observe- se, nesse particular, que a competência legislativa em matéria urbanística é concorrente da União, Estados e DF (CF, art. 24, I) Atente-se para o fato segundo o qual no âmbito da legislação concorrente, a competência da União limitar-se-á a estabelecer normas gerais; a competência da União para legislar sobre normas gerais não exclui a competência suplementar dos Estados; inexistindo lei federal sobre normas gerais, os Estados exercerão a competência legislativa plena, para atender a suas peculiaridades; a superveniência de lei federal sobre normas gerais suspende a eficácia da lei estadual, no que lhe for contrário. Municípios não legislam sobre direito urbanístico. Este elabora o plano diretor (obrigatório para cidades com mais de vinte mil habitantes), que em realidade é um dos instrumentos da política básica de desenvolvimento urbano. Assim, a União alia-se aos Estados, DF e Municípios – com preponderância destes – tendo como premissa resolver questões sobre o desenvolvimento urbanístico nacional. Dessa forma, a propriedade urbana deverá atender às diretrizes e políticas urbanas a fim de cumprir a função social das cidades. * Formação do Direito Urbanístico Muito embora o Estatuto da Cidade (lei nº 10.257/2001, estandarte maior do Direito Urbanístico) seja relativamente recente, pois data de 2001, os antecedentes que possibilitam a formação do Direito Urbanístico em geral, e do Estatuto da Cidade em particular, remontam à primeira metade do século XX – anos 1930, com o processo de urbanização no Brasil, muito embora seja a década de 1970 que a urbanização tenha efetivamente experimentado seu auge –, caracterizados pelos acirrados embates entre interesses divergentes, acumulando avanços e retrocessos, os problemas urbanos provocados principalmente pela migração camponesa desde a década de 1960 serviram como verdadeiros elementos catalisadores de planejamentos tendentes a racionalizar o “caos urbano” instaurado em terrae brasilis. Nessa toada, percebe-se necessitar o Direito Urbanístico de introdução. Mais que uma introdução, demanda apresentação. O Direito Civil, por exemplo, não carece deste mecanismo. Tal condição ocorre porque o Direito Urbanístico raramente é ministrado nas graduações das faculdades, que tradicionalmente demoram a promover alterações em sua grade curricular, relegando a um segundo plano as novas questões que se apresentam no mundo jurídico. Não que não houvesse normas que pudessem ser classificadas como de Direito Urbanístico até algum momento recente da história da humanidade ou do Brasil. Só para falar do direito peninsular ibérico, normas gerais e simples de Direito Urbanístico já eram encontradas nas Ordenações do Reino (editadas a partir do século XIV) e nas Ordenações Filipinas (do início do século XVII). O que ocorre, em verdade, é que a velocidade do desenvolvimento deste ramo do Direito vem se tornando cada vez maior, em razão principalmente da crescente complexidade das relações humanas nas cidades, cada vez mais importantes e populosas em todo o planeta. O caso brasileiro é exemplar: segundo o IBGE2, no ano de 1940, contava o País com uma população de pouco mais de 41 milhões de pessoas, e cerca de 32% viviam nas cidades; no ano de 2010, dos quase 190 milhões de brasileiros, o total de habitantes nas cidades é de cerca de 85%. As normas jurídicas tendentes a regular esta explosão urbanísticas no Brasil foram surgindo paulatinamente3, até a promulgação da Constituição Federal de 1988 – CF/88 –, a primeira a trazer em seu texto menções ao Direito Urbanístico. De fato, tal ramo do Direito se apresenta, a partir da entrada em vigor do atual texto constitucional, não só como um dos mais modernos ramos do direito público, mas também como um dos que apresentam maior evolução em seus conceitos e aplicações. Voltado a implantar a cada vez mais relevante política de desenvolvimento urbano, com a finalidade de efetivar a função social da propriedade e garantir o bem-estar dos habitantes das cidades, este ramo do Direito expõe a necessidade de observância de novos paradigmas de atuação pelo Poder Público: a gestão 2 Disponível em: [http://seriesestatisticas.ibge.gov.br/series.aspx?no=10&op=0&vcodigo=POP122&t=taxa-urbanizacao], consulta em 10.01.2017. 3 Destaca-se, nesse sentido, a Lei nº 4.380/64, que criou o Banco Nacional de Habitação, as Sociedades de Crédito Imobiliário e o Serviço Federal de Habitação e Urbanismo (SERFHAU). Tal lei deu competência do BNH para promover e estimular o planejamento local integrado e as obras de infraestrutura urbana. Com base em tal delegação, o BNH elaborou “Programas de Desenvolvimento Urbano”, com o objetivo principal de racionalizar o crescimento das áreas urbanas brasileiras. democrática das cidades demanda a participação de todos os interessados na elaboração e implantação dos planos e projetos urbanos, a necessidade de prover-se habitação, transporte, lazer e trabalho aos seus habitantes exige compreensão do ambiente urbano e ponderação de todos os afetados pelo processo de urbanização ou reurbanização. O regramento do Direito Urbanístico determina ter a Administração Pública que passar, cada vez mais, a motivar suas decisões, considerando as legítimas pretensões pelos mais diversos polos de interesses, que disputam os benefícios advindos da vida nas cidades. Neste ambiente, a busca da consensualidade no processo de decisão administrativa e da publicidade dos procedimentos realizados pelo Poder Público passam a ser não mais opções da Administração Pública, mas sim indispensáveis elementos para a validade formal e material das decisões a todos vinculantes, legitimadoras da atuação estatal. É preciso destacar que a ordem urbanística foi expressamente alocada como bem jurídico integrante do conjunto de valores ou bens a serem defendidos pela ação civil pública (art. 1º, “VI”, da Lei nº 7.347/85), e pode ser definida como o conjunto de normas de ordem pública e de interesse social que regulam o uso da propriedade urbana em prol do bem coletivo, da segurança, do equilíbrioambiental e do bem-estar dos cidadãos. Desta forma, o dever objetivo dos legisladores e administradores de elaborar e implantar uma política de desenvolvimento urbano aderente às necessidades da população pode e deve ser objeto de controle pelo aparato jurídico de nosso País; ministério público, magistratura, defensoria pública, procuradorias, advocacia da União, enfim, todos, sem exceção, têm a necessidade de compreender a dinâmica jurídica concernente à ordem urbanística, cada vez mais objeto de estudo e indagação. * Conceitos essenciais Continuando na linha propedêutica, serão, desde já, abordados temas preliminares ao nosso estudo, com o propósito de familiarizar o estudante com algumas noções essenciais para a plena assimilação do conteúdo, tais como os de cidade, urbanismo, urbanificação e planejamento urbano, para finalmente poder-se definir o que se há de entender por Direito Urbanístico. Em seguida, far-se-á análise comparativa com ramos afins. - Conceito de Cidade Há diversas formas de se conceituar cidade – concepções econômicas, sociológicas, demográficas etc. Para os propósitos dessa disciplina, tais ideias são menos relevantes. No Brasil, “cidades” são conceitos jurídico-políticos, assim qualificados quando determinado território se transforma em Município. O que faz determinado agrupamento urbano ser considerado “cidade” não é seu número de habitantes, ou a quantidade de edificações nele existentes: será considerado cidade o núcleo urbano que é sede do governo municipal. Do ponto de vista urbanístico (o que é urbanismo ver-se-á a seguir), a cidade é o centro populacional dotado de dois elementos essenciais: unidades edilícias (residências, comércios etc.) e equipamentos públicos (ruas, parques, hospitais, mercados, ginásios etc). Não se há de confundir cidade com Município. Este é a menor unidade territorial brasileira com governo próprio, sendo formado pelo distrito-sede, onde se localiza a cidade, que é a sede municipal, e que leva o mesmo nome do Município; é, pois, o Município, o espaço territorial político dentro de um Estado-membro. Possui zona urbana (citadina) e zona rural (campesina). Cidade, a seu turno, é o espaço urbano dentro de um Município delimitado por um perímetro/zona urbano. Quem define as confrontações do que se há de entender por perímetro/zona urbana é a respectiva lei municipal, atentando para os requisitos mínimos estabelecidos no § 1º do art. 32 da Lei nº 5.172/66 (Código Tributário Nacional – CTN). Também não há que se confundir com distrito. Este é a subdivisão do Município, que possui como sede a vila. Não possui autonomia administrativa. A sede do distrito (a vila) é considerada como urbana, pois no Brasil a localidade onde existe extensão de serviços públicos é considerada como urbana, e este é o caso das vilas dos distritos. Nesse sentido, vide art. 32 do CTN, em especial seus §§ 1º e 2º. - Conceito de Urbanismo Quando se estuda o Direito Urbanístico, está é uma das grandes confusões que se apresenta. São duas linguagens diferentes, que não raro se imiscuem e tendem a confundir. O Direito Urbanístico é um ramo do direito, ao passo que o urbanismo é, antes de tudo, uma técnica, que reúne elementos de ciência e arte. Seu objetivo é a organização do espaço urbano, tendo por base o planejamento urbanístico voltado a promover as denominadas funções sociais da cidade: habitação, trabalho, recreação e circulação4. O urbanismo como ciência estuda o fenômeno da urbanização, e o urbanismo como arte (ou técnica de criação) desenvolve os métodos de planejamento urbano. O planejamento urbano é lógica e cronologicamente anterior à norma de Direito Urbanístico. De fato, o Direito Urbanístico positiva os planos urbanos, torna obrigatórios os seus comandos, mas com eles não se confunde; o urbanismo é o livre pensar, com base em elementos da realidade e de planejamento colocados à disposição dos técnicos e da sociedade. O Direito Urbanístico, a seu turno, traduz-se na “regra do jogo”, pela qual a política de desenvolvimento urbano será implantada. - Conceitos de Urbanização e Urbanificação 4 As funções sociais da cidade foram reveladas na Carta de Atenas (manifesto urbanístico resultante do IV Congresso Internacional de Arquitetura Moderna), de 1933. O tema do Congresso foi a “cidade funcional”. A Carta considera a cidade como um organismo a ser concebido de modo funcional, na qual as necessidades do homem devem estar claramente colocadas e resolvidas. Por urbanização entende-se o fenômeno de crescimento das cidades, com loteamentos, zonas de expansão urbana etc. Já a urbanificação é reconhecida como a correção da urbanização existente. Como será visto em momento oportuno, a operação urbana consorciada é normalmente exemplo de urbanificação de determinado perímetro. - Conceito de Planejamento Urbano Planejamento urbano (ou planejamento urbanístico) é uma atividade pública de diagnose da situação do sítio urbano a ser planejado e de prognose sobre a evolução futura dos processos urbanísticos, assim considerados os modos pelos quais a cidade tende a desenvolver-se e evoluir, espacial e socialmente. O resultado deste trabalho é o formalmente chamado “plano urbano” ou “plano urbanístico”. O processo de planejamento urbano tem que levar em conta o desenvolvimento das cidades, a distribuição espacial da população e o desenvolvimento das atividades econômicas do Município. É o planejamento urbano, ainda, uma das mais visíveis facetas da imprescindível nova postura da Administração Pública com relação aos administrados: é um processo que necessariamente será participativo, com oitiva e ponderação dos inúmeros interesses legítimos existentes no meio ambiente urbano. Não bastassem as determinações expressas trazidas nos arts. 2º, II e 43 a 45 do Estatuto da Cidade (Lei nº 10.257/2001), é da própria essência da criação dos planos urbanos e do próprio Direito Urbanístico a publicidade dos processos de formação da convicção administrativa e a busca da consensualidade entre os interessados (atente-se que consensualidade não se confunde com unanimidade), para que o resultado final da atuação do Poder Público seja mais útil formal e materialmente. - Conceitos de Política de Desenvolvimento Urbano e Atividade Urbanística A CF/88, em seu art. 182, assevera que a política de desenvolvimento urbano, executada pelo Poder Público municipal nos termos de diretrizes gerais fixadas em lei, terá por objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e garantir o bem estar de seus habitantes. O mesmo artigo esclarece que o plano diretor é o instrumento básico da política de desenvolvimento e de expansão urbana. Mas o que vem a ser a política de desenvolvimento urbano? A política de desenvolvimento urbano pode ser entendida como o conjunto de princípios, diretrizes e normas que norteiam a ação do Poder Público e da sociedade em geral na produção e gestão das cidades. O conceito guarda íntima relação com o da atividade urbanística, que nada mais é que a ação destinada a realizar os fins do urbanismo, e que tem por objetos o planejamento urbanístico, a ordenação do solo, a ordenação urbanística de áreas de interesse social e a ordenação urbanística da atividade edilícia – todos os objetos da atividade urbanística acham-se entre si ligados, e em recíproca dependência. A atividade urbanística é reconhecida como função pública exatamente por ser a face ativa da política de desenvolvimento urbano, com toda normatização de tal decorrente, sempre contará com o influxo de informações e controles que caracteriza a gestão democrática das cidades. - Conceito de Direito Urbanístico Somente após tecidas essas considerações é que chega o momento idôneo para se esboçar o que vem a ser o Direito Urbanístico. Estepode ser entendido como o complexo normativo que intenta organizar os espaços urbanos, de modo que seja possível propiciar aos habitantes ambiente de vida saudável, convivência pacífica e melhores condições de vida em sociedade. Cientificamente, do ponto de vista metodológico, por óbvio, dado que o Direito não é, em si, uma ciência: o que é científica é sua metodologia de estudo, trata-se o Direito Urbanístico de ramo do direito público que tem por objeto expor, interpretar e sistematizar as normas e princípios disciplinadores dos espaços habitáveis. Diante disso, a conclusão que se tem de sua definição é que, à política urbana incumbindo prezar pelo desenvolvimento urbano garantindo o bem-estar de seus habitantes, tendo o plano diretor como meio concretizador deste intento, deve-se sempre ter em vista o princípio da dignidade da pessoa humana, pois só assim atender-se-á, em consequência, a função social da propriedade urbana e a função social das cidades. Possui como objetivos organizar o ambiente urbano, regular a atividade urbanística, ordenar o território urbano no qual as pessoas escolheram viver. Ainda nesse sentido não se olvida do ambiente rural visando à proteção ambiental, relacionado com a sobrevivência dos conglomerados urbanos, donde se conclui que as normas de Direito Urbanístico somente lograrão êxito se harmonizadas com uma sistematização integrada entre o campo e o meio ambiente artificial. Seu objeto, pois, envolve as normas que disciplinam o planejamento urbano, que planificam a ocupação do solo urbano, organizam o espaço citadino e ainda a utilização dos instrumentos de intervenção urbanística. * Relações do Direito Urbanístico com outros ramos do Direito O Direito Urbanístico se insere no ordenamento jurídico nacional, e, a partir deste diálogo, utiliza princípios e institutos típicos de outros ramos do Direito para atingir as finalidades para as quais surgiu. Neste sentido, seu fundamento passa pela compreensão do Direito Constitucional. O regramento básico do Direito Urbanístico está expresso no texto constitucional em passagens como, por exemplo, os arts. 182; 30, “VIII” (competência dos municípios de promover, no que couber, adequado ordenamento territorial mediante planejamento e controle do uso, do parcelamento e da ocupação do solo urbano) e o 24, “I” e § 1º, que confere à União competência para legislar sobre normas gerais de Direito Urbanístico, com competência suplementar dos Estados-membros. O principal instrumental utilizado pelo Direito Urbanístico a partir do texto da CF/88, contudo, vem da combinação dos incisos XXII e XXIII do art. 5º, que determinam ser tanto a propriedade como a sua função social direitos individuais. O Direito Administrativo, por sua vez, fornece ao Direito Urbanístico importante instrumental para que este realize suas funções. Institutos como desapropriação, servidão e a ideia de poder de polícia, por exemplo, são imprescindíveis para fazer atuas as normas de Direito Urbanístico. Da mesma forma, retira importantes elementos do Direito Econômico e do Direito Tributário. Quanto ao primeiro, o fundamento da intervenção do Estado no domínio privado é o que dá suporte a intervenção do Poder Público nas cidades, sendo relevante até mesmo para a formatação do próprio conceito da propriedade urbanística. Quanto ao Direito Tributário, a mais evidente relação é a havida nas sanções advindas pelo mau uso da propriedade urbana, com a previsão constitucional do Imposto Predial e Territorial Urbano – IPTU – progressivo no tempo. No tocante ao Direito Civil, a proximidade causa até mesmo certos equívocos de interpretação, pois que o Direito Civil traz normas de direito de vizinhança, manobráveis entre particulares, e o Direito Urbanístico é constituído por normas de direito público, e molda a propriedade urbanística. O direito de edificar, contudo, fica em zona fronteiriça, recebendo comandos tanto de um quanto de outro ramo do direito. * Natureza das normas urbanísticas Há relativa discussão acerca da natureza do Direito Urbanístico, dada a sua “jovialidade”, de forma que muitos doutrinadores costumam sistematizá-lo como Direito Administrativo, outros como apêndice do Direito Econômico, dada a sua inserção, na CF, no Capítulo II do Título VII (“Da Ordem Econômica e Financeira”). A bem da verdade, divergências à parte, doutrinadores especialistas entendem ainda ser cedo para falar em autonomia, o que não impede a utilização da denominação “Direito Urbanístico”. Isso ocorre pelo fato de ser regulado por normas de várias espécies, de competência da União, Estados, DF e, no âmbito municipal, pelos respectivos planos diretores. Por essas razões, seria prudente, por ora, considerá-lo como direito multidisciplinar, sem desconsiderar que a natureza que envolve as regras de ordenação do território urbano é de caráter público. José Afonso da Silva alerta para o fato segundo o qual as normas de Direito Urbanístico não mais podem ser concebidas como simples regras de atuação do poder de polícia do Estado, nem como mero capítulo do Direito Administrativo, mas sim há a necessidade de concebê-lo sob nova configuração quanto às suas normas jurídicas, estribadas em seu estandarte maior – o Estatuto da Cidade – como um conjunto normativo intermediário no que se refere à necessidade de criação de outras leis para sua implementação – algo como as normas constitucionais de eficácia limitada – principalmente o plano direto. Portanto, valeu-se de competências diferenciadas porque há regras gerais nacionais, estaduais e municipais, porém todas de ordem pública. * Alguns Princípios informadores do Direito Urbanístico Alguns dos princípios informadores do Direito Urbanístico estão radicados no Estatuto da Cidade (lei nº 10.257/2001), especialmente pelas diretrizes de seu art. 2º. Extrai-se da leitura dos dezoito incisos que o vetor do desenvolvimento da política urbana serão os princípios da função social da cidade e da propriedade urbana, segundo as diretrizes fixadas em lei, sempre vislumbrando a dignidade da pessoa humana. O princípio da função social da cidade media a litigiosidade dos conflitos urbanos, assim como regula a utilização das áreas públicas, questões de moradia, de ordem sanitária, de meio ambiente artificial saudável, ou seja, visa o atendimento das necessidades da população por meio de ações estabelecidas no plano diretor. No que se refere ao princípio da função social da propriedade urbana, alhures comentado, importa a vinculação da propriedade urbana com as diretrizes da política urbana, tendo o plano diretor como ponto de partida para o desenvolvimento desta política nos Municípios, que estabelecerá os parâmetros em que a propriedade urbana irá cumprir sua função social. Nota de aula 2 * O Direito Urbanístico na CF/88: Fundamentos constitucionais Inicialmente, o processo de urbanização começou no Brasil na década de 1930 e teve seu auge na década de 1970 e, durante esse período, diversas Constituições foram promulgadas e/ou outorgadas — 1934, 1937, 1946, 1967 e a Emenda nº 01, de 1969. No entanto, até o momento em que a Constituição Federal de 1988 entrou em vigor, não existiam dispositivos constitucionais específicos para guiar o processo de desenvolvimento urbano e para determinar as condições de gestão urbana. Foi o capítulo original introduzido pela Constituição de 1988 – CF/88 – (Capítulo II do Título VII – arts. 182 e 183 da CF/88) que estabeleceu as bases jurídico-políticas iniciais para a promoção da reforma urbana, em função da demanda social de regulação legal do fenômeno da urbanização. Analisa-se neste momento, portanto, o que consta no texto constitucional no que diz respeito ao Direito Urbanístico, direta ou indiretamente. Tais são os fundamentos do Direito Urbanístico porque, claro, a ConstituiçãoFederal é a matriz de toda a validade da legislação infraconstitucional, mas também porque seus dispositivos, com inegável caráter normativo, ilustram toda a interpretação do ordenamento jurídico nacional. * A propriedade e sua função social Apenas à guisa introdutória, vez que serão analisadas especificamente na próxima aula, tem-se que propriedade e função social são realidades viscerais no texto constitucional. O direito de propriedade, consoante art. 5º, XXII, da CF/88, possui patamar de cláusula pétrea, direito individual que é, devendo atender, obrigatoriamente, à sua função social, de acordo com o inciso XXIII, do mesmo artigo. O art. 170 da CF/88, que trata dos princípios gerais da ordem econômica, atesta que esta é fundada na valorização do trabalho humano e na livre iniciativa, possui por fim assegurar a todos existência digna, conforme os ditames da justiça social, e deverá observar, entre seus princípios, o da função social da propriedade (inciso III). Isso é importante: a leitura da ordem econômica do País deve ser feita por intermédio deste filtro, e a função social da propriedade ilustrará o desenvolvimento de qualquer atividade econômica do País (o art. 173, §1º, “I”, reforça este caráter na intervenção estatal na atividade econômica. A função social, por fim, é a protagonista de outros dois capítulos do texto constitucional: no da Política Urbana, ao vincular seu cumprimento à observância do plano diretor, de acordo com o art. 182, § 2º; e no da Política Agrícola e Fundiária e da Reforma Agrária, nas quais é o valor a preponderar na desapropriação para fins de reforma agrária (arts. 184 e 186). Os dois capítulos estão no Título VII da CF/88, que regula a Ordem Econômica e Financeira. Atente-se ao fato segundo o qual a percepção de função social da propriedade no Direito Urbanístico é um tanto quanto diferente do Direito das Coisas; isto pelo fato de que neste, tradicionalmente, é vislumbrada como uma limitação ao direito de propriedade, ao passo que no Urbanístico constitui- se em verdadeiro mecanismo assecuratório da propriedade, permitindo que, através de concessões e condicionamentos recíprocos entre os proprietários, os direitos inerentes aos bens possam ser exercidos de maneira mais cômoda, racional, e consequentemente mais segura. * Política Urbana A CF/88 traz um capítulo (o capítulo II), inserido no Título da Ordem Econômica, nominado “Da Política Urbana”. Por política urbana deve-se entender o conjunto de estratégias e ações do Poder Público, isoladamente ou em cooperação com o setor privado, necessárias à constituição, preservação, melhoria e restauração da ordem urbanística em prol do bem- estar das comunidades. A estratégia montada no texto constitucional é interessante: define que, baseada em lei, tal terá por objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade (circulação, habitação, trabalho e recreação) e garantir o bem-estar de seus habitantes, e determina que o plano diretor é seu instrumento básico. Ao mesmo tempo, vincula o cumprimento da função social da propriedade (que é direito individual, a despeito de seu caráter social) à observância do plano diretor (vide CF/88, art. 182). As disposições do §4º do art. 182, assim como do art. 183 são meras consequências desta estratégia constitucional, que efetivamente, especialmente a partir do Estatuto da Cidade, vem dando resultados. * Plano Diretor O tratamento constitucional do plano diretor se dá no capítulo da Política Urbana. Como já apontado, há uma visível tentativa de fortalecer o papel deste diploma normativo por parte da CF/88. Além das disposições referentes à função social da propriedade, a Carta Magna determina que tal é obrigatório para todas as cidades com mais de vinte mil habitantes (o Estatuto da Cidade, como será visto, amplia esta obrigatoriedade). A ideia que perpassa o texto constitucional é estabelecer um padrão mínimo de exigência de normatização para as cidades brasileiras. É de bom alvitre não olvidar que o plano diretor é uma lei que positiva um processo de planejamento urbanístico, isto é, que torna obrigatório observar o diagnóstico e prognóstico do desenvolvimento urbano capturado em amplo processo participativo. * Direito ao Meio Ambiente Urbano No Brasil, o Direito Ambiental é mais desenvolvido, em termos de amadurecimento de seus conceitos e institutos, que o Direito Urbanístico, possuindo já considerável doutrina e jurisprudência produzida. Tal condição é refletida no texto constitucional, que trata do tema de maneira mais transversal e englobante. De fato, a CF/88 menciona o meio ambiente em diversas passagens, sendo certo que seu capítulo específico se localiza no título da Ordem Social (Título III – Da Ordem Social, Capítulo VI – Do Meio Ambiente). O Direito Ambiental, embora influencie na vida citadina, possui princípios e institutos próprios, diversos do Direito Urbanístico. Interessa a nós, nesse instante, verificar o trato constitucional ao meio ambiente urbano como fundamento constitucional do Direito Urbanístico. Sob esta perspectiva, o meio ambiente (inclusive o urbano) pode ser tutelado via ação popular (CF/88, art. 5º, LXXIII), sendo competência material da União, Estados, Municípios e Distrito Federal proteger o meio ambiente em todas as suas formas (CF/88, art. 23, VI). É função institucional do Ministério Público promover o inquérito civil e a ação civil pública em razão de lesão ao meio ambiente (CF/88, art. 129, III – foi visto que a lei da ação civil pública expressamente trouxe o tema da defesa da ordem urbanística), sendo princípio geral da ordem econômica a sua defesa (art. 170, VI). A defesa do meio ambiente urbano integra o conceito de fazer cumprir as funções sociais da cidade, objetivo da política de desenvolvimento urbano. * A livre iniciativa e a intervenção estatal A livre iniciativa é fundamento tanto da República Federativa do Brasil quanto da sua ordem econômica (art. 1º, IV e art. 170, caput). Muito se debate acerca da acepção do termo “livre iniciativa” e seu significado constitucional, mas é possível afirmar, sem adentrar em qualquer discussão, que o tema tanto se refere à liberdade de comércio e indústria como à liberdade de atuação dos agentes privados em concorrência na disputa pelos mercados. E mais: a leitura de tais dispositivos em conjunto com o art. 173 da CF/88 (Ressalvados os casos previstos nesta Constituição, a exploração direta de atividade econômica pelo Estado só será permitida quando necessária aos imperativos da segurança nacional ou a relevante interesse coletivo, conforme definidos em lei.) indica a determinação constitucional de subsidiariedade da atuação estatal no campo da exploração da atividade econômica, que deve ser devidamente justificada e precedida de lei autorizadora. Na mesma linha, o art. 174 esclarece ser o Estado agente normativo e regulador da atividade econômica, sempre sob o princípio da legalidade (hoje compreendido em sua acepção ampla), sendo seu planejamento determinante para o setor público e indicativo para o setor privado. No tocante ao Direito Urbanístico, o reflexo de tal orientação constitucional é bastante relevante. Primeiramente, em razão do conhecimento de que a atividade dos empreendedores privados é essencial para o desenvolvimento urbano. De fato, além da própria atividade ordinária de construção da paisagem urbana com base nas leis de zoneamento ou por intermédio de obras de infraestrutura e equipamentos públicos contratados pela Administração Pública, as parcerias entre o poder público e o setor privado são essenciais para a implementação dos planos e projetos urbanos – tal como ocorre nas operações urbanas consorciadas, concessões urbanísticas, todos os tipos de concessões para obras de infraestrutura urbana etc. Em segundo lugar, verifica-se que o planejamento urbano veiculado pelas leisurbanísticas (especialmente o plano diretor) excepciona a regra do plano estatal: mais que normatizar e orientar, o planejamento urbanístico é de observância obrigatória tanto pelos setores públicos quanto pelos privados. A chave para compreender tal exceção, já é possível adiantar, é a propriedade urbanística, conformada sob as luzes da função social da propriedade. * Competência dos entes federados, princípio da legalidade em matéria urbanística e processo legislativo em Direito Urbanístico A CF/88 determina que compete à União instituir diretrizes para o desenvolvimento urbano, inclusive habitação, saneamento básico e transportes urbanos (art. 21, XX). O art. 24, em seu inciso I, por sua vez, como já visto, dá competência concorrente à União, Estados e Distrito Federal para legislar sobre Direito Urbanístico, sendo certo que incide o conhecido dos §§ 2º e 3º do indigitado artigo: caberá à União editar normas gerais sobre o tema, com competência suplementar dos Estados, que poderão exercer competência legislativa plena caso não exista a lei federal (que você já sabe que existe: é o Estatuto da Cidade – Lei nº 10.257/2001). Aliás, aos Estados cabe, de acordo com o art. 25, § 3º, e mediante lei complementar, instituir regiões metropolitanas, aglomerações urbanas e microrregiões, constituídas por agrupamentos de municípios limítrofes, para integrar a organização, o planejamento e a execução de funções públicas de interesse comum (também falaremos sobre isso mais adiante), especialmente quando estudarmos o Estatuto da Metrópole). O protagonista, em termos de legislação urbanística, é o Município (embora esteja excluído da competência legislativa concorrente, consoante o art. 24, I, da CF/88, pasmem! Mas o art. 30, em seus incisos I, II e VIII, conferem um pouco mais de coerência a esta situação, quando da interpretação sistemática.): além do capítulo da Política Urbana, que transforma o plano diretor no principal diploma normativo em Direito Urbanístico, pelo art. 30, detém o município competência para legislar sobre assuntos de interesse local (inciso I); suplementar a legislação federal e estadual no que couber (inciso II); e para promover, no que couber, adequado ordenamento territorial, mediante planejamento e controle do uso, do parcelamento e da ocupação do solo urbano (inciso VIII). O princípio da legalidade é reconhecido como um dos pilares de sustentação do denominado “regime jurídico de direito público”. Parte importante da doutrina nacional fala da “crise do princípio da legalidade”, advindo principalmente da constatação de que a lei formal, produto do parlamento, não consegue acompanhar o ritmo das mudanças sociais, e tende a regular de maneira pouco satisfatória os temas que aborda. Da mesma forma, como “verso da moeda”, é identificado o fenômeno da “delegificação” (os “deslegificação”), que consiste na crescente regulação de setores ou matérias por intermédio de produção normativa não legislativa – é o caso dos regulamentos editados pelas agências reguladoras, por exemplo. Entretanto, não se pode identificar tal fenômeno com a volta do primado da arbitrariedade e da subjetividade na Administração Pública – não haver lei em sentido formal não significa que não haja regulamentação e que não deva haver transparência na gestão e responsabilidade do administrador. Faz-se essas considerações porque importa destacar que o Direito Urbanístico, por ser um novo e dinâmico ramo do Direito, está lançado no centro deste debate. Com efeito , ao mesmo passo que é evidente que temas fundamentais da normatização urbanística, especialmente os que veiculam as potencialidades de aproveitamento das propriedades imobiliárias urbanas – tais como a conformação da propriedade urbanística e os índices de aproveitamento, uso e ocupação do solo – têm que ser objetivamente definidos por lei formal, o Direito Urbanístico possui como componente indissociável a construção de normas jurídicas em concreto mediante participação dos interessados e a gestão democrática. Em outros termos, não só a elaboração como também a aplicação das normas urbanísticas consideram este processo, e a aplicação da norma jurídica transmuda a norma jurídica abstrata em norma jurídica em concreto. Além desse aspecto citado acima, esta participação pressupõe que assuntos referentes a Direito Urbanístico serão debatidos pela sociedade, que deverá atingir consensos para a definição de pauta legislativas e administrativas tanto de legislação estruturante como de formação de políticas públicas de desenvolvimento urbano. Isso significa que há um amplo espaço de atuação administrativa praeter legem (e não apenas secundum legem), criando-se, de forma amplamente motivada e transparente, e por intermédio de processos públicos e formais, normatizações específicas em hipóteses que, em tese, seriam destinadas à regulação por lei. O tema será abordado de maneira mais completa na análise do Estatuto da Cidade. Por ora, o que é importante lembrar: não há formulação nem implantação de projetos urbanísticos sem ampla participação dos interessados, isto é, da sociedade. * Direito à cidade e responsabilidade do Estado em matéria urbanística O desequilíbrio social no uso e ocupação do solo urbano, especialmente nos grandes centros urbanos, desencadeou a busca de um modelo de desenvolvimento de urbanização que permitisse a potencial fruição dos benefícios advindos da vida nas cidades a todos os seus habitantes. Tais estudos redundaram no consenso sobre a necessidade de universalização do acesso às comodidades da vida urbana, seja pelo uso dos serviços e equipamentos públicos, seja pela ampla participação dos interessados nas decisões que afetem a população. Como resultado deste processo, foi formulada a Carta Mundial do Direito à Cidade, redigida no Fórum Social das Américas, em Quito, em julho de 2004, retificada no Fórum Mundial Urbano de Barcelona, em setembro de 2004, e ratificada pelo V Fórum Social Mundial de Porto Alegre, realizado em janeiro de 2005. O então denominado “direito à cidade” foi identificado como um direito coletivo dos habitantes das cidades, especialmente manobrável em favor dos grupos hipossuficientes, com o objetivo de alcançar o pleno exercício do direito a um padrão de vida adequado. O documento ainda expõe que o direito à cidade democrática, justa, equitativa e sustentável pressupõe o exercício pleno e universal de todos os direitos econômicos, sociais, culturais, civis e políticos previstos em pactos e convênios internacionais de direitos humanos por todos os habitantes, tais como o direito ao trabalho e às condições dignas de trabalho, o direito de construir sindicatos, o direito a uma vida em família, o direito a um padrão de vida adequado, incluindo alimentação e vestuário, o direito a uma habitação adequada, à saúde, à água, à educação, à cultura etc. Como princípios e fundamentos estratégicos do direito à cidade, destacam-se o exercício pleno da cidadania e gestão democrática da cidade, a igualdade (dever de evitar a discriminação), a proteção especial de grupos e pessoas vulneráveis e a função social da cidade e da propriedade. Sem que se queira diminuir a importância a ser dada ao atendimento das demandas que veicula, observa-se que o “direito à cidade” não parece possuir institutos ou princípios próprios. É, isto sim, a somatória de institutos e princípios pertencentes cada qual a seu campo próprio do direito. É, em resumo, um direito síntese, útil para a abordagem sistemática de regramento e incidência das normas jurídicas que engloba. Entendido desta forma, verifica-se que seus dispositivos referentes ao direito à cidade estão espalhados por todo o corpo constitucional, descabendo aqui relacionar os inúmeros artigos referentes ao direito à saúde, habitação, educação etc. presentes na Carta Magna. No tocante ao Direito Urbanístico, o direitoà cidade tem utilidade para a fixação dos objetivos da política de desenvolvimento urbano e na conformação da ordem urbanística – não há falar-se em uma cidade que respeite os direitos individuais sem que se possibilite uma equitativa distribuição dos benefícios e ônus decorrentes da urbanização, privilegiando-se o interesse transindividual da cidade justa e equilibrada social e economicamente. Tal constatação, por sua vez, implica reconhecer que o planejamento urbanístico não possui ampla liberdade de definição de metas e prioridades, mesmo que legitimado pelos processos de participação popular eventualmente incidentes. Ao revés, não pode deixar de contemplar o atendimento das necessidades básicas da população da cidade – o Direito Urbanístico, desta forma, é um relevante veículo de implementação do direito à cidade, e sua formulação e implantação não podem deixar de considerá-lo. É, pois, o planejamento urbanístico, sujeito a esses limites e vínculos. Superada esta parte, incumbe agora trazer algumas considerações a respeito da responsabilidade do Estado – no caso em questão entenda-se como o ente federado Município – em matéria urbanística. Despiciendo dizer que, como regra, a responsabilidade civil do Estado, em terrae brasilis, é objetiva (teoria do risco administrativo), ou seja, independe de culpa, excepcionando-se, dessa forma, a regra geral insculpida no art. 186 do Código Civil Brasileiro, que adota a responsabilidade subjetiva ou extracontratual, não se devendo descuidar que tanto em uma modalidade quanto em outra são elementos essenciais a conduta humana voluntária(no caso, o fato administrativo), o nexo de causalidade e o dano. Entretanto, em matéria urbanística, em que pese também ser aplicada a regra da responsabilidade civil objetiva, abre-se espaço para a responsabilização subjetiva do Estado em caso de omissão deste. Vale dizer, para que se caracterize a responsabilidade subjetiva do Estado há a necessidade da presença de elementos que caracterizem a culpa, originando-se essa do descumprimento do dever legal, atribuído ao Poder Público, de impedir a consumação do dano. Resulta, como corolário lógico, que nas omissões estatais, a teoria da responsabilidade objetiva não tem perfeita aplicabilidade, como ocorre nas condutas comissivas. Dito isso, analisa-se a responsabilidade civil do Estado em matéria urbanística à luz de uma modalidade de case que, de tão corriqueiro, encontra-se já na esfera de previsibilidade do Poder Público: trata-se dos casos de deslizamentos de terra, com o consequente desmoronamento de moradias em municípios do Estado do Rio de Janeiro, notadamente localizadas em áreas urbanas cuja ocupação é irregular (morros, favelas etc.) Surge, então, a seguinte discussão: trata- se de caso fortuito (imprevisibilidade)/força maior (inevitabilidade) e, portanto, descabe indenização, em função desses elementos se caracterizarem como excludentes do dever de indenizar, ou há a responsabilidade civil por omissão, pois que não haveria falar-se em imprevisibilidade, vez que esses desmoronamentos já são algo que, de tão comuns, tornaram-se previsíveis? Parte da doutrina entende que a despeito da patente omissão do Estado no cumprimento de vários de seus deveres genéricos (carências nos setores da educação, saúde, segurança, habitação, emprego, meio ambiente urbano etc.), não seria cabida a indenização, sob o argumento que o atendimento dessas demandas reclamaria a implementação de políticas públicas para as quais o Estado nem sempre conta com recursos financeiros suficientes (ou conta, mas investe mal!). Tais omissões, por genéricas que são, não renderiam ensejo à responsabilidade civil do Estado, mas sim à eventual responsabilização política de seus dirigentes. Argumentam que tantas artimanhas comete o Poder Público na administração do interesse público, que a sociedade começa a indignar-se e a impacientar-se com referidas lacunas. Compreendem a indignação, mas aduzem que o fato não conduz a que o Estado tenha que indenizar toda a sociedade pelas carências a que ela se sujeita. Em que pese tal tipo de posicionamento ser esposado por autores de vulto, como José dos Santos Carvalho Filho, atrevemo-nos a discordar, notadamente pelo fato da possibilidade de o Estado cobrar regressivamente de seus agentes que causam danos oriundos de culpa ou dolo – no caso em apreço, a culpa pela omissão. Caso contrário, os prejudicados podem ter frustrada sua pretensão indenizatória, em função da esquiva de referidos dirigentes, por meio de subterfúgios os mais espúrios. Assim, cobra-se do Estado e este, apurando a culpa de seus agentes, que os responsabilize. Isso porque há nítida omissão por parte do Município em relação a tais edificações, que são erguidas ao arrepio da legislação aplicável, e o ente federado nada – ou pouco – faz a respeito, no sentido de regularizar os imóveis. Sabem, pois, as autoridades, que os locais são áreas de risco, mas não providenciam a retirada dos moradores do local ou realizam obras de proteção necessárias à segurança das famílias envolvidas. Ressalte-se que não se pode falar aqui em caso fortuito ou força maior, pois não há imprevisibilidade: há décadas esse fenômeno vem ocorrendo reiteradamente, estando, pois, em lamentável esfera de previsibilidade. Ademais, o artigo 30, inciso VIII, da Constituição da República, atribui ao município a obrigação de promover, no que couber, o adequado ordenamento territorial, mediante planejamento e controle do uso, do parcelamento e da ocupação do solo urbano. Cabe ao município evitar loteamentos irregulares e subsequentes construções clandestinas, sobretudo em encostas. Em reiteradas ocasiões, os municípios não só permitem como fomentam loteamentos e a construção de residências e comércios em locais próximos a referidas áreas de risco e, por isso, não podem se omitir na remoção das famílias que ali vivem, não sendo razoável, ainda, que continue impassível à espera de outros deslizamentos, com novas vítimas, o que vem ocorrendo reiteradamente nos municípios. Há ainda outra consequência nefasta nas omissões estatais: a “avalanche” de ações civis públicas ajuizadas pelo Ministério Público estadual visando, justamente, compelir o réu a adotar medidas urgentes para evitar novas tragédias nesta cidade. Assim, é evidente que o município deve ser responsabilizado pelos danos causados aos particulares, sobretudo quando age em flagrante omissão aos seus deveres legalmente definidos, pelo que ocasiona prejuízos e sofrimentos aos cidadãos. Nessa linha segue a jurisprudência pátria5. 5 Nesse sentido veja-se o processo nº 0088642-89.2010.8.19.0002, que tramita na comarca de Niterói, no Estado do Rio de Janeiro, no qual referido município foi condenado a indenizar em R$ 311.000,00 http://www.jusbrasil.com.br/topicos/10637721/artigo-30-da-constitui%C3%A7%C3%A3o-federal-de-1988 http://www.jusbrasil.com.br/topicos/10714104/inciso-viii-do-artigo-30-da-constitui%C3%A7%C3%A3o-federal-de-1988 http://www.jusbrasil.com.br/legislacao/155571402/constitui%C3%A7%C3%A3o-federal-constitui%C3%A7%C3%A3o-da-republica-federativa-do-brasil-1988 Nota de aula 3 * NORMAS GERAIS DE DIREITO URBANÍSTICO * A lei nº 10.257 – Estatuto da Cidade É induvidoso que a lei nº 10.257/2001 – Estatuto da Cidade (EC) – se traduz na principal legislação em matéria urbanística do direito brasileiro. Assim, é forçoso que neste momento inicial da disciplina sejam analisados os principais princípios que ilustram a interpretação e aplicação do Direito Urbanístico, suas diretrizes gerais de política urbana, materializadas notadamente no art. 2º de referida lei, verdadeiro vetor de interpretação e produção de normas jurídicas. É referida lei o regulamento que visa a “esmiuçar” os arts. 182 e 183 da CF/88. Já no parágrafo únicode seu art. 1º, anuncia que veio para estabelecer normas de ordem pública e interesse social que regulam o uso da propriedade urbana em prol do bem coletivo, da segurança e do bem-estar dos cidadãos, bem como do equilíbrio ambiental. Uma tarefa hercúlea, diga-se. Para tanto, a lei se estrutura na seguinte conformidade: o Capítulo I inicia com as diretrizes gerais de política urbana, estudadas com mais vagar logo adiante, e em seguida, trata das competências da União em sede de política urbana. Passa, a seguir, no Capítulo II, a disciplinar os instrumentos em geral; na Seção II, do parcelamento, edificação ou utilização compulsórios; na Seção III, do IPTU progressivo no tempo; na Seção IV, da desapropriação com pagamento em títulos; na Seção V, da usucapião especial de imóvel urbano; na Seção VII (a Seção VI – arts. 15 a 20 – foi inteiramente vetada), trata do direito de superfície; na Seção VIII, do direito de preempção; na Seção IX, da outorga onerosa do direito de construir; na Seção X, das operações urbanas consorciadas; na Seção XI, da transferência do direito de construir e na Seção XII trata do estudo de impacto de vizinhança. O Capítulo III trata exclusivamente do plano diretor; o Capítulo IV, da gestão democrática da cidade e o Capítulo V traz as disposições gerais. A leitura atenta do texto da lei é altamente recomendável, pois a maioria dos temas é detalhada – como em todo bom regulamento –, para a sua compreensão. (trezentos e onze mil reais) ex-morador do “Morro do Bumba”, que perdeu sua casa, parentes e amigos em função de deslizamento de terra no dia 6 de abril de 2010. O Estatuto da Cidade, pois, veio com a pretensão de pôr fim à prolongada “adolescência” do Direito Urbanístico Brasileiro. Coube à então novel legislação o desafio de consolidá-lo (fixando conceitos e regulamentando instrumentos), de lhe conferir articulação, tanto interna (estabelecendo os vínculos entre os diversos instrumentos urbanísticos) quanto externa (fazendo a conexão de suas disposições com as de outros sistemas normativos, como as de direito imobiliário e registral) e, desse modo, viabilizar sua operação sistemática. O Estatuto da Cidade passou dez anos tramitando no Legislativo. Desde a propositura do projeto de lei nº 5.788/1990, da Câmara dos Deputados, as ideias de como deveria ser esta norma geral da União foram amadurecendo, e tomando corpo. Ao final, houve uma opção deliberadamente didática do legislador infraconstitucional: o Estatuto da Cidade, além de trazer as diretrizes da política de desenvolvimento urbano, funciona como uma espécie de “cartilha” para a elaboração das leis dos planos diretores dos municípios brasileiros, pois traz conteúdo obrigatório, orienta a formulação e aplicação da legislação etc. Desde já é importante, por outro lado, destacar que o Estatuto da Cidade promove, com seu texto, alteração na própria leitura e interpretação dos instrumentos voltados à consecução da política de desenvolvimento urbano. De fato, a expressão estabelece normas de ordem pública e interesse social, embora pareça redundante, não se mostra despropositada. Pareceria redundante, pois, tratando-se de normas urbanísticas, inseridas no âmbito do direito público, que configuram logicamente preceitos de ordem pública. No entanto, o legislador talvez quisesse ressaltar e tornar clara uma nova conformação de direitos ou de figuras jurídicas classicamente vislumbradas sob o ângulo privado. Neste diapasão, o conceito de propriedade em zona urbana deve conciliar-se com o interesse geral. - Diretrizes gerais de política urbana No Brasil, o planejamento urbanístico configura-se como verdadeiro dever jurídico do Poder Público, tendo por escopo elaborar planos com a finalidade de cumprir o comando do caput do art. 182 da CF/88. O art. 182, por sua vez, determina que tal política terá por objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e garantir o bem- estar de seus habitantes. Recapitulando mais um pouco, já foi dito que as funções sociais da cidade, reveladas na Carta de Atenas (1933), são as de circulação, trabalho, lazer e habitação. Para que seja alcançado tal desiderato, o ordenamento jurídico positivo determina a observância de postulados, procedimentos e formalidades específicas, especialmente as diretrizes gerais da política urbana arroladas no Estatuto da Cidade. O ordenamento jurídico vigente no Brasil não se limita a possibilitar o acolhimento, por intermédio da lei, dos resultados do planejamento urbanístico: ele (Estatuto da Cidade), por si próprio, determina como se realizará material e formalmente tal planejamento, bem como ordena o acompanhamento da sua implantação e a aferição dos resultados de atuação do Poder Público e de particulares. - Diretrizes urbanísticas As diretrizes gerais da política urbana trazidas pelo Estatuto da Cidade subsidiarão o planejamento urbanístico, e serão os elementos objetivos que permitirão aferir o alcance das metas e proposições entabuladas nos planos urbanos. Atente-se para o fato segundo o qual as diretrizes, em Direito Urbanístico, não são princípios. Princípios são mandamentos de otimização do sistema, que possuem por característica, além de serem vetores interpretativos, sua aplicação por intermédio do processo de ponderação – no caso concreto afasta-se determinado princípio em “homenagem a outro. Um exemplo simples: no julgamento da ADIn da “Lei da Ficha Limpa”, privilegiou-se o princípio da probidade em detrimento do princípio da presunção de inocência (o sujeito é ficha suja mesmo antes de transitar em julgado seu processo, bastando a condenação por órgão colegiado – ADC’s 29 e 30 e ADIn 4.578, todas do STF). Tampouco as diretrizes de Direito Urbanístico possuem a densidade normativa suficiente para serem consideradas regras, pois estas laboram no processo de subsunção, isto é, preveem situações no mundo abstrato que, quando e se havidas no “mundo real”, devem provocar a incidência da norma em uma sistemática de correspondência absoluta, para serem efetivamente consideradas “regras”. Um outro exemplo simples: a norma jurídica penal prevê que matar alguém é crime, e quando ocorrida tal situação no “mundo real”, a norma incide, devendo o infrator se sujeitar às sanções na legislação penal existentes. Dessa forma, urge solver a indagação: o que são, pois, as diretrizes de Direito Urbanístico? São indubitavelmente preceitos jurídicos. Vale dizer, são normas de ordem pública, aplicáveis independentemente da vontade de quem está a tais sujeito. Ocupam, contudo, um espaço intermediário entre os princípios e as regras. Explica-se. As diretrizes urbanísticas, que além do Estatuto da Cidade aparecem em cada lei urbanística que se preze, cumprem duas funções essenciais: são vetores de interpretação e de produção da legislação urbanística. Elas veiculam as enunciações estipuladas pelo planejamento urbano, que, como já exposto, dão suporte valorativo (legitimam) a legislação positivada. Não podem, contudo, ser afastadas pelo intérprete da lei: caso, e se surgida no caso concreto viabilidade de fazer incidir a diretriz de legislação urbanística, ela deverá ser necessariamente aplicada. Da mesma forma, em regra, deverá atentar o legislador para as diretrizes urbanísticas já existentes (especialmente as do plano diretor) quando da elaboração de novas leis urbanísticas. Em outros termos, ainda que possam trazer termos genéricos e abertos (é possível interpretar o que significa aquela diretriz para o caso concreto), as diretrizes têm incidência inafastável e devem ser consideradas, sempre que surgida a oportunidade de sua aplicação. Por outro lado, exatamente em razão de estipularem ideias, partidos urbanísticos, destinações urbanísticas, conceitos muito próximos do urbanismo e da políticaurbana, as diretrizes urbanísticas (em regra, é claro) carecem da concretude suficiente para serem identificadas como regras jurídicas – pois nestas ou incide e se aplica, ou não incide e não se aplica. Somente em um exemplo, o inciso “I” do artigo 2º do Estatuto da Cidade estabelece o direito a cidades sustentáveis. Não há sanção possível ao descumprimento desta determinação, mas haverá de estipulações legais mais concretas estabelecidas em sua harmonia. Num conceito, por diretrizes urbanísticas deve-se entender normas jurídicas de ordem pública intermediárias entre as regras e os princípios jurídicos, caracterizadas como vetores de produção e de interpretação da legislação urbanística, e que não podem ser afastadas caso surja a situação fática ou jurídica que autoriza a sua incidência. Do ponto de vista urbanístico, são aspirações formuladas num ambiente de positivação da política de desenvolvimento urbano; do ponto de vista legal, são preceitos de observância obrigatória para quem elabora e aplica a lei urbanística, verdadeiras positivações de opções fundamentais no tocante a metas, finalidades de atuação do Poder Público (isoladamente ou em cooperação com o setor privado), cujo alcance visa à consecução de objetivos coletivos. - Classificação das diretrizes de política urbana do Estatuto da Cidade Para que os anseios da política de desenvolvimento urbano sejam atendidos, o ordenamento jurídico positivo determina a observância de postulados, procedimentos e finalidades específicas, com protagonismo, no Brasil, para o referido art. 2º do EC. As diretrizes de política urbana podem ser classificadas de acordo com as suas finalidades. Eis a classificação: a) diretrizes governamentais: dependem da atuação do poder público, com o planejamento do desenvolvimento das cidades e das atividades econômicas do município e a proteção ao meio ambiente; b) diretrizes sociais: têm por escopo proporcionar algum tipo de benefício direto à coletividade, ou que franqueiam a participação da comunidade no processo de urbanização. Exemplos de tais diretrizes são o direito a cidades sustentáveis para as coletividades presentes e futuras e a distribuição equitativa de benefícios e ônus oriundos do processo de urbanização; c) diretrizes econômico-financeiras: dizem respeito aos recursos e investimentos alocados ou obtidos para o fim de desenvolvimento do processo de urbanização. É possível citar o dever de compatibilização dos instrumentos de política econômica, tributária e financeira de modo a privilegiar investimentos que propiciem o bem-estar geral como exemplo destas diretrizes; d) diretrizes relativas ao solo urbano: correspondem aos vários instrumentos destinados ao processo de uso e ocupação do solo urbano. Destaca-se entre estas, a de ordenação e o uso do solo com o intuito de impedir situações nocivas à coletividade; e e) diretrizes jurídicas: caracterizam-se por terem pertinência direta com o Direito Urbanístico, como, v.g., o modo de produção e execução de normas - Diretrizes gerais de política urbana em espécie As diretrizes gerais de política urbana em espécie estão materializadas nos dezoito incisos do art. 2º do Estatuto da Cidade. Vale dizer, são vetores interpretativos e de observância na produção de normas jurídicas. Reza o caput do art. 2º: Art. 2o A política urbana tem por objetivo ordenar o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e da propriedade urbana, mediante as seguintes diretrizes gerais: Percebe-se, já no caput, que há um retorno às ideias do texto constitucional: pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade e da propriedade urbana (são essas as duas constantes que se consegue extrair dos dezoito incisos). E a determinação é clara: não há opção para os outros entes federativos no tocante ao estabelecimento da política de desenvolvimento urbano, isto é, por mais que sejam respeitadas as características locais, estas diretrizes terão que ser contempladas nas leis urbanísticas, especialmente nos planos diretores. I – garantia do direito a cidades sustentáveis, entendido como o direito à terra urbana, à moradia, ao saneamento ambiental, à infraestrutura urbana, ao transporte e aos serviços públicos, ao trabalho e ao lazer, para as presentes e futuras gerações; A lei nem se “preocupa” em deixar ao intérprete cogitar o que deve ser entendido como “cidade sustentável”. Para que esta se caracterize, devem ser garantidos os direitos ali estabelecidos. Tarefa nada simples, fortemente calcada na ideia de justiça social. Outras diretrizes do art. 2º serão, em verdade, desdobramentos deste inciso. II – gestão democrática por meio da participação da população e de associações representativas dos vários segmentos da comunidade na formulação, execução e acompanhamento de planos, programas e projetos de desenvolvimento urbano; Também este item se desdobrará em ouras diretrizes e capítulos do Estatuto da Cidade (notadamente nos arts. 43 a 45). A gestão democrática das cidades foi plenamente endossada pela Constituição Federal de 1988 através de uma série de instrumentos jurídico-políticos que tem por objetivo ampliar as condições de participação direta no processo decisório mais amplo (art. 2º, II, da lei nº 10.257/01, que regula os arts. 182 e 183 da CF/88). Não só no Capítulo IV o Estatuto da Cidade refere-se à gestão democrática. Há várias normas esparsas sobre gestão democrática nas cidades. Há, em seu todo, diversas normas esparsas que se afinam, direta ou indiretamente, com a forma compartilhada de gestão municipal estabelecida no capítulo específico que trata do tema. As primeiras referências feitas pelo novel diploma legal à gestão democrática constam dos incisos II, III e XIII do seu artigo 2º, que veicula as suas diretrizes gerais. Pode-se afirmar, neste passo, que a gestão democrática, a cooperação entre governo, iniciativa privada e população no processo de urbanização e a obrigatoriedade de audiência do poder público municipal e da população interessada para a implantação de empreendimentos ou atividades com efeitos potencialmente negativos sobre o meio ambiente natural ou construído, o conforto ou a segurança da população são, na realidade, princípios jurídicos, vetores para a interpretação tanto das demais normas do próprio Estatuto, quanto da legislação que lhe dá complemento, em qualquer nível. Cabe ressaltar, aqui, que a norma abrange a visão de impacto ambiental, tradicionalmente vinculado apenas ao meio ambiente natural. Em seguida, ao disciplinar os chamados instrumentos de política urbana, novamente o Estatuto traz regramentos relacionados à gestão democrática: a gestão orçamentária participativa (artigo 4º, II, "f", esmiuçada no artigo 44, adiante analisado); o plebiscito e o referendo (artigo 4º, II, "s") e os estudos prévios de impacto de vizinhança (EIV) e de impacto ambiental (EIA) (artigo 4º, VI). O parágrafo 3º do artigo 4º também estabelece o chamado controle social do dispêndio de recursos, exigindo a participação da comunidade no controle da utilização dos instrumentos de política urbana que demandem o dispêndio de recursos públicos. A efetividade da norma restou comprometida pelo veto aposto ao artigo 52, I do Estatuto, que estabelecia hipótese de improbidade administrativa para o prefeito que dificultasse o controle social, já que "tristemente, a tradição brasileira tem demonstrado existir um vínculo significativo entre a eficácia das normas e a força das sanções correspondentes para o caso de seu descumprimento". Nas razões do veto invocou-se um pseudocaráter político do controle social, para vetá-la por contrariedade ao interesse público. Nos parece que tais adotam um posicionamento conservador que já não mais impera no seio do Direito Constitucional e Administrativo. O caráter político do controle prevalece até que normas jurídicas instituamsua obrigatoriedade, o que lhe dá, então, caráter jurídico. Mesmo que fosse necessária uma disciplina mais pormenorizada do tal controle social do dispêndio de recursos, entendemos que a hipótese de improbidade administrativa que havia sido traçada contribuiria decisivamente para a eficácia do § 3º, acima citado. O artigo 33, VII, exige que a lei específica que aprove a constituição de uma operação urbana consorciada preveja controle compartilhado da operação com a sociedade civil. O artigo 37, parágrafo único, exige a publicidade dos documentos integrantes do Estudo de Impacto de Vizinhança. A mesma exigência de publicidade é repetida com relação ao Plano Diretor, no artigo 40, § 4º da lei sob comento. A exigência é integralmente compatível com o princípio da publicidade. E, para além disso, a publicidade representa verdadeira condição para a participação, pois a participação popular tem como pressuposto o respeito ao direito à informação, como meio de permitir ao cidadão condições para tomar decisões sobre as políticas e medidas que devem ser executadas para garantir o pleno desenvolvimento das funções sociais da cidade. Ademais, o acesso às informações é elemento primordial para a democratização da gestão da cidade, que deverá ser utilizado por qualquer cidadão e não apenas pelos órgãos da administração municipal, permitindo eliminar a apropriação indevida do conhecimento sobre a cidade por pequenos grupos de técnicos e servidores da máquina estatal, que atendem apenas os interesses da minoria privilegiada que sempre teve acesso às instâncias do poder municipal". Garantir a publicidade e garantir o acesso às informações englobam condutas diversas da administração: a imposição de publicidade exige uma "postura ativa a ser tomada pela Administração"; permitir o acesso, por sua vez, implica numa "postura de receptividade em relação a quem queira se inteirar dos assuntos de público interesse". Em nenhum momento as normas estabelecem o prazo mínimo para que as informações fiquem à disposição do público. O atendimento à exigência dependerá da análise do caso concreto, onde deverá ser levada em consideração, v.g., a complexidade do assunto tratado. Caso conclua-se pela insuficiência do prazo fixado em concreto, é perfeitamente possível a correção judicial da ilegalidade, sem prejuízo do enquadramento da conduta do prefeito municipal como improbidade administrativa (artigo 52, VI). O processo de elaboração do Plano Diretor também é objeto das preocupações democráticas do Estatuto. Vislumbra-se uma preocupação considerável com a superação do chamado planejamento de gabinete, que provocou uma espécie de "discurso esquizofrênico" nas Administrações e funcionou como grande "gerador de desigualdades", por não levar em consideração a grande parcela da população que vivia - e vive - à margem da legalidade. Reconhece-se a cidade com um "palco de conflitos", que somente podem ser satisfatoriamente resolvidos em "espaços democráticos de negociação entre os diversos atores urbanos". Aliás, merece transcrição a lição lapidar de José Afonso da Silva sobre a exigência de um planejamento participativo: É um completo engano pensar que a democracia atrapalha do planejamento, mesmo porque, se esta antinomia fosse verdadeira, seria correto eliminar imediatamente o planejamento. Ao contrário, o planejamento é uma forma de organizar a democracia e de exprimi-la. O que devemos dizer, de forma clara e tranquila, é que este tipo de planejamento toma o partido da maioria da população da cidade e a defende, aliás, por isso ele é democrático. As exigências estabelecidas no artigo 40, § 4º atingem tanto o Poder Executivo como o Poder Legislativo. Portanto, é obrigatória a realização de audiências e debates no âmbito de ambos os poderes, não restando cumprida a exigência se apenas um deles os realizar. E trata-se de verdadeira obrigatoriedade, com o que o legislador afastou-se da sistemática adotada na Lei de Processo Administrativo Federal, onde a realização é apenas uma faculdade do Poder Público. O Estatuto também não estabeleceu os requisitos formais para a realização das audiências e debates, mas a análise do caso concreto tornará possível a constatação do cumprimento ou não das exigências. A lei municipal poderá, obviamente, estabelecer o procedimento a ser seguido nas convocações de audiências públicas e debates, mas sua eventual inexistência não tornará inaplicável a exigência do Estatuto, que reúne todos os elementos necessários à sua aplicabilidade imediata. Com efeito, a lei estabeleceu verdadeiro requisito de validade do Plano Diretor, em estreita vinculação com o estabelecido no artigo 29, VII, da Constituição Federal. Adotando-se como correta a concepção ampla de forma do ato administrativo, que a encara não apenas como a sua exteriorização, mas também como o conjunto de todas as formalidades que devem ser obedecidas no processo de gestação do ato, a inobservância das formalidades procedimentais estabelecidas evidentemente gera a sua invalidade. Não há dúvida, pois, que a observância das formalidades constitui requisito de validade do ato administrativo, de modo que o procedimento administrativo integra o conceito de forma. No direito administrativo, o aspecto formal do ato é de muito maior relevância do que no direito privado, já que a obediência à forma (no sentido estrito) e ao procedimento constitui garantia jurídica para o administrado e para a própria Administração; é pelo respeito à forma que se possibilita o controle do ato administrativo, quer pelos seus destinatários, quer pela própria Administração, quer pelos demais Poderes do Estado. As normas específicas sobre gestão democrática são tratadas no Capítulo IV do Estatuto da Cidade. De início, podemos afirmar que na disciplina estabelecida sobressai um caráter processual, do que se extrai que a ideia foi atingir uma legitimação da gestão pública através do procedimento. O artigo 43 começa por arrolar os instrumentos que deverão ser utilizados para garantir que a gestão das cidades se faça de forma democrática. O rol aí utilizado é meramente exemplificativo, o que fica claro pelo uso da expressão "entre outros". Não se especificou o que o legislador pretende quando fala em órgãos colegiados de política urbana. Com base nas experiências já havidas em nosso país em matéria de gestão democrática, podemos extrair dois modelos básicos que poderiam ser adotados: aqueles com participação exclusiva da sociedade civil (denominados os Conselhos Populares); e aqueles compostos por representantes do Poder Público e da sociedade civil, em composição paritária (cadeiras divididas entre representantes da sociedade e do governo) ou tripartite (composto de um terço de representantes do governo; um terço da sociedade civil organizada e um terço de representantes escolhidos livremente pela população). A liberdade para a instituição de tais órgãos colegiados é grande, e cada município poderá adotar a estrutura que mais lhe aprouver. O que deve ficar consignado é que, segundo pensamos, alguns requisitos mínimos devem ser observados, que são extraídos da interpretação sistemática e teleológica do Estatuto e de suas bases constitucionais. Em primeiro lugar, a prerrogativa de indicar os membros de tais órgãos deve ser atribuída ou às sociedades civis que nele têm assento, ou à população, no caso da composição tripartite acima mencionada. Não é cabível a atribuição de tal poder ao Chefe do Executivo ou a qualquer órgão governamental, pois isso desvirtuaria o caráter de colegiado democrático que a legislação objetivou imprimir a tais conselhos. Ademais, a composição do órgão deve garantir a participação de todos os segmentos sociais relevantes no município, o que, inclusive, pode ser pleiteado através de ações judiciais a serem patrocinadas pelos interessados.Também a inexistência de mandato fixo para os representantes das organizações não governamentais é uma imposição que acreditamos decorrer diretamente do sistema adotado pela lei. O mandato de tais conselheiros pertence, na realidade, às associações civis que representam. É, pois, um mandato com características de imperativo. Questão tormentosa é saber se as decisões de tais órgãos colegiados, ou mesmo as conclusões extraídas de uma audiência pública são ou não vinculantes para o poder público. Cremos que tal efeito não foi expressamente previsto pelo Estatuto, mas poderá ser legalmente adotado no âmbito de cada município, como bem destacado por Maria Paula Dallari Bucci: A atribuição de funções deliberativas ao Conselho esbarrará nas matérias em relação às quais o Estatuto da Cidade ou outras normas exijam edição de lei específica, reservando, portanto, competência ao Poder Legislativo. Contudo, em relação a outras matérias, não cobertas por essa vedação, poderá ser atribuído ao conselho poder de deliberar sobre aspectos de fundo, os quais se tornarão elementos vinculantes ou de forte poder persuasório para a expedição de atos administrativos ou legislativos subsequentes. Ainda que a vinculação não seja adotada, o simples fato de haver uma deliberação de um órgão colegiado, ou um posicionamento colhido em audiência pública, torna imprescindível uma extensa motivação por parte da autoridade pública que pretender agir em desconformidade com o decidido. Paulo de Bessa Antunes, ao tecer considerações sobre a audiência pública no processo de licenciamento ambiental, e concluir pela sua natureza consultiva, vai ao ponto crucial da questão: "Penso que aqui se estabeleceu um dever de levar em conta a manifestação pública. Este dever se materializa na obrigação jurídica de que o órgão licenciante realize um reexame, em profundidade, de todos os aspectos do empreendimento que tenham sido criticados, fundamentadamente, na audiência pública". A seguir, o Estatuto refere-se aos debates, audiências e consultas públicas. Valem aqui o que já foi dito a respeito da vinculação das decisões dos Conselhos. O que se busca atingir é a fase de gestação dos atos de governo. Se nela não houve a participação popular, seu resultado - o ato de governo propriamente dito - é inválido. As hipóteses de obrigatoriedade da realização de audiências, debates e consultas serão estabelecidas pela legislação de cada ente federado. Mas o próprio Estatuto já prevê um caso de audiência obrigatória: artigo 2º, XIII, que a torna imprescindível para a instalação de empreendimento potencialmente danoso. Sempre que a audiência pública (ou, no mesmo passo, as consultas e debates) for prevista como obrigatória, sua realização deve ser encarada como verdadeiro requisito de validade do procedimento administrativo: Utilizando-nos da teoria da linguagem, podemos afirmar que a audiência pública é um evento, que, depois, feita a competente ata documentando-o, passa a ser relevante para o direito como fato administrativo, pois jurisdicizado, e absolutamente necessário para compor o procedimento, a preceder - nesses casos assinalados - o ato administrativo do edital. Portanto, temos a necessidade de um fato jurídico preliminar ao edital para validá-lo, fato jurídico este que será documentado pela Ata da Audiência, esta constituindo-se no ato administrativo inicial do procedimento. Também são mencionadas as conferências sobre assuntos de interesse urbano. São "foros para a formação de uma cultura de participação popular e consulta democrática na formulação de políticas, do que propriamente como um expediente legal vinculante". A iniciativa popular de projeto de lei e de planos, programas e projetos de desenvolvimento urbano vem prevista no inciso IV. A norma inova ao diferenciar a iniciativa de projetos de lei daquela referente a planos, programas e projetos de desenvolvimento urbano. Não se olvide, aqui, da natureza jurídica de lei dos planos urbanísticos. Não estamos perante uma desvinculação das políticas públicas da estrita legalidade. No Brasil, "todo plano urbanístico há de ser aprovado por lei". Mas nos parece que o legislador instituiu uma verdadeira iniciativa da gestação de políticas públicas, a ser manifestada perante o executivo. Através dela, portanto, a população desencadearia um processo de planejamento urbano, dentro da Administração. Em matéria de iniciativa popular devemos rechaçar posicionamentos doutrinários que insistem em supervalorizar o princípio representativo. Insistimos, como já explicitado na parte inicial do presente estudo, que nosso texto constitucional adotou a democracia participativa como princípio fundamental, reflexo direto da soberania popular. Portanto, a iniciativa popular é cabível ainda que a matéria do projeto seja de iniciativa privativa do chefe do executivo. O inciso V do artigo 43, vetado, arrolava como instrumentos de gestão democrática o referendo e o plebiscito. A razão principal do veto é a existência da Lei 9.709, de 18 de novembro de 1.998, que já regula tais institutos. Não nos parece que a existência da legislação sobre o tema deva funcionar como causa do veto. O Estatuto não buscou interferir na sistemática legal de tais institutos, mas apenas, num esforço de sistematização, arrolá-los como instrumentos para garantir a gestão democrática das cidades. Em que pese a existência do veto, tais instrumentos continuam arrolados no artigo 4º do Estatuto, como instrumentos de política urbana, e deverão ser objeto de legislação municipal que delimitará os "temas que podem ser objeto de referendo e plebiscito e as matérias referentes à fase de solicitação e da aprovação destes pela Câmara Municipal". No artigo 44, o Estatuto estabelece o que vem sendo chamado de gestão orçamentária participativa. A realização de audiências públicas, debates e consultas sobre as propostas das três leis orçamentárias, é alçada ao nível de verdadeira condição de procedibilidade do orçamento. Sem a realização de tais providências democratizantes, não poderá haver a aprovação das leis do orçamento pelo legislativo. "Em verdade, a participação popular no orçamento, por exemplo, passa a ser obrigatória, o que leva à conclusão de que, em sua ausência, o processo de elaboração do orçamento é viciado, podendo ensejar disputa judicial Imagine-se que não tenha havido qualquer audiência pública, não pode o juiz entender inexistente o orçamento ou ser ele nulo? Poderá, em ação civil pública, conceder liminar a fim de o prefeito ou a Câmara proceder nos termos da lei, ouvindo a comunidade? Será que isso não é ingerência de um poder no outro? Parece-nos que a lei erigiu a participação popular (por qualquer forma que se a entenda) como ''condição obrigatória'' para aprovação do orçamento e, pois, requisito de validade, o que admite o controle judicial, uma vez que se cuida de legalidade do ato que venha a ser emanado". Por fim, o Estatuto obriga, em seu artigo 45, que os organismos gestores das regiões metropolitanas e das aglomerações urbanas incluam significativa participação popular e de associações civis como forma de controle de suas atividades. III – cooperação entre os governos, a iniciativa privada e os demais setores da sociedade no processo de urbanização, em atendimento ao interesse social; O desenvolvimento urbano é uma ação de cooperação entre Poder Público e particulares. Se o Estado detém as prerrogativas inerentes às suas funções, quem detém o dinheiro para promover as transformações urbanas são os particulares – tanto o proprietário que constrói uma casa em seu terreno quanto o concessionário de uma grande obra de infraestrutura urbana estão neste conceito. O Estatuto da Cidade reconhece esta condição e, pedagogicamente, relembra que esta cooperação deverá atentar ao interesse social – ainda que este seja um conceito
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