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O JEITINHO BRASILEIRO, O HOMEM CORDIAL E A IMPESSOALIDADE ADMINISTRATIVA: ENCONTROS E DESENCONTROS NA NAVEGAÇÃO DA MÁQUINA PÚBLICA BRASILEIRA ALVIM, Joaquim Leonel de Rezende 1; NUNES, Tiago de García 2 Introdução Quem não conhece o jeitinho brasileiro? Talvez inexista tema tão incorporado ao imaginário popular nacional. Presente em anedotas, tiras de jornais, campanhas publicitárias, slogans políticos, críticas jornalísticas e conversas de botequim; o jeitinho brasileiro é apresentado (muito orgulhosamente) como sendo algo genuinamente brasileiro, muito embora pesquisas já denunciam que este não se trata mais de uma exclusividade "tupiniquim". Diretamente relacionado ao tema da ética e dos costumes, é dificultoso alcançar consenso na identificação e na rotulação de práticas “jeitosas”. Provavelmente, ninguém é a favor da corrupção, ao menos ninguém declararia publicamente seu apoio às práticas corruptas! Mas quando o “raio x” do moral/imoral, certo/errado, pode/não pode, assume sua natureza reflexiva, quer dizer, quando o autoexame do jeitinho entra em cena, a relativização e a condescendência se transformam nas "donas da festa", confirmando a natureza contextual da moralidade. Quando o "outro" faz é feio e recriminável, mas quando "eu" faço, tenho minhas razões e mereço perdão! Contudo, o paradoxo acerca da moralidade ocidental é potencializado em "terra brasilis". O trabalho percorre as categorias do "homem cordial" de Sérgio Buarque de Holanda e do "jeitinho brasileiro" de Roberto Damatta pelo prisma da sociologia jurídica; para na sequência, problematizar a fragilidade material do princípio da impessoalidade administrativa na navegação da máquina pública brasileira. A impessoalidade é analisada em dois planos: primeiramente como elemento da burocracia estatal, atributo fundamental da Administração Pública Moderna em Max 1 Professor titular em Teoria do Direito do Departamento de Direito Público da Universidade Federal Fluminense/UFF e do Programa de Pós-graduação em Sociologia e Direito - PPGSD/UFF. É doutor em Ciência Política pela Universidade de Montpellier I - França e pós-doutor em direito social pela Universidade de Paris X - Nanterre. 2 Doutorando em Sociologia e Direito - Programa de Pós-graduação em Sociologia e Direito - PPGSD/UFF; Mestre em Sociologia Jurídica pelo Instituto Internacional de Sociologia Jurídica de Oñati (Universidade do Estudo de Milão e Universidade do País Basco); Professor do Centro de Ciências Jurídica, Econômicas e Sociais da Universidade Católica de Pelotas - UCPel. Weber; e posteriormente como discussão principiológica atinente ao ramo do Direito Administrativo (princípio da impessoalidade administrativa). O método aqui empregado privilegia uma leitura sociojurídica que revisita temas como patrimonialismo, corrupção, autopromoção do indivíduo, artimanhas do espaço privado na colonização da coisa pública e a própria identidade brasileira no exercício da função administrativa. Contudo, a argumentação será desenvolvida a partir de dois questionamentos centrais, são eles: 1 – Se o jeitinho brasileiro realmente existe, quais as razões sociopolíticas que ensejaram o seu surgimento?; 2 – É possível estabelecer alguma relação entre a cordialidade, o jeitinho e o princípio da impessoalidade administrativa? O Jeitinho e a identidade brasileira: encontros e desencontros Desde a colonização portuguesa os brasileiros tiveram seus laços culturais desrespeitados e suprimidos. O "modus vivendi" indígena e africano jamais foi digno de representar a cultura brasileira, ficando no ostracismo, ou quando muito, "promovido" a matéria-prima de espetáculos exóticos. A falácia da democracia racial é análoga a suposta existência de uma democracia cultural na sociedade brasileira. Grande parte dos colonizadores aqui implantaram ou adaptaram o modo europeu de ser. Neste sentido Nei Pies pondera que: Por muito tempo em nossa história, ser culto (possuir ou dominar a cultura) significava ter estudado em universidades europeias ou ter viajado pela Europa. Aos brasileiros, sua própria cultura (modos de ser, pensar e agir) ainda não é suficientemente séria para ser reconhecida e estudada. O Brasil ainda hoje carece de uma identidade (PIES, 2008). Contudo, qual é o papel do "jeitinho" na discussão? Ele pode ser considerado uma tipologia3 da identidade brasileira, especialmente no que se refere ao imaginário jurídico do povo e a sua relação com a noção de direitos e deveres. Historicamente, o brasileiro vem confundindo o conceito de cidadania com a ideia de favores; politicamente, a população absorveu muitos deveres a serem cumpridos e 3 Os tipos ideais na teoria de Max Weber são caminhos construídos de forma puramente racional para aproximação do fenômeno (ideal da pureza da razão) com a realidade (essência subjetiva), assim, todos os desvios devem ser detectados e considerados como influências irracionais (conexões irracionais, afetos, erros) (WEBER, 2004). poucos direitos a serem usufruídos. E quando direitos, conquistados com luta e mobilização, são negados, entram em cena os "jeitinhos". Contudo, é um tanto complexo e dificultoso classificar universalmente certas práticas como jeitinhos. Carlos Almeida define que O jeitinho, portanto, equivale a uma “zona cinzenta moral” entre o certo e o errado. Se uma situação é classificada como jeitinho, o que se está afirmando é que, dependendo das circunstâncias, essa situação pode passar de errada a certa. Não há uma regra universal e superior que regule o mundo para além das circunstâncias. O que existe são julgamentos caso a caso que podem concluir que, dependendo do contexto, se trata de algo certo ou errado (ALMEIDA, p. 47-48, 2007). Pelo viés da hermenêutica tradicional pode-se afirmar que: é certo que as leis sejam cumpridas e errado que elas sejam infringidas em favor de quaisquer grupos e/ou pessoas (é sempre bom recordar que o papel tudo aceita). Algo aparentemente consensual e pacífico, inclusive para o senso comum. No entanto é imperioso problematizar os porquês da cultura do jeitinho (que tem no "favor" e na "corrupção" duas subespécies) estar tão enraizada na Sociedade Brasileira e ser uma constante nos processos de acesso à máquina estatal por parte da maioria da população. Com finalidade argumentativa, elencamos algumas situações ilustrativas de jeitinhos, constantes no cotidiano da "terra brasilis", tanto na esfera pública como na privada: a) pedir a um amigo que trabalha no serviço público para auxiliar na expedição de um documento pessoal, de uma alvará, de uma autorização ou da liberação de um financiamento; b) receber (no exercício de função pública) um "agrado" pela ajuda prestada a empresa vencedora de licitação; c) “passar a conversa” ou pagar R$ 20,00 (vinte reais) ao agente de trânsito para evitar uma multa; d) guardar lugar para amigo na fila de banco; e) indicar (no exercício de função pública) assessoria técnica de algum amigo ou conhecido; f) obter vaga em escola pública mediante interferência de amigo que trabalha na instituição; g) fazer uma conexão não autorizada (gato/gambiarra) na rede de energia elétrica, televisão a cabo ou água encanada; h) sonegar impostos sem ser descoberto; i) dar gorjetas ao garçom de um restaurante para não ter que ficar na fila nas próximas idas ao estabelecimento; j) passar na frente da fila de estabelecimento público de saúde por conhecer médico plantonista; k) ter dois empregos públicos mas só trabalhar em um deles. Inobstante a dificuldade de classificação e identificação precisa de cada hipótese citada como sendo "favor, jeitinho ou corrupção"4, devido,principalmente, às nuanças circunstanciais de cada exemplo, é certo que tais posturas do cotidiano somente podem ser compreendidas mediante a releitura dos processos histórico- culturais que fizeram o povo brasileiro ser o que é. O homem cordial de Sérgio Buarque de Holanda Na obra "Raízes do Brasil" publicada em 1936, Sérgio Buarque de Holanda dedica um capítulo especial ao nosso assunto, intitulado “o homem cordial". Neste, o autor destaca, sobretudo, a importância da herança cultural da colonização lusitana no Brasil, e a dinâmica dos (des)arranjos e acomodações que permearam as transferências culturais de Portugal para a "terra brasilis". Pela ótica da análise weberiana do Estado, Holanda analisa o modelo de Estado brasileiro e aponta a necessidade de superação da estrutura estatal patrimonialista oriunda da colonização portuguesa. Nos moldes desta estrutura, a administração pública era interesse privado das famílias. O ingresso dos agentes públicos se dava pelo critério de confiança pessoal ou de algum outro elemento afetivo, e não o da competência/eficiência como na lógica atual de ingresso mediante concursos públicos (ressalvadas as hipóteses de livre nomeação e exoneração permitidas pelo direito brasileiro). Os funcionários desse Estado desempenhavam suas funções pessoalmente, perseguindo, promovendo, premiando e bloqueando ações dos particulares. Em artigo intitulado de “O Avesso do Direito […]”, Elpídio Luz Segundo destaca a coexistência de dois sistemas: A burocracia e a sociedade no Brasil colonial constituíam dois sistemas de arranjos imbricados. A estrutura formal do governo impessoal e categórica estava permeada por um complexo sistema de relacionamentos interpessoais baseados em parentesco, afeição e propina (2010, p. 3). 4 Segundo a tipologia de Carlos Almeida (2007). O êxito deste sistema de administração pouco racional deu-se pela necessidade de acomodar e harmonizar as forças políticas e econômicas locais, mantendo o Brasil permanentemente ligado à colônia. Mediante alianças com os burocratas, os grupos, famílias e indivíduos da colônia tinham influência que poderia distorcer drasticamente a aplicação das leis em seu favor e, principalmente, mantendo o alinhamento político com a metrópole. Sendo assim, restava complexo aos agentes públicos da época distinguirem o que era assunto de Estado (interesse público) do que era meta particular (interesse privado): Não era fácil aos detentores de posições públicas de responsabilidade, formados por tal ambiente, compreenderem a distinção fundamental entre os domínios do privado e do público. Assim, eles se caracterizam justamente pelo que separa funcionário “patrimonial” do puro burocrata conforme a definição de Max Weber. Para o funcionário “patrimonial”, a própria gestão política apresenta-se como assunto de seu interesse particular; as funções, os empregos e os benefícios que deles aufere relacionam-se a direitos pessoais do funcionário e não a interesses objetivos, como sucede no verdadeiro Estado burocrático, em que prevalecem a especialização das funções e o esforço para se assegurarem garantias jurídicas aos cidadãos. Falta a tudo a ordenação impessoal que caracteriza a vida do Estado burocrático. O funcionalismo patrimonial pode, com a progressiva divisão das funções e com a racionalização, adquirir traços burocráticos. Mas em sua essência ele é tanto mais diferente do burocrático, quanto mais caracterizados estejam os dois tipos (HOLANDA, 2007, p. 145-6). A ambivalência deste Estado explica parcialmente a confusão entre público e privado que subsiste nos dias atuais. E com isso ainda impera o imaginário social no qual, "o que é privado tem dono e deve ser protegido, enquanto o que é público é de ninguém e deve ser consumido". Em termos ideológicos, o Estado Moderno representa exatamente a prevalência do público sobre o privado. Contudo, Elpídio Luz Segundo demonstra que há algo diferente no Brasil: Diferentemente do Estado Patrimonial, no Estado Moderno weberiano, subscrito em termos por Sérgio Buarque (...) a administração pública, os tipos de dominação, o conceito de patrimonialismo e de racionalidade, a fragmentação da sociedade em esferas diferenciadas e tensas, cada uma com sua lógica específica – diferenciam a lógica da esfera familiar da esfera política (…) o Estado e a família são esferas sociais essencialmente diferentes, descontínuas e até opostas. No Estado vive o cidadão, indivíduo público, com deveres e direitos, submetido a leis abstratas, gerais, impessoais e racionais. Na família mora o indivíduo privado, corpóreo, afetivo, concreto, pessoal. Neste sentido, o Estado representa a vitória do universal e abstrato sobre o particular e concreto. Contudo, no Brasil não é bem assim. Muitas vezes grupos familiares são mais fortes que o Estado, controlando este. Observe-se que no Brasil contemporâneo há oligarquias locais e regionais que são ainda um respeitável obstáculo à constituição do Estado moderno de feição que comumente se designa “completa”, ou seja, ao modo europeu ou estadunidense (2010, p. 5). Isto influencia veementemente a cultura jurídica do brasileiro; e a burocracia, no molde tupiniquim, é compreendida como sinônimo de decadência e ineficácia. A aplicação das normas, desde os tempos coloniais se faz entre o “absolutismo da razão” - impessoalidade dos procedimentos legais burocráticos - e o “despotismo da emoção” - excessos personalistas dos mediadores (SEGUNDO, 2010, p. 3). Assim sendo, a cordialidade, nas relações sociais, funciona como um sistema de trocas no qual as fronteiras do interesse, da obrigação moral e da previsão legal não estão demarcadas. A cordialidade também alcança a prestação do serviço público, pois onde não existe mínima impessoalidade de procedimentos, impera a lógica do coração, que acolhe, protege e premia familiares, amigos e clientes. No Brasil, pode-se dizer que só excepcionalmente tivemos um sistema administrativo e um corpo de funcionários puramente dedicados a interesses objetivos e fundados nesses interesses. Ao contrário, é possível acompanhar, ao longo de nossa história, o predomínio constante de vontades particulares que encontram seu ambiente próprio em círculos fechados e pouco acessíveis a uma ordenação impessoal (HOLANDA, p. 147, 2007). O fechamento estrutural impessoal/burocrático do sistema jurídico pode ser facilmente penetrado pela instrumentalização do favor, e a população já conhece os benefícios de sua utilização. Neste sistema, "a água transforma-se em vinho, se orarmos corretamente para o santo competente"! O fenômeno é pode ser percebido no “complexo de patrão” do Brasil tradicional. Rosen descreve tal complexo: Em troca de lealdade e serviços, o patrão, um membro da elite local, protege e premia os interesses dos seus empregados, arrendatários e seguidores, mediando junto às autoridades quando qualquer membro do seu grupo está em dificuldade. A intercessão do patrão comprova a personalização das relações legais para “os de baixo” posto que o patrão é, de certa forma, o Governo, do qual a maioria dos brasileiros parecem aguardar quase tudo: desde emprego, crédito, bom salário, tratamento de saúde, estabilidade econômica e subsídio para as fantasias de carnaval (1998, p. 51). A função do patrão foi paulatinamente transferida a outras entidades mediadoras, A personalidade cordial está pronta para obedecer cegamente ao mito do herói individualizado (o líder carismático, o Imperador, o Pai dos Pobres, o Homem Comum das Ruas – no caso das democracias), como coletivizado (o Estado, o Povo, o Partido, a Igreja, etc). O homem cordial está disposto aacordar com qualquer conceito, se este for apresentado em uma relação cordial, ou seja, de coração a coração, de maneira afetuosa ou agressiva (SEGUNDO, 2010). O caráter indisciplinado e personalista do homem cordial está longe de aceitar uma ordem coletiva impessoal, juridicamente indiferente. O cumprimento inequívoco da lei soa antiquado, pois é digerido como sendo exagerado, inconveniente e inadequado ao “jeito brasileiro” de ser e de resolver as coisas. Se forçado a optar entre ajudar alguém de quem sente pena ou respeitar uma norma legal, o brasileiro provavelmente esquecerá a lei” (ROSEN, 1998, p. 47). Contudo, o homem cordial de Buarque de Holanda tem um apego quase que exclusivo aos valores da personalidade, obedecendo aos apelos do coração e não as normas impessoais e abstratas. Este homem tem aversão às diferenciações, e, se elas existem formalmente, ele facilmente as dissolve. O autor ironiza ainda que no Brasil, a democracia não passa de um mal entendido, tendo em vista a persistência de um certo imaginário colonial, da cultura da escravidão, da cultura da diferenciação, do favor e do jeitinho. Outro fator apontado por Holanda para uma fácil ambientação da institucionalização dos favores é a não internalização das finalidades das normas, devido a excessiva e reiterada importação/transplantação/outorga de leis e constituições, dado que, "a experiência e a tradição ensinam que toda cultura só absorve, assimila e elabora em geral os traços de outras culturas, quando estas encontram uma possibilidade de ajuste aos seus quadros de vida" (HOLANDA, 2007, p. 40). O desajuste entre as normas jurídicas e cultura também canaliza no desconhecimento da lei e no temor à sua aplicação. "Descumprir normas, estabelecer relações de pessoalidade com a lei através de um mediador, na maioria das vezes – o patrão e a polícia para os “de baixo” e o político e o “influente” para os “de cima”, são recorrentes na estrutura da sociedade brasileira" (SEGUNDO, 2010, p. 6). É claro que a sociedade brasileira mudou consideravelmente após a primeira edição de "Raízes do Brasil", em 1936. O Brasil sofreu um processo de urbanização desenfreado principalmente devido a sua industrialização e ao fluxo migratório em direção às grandes cidades. A partir da década de 50-60 do século XX o país tornou-se urbano e a renda urbana superou a renda rural. No entanto, diferentemente do processo europeu e estadunidense, a urbanização brasileira ocorreu em algumas décadas, de maneira excludente, desorganizada e pouco planejada. Em decorrência disso, a maioria da população ainda vive em péssimas condições de vida; numa vulnerabilidade jurídico-política imensurável. Tal quadro dificulta a superação do paradigma patrimonialista descrito por HOLANDA e oferta confortável espaço para práticas políticas clientelistas que perpetuam a existência de diversos tipos de "mediadores" de direitos, perspicazes na utilização dos "jeitinhos". A cultura do jeito em Roberto Damatta Outra importante contribuição à problematização do jeitinho brasileiro é a proposta antropológica de Roberto Damatta. Na obra “O que faz do Brasil, Brasil", publicada em 1984, o antropólogo discorre sobre relevantes temas que incorporam a identidade nacional, como o carnaval, as mulheres e a religiosidade (DAMATTA, 2001). No sétimo capítulo da mesma obra, o autor define o jeitinho e a malandragem como sendo o "modo de navegação social no Brasil" (2001, p. 63), e desta análise se depreende significativa reflexão sobre a instituição do jurídico no imaginário popular. Os questionamentos centrais que movem a pesquisa de Damatta tencionam nossa relação e nossa atitude para com, e, diante de, uma lei universal que teoricamente deve valer para todos, quando, "fomos criados numa casa onde, desde a mais tenra idade, aprendemos que há sempre um modo de satisfazer nossas vontades e desejos, mesmo que isso vá de encontro às normas do bom senso e da coletividade em geral" (2001, p. 63-64). De maneira bem humorada, o autor defende a tese de que o jeitinho é resultante inevitável de um conflito, [...] um combate entre leis que devem valer para todos e relações que evidentemente só podem funcionar para quem as tem. O resultado é um sistema social dividido e até mesmo equilibrado entre duas unidades sociais básicas: o indivíduo (o sujeito das leis universais que modernizam a sociedade) e a pessoa (o sujeito das relações sociais, que conduz ao pólo tradicional do sistema (p. 64). Na hora de optar entre os dois, o coração dos brasileiros balança (recorde- se o homem cordial de Sérgio Buarque de Holanda). Na "zona cinzenta" alocada entre o indivíduo de leis universais e o sujeito de relações sociais, repousa “a malandragem, o jeitinho e o conhecido "sabe com quem está falando?", como modo tipicamente brasileiro de enfrentar contradições e paradoxos. A lei, a situação onde ela deveria ser aplicada e os agentes nela envolvidos, formam um emaranhado, no qual o jeitinho é um "modus operandi" único e contingente para cada nova demanda. Assim como em Buarque de Holanda, a proposta de Roberto Damatta permite inferir que a principal causa deste modo de relacionar-se com o jurídico tipicamente brasileiro seria a incompatibilidade entre as leis e as situações disciplinadas, quer dizer: entre o direito e a realidade social. Damatta comenta que em alguns países, como nos Estados Unidos, na França e na Inglaterra, as regras ou são obedecidas ou não existem. Por lá, não haveria prazer algum em escrever normas que contrariam e, em alguns casos, agridem o bom senso e as regras da própria sociedade, ensejando a corrupção burocrática e a desconfiança no poder público (2001, p. 64). Parece que a crença na existência de uma relação harmônica e coerente entre a teoria e a prática jurídica nestes países trata-se de exagerado otimismo de Damatta, já questionado pela proposta "law in books x law in action"5, muito difundida nas universidades estadunidenses e europeias. No entanto, concordamos com Damatta que, na "terra brasilis", o distanciamento entre a lei e a realidade. em vez de exceção, tornou-se regra, atingindo incalculável patamar. Na sequência, o autor desenvolve uma noção sobre o jeitinho: É, sobretudo, um modo simpático, desesperado ou humano de relacionar o impessoal com o pessoal; nos casos – ou no caso – de permitir juntar um problema pessoal (atraso, falta de dinheiro, ignorância das leis por falta de divulgação, confusão legal, ambiguidade do texto da lei, má vontade do agente da norma ou do usuário, injustiça da própria lei, feita para uma dada situação, mas aplicada universalmente etc.) 5 Law in action é uma teoria jurídica associada ao movimento do Realismo Jurídico, que examina o papel do Direito na realidade, para além das leis e decisões judiciais catalogadas pelos Tribunais. Teóricos do movimento geralmente observam o comportamento de agentes públicos e o que ocorre nos bastidores das instituições que administram a Justiça Estatal. com um problema impessoal. Em geral, o jeito é um modo pacífico e até mesmo legítimo de resolver tais problemas, provocando essa junção inteiramente casuística da lei com a pessoa que a está utilizando (2001, p. 65). No Brasil, o fantasma dos regimes autoritários ainda pairam pelo ar, e seus reflexos influenciam drasticamente o imaginário do povo sobre a real finalidade das normas jurídicas. Na recente história brasileira, a lei sempre significa o "não pode", capaz de tirar todos os prazeres e desmanchar todos projetos e iniciativas. A legislação diária do Brasil é uma regulamentação formal do "não pode", onde a palavra "não" submete o cidadão ao Estado de forma geral e constante. O palco para ojeitinho entrar em cena está armado! Ora, é precisamente por tudo isso que conseguimos descobrir e aperfeiçoar um modo, um jeito, um estilo de navegação social que passa sempre nas entrelinhas desses peremptórios e autoritários “não pode!”. Assim, entre o “pode” e o “não pode”, escolhemos, de modo chocantemente antilógico, mas singularmente brasileiro, a junção do “pode” com o “não pode”. Pois bem, é essa junção que produz todos os tipos de “jeitinhos” e arranjos que fazem com que possamos operar um sistema legal que quase sempre nada tem a ver com a realidade social (p. 66). Talvez, a existência desta incoerência entre o direito formal e a realidade social possa justificar o fato de a maioria da população evitar a estrutura formal, e buscar nos vários mecanismos informais para solucionar seus problemas, pois o não-formal é mais próximo e produz resultados imediatos. A dificuldade em conjugar a lei com a realidade social da população enseja o nascimento e a cristalização da figura do mediador. No entanto, na perspectiva de Damatta, esta perspicaz personagem veste uma roupagem um tanto diversa daquela apontada por Holanda: Do lado do malandro, e como o seu oposto social, temos a figura do despachante, esse especialista em entrar em contato com as repartições oficiais para a obtenção de documentos que normalmente implicam as confusões que mencionei linhas antes, ao descrever detalhadamente o “jeitinho”. O despachante, como figura sociológica, só pode ser visto em sua enorme importância quando novamente nos damos conta dessa enorme dificuldade brasileira de juntar a lei com a realidade social diária. Assim, o despachante parece mais um padrinho. Tal como o padrinho, ele é um mediador entre a lei e uma pessoa (2001, 69-70). Da mesma forma na qual um patrão deve dar emprego e boas condições de trabalho aos seus empregados (o "complexo de patrão" descrito por Buarque de Holanda), o despachante deve guiar seus clientes pelos estreitos e perigosos meandros das repartições oficiais, fazendo com que sigam o caminho certo e alcancem seus objetivos. Por fim, Roberto Damatta destaca que o jeitinho é um modo de navegação muito antigo e encontra no trecho final da histórica carta de Pero Vaz de Caminha um jeitinho, na versão lusitana: Depois de dar ao rei as maravilhosas notícias da terra brasileira. Ali, naquele pedaço terminal e naquela hora de arremate, Caminha arrisca, malandramente, o seguinte: “E nesta maneira, Senhor, dou aqui a Vossa Alteza conta do que nesta terra vi. E, se algum pouco me alonguei, Ela me perdoe, pois o desejo que tinha de tudo vos dizer, me fez por assim pelo miúdo. E pois que, Senhor, é certo que, assim neste cargo que levo, como em outra qualquer coisa que de Vosso serviço for, Vossa Alteza, há de ser de mim muito bem servida, a ela peço que, por me fazer graça especial, mande vir da Ilha de São Tomé a Jorge de Osório, meu genro – o que dela receberei em muita mercê.” E conclui Caminha, como até hoje manda o nosso figurino de malandragem: “Beijo as mãos de Vossa Alteza. Deste Porto Seguro de Vossa Ilha de Vera Cruz, hoje, sexta-feira, primeiro dia de maio de 1500. Pero Vaz de Caminha” (2001, p. 71). Nas palavras de Damatta: será que é preciso dizer mais alguma coisa? Administração Moderna, Burocracia e Impessoalidade Administrativa em Max Weber Após ter sido apresentada uma singela genealogia do jeitinho brasileiro, a partir das incursões de Sérgio Buarque de Holanda e Roberto Damatta, cabe então verificar a possível relação entre a cordialidade, o jeitinho e o princípio da impessoalidade administrativa a partir da sociologia compreensiva de Max Weber (segundo ponto de nossa proposta). Weber inaugura a temática a partir da criação de uma tipologia que explora três formas puras de dominação. Por dominação Weber entende [...] a probabilidade de encontrar obediência dentro de um grupo determinado para mandatos específicos [...] (WEBER, 1996, p. 170), que pode manifestar-se vinculado a diferentes formas de legitimidades coordenadas por determinados tipos de relações sociais subjacentes, quais sejam, tradicional, legal ou carismática, as quais estão colocadas, pelo autor, da seguinte forma: Existen tres tipos puros de dominación legítima. El fundamento primario de su legitimidad puede ser: 1. De carácter racional: que descansa en la creencia en la legitimidad de ordenaciones estatuidas y de los derechos de mando de los llamados por esas ordenaciones a ejercer la autoridad (autoridad legal). 2. De carácter tradicional: que descansa en la creencia cotidiana en la santidad de las tradiciones que rigieron desde lejanos tiempos y en la legitimidad de los señalados por esa tradición para ejercer la autoridad (autoridad tradicional). 3. De carácter carismático: que descansa en la entrega extraordinaria a la santidad, heroísmo o ejemplaridad de una persona y a las ordenaciones por ella creadas o reveladas (llamada autoridad carismática) (1996, p. 172). Weber as separa, nestes critérios, como formas puras de dominação, mas faz questão de destacar que geralmente nenhuma aparece no mundo real de forma pura e sozinha, embora seja pedagogicamente indicado seu estudo em apartado (p. 173). Em análise, dentro das duas últimas formas de dominação, o grau de julgamento unilateral do governante é extremamente alto, chegando ao nível do não questionamento, enquanto que na dominação legal, a própria estrutura subjacente exerce controle sobre o poder decisório, relegando-o a níveis aceitáveis, pois a administração é estruturada por profissionais em um sistema hierarquizado com jurisdição racionalmente delimitada (p. 172). A dominação legal, que mais nos interessa nesse momento, “esta articulada dentro de un cuadro de derechos (1); relacionados en acuerdo con valores o fines (2); que la ‘persona puesta a la cabeza’, en tanto que ordena y manda, obedece por su parte al orden impersonal por el que orienta sus disposiciones” (3); y que aquel que obedece solo lo hace como miembro subordinado a una ordenación jurídica vinculante (4)” (p. 174). Portanto, a obediência está vinculada a ordens impessoais “[...] y que solo están obligados a la obediencia dentro de la competencia limitada, racional y objetiva, a el otorgada por dicho orden” (p. 174). Essa forma de dominação como formulação de um aparato burocrático está sustentada sobre seu exercício continuado; sujeito a estabilidade da lei e dentro de funções delimitadas; onde os funcionários têm seus direitos, deveres e funções circunscritas objetivamente; com atribuição de poderes necessários para sua realização; e fixação de poderes de coerção administrativa previamente delimitadas para sustentar a eficaz condução da atividade administrativa (p. 174). A dominação legal weberiana mais pura pressupõe a existência de um quadro administrativo; com nivelação hierárquica de mando e obediência; com possibilidade de um sistema recursal com nivelamento superiores de apelação das ordenações; e que haja blindagem contra os demais tipos de dominação (p.174). A formação do quadro administrativo: (a) deve ser por recrutamento através de provas que selecionem pessoas livres, que se voluntariam para realizá-las; (b) com universalização da possibilidade do recrutamento; (c) com capacidade técnica para a função (p. 177); e que sejam nomeados para ocupar os cargos funcionais na qualidade de membro do quadro administrativo (p. 175). As principais características desses funcionários são, nas palavras do autor: 1) personalmente libres, se deben alos deberes objetivos de su cargo; 2) en jerarquía administrativa rigurosa; 3) con competencias rigurosamente fijadas; 4) en virtud de un contrato, o sea (en principio) sobre la base de libre selección según calificación profesional que fundamenta su nombramiento – en el caso más racional; 5) por medio de ciertas pruebas o del diploma que certifica su calificación; 6) son retribuidos en dinero con sueldos fijos con derecho a pensión las más de las veces, su retribución está graduada primeramente en relación con el rango jerárquico, luego según la responsabilidad del cargo y, en general, según el principio del “decoro estamental”; 7) ejercen el cargo como su única o principal profesión; 8) tienen ante sí una “carrera”, o “perspectiva” de ascensos y avances por años de ejercicio, o por servicios o por ambas cosas, según juicio de sus superiores; 9) trabajan con completa separación de los medios administrativos y sin apropiación del cargo; 10) y están sometidos a una rigurosa disciplina y vigilancia administrativa (1996, p. 176). Por essa lógica, os cargos não poderiam ser considerados como propriedade particular, vendidos ou tomados como qualquer probabilidade lucrativa (1996, p. 177). O que in si destronaria sua pureza instrumental. A dominação legal é em essência a racional dominação pelo saber (WEBER, 1996, p. 179), com precisión, continuidad, disciplina, rigor y confianza; calculabilidad, por tanto, para el soberano y los interesados; intensidad y extensión en el servicio; aplicabilidad formalmente universal a toda suerte de tareas; y susceptibilidad técnica de perfección para alcanzar el óptimo en sus resultados (WEBER, 1996, p. 177). O espírito da burocracia é o formalismo em essência, transado com um utilitarismo material destinado a realização do fim/valor determinado – “[...] inclinación de los burócratas a llevar a cabo sus tareas administrativas de acuerdo con criterios utilitario-materiales en servicio de los dominados, hechos felices de esta suerte” (p. 180). A dominação impura Em análise mais apurada, a dominação legal, in si e longe de qualquer maniqueísmo, nos traz ditames rígidos da condução do maquinário público afastado dos vícios e paixões humanas. Contudo, sua apresentação, como Weber nos alerta, não é na sua forma mais pura, pois há fluxos transversais que redimensionam o real funcionamento dessa burocracia e de como são recrutados os membros do quadro administrativo. Alertamos para a influência da dominação tradicional, patrimonial – sultanista ou estamental – na condução da coisa pública. Llámase dominación patrimonial a toda dominación primariamente orientada por la tradición, pero ejercida en virtud de un derecho propio; y es sultanista la dominación patrimonial que se mueve, en la forma de su administración, dentro de la esfera del arbitrio libre, desvinculado de la administración (p. 185) (grifo nosso). Em contrapartida, no patrimonialismo estamental o poder está apropriado por um quadro administrativo, composto por determinadas pessoas com determinadas características específicas ou por um só indivíduo (p. 185). Nesse sentido, os princípios da burocracia racional restam comprometidos, pois a engenharia burocrática rearticula-se de forma a permitir apropriação privada daquilo que é público, como se a perversão desse tivesse se tornado racionalmente lícito, como se os cargos e funções pudessem ser colonizados e distribuídos e redistribuídos como recompensas e favores. O poder acaba sendo apropriado individualmente, por grupos políticos ou econômicos, mais tradicionalmente por esses dois últimos intrinsecamente relacionados, pois os primeiros devem a alçada do cargo que ocupam a outros indivíduos/grupos que exigem o recrutamento como contraprestação, assim, o poder é dividido e barganhado personalisticamente (WEBER, 1996, p. 186). A dominação tradicional, patrimonialista, deve suprir as necessidades e privilégios do quadro administrativo, ela não suporta as fronteiras rígidas da burocracia racional e limitativa. Em essência o patrimonialismo é: irracional, pois não suporta as regras racionais do Direito; sua administração não é profissional, pois é um governo pessoal; dominado pelo suborno; permissivo quanto a degeneração das leis; e é orientado pela economia. O patrimonialismo se apodera da arquitetura racional para operar a sua própria irracionalidade. Contudo, mostra-se atual na navegação burocrática brasileira. A impessoalidade na administração pública brasileira O homem cordial, imbuído do traje "jeitinho", navega de forma a perfurar os muros da blindagem da burocracia impessoal weberiana que, por sua vez, nos melhores termos de Direito, significa o instrumento, por excelência, de autoproteção do Estado frente às envergaduras da condição humana, por demais necessárias para uma ordem rígida e procedural, como se propõe a estrutura do Estado Moderno. Vejamos o que significa pela ótica jurídica, o princípio da impessoalidade da administração pública. As primeiras manifestações que encontramos, realizam uma quase identificação entre a impessoalidade e a igualdade. Celso Antônio Bandeira de Mello define que o princípio da impessoalidade não é senão o próprio princípio da igualdade ou isonomia. Nele, se traduz a idéia de que a Administração tem que tratar a todos os administrados sem discriminações, benéficas ou detrimentosas (...) se todos são "iguais perante a lei’, "a fortiori" teriam de sê-lo perante a Administração (1999, p. 70). Assim também o faz Ives Gandra Martins: A Administração Pública tem que ser impessoal, sem favorecimentos a quem quer que seja, aplicando as leis do país, por igual, a todos os cidadãos, residentes ou pessoas que aqui transitam, visto que apenas nas monarquias absolutas ou nas ditaduras os ‘amigos do rei’ são favorecidos e os ‘inimigos’ perseguidos (1992, p. 01-12). Ana Paula Oliveira Ávila, também analisa a aproximação entre o princípio da impessoalidade e a noção de igualdade, mas faz um alerta ao hermeneuta apressado sobre a autonomia dos princípios: a impessoalidade pode levar à igualdade, mas com ela não se confunde. É possível haver tratamento igual a determinado grupo (que estaria satisfazendo o princípio da igualdade); porém, se ditado por conveniências pessoais do grupo e/ou do administrador, estará infringindo a impessoalidade (ÁVILA, 2004, p. 22, 37). Impressões mais recentes posicionam a impessoalidade da atuação administrativa na tarefa de resguardar o interesse público e impedir que os atos administrativos sejam praticados visando interesses do agente público ou ainda de terceiros (ALEXANDRINO e PAULO, 2011, p. 194; MAZZA, 2011, p. 82) Trata-se pois, a impessoalidade, de um pressuposto que visaria garantir o distanciamento dos vícios humanos de um espírito fundacional e funcional que pretende ser puro e rígido, objetivo e direto, real e claro; o que vedaria a promoção pessoal dos agentes públicos engajados em cargos/funções na administração pública. Quando em ação, o agente público não mais agiria como ser individual e o resultado de suas atividades seria transmutado de si e imputado ao ente coletivo. O resultado e os meios desprendem-se da ação volitiva individual e corporificam-se na instituição, como se essa tivesse vida e realizasse suas próprias escolhas em direção ao bem-estar da população, por intermédio dos meios mais eficazes e cabíveis. Exatamente por isso esse modelo burocrático pressupõe a boa-fé objetiva dos agentes, onde todos deveriam agir com honestidade, correção e confiabilidade. Assim sendo, o suprassumo da ojeriza ao desvio da maquina pública é o nepotismo, vinculado a um fluxo de dominação tradicional – como no caso da sumula vinculante no 13 editadapelo Supremo Tribunal Federal em 2008. Esse modelo idealizado de pensar a administração pública deriva da racionalização burocrática dos mecanismos de funcionamento do Estado que é, para Weber, resultado de um processo histórico de um tipo de Direito; um Direito com características muito específicas, que só poderia ter aflorado na Europa, quando da separação entre a vida política e a vida jurídica (TRUBEK, 2007). O referido processo levou, consequentemente, à superespecialização dos profissionais do Direito, alcançando um nível muito alto de racionalidade que, por sua vez, está relacionado intrinsecamente com a sua própria legitimidade, de acordo com Weber. Esses pressupostos característicos do Direito Europeu, imprescindíveis para a consolidação do capitalismo como sistema hegemônico, constituem o que Weber chamou de legalismo; determinante do grau de autonomia de um sistema, pois quanto maior o nível de estruturação da burocracia no castelo do Estado, maior o nível de impessoalidade e objetividade/objetivação de sua ação6 (TRUBEK, 2007). Quando encontramos uma grande burocracia arraigada no Estado, achamos também uma extrema divisão do trabalho que exonera os agentes de qualquer tipo de responsabilidade moral, pois suas atividades já foram previamente fixadas. "A especialização crescente deixa a burocracia organizacional cada vez mais forte" (FARIAS e MENEGHETTI, 2011). Segundo Weber, a burocracia moderna funciona sob formas específicas. A burocracia está sob a regência de áreas de jurisdição fixas e oficiais, ordenadas por leis e normas administrativas. Assim, para Weber "a burocracia descansa na aceitação da validez de algumas leis não excludentes [em que o] processo administrativo, dentro dos limites especificados nas ordenações significa a busca racional de interesses, de forma que as atividades destinadas a atingir os objetivos 6 Em sua sociologia econômica, Weber ressaltou a importância de dois aspectos do direito para o desenvolvimento capitalista: (1) seu relativo grau de calculabilidade e (2) sua capacidade de desenvolver provisões substantivas – principalmente relacionadas à liberdade de contrato – necessárias ao funcionamento do sistema de mercados. Sua pesquisa sobre tipos de direito indicava que apenas o direito moderno e racional, ou a racionalidade lógico-formal, poderiam prover a calculabilidade necessária. O legalismo auxiliou o desenvolvimento do capitalismo ao prover uma atmosfera estável e previsível. O capitalismo encorajou o legalismo porque a burguesia tinha consciência da necessidade deste tipo de estrutura governamental; tal sistema não teria continuidade se o controle de seus recursos não fosse resguardado pela coação jurídica estatal; se seus direitos formalmente ‘jurídicos’ não forem resguardados pela ameaça do uso de força (TRUBEK, 2007, p. 168). organizacionais apresentam-se aos executores como 'deveres oficiais' (FARIAS e MENEGHETTI, 2011). Enquanto Weber pensava a burocracia pressupondo a separação do mundo da vida e do Direito, o que parecia pertinente no contexto alemão onde o parlamento não tinha nenhum controle ou possibilidade de interferência no maquinário estatal, a lógica no Brasil é diferente, temporal e espacialmente, o que não permite a aplicação da dominação racional pura, ou ainda, nem perto da pureza que ele pressupunha haver na Alemanha. Parece que o espírito funcional da burocracia é o de dirimir a lógica da dominação tradicional e/ou carismática, o "jeitinho" e a “cordialidade” as procuram desesperadamente; delas alimentam-se, numa busca frenética e parasitária no Estado. Para isso, "uma das formas que os agentes políticos encontraram para se fortalecerem nesse combate e se contraporem ao poder burocrático crescente foi a politização de uma parcela da burocracia, em especial do alto escalão", (OLIVIERI, 2011), que é justamente o trabalho de cooptação política de servidores públicos. Por fim, destacamos a criação de uma imensidão de cargos comissionados "ad nutum" (de livre nomeação e exoneração) que transforma trabalhadores em servos políticos, com afinidades ideológicas e pessoais tão diversas e contrapostas, que transportam vícios e paralisia às instituições7. Na literatura brasileira, a política e a burocracia sempre foram vistas como opostas e conflitantes. A história da relação entre política e burocracia no Brasil é contada em termos de oposições entre a racionalidade da política (distributiva) e a racionalidade da burocracia (eficiência), e entre a burocracia politizada (instrumentalizada pelo clientelismo ou capturada por grupos da sociedade) e a burocracia meritocrática (supostamente neutra) [...] (CECÍLIA, 2011). Considerações Finais 7 Os cargos em comissão (ocupados por servidores de carreira ou por pessoas de fora do serviço público) estão fortemente presentes na administração pública brasileira desde a época do Império, alcançando em 2009, a incrível marca de 621 mil cargos em comissão, presentes na administração pública da União, Estados e Municípios (FOLHA DE SÃO PAULO, 2009). Da mesma forma, erroneamente, a maioria dos brasileiro acredita que o que é público não é de ninguém, ou ainda, na melhor linguagem jurídica: o público é uma “res nullius” (coisa sem dono). Por ser coisa de ninguém é percebida como “res derelictae” (coisa abandonada), que pode ser apropriada por qualquer um a qualquer momento. Tal modo de pensar consome o Estado de maneira predatória, pois ao mesmo tempo em que ninguém é responsável por cuidar dele, todos são responsáveis por sua situação anômica. A coisa pública desmorona, tudo esfarela- se, até que o Estado mínimo, insípido, inodoro e incolor celebre sua glória. Não advogamos aqui pela absoluta pureza e distanciamento da lei, como o ocorrido em alguns países que aniquilaram o instituto da discricionariedade administrativa, mas por um maquinário público que carregue um mínimo de seriedade na condução da coisa pública e que nele esteja os planos de uma nova construção. De um Estado que aprenda com o "jeitinho brasileiro" e com o "homem cordial", pois neles podem habitar protótipos de rapidez, adequação, informalidade e eficiência. Num constructo de Direito onde formalmente não existem fronteiras que delimitem estratificações sociais, pode-se perceber uma materialização que se ergue nas mais sutis curvas da organização social e que sedimentam distâncias e realidades, veladas pela mitologia da neutralidade do direito. Acreditamos que o "jeito" pode ser considerado o cartão postal de uma sociedade marcada pela desigualdade jurídica entre os cidadãos. Não é somente instrumento de burlar a lei, ou uma ética às avessas, mas muitas vezes, veículo único de alcance à direitos fundamentais; única via de acesso a um sistema jurídico no qual cada sujeito de direito "salva-se quando e como puder". Neste sentido, a posição dos indivíduos na estrutura social (por critérios de classe, renda, gênero, profissão, nível educacional, raça etc.) se apresenta como importante variável para futuras análises sobre o jeitinho e campo privilegiado de estudo para a sociologia jurídica. Embora muitos afirmem que a característica principal do brasileiro é não ter uma característica definida, parece que no que tange ao sistema de acesso dos cidadãos ao Estado e da racionalização da maquina pública, essa identidade resta bem definida. Concordamos com Elpídio Segundo ao concluir pela continuidade do homem cordial e do jeitinho brasileiro na estrutura da sociedade brasileira contemporânea (2010). E mesmo no Brasil do século XXI, a burocracia estatal influencia e/ou segue sendo influenciada por este curioso modo de navegar. Assim sendo, a inclusãodestes tipos ideais na pauta de pesquisa científica é tarefa imperiosa a ser cumprida pela academia. Referências ALMEIDA, Carlos Alberto, A cabeça do brasileiro, Rio de Janeiro: Editora Record, 2007. AVILA, Ana Paula Oliveira. O Princípio da Impessoalidade da Administração Pública. Rio de Janeiro: Renovar, 2004. DAMATTA, Roberto, O que faz o brasil, Brasil?, Rio de Janeiro: Rocco, 2001. 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