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Dados de Catalogação na Publicação (CIP) Internacional (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Sevcenko, Nicolau. S327r O ren asc im en to / N icolau Sevcenko. — 6. ed. — São Pau lo : ■ 6. ed. Atu al ; Cam pinas, SP : E dito ra da Universidade Es tad ua l de Cam- pin as, 1988. (Discutindo a história) Bibliografia. 1. Arte ren asc en tista 2. Renascenç a — H istó ria 3. Renasc e — Itá lia I. Título . II. Série. CDD940.21 700.9024 880076 945.05 Índices para catálogo sistemático: 1. Artes renascentistas : História 700.9024 2. Renascença : Europa : Civilização 940.21 3. Renascença : Itália : Civilização 945.05 4. Renascimento : Artes : História 700.9024 5. Renascimento : Europa : História 940.21 Obra em coedição com a EDITORA DA UNIVERSIDADE ESTADUAL DE CAMPINAS (UNICAMP) Reitor: Paulo Renato Costa Souza Coordenador Geral da Universidade: Carlos Vogt CONSELHO EDITORIAL Aécio Pereira Chagas, Alfredo Miguel Ozório de Almeida, Attílio José Giarola Aryon DallTgna Rodrigues (Presidente), Eduardo Roberto Junqueira Guimarães, Hermógerles de Freitas Leitão Filho, Michael MacDonald Hall, Jayme Antunes Maciel Jr., Ubiratan D'Ambrósio. Diretor Executivo: Eduardo Roberto Junqueira Guimarães Rua Cecílio Feltrin, 253 Cidade Universitária — Barão Geraldo Fone: (0192) 391301 (ramal 2585) 13083 CAMPINAS — SP . discutindo a história o renascimento nicolau sevcenko 12„s edição coord: jaime psnsky .-..íüíi^riSciià fsasí&v b Pa ■ Nicolau Scvcenko é formado em História pela USP, onde se douto- rou, em 1981. Em 1983 publicou sua tese de do utor am ento sob o título de Literatura Como Missão: Tensões Sociais e Criação Cultural na Pri meira República. Se o livro lhe valeu, no mesmo ano , do is importa ntes prêmios (Prêmio Moinho Santista Juven tude e Prêmio Literário de São Paulo), a tese lhe deu também uma grande alegria pessoal: a de ter tra- vado o últim o deba te público com o Prof. Sérgio Bua rque de H olanda. Nicolau se qualifica como um ‘ ‘andarilho vacilante’ ’, buscando seu destino mais como “um sonâmbulo que é guiado por sonhos fugazes, do que um navegante, que se orienta por um norte certo e por constela- ções estáveis’’. Talvez venha daí sua afinidade com o tema deste traba- lho. “ Na vida, diz el e, tenho si do puxad o po r um pun ha do de espe ran- ças e empu rrado po r uma legião de fantasmas. T opei com muro s imp re- vistos, tropecei nas próprias dúvidas e caí nas armadilhas do espelho, co- mo todo mundo.’’ Atua lmente professor da USP , realiz ando tam bém palest ras, deba- tes e numerosas inc ursões na Imprensa, Nicolau ac redita qu e se o traba- lho realmente dignifica o homem ele já poderia ir parando, por já ter acum ulado dignid ade suficiente para esbanjar o rest o da vida. Mas como a dignidade não compra o pão, ele continua trabalhando, com a espe- rança de algum dia saldar süa dívida com o BNH...E foi com esse simpático e extrovertido autor que travamos a seguin- te “ batalha’ ’: P. Qual o seu en volv ime nto com. o tem a deste livr o? R. Ê enorme! Eu vivi um período de intensa mudança cultural, em tor- no do final dos anos 60 e início dos 70, me empenhei e acreditei profun- damente nas possibilidades prodigiosas daquele fluxo inconformista e transformador que louvava o amor, a paz, a liberdade e a fantasia. Mas um dia o sonho acabou e eu me dei conta de que a maior parte das pes- soas manifestava um sentimento oscilante entre o desprezo, o ridículo e a indiferença para com os visionários. Do resíduo de esperança e inquie- tação e da enorme perplexidade que se seguiram a essa experiência dolo- rosa, nasceu o desejo de entender as raízes ambivalentes de nossa cultu- ra, presa entre o anseio de um mundo melhor e o horror da mudança. Foi essa preocupação que me levou a sondar o Renascimento, a revolu- ção cultural que fundou nosso mundo moderno. Outras razões mais circunstanciais também me auxiliaram muito nesse percurso. Ocorre que dentre o círculo de meus amigos mais ínti- mos, vários são artistas ou professores de História da Arte. Eles me auxi- liaram muito, estimulando a elaboração deste texto, esclarecendo mi- nhas idéias, sugerindo e me emprestando seus livros. Gostaria, por isso, de agradecer a Antonio Hélio Cabral, Murilo Marx, Ronei Bacelli, Maria Cristina Costa Sales, Kléber Ferraz Monteiro, Elias Thomé Saliba e mui- to especialmente a Maria Cristina Simi Carletti, que discutiu toda a es- trutura do texto comigo, foi o diapasão das avaliações estéticas, colabo- rou na escolha das ilustrações, compartilhou das minhas aflições e a quem dedico este trabalho. P. De qu e form a o conhe cim ento da cultura ren ascentista po de auxiliar no entendimento do presente? R. A história da cu ltur a renascentista no s ilustra com clareza todo o pro- cesso de construção cultural do homem moderno e da sociedade con- temporânea. Nele se manifestam, já muito dinâmicos e predominantes, os germes do individualismo, do racionalismo e da ambição ilimitada, típicos de comportamentos mais imperativos e representativos do nosso tempo. Ela consagra a vitória da razão abst rata, que é a instânc ia supre- ma de toda a cultura moderna, versada no rigor das matemáticas que passarão a reger os sistemas de controle do tempo, do espaço, do traba- lho e do dom ínio da n ature za. Será essa mesm a razão abstrata qu e estará presente tanto na elaboração da imagem naturalista pela qual é repre- sentado o real, quanto na formação das línguas modernas e na própria constituição da chamada identidade nacional. Ela é a nova versão do po- der dominante e será consubstanciada no Estado Moderno, entidade ra cionalizadora, controladora e disciplinadora por excelência, que extin guirá a multiplicidade do real, impondo um padrão único, monolítico e intransigente para o enquadramento de toda sociedade e cultura. Isso, contradit.oriamente, fará brotar um anseio de liberdade e autonomia de espírito, certamente o mais belo legado do Renascimento à atualidade. 2 P. Como expl icar a puja nça do Renascimento, surgindo em con tinuida de ã miséria, à opressão e ao obscurantismo do perío do med ieva l? R, O Renascimento assinala o florescimento de um longo processo ante- rior de produção, circulação e acumulação de recursos econômicos, de- sencadeado desd e a Baixa Idade Média. São os excedentes dessa ativida- de crescente em progressão maciça que serão utilizados para financiar, manter e estimular uma ativação econômica. Surge assim a sociedade dos mercadores, organizada por princípios como a liberdade de iniciati- vas, a cobiça e a poten cialidad e do h omem , com preendid o como senhor todo poderoso da natureza, destinado a dominála e submetêla à sua vontade, substituindo se no papel do próprio Criador . O Renascimento, portan to, é a emanação da riqueza e da abundância, e seus maiores com- promissos serão para com ela. P. A liberdade de escolha entre o be m e o m al parece ter sido um a das polêmicas introduzidas pelo Renascimento. Como é que o homem re nascentista se posiciona com relação ao exercício da liberdade plena? R. A certa altura de uma das mais importantes peças de Shakespeare, o personagem Lord Macbeth declara: “ Ouso tudo que c próprio de um hom em; que m ousar fazer ma is do que isso não o é ” . Essa postura reve- la com extraordinária clareza toda a audácia da experiência renascentis- ta. Tratavase, com efeito, de uma prática cujos gestos mais ousados lan- çaram seus particip antes para além de si mesmos, colocan doos no li- miar entre o demôn io e o própri o Deus. Se o orgulho pela des coberta de sua prodigiosa capacidade criativa e pela revelação de virtudes, de técni- ca e intelecto que jamais suspeitaram em si aproximavaos da figura do Pai Eterno, sua vaidade afetada e a cobiça sem freios que desencadea- vam arrastavaos para ás legiões do Príncipe das Trevas. E, no entanto, aopção era clara: tudo que os renascentistas pretendiam era assumir a condição humana até seus limites, até as últimas conseaüências. Nem Deus enem o demônio; todo o desafio consistia em ser absolutamente, radicalmente humano, apenas humano. Mas até que ponto os poderes dominantes poderíam tolerar as con seqüências dessa liberdade? Sobretudo se eia retornava para a sociedade em forma de dúvida, de crítica, de relativismo e, muito pior, de ironia? Alguns ficaram aquém, outros ultrapassaram os limites do permitido, atacando os privilégios dos poderosos e pagando com o que tinham de mais caro: sua consciência, sua liberdade, seu corpo e sua própria vida. P. Certa vez o uv i você comparando a experiência do a rtista renascen tista com a em presa das grand.es navegações. Como seria isso? R. Nós temos no Renascimento um desses momentos particularmente interessantes da Histór ia, em que o homem aparece transto rnad o, atô ni- to, sufocado pelo peso da própria liberdade. Nessas condições podemos 3 tentar fazer uma avaliação desse homem preso na solidão de ser livre e temos uma situação estratégica para verificar a dimensão de sua cora- gem, de seus desejos e de seus pavores. O Renascimento constitui, por isso, uma das mais fascinantes aventuras intelectuais da humanidade. Ele guarda uma semelhança mais do que notável com a empresa das grandes navegações. Para se atreverem a essas perigosas viagens maríti- mas, esses homens, ainda modestamente equipados, foram igualmente encorajados pelas comunidades burguesas e cortesãs, receberam privilé- gios, honrarias e regalias, mas tiveram que enfrentar monstros míticos e reais, tiveram que suportar, ao mesmo tempo, a atração e o medo do desconhecido, tiveram que acreditar em si mesmos e em seus confrades mais do que em entidades sobrenaturais, tiveram que enfrentar todos os riscos de desbravar novos mundos e tiveram que suportar o choque de valores completamente diversos dos seus. E muitos deles, como Colom- bo, acabaram na solidão, no sofrimento e na miséria, desprezados pelos que se abeberavam de suas conquistas. O mesmo aconteceu com inúme- ros criadores do Renascimento. E, no entanto, esses homens viveram uma experiência soberana de criação e puderam provar o gosto amargo, porém único, de serem livres. 4 I. condições históricas gerais No período entre os séculos XI e XIV, caracterizado como a Baixa Idade Média, o Ocidente europeu assistiu a um processo de ressurgi- mento do comércio e das cidades. O estabelecimento de contatos cons- tantes e cada vez mais intensos com o Oriente, inicialmente através das Cruzadas e em segu ida pela fixação ali de feitorias comerciais pe rm an en - tes, garantiu um fluxo contínuo de produtos, especiarias e sobretudo um estilo de vida novo para a Europa. A cri ação desse eixo comer cial, re- forçada pelo crescimento demográfico, pelo desenvolvimento da tecno- logia agrícola e pelo aumento da produção nos campos europeus, dava srcem a novas condições que tendiam progressivamente, em conjunto com outros fatores estruturais internos, a dissolver o sistema feudal que prevalecera até então. Surgiram, assim, as grandes cidades (burgos), tornadas centros de produção artesanal e entrepostos comerciais; as feiras internacionais de comércio, em que a participação era intensa e os negócios vultosos; as primeiras casas bancárias, voltadas para a atividade cambial e para os empréstimos a juros, e a Europa Ociden tal pas sou a ser c ortad a po r cara- vanas de mercadores em todas as direções. A economia de subsistência e de trocas naturais tendia a ser suplantada pela economia monetária, a influência das cidades passou a prevalecer sobre os campos, a dinâmica do comércio a forçar a mudança e a ruptura das corporações de ofícios medievais. A nova camada dos mercadores enriquecidos, a burguesia, procurava de todas as formas conquistar um poder político e um prestí- gio social correspondentes a sua opulência material. 5 As regiões da Itália e da Fíandres, e ntre o utras, desd e cedo se bene- ficiaram com essas mudanças. Ambas polarizaram o comércio europeu, o italiano através do domínio do comércio do Mar Mediterrâneo ao sul (especiarias, tapetes, sedas, porcelanas, veludos, marfim, corantes, es- sências, etc.) e o flamengo pelo controle estratégico do tráfico do Mar Báltico e Mar do Norte (madeira, ferro, estanho, pescados, peles, mel). Além disso, ambas as regiões eram centros prod uto res de tecidos de alta qualidade, exportados para toda a Europa. As regiões da Inglaterra e França participavam das trocas, sobretudo como grandes fornecedoras de matériasprimas: gado, lã, cereais, vinho, sal. Na região da França Meridional, a Champagne, ocorriam as mais concorridas feiras interna- cionais, on de eram transacionadas as mercadoria s do N orte e do Sul e re- distribuídas para todo o continente. As novas rotas comerciais Atlântico-Mediterrâneas (.séculos X IV e XV). 6 Colapso Por volta do século XIV, entretanto, todo esse processo de cresci- mento ent rou em colaps o. Os fator es que têm sido apontad os pelos his- toriadores como os principais responsáveis por esse refluxo do desenvol- vimento econômico são: a Peste Negra, a Guerra dos 100 Anos e as re- voltas populares. Essa crise do século XIV tem sido denominada tam- bém Crise doPeudalismo, pois acarretou transformações tão drásticas na sociedade, econom ia e vida políti ca da Europa, que pr atic am en te diluiu as últimas estruturas feudais ainda predominantes e reforçou, de forma irreversível, o desenvolvimento do comércio e da burguesia. A Peste Ne gra foi, sem dú vida , um e feito da s precárias condições de vida e hig ien e existentes nos burgos da B aixa Idade Méd ia. As aglomera - ções desordenadas de casas no espaço estreito das muralhas, a ausência de qu alq ue r sistema de e sgoto ou saneamen to, a inobservância de quais- quer háb itos de higie ne e limpeza eram decorrências d e u m crescimento urbano muito rápido e tumultuoso. Por isso, algumas cidades se torna- ram focos epidêmicos, de onde as pessoas fugiam apressadas para ir trans mitir a molésti a para as outras e assim por d iante , ati ng ind o a tot a- lidade do continente e exterminando cerca de um terço até metade da população européia. A mortalidade foi ainda am pliada pela disputa se- cular (13461450) en tre os soberanos da França e da Ingla terra, na Gu er- ra dos 100 Anos. A grande mortalidade, decorrente da peste e da guer- ra, procedeu â desorganização da produção e disseminou a fome pelos campos e cidades — razão das grandes revoltas populares que abalaram tanto a Inglaterra e a França, quanto a Itália e a Flandres nesse mesmo período. Píavia, porém, outras razões paia as revoltas populares. Com o de- clínio demográfico causado pela guerra e pela peste, os senhores feudais passaram a aumentar a carga de trabalho e impostos aos camponeses re- manescentes, a fim dè não diminuir seus rendimentos. Era contra essa superexploração que os trabalhadores se revoltavam. A solução foi ado- tar uma forma de trabalho mais rentável, através da qual poucos ho- mens pudessem produzir mais. Adotouse então, preferencialmente, o trabalho assalariado, o arrendamento, ou seja, os servos foram liberados para vender seus excedentes no mercado das cidades. Assim, estimula- dos pela perspectiva de um rendimento próprio, os trabalhadores e ar- rendatários incrementam as técnicas e aumentam a produção. Passaram a predominar, portanto, as atividades agrocomerciais, como a produção de cereais e d e lã, e os novos empresár ios pass aram a exigir a prop ried ade exclusiva e privada das terras em que investiam. Tudo isso concorreu pa- ra a dissolução do sistema feudal de produção. Como vemos, a crise do século XIV contribuiu para que a economia mo netária, a atividade comerci al e os investi mentos de capital se intensi- ficassem ainda mais. Paralelamente, a nobreza feudal via aumentadas suas dificuldade s. As grandes de spesas de um a guerra de longa duraçã o 7 e as dificuldades enfrentadas pela escassez de mãodeobra a obrigaram a um en div idam ent o crescentejun to aos capit alistas burgues es. Vão sen- do assim obrigados a desfazerse de parte de suas terras, a emancipar seus servos, a aumentar as regalias das cidades e dos mercadores. O co- mércio sai da crise do século XIV for tale cido. O mesmo ocorre com a ati- vidade manufatureira, sobretudo aquela ligada à produção bélica, à construção naval e à produção de roupas e tecidos, nas quais tan to a Itá lia quan to a Flandres se co locaram à frente das demais.As minas de m e- tais nobres e comuns da Eur opa Central tam bém são eno rmem ente ati- vadas. Por tudo isso muitos historiadores costumam tratar o século XTVcomo um período de Revolução Comercial. O desenvo lvimento da navegação entre a Itália e a Flandr es, através do Atlântico, propiciou o desenvolvimento de novos centros comerciais como Sevilha, Lisboa e Londres. O estreitamento da rede de comércio marítimo com a terrestre estimula a opulência de novas capitais econô- micas, como Lion na França, Antuérpia na Flandres e Augsburg na Ale- manha. Essa ampliação vultosa do comércio, contudo, começa a se res- sentir da falta de um maior volume de moedas e mercadorias no merca- do europeu. A escassez de metal precioso, os elevados preços do mono- pólio italiano das especiarias e a morosidade da oferta de produtos orientais, ameaçavam paralisar o impulso extraordinário do comércio. Somente as navegações ibéricas e a descoberta de novas rotas para a Ásia e a África, b em como do novo contin ente americano no lim iar do século XVI viriam aliviar esse estrangulamento das energias do capitalismo co- mercial. Fortalecimento da Monarquia Outro agente que saiu fortalecido da crise do século XIV foi a Mo- narquia. O vácuo de poder aberto pelo enfraquecimento da nobreza é imediatamente recoberto pela expansão das atribuições, poderes e in- fluências dos monarcas modernos. Seu pap el foi deci sivo tan to para con- duzir a guerra quanto, principalmente, para aplacar as revoltas popula- res. A bu rgue sia via neles um recurs o leg ítimo con tra as arbitrariedades da nobreza e um defensor de seus mercados contra a penetração de con- correntes estrangeiros. A unificação política significava a unificação tam- bém das moedas e dos impostos, das leis e normas, pesos e medidas, fronteiras e a duanas. Signiflcava a pacificação das guerras feud ais e a eli- minação do banditismo das estradas. Com a grande expansão do comér- cio, a M onarq uia nacional criaria a condição política indispensável à de- finição dos mercados nacionais e à regularização da economia interna- cional. Mas como instituir um Estado onde só havia o poder pulverizado dos feudos? Criar e manter um poder amplo e permanente, neste mo- mento, significava antes de mais nada contar com um grande e temível exército de mercenários, um vasto corpo de funcionários burocráticos de 8 corte e de prov íncia, um círculo de juristas qu e instituísse , legitimasse e zelasse por uma nova ordem sóciopolíticoeconômica e um quadro fiel de diplom atas e espiões, cultos e eficientes. É evidente qu e hom ens com tais qualidades e disposições seriam mais provavelmente encontrados nos escalões da bu rguesia. Esse era aliás um conjunto de serviços que po deria em parte ser encomendado a grandes casas de financistas e a gran- des traficantes, de certo modo já habituados com todos eles. Era o caso dos Álberti, dos Médici, dos Erescobaldi, dos Peruzzi, dos Acciaiuoli e 9 dos Bardi nas cidades italianas, ou dos Fugger, dos Welser, dos Rehlin ger, dos Inhoff no Império Alemão, dos Thurzo na Hungria, dos Go dard na França e assim por diante. Todas essas casas comerciais possuíam úma enorme burocracia que abrangia dimensões tanto nacionais como internacionais, graças às suas inúmeras agências, feitorias e entrepostos. Desenvolviam igualmente um sistema completo de contabilidade e de administração empresarial e financeira. Não relutavam, mesm o quand o necessário, em contratar com companhias especializadas os serviços de corpos de mercenários pa- ra a guerra, para c ombater revoltas populares ou pa ia simples ameaça. E o que era o Estado Moderno senão a ampliação de uma empresa comer- cial, cujo controle decisório estava nas mãos do rei, sendo que este se aconselhava com os assessores financeiros, fiscais, comerciais, militares, com os diplomatas e espiões antes de qualquer gesto? Era natural, portanto, que os monarcas buscassem o apoio, a inspi- ração e encontrassem parte de seu pessoal junto a essas grandes casas co- merciais. Normalmente o acordo incluía a concessão dos direitos de ex- ploração de minas de metais preciosos e ordinários, de sal e alume, o mon opólio sobre cert os artigos comerciais e o arre nda me nto da cobrança de impostos. Os lucros e o pode r qu e tais privilégios propiciavam a se us detentores eram extraordinár ios e faziam com que eles se tornassem ver- dadeiros patronos dos Estados aos quais se associavam. A casa dos Habs burgo, por exemplo, teve seu destino indissociavelmente ligado ao dos banqueiros Fugger, que financiaram as campanhas de Maximíliano na Itália (150817), garantiram a eleição de Carlos V como Imperador (1519) es úa guerra contra a França , possibilitaram a formação da liga c a- tólica que com bateu os protesta ntes e sustentaram ain da paralelam ente o tesouro pontificai e os tronos dos monarcas da Europa Oriental (com exceção da Rússia). Temse, dessa forma, a imagem de um Estado transformado numa vasta empresa e ele próprio dominado por uma ou algumas casas finan- ceiras. E era quase isso. Mas o contrário também era verdadeiro, ao me- nos para os produtores organizados segundo o modelo das corporações tradicionais: o Estado acaba por submetêlos, todos, paulatinamente, a seu controle. A unificação polít ica signi ficava padronização local e jur í- dica, e a formação do mercado nacional implicava a equiparação dos preços, dos salários, do ritmo da produção e das características dos pro- dutos. O tempo agora era propício para empresas de um novo tipo. Em- presas que recrutavam mãodeobra diretamente den tre os camponeses expulsos dos campos pela adoção sistemática das lavouras comerciais e que apresentavam a dupla vantagem de empregar por baixos salários e não serem ligadas a qualquer corporação. Companhias essas modeladas pelo espírito de iniciativa e ganância de seus empresários, que negocia- vam diretamente com as sociedades de jornaleiros o valor dos salários e definiam os preços e padrões dos produtos de acordo com as condições da concorrência internacional. 10 Nova Ordem Social Nos termos desse quadro, deparamonos com um a nova ordem so- cial. Sem a mediação das corporações, empresários e empregados si- tuamse como indivíduos isolados na sociedade. Seus padrões de ajusta- men to à realidade passa m a ser as condiçõ es do m ercado , a ordem ju ríd i- ca imposta e defendida pelo Estado e a livre associação com seus compa-nheiros de interesse. Â ruptura dos antigos laços sociais de dependência social e das regras corporativa s prom ovem , p ort an to, a liberação do in di- víduo e o empurram para a luta da concorrência com outros indivíduos, conforme as condições postas pelo Estado e pelo capitalismo. O sucesso ou o fracasso nessa nova luta de pendería — segundo Maq uiave l, o intro dutor da ciência política precisamente nesse momento — de quatro fa- tores básicos: acaso, engenho, astúcia e riqueza. Para os pensadores re- nascentistas, os humanistas, a educação seria o fator decisivo. Nem Maquiavel nem os humanistas estavam longe da verdade. O momento histórico colocava em foco sobretudo a capacidade criativa da personalidade humana. O período é de grande inventividade técnica es- timulada e estimuladora do desenvolvimento econômico. Criamse no- vas técnicas de exploração agrícola e mineral, de fundição e metalurgia, de construção naval e navegação, de armamentos e de guerra. É o mo- mento da invenção da Imprensa e de novos tipos de papel e de tintas. Se a introdução d e u m a nova técni ca poderia c olocarum a em presa à fren te de suas concorrentes, a criação de novas armas colocava os Estados em vantagem sobre os seus rivais. Foi com esse objetivo que Gaíileu foi con- tratado pela oligarquia mercantil da República de Veneza e foi esse tipo de préstimos que Leonardo da Vinci ofereceu a Ludovico, o Mouro, se- nhor de Milão, a fim de entrar para seu serviço. Esse conjunto de circunstâncias instituiu a prática da observação atenta e metódica da natureza, acompanhada pela intervenção do obser- vador por meio de experimentos, configurando uma atitude que seria mais tarde denominada científica. O objetivo era o de obter o máximo domínio sobre o meio natural, a fim de explorarlhe os mínimos recur- sos em proveit o dos lucros de mercado. O instrum ento chav e pa ra o d o- mínio da nature za e de seus mananciais, atra vés do qu al se pode ria con - densar sua vastidão e variedad e nu ma lingu agem ab stra ta, rigorosa e ho - mogênea, era a matemática. Nesse campo, os progressos caminhavam rápido, desde a assimilação e difusão dos algarismos arábicos e das técni- cas algébricas, tomadas à civilização islâmica. O instrumental matemáti- co era indispensável para efetuar a contabilidade complexa das empresas mercantis e financeiras, ou seja, os cálculos cambiais e os diversos siste- mas de juros, empréstimos, investimentos e bonificações. As pesquisas sobre a tradição da geometria euclidiana acompanha- vam de perto os avanços na matemática. E ambas ganharam novas fun- ções com a invenção da luneta astronômica por Gaíileu. Podese, assim, 11 confirmar a teoria radical do hel iocentrismo (o Sol ocupa ndo o centro do sistema planetário e não a Terra como acreditavam os hom ens d a Igreja, baseados em Ptolom eu) e a rotundidade do nosso planeta. Mas foi acre- ditando nessa cosmografia ousada, muito antes ainda de sua confirma- ção, que Colombo descobriu a América (1492) e Fernao de Magalhães fez a primeira viagem de volta ao mundo (15191521). Graças a essas descobertas, o sistema comercial pôde ampliarse, até atingir toda a ex- tensão do globo terrestre. Globo que passou a ser rigorosamente mapea- do e esquadrinhad o por um a rede de coordenadas geométricas, destina- da a gar antir a segurança e a exatidão das viagens marítima s e o sucesso dos negócios dos mercadores europeus. O desenvolvimento do saber edo comércio se reforçavam mutuamente. A matematização do espaço pela cartografia é acompanhada pela matematização do tempo. O ano de 1500 marca significativamente tan- to o descobrimento do Brasil quanto a invenção do primeiro relógio de bolso. Os séculos XV e XVÍ assistiram a um a am pla difusão de relógios públicos mecânicos ou hidráulicos, os quais são instalados nas praças centrais das cidades qu e desejavam exib ir sua opulê ncia e sua dedicação metód ica ao trabalh o. As pessoas não se movem m ais pelo ritm o do sol, pelo canto do gaio ou pelo repicar dos sinos, mas pelo tiquetaque contí- nuo, regular e exato dos relógios. A duração do dia não é mais conside- rada pela posição d o sol ou pelas condições atmosféricas, mas pela preci- são das horas e dos minutos. Em breve os contratos não falarão mais de jornada de trabalho , mas prescreverão o número exato das horas a serem cumpridas em troca do pagament o. O próprio tem po tornouse um dos principais artigos do mercado. Mas o que pensavam os homens do período sobre essas mudanças? A burguesia, sua gran de beneficiári a, estava eufórica. A nobreza e o cle- ro, perdendo o espaço tradicional dos feudos, procuram conquistar um novo lugar de destaque junto às cortes monárquicas recémcriadas. Camponeses e artesãos, perdendo a tutela tradicional do senhorio e da corporação, são atirados, na maior pane das vezes contra a vontade, nu- ma liberdade individual que pouco mais significava que trabalho insano para garantir a sobrevivência nos limites mínimos. Mas e os pensadores, os filósofos, os artistas, os cientistas, numa palavra: os humanistas, esses homens nascidos com as novas condições e destinados a incrementálas, o que pensavam eles disso tudo? Que partido tomavam? Pensavam por si mesmos ou eram instrumentos pensantes da burguesia que os finan- ciava? A resposta a essas questões é bem mais complexa do que se pode imaginar. 12 KEESSSvíW 2. os humani uma nova visão do mundo Para começar: a quem é que se costuma chamar de humanistas e o que significa esse título? Embora só se tenha difundido no século XV, esse termo indicava um conjunto de indivíduos que desde o século ante- rior vinha se esforçando para modificar e renovar o padrão de estudos ministrado tradicionalmente nas Universidades medievais. Esses centros de formação intelectual e profissional eram dominados pela cultura da Igreja e voltados para a s três carreiras tradicion ais: direi to , medicina e teologia. Esta vam, p ortan to, empenh ados em tran sm itir a os seus alunos um a concepção est ática, hie rárqui ca e dogmática da sociedad e, da n at u- reza e das coisas sagradas, de forma a preservar a ordem feudal. Mas, conforme já vimos, as transformações históricas foram, tão drásticas nesse período, que praticam ente dissolveram as condições de existência do feudalismo. E as novas circunstâncias impuseram igualmente aos ho- mens que alterassem suas atitudes com relação a seu destino, à socieda- de, à natureza e ao próprio campo do sagrado. Iniciouse assim um movimento, cujo objetivo era atualizar, dina- mizar e revitalizar os estudos tradicionais, baseado no programa dos stu- dia humanitatis (estudos hum anos ), que incluíam a poes ia, a filosofia, a históri a, a matem ática e a eloqüênci a, discipl ina esta re su ltan te da fusão entre a retórica e a filosofia. Assim, num sentido estrito, os humanistas eram, por definição, os homens empenhados nessa reforma educacio- nal, baseada nos estudos humanísticos. M as o qu e t in ham esses estudos de tão exc epcional, a pon to de servirem para reform ar o pr ed om íni o cul- tural inquestionável d a Igre ja e reforçar toda u ma nova vis ão do m undo? 13 Ocorre que esses studia humanitatis eram indissociáveis da aprendiza- gem e do perfeito domínio das línguas clássicas (latim e grego), e mais tarde do árabe, hebraico e aramaico. Assim sendo, deveríam ser condu- zidos, centrados exclusivamente sobre o s textos dos autores da Anti gui- dade clássica, com a completa exclusão dos manuais de textos medievais. Significava, pois, um desafio para a cultura dominante e uma tentativa de abolir a tradição intelectual medieval e de buscar novas raízes para a elaboração de uma nova cultura. Inspiração na Cultura Antiga Os humanis tas, num gesto ousado, te nd iam a considera r como mais perfeita e mais expressiva a cultura que havia surgido e se desenvolvido no seio do paganismo, antes do advento de Cristo. A Igreja, portanto, para quem a história humana só atingira a culminância na Era Cristã, não pode ría ver com bons olhos essa atitu de. Não qu er isso dizer que os humanistas fossem ateus, ou que desejassem retornar ao paganismo. Muito longe disso, o ceticismo toma corpo na Europa somente a partir dos séculos XVII e XVIII. Eram todos cristãos e apenas desejavam rein terpreta r a me nsage m do Evangelho à lu z da experiência e dos v alores daAntigu idad e. Valores esses que exaltavam o ind ivíd uo , os feitos históri- cos, a von tade e a capacidade de aç ão do homem , sua libe rdad e de atua- ção e de participação na vida das cidades. A crença de que o homem é a fonte de energias criativas ilimitadas, possuindo uma disposição inata para a ação, a virtude e a glória. Por isso, a especulação em torno do ho- mem e de suas capacidades físicas e espirituais se tornou a preocupação fundamental desses pensadores, definindo uma atitude que se tornou conhecida como antropocentrismo. A coincidência desses ideais com os propósitos da camada burguesa é mais do que evidente. É preciso, contudo, interpretar com prudência o ideal de imitação (imitatio) dos antigos., proposto como o objetivo maior e maissublime dos humanistas por Petrarca, um de seus mais notáveis representantes.A imitação não seria a mera repetição, de resto impossível, do modo de vida e das circunstâncias históricas dos gregos e rom anos, mas a busca de inspiração em seus atos, suas crenças, suas realizações , de forma a sugerir um novo comportamento do homem europeu. Um comportamento cal- cado na determinação da vontade, no desejo de conquistas e no anseio do novo. Petrarca considera va que a idade de ou ro d os antigos, submer- sa sob o “ barbarism o” medieval, poderia e deveria se r recup erad a, mas graças à energia e à vontade de seus contemporâneos. Petrarca insistia, inclusive, em que o próprio latim degenerado, uti- lizado pela Igreja, devia ser abandonado em favor da restauração do la- tim clássico dos grandes autores do período pagão. A crítica cultural se desdobra, desse modo, na crítica filológica: o estudo minucioso e acura-do dos textos e da linguagem, com vistas a estabelecer a mais perfeita 14 versão e a leitura mais cristalina. O que levou esses autores, por conse qüência, à consideração das circunstâncias e dos períodos em que foram escritos os textos e ao estudo das características das sociedades e civiliza- ções antigas. A crítica filológica se transforma, portanto, em crítica his- tórica. É evidente, pois, que os humanistas não demorariam em transfe- rir todo esse saber para suas próprias condições concretas de existência. Estabeleceram em primeiro lugar as bases das línguas nacionais da Euro- pa moderna e passaram, em seguida, ao estudo histórico das novas socie- dades urbanas e dos novos Estados monárquicos. Eles davam assim sua contribuição para a consolidação dos EstadosNação modernos. Crítica da Cultura Tradicional Crítica cultural, crítica filológica, crítica histórica: a atividade críti- ca, como se pode ver, foi uma das características mais notáveis do movi- mento humanista. Uma atividade crítica voltada para a percepção da mud ança , pa ra a transformação dos costumes , das línguas e das ci viliza- ções. Uma visão, portanto, mais atenta aos aspectos de modificação e va- riação do que aos de permanência e continuidade. O choque entre esse ponto de vista e o dos teólogos tradicionais, que defendiam os valores da Igreja e da cu ltura medieval, não pod eria ser mais completo . Para esses, ne nh um a mud ança cont ava que nã o fossem as mudança s no interior da alma: a escol ha feita por cada um entre o caminho do b em , indicado pe - lo clero, e o do mal, aconselhado pelas forças satânicas. E o único movi- men to históric o q ue contava era aquele que levava da vin da d e Cristo ao Juízo Final, permitindo aos homens o retorno ao Paraíso Perdido. Os teólogos, portanto, tinham toda a preocupação voltada para as almas e para Deus, ou seja, para o mundo transcendente, o mundo dos fenômenos espirituais e imateriais. Os humanistas, por sua vez, voltavamse para o aq ui e o agora, para o mu nd o concreto dos se res hum ano s em luta entre si e com a natureza, a fim de terem um controle maior so- bre o próprio destino. Por outro lado, a pregação do clero tradicional re- forçava a submissão total do homem, em primeiro lugar, à onipotência divina, em segundo, à orientação do clero, e em terceiro, à tutela da no- breza, exaltando no ser humano, sobretudo, os valores da piedade, da mansidão e da dis ciplina. A postura d os hum anistas era com pleta mente diferente, valor izava o que de divi no havia em cada ho mem , indu zind o o a expan dir suas forças, a criar e a pro duz ir, agindo sobre o m undo para transformálo de acordo com sua vontade e seu interesse. Dessa forma, se esse título de humanistas identificava inicialmenteum grupo de eruditos voltados para a renovação dos estudos universitá- rios, em pouco tem po ele se aplicava a todos aqueles q ue se dedic ava m à crítica da cultura tradicional e à elaboração de um novo código de valo- res e de comportamentos, centrados no indivíduo e em sua capacidade realizadora, quer fossem professores ou cientistas, clérigos ou estudan- 15 tes, poetas ou artistas plásticos. Esse grupo de inovadores e de inconfor mistas não era certamente visto com bons olhos pelos homens e entida- des encarregadas de preservar a cultura tradicional, mas isso não impe- diu que alguns atuassem no seio da própria Igreja, principalmente na Itália, próximo ao tron o pontificai, onde os papas em geral se com port a- vam como verdadeiros estadistas, pretendendo dirigir a Igreja como um Estado Moderno, cercan dose de um grup o de intelectuais progressistas. De resto, esses homen s srcinais procuravam garantir sua sobrevivên cia e a continuida de de sua atuação, ligandose a pr íncipes e monarcas, às un i- versidades, às municipalidades ricas, ou às grandes famílias burguesas, onde atuavam como mestres e preceptores dos jovens. Perseguições O respeito à indivi dualidade dele s e à srcinalidade de pe nsam ento nunca foi uma conquista assegurada. A vida sempre lhes foi cheia de perseguições e riscos iminentes: Dante e Maquiavel conheceram o exílio, Campanella e G alileu foram submetidos a prisão e tortura, Thomas Mo rus foi decapitado por ordem de Henrique VIII, Giordano Bruno e Etie ne Dolet foram con denados à fogue ira pela Inquisição, Miguel de Se rvet foi igualmente queimado vivo pelos calvinistas de Genebra, para só mencionarmos o destino trágico de alguns dos mais famosos represen- tantes do humanismo. Mesmo as constantes viagens e mudanças de Erasmo de Rotterdam e de Paracelso, por exemplo, eram em grande par- te motivadas pelas perseguições que lhes moviam seus inimigos podero- sos. Sua situação nunca foi realm ente segura e mesmo a de pen dênc ia em que se encontra vam de alguma instituiç ão, príncipe ou fam ília poder o- sa, causavalhes por vezes constrangimentos humilhantes. Essa a razão por que Erasmo nunca aceitou submeterse à tutela de nenhum podero- so. F, por isso tamb ém que Maquiavel dizia orgulhoso do hum anis ta: “ a ninguém ele estima, ainda que o vejais fazerse de servo a quem traja um m anto melhor que o dele ” . Nem porque trabalhav am para o s pod e- rosos, esses homens se sujeitavam a ser meramente seus instrumentos pensantes. Eram ciosos de sua independência e liberdade de pensam en- to, às vezes com sucesso e na maior pa rte das vezes com custos elevadíssi- mos, senão pagando com a própria vida, como vimos. Para muitos, esse ardor de independência significou a morte na mais completa miséria, abandonados por todas as forças sociais. Esse foi o caso de Camões e de Michel angelo, que morreram à míngua; o pinto r e escult or italiano, por exemplo, acabou sua vida miserável, doente e solitário, recusandose porém a aceitar a encomenda de Paulo IV para que pintasse véus sobre os corpos nus que havia criado para o “Juízo Final’ ’, na Cap ela Sistina do palácio do Vaticano. Mas esse mesmo clima de insegurança vivido por todos esses inova- dores serv iu para que se estabelecesse entre eles um laço de solidarieda de 16 Humanistas estudando em meio 'a diversidade de ob jetos de estudo. internacional, através de toda a Europa, reforçado por trocas de corres- pondências, viagens, hospitalidade, trocas de informações, livros e idéias, a circulação dos principiantes e dos discípulos, a formação de ce náculos, envolvendo eruditos de diferentes srcens nas principais uni- versidades. Essa rede de relações lhes dava uma nova dimensão de apoio e de identificação, que tentava defen der e soc orrer os confrades em a pu- ros sempre que isso fosse possível. Era tam bém u m cam po fértil de estí- mulos, de estudos e de divulgação, que se tornou ainda mais eficaz com os progressos das técnicas de imprensa. Assim, o humanismo que se ini- ciou como um movimento típico das cidades italianas no século XV já ganhava as principais cidade s e capitais da Eu ropa do Nor te, adq uirindo uma amplitude que seus promotores pretendiam que fosse universal. 17 Diversidade A essa universalidade do humanismo corresponderíaentretanto uma unidade de pontos de vista dentre seus representantes? Na verda- de, como todos esses pensadores partiam do pressuposto do respeito à individualidade de cada um, houve inúmeras correntes diferentes den- tro do humanism o, cada qua l pretendendo interpretar a mensagem dos antigos e o estudo da realidade atual a partir do ponto de vista que lhe parecesse mais adequado. Isso deu srcem a diversas tendências do mo- vimento, que se distinguiam entre si quer pela tradição fi losófica da An- tiguidade a que se ligavam (platonismo, aristotelismo), quer pela temá- tica que abordavam de preferência (estudo da natureza, estudo da histó- ria, estudo da personal idade humana , estudo da m atéria religi osa), quer pela prática a que se dedicavam (política, pesquisa científica, arte, poe- sia). O q ue não qu er dizer que vários pensadores não te nh am explorado mais de uma dessas tendências simultaneamente, o que, aliás, parecia ser a postura mais comum. O palco mais prodigioso da efervescência renascentista foi sem dúvi- da a riquíssima cidade italiana de Florença. Ali se definiu desde cedo uma das mais significativas correntes do pensamento humanista: o pla- tonism o, cheio de conseqüências para to da a história das idéias e da arte do período. Introduzido por Nicolau de Cusa, o platonismo ganharia força e um efeito decisivo sobre a produção cultural desse período graças à atuação da Academia de Florença, onde se destacavam como seus grandes divulgadores Marsilio Ficino, Pico Delia Mirandola, Policiano e Luigi Pulei. O aspecto mais característico e notável do platonismo flo rentino consistia no seu espiritualismo difuso, condensado na filosofia da beleza. Todo o belo é uma manifestação do Divino. Assim sendo, a exaltação, o cultivo e a criação do belo consistem no mais elevado exercí- cio de virtude e no gesto mais profundo de adoração a Deus. A produ- ção do belo através da arte é o ato mais sublime de que é capaz o ho- mem . Mas a arte não é a mera imitação da nature za e sim sua su peração no sentid o da perfeição absoluta. Um a tal superação d a nat ure za só seria possível por um conhecimento mais rigoroso de suas leis e propriedades, que permitisse transpôla com a máxima harmonia nas obras de arte através da elaboração matemática precisa. Os rivais mais próximos dos florentinos eram os intelectuais da Es- cola de Pádua, ligados à tradição aristotéiica. Estando sob a influência da república independente de Veneza, onde a força da Igreja fora há muito minim izada, Pádua tornouse um centro de estudos volta do prin cipalm ente para a medicina e os fenôme nos naturais, desligado de preo- cupações teológicas. Por essa razão, o aristotelismo dos paduanos não se ligava ao racionalismo de fondo teológico de São Tom ás de Aq uino , co- mum nas Universidades européias, mas ao racionalismo naturalista de Averróis, o grande comentador árabe da obra de Aristóteles. Nessa li- 18 nha, eles desenvolveram um pensamento e uma atividade voltados para o estudo e a observação da natureza, acompanhado de experimentos e de pesquisa empírica, fundando assim um procedimento que poderia- mos já de nomina r de cien tífico e cujos desdob ramentos nos traz em até a época contemporânea. Seus maiores representantes foram Giacomo Za barella e Pietro Pomponazzi, mas não podemos esquecer que estudiosos como Copérnico, W illiam Harvey e Gaiileu tiveram tam bé m seu per ío- do de trabalho junto à Universidade de Pádua. Os paduanos levaram seu natur alis mo a pon to de rom per c om alguns dos dog mas fun da men - tais da Igreja, acreditando, junto com Averróis, na supremacia natural da razão, neg and o a criação, a im ortalidad e da alma e os mil agres. Essas atitu des eram extre mam ente ousa das para a épo ca, e levaram os livros de Pomponazzi a serem queimados em praça pública e Gaiileu a escapar por pouco da mesma fogueira. O desenvolvimento de uma atitude que hoje se podería chamar de científica deve ser compreendido, portanto, como um aspecto indisso- ciável de todo o conjunto da cultura renascentista. Se com Copérnico a astronomia e a cosmologia eram ainda um campo teórico, mais explora- do pela matemática e pela reflexão dedutiva, com Gaiileu e Kepler, pouco mais de 50 anos após, elas já eram objeto de observações sistemá- ticas e apoiadas por instrumentos e experimentos arrojados. A mesma y . Mecanismo de =■ relógio movido a peso projetado por Da Vinci (faltam algumas partes). 19 evolução ocorre nos demais domínios do saber: Vesãlio funda as bases da moderna anatomia através de suas dissecações de cadáveres; William Harvey demonstra o mecanismo da circulação sanguínea através da ob- servação direta e da comprovação empírica; Agrícola desenvolve pesqui- sas mineralógicas diretamente aplicáveis às técnicas de prospecção e mi- neração; Leonardo da Vinci elabora pesquisas teóricas e projetos práticos nos campos da hidráulica e da hidrostática; o mesmo faz Brunelleschi com a arquitetura e as técnicas de construção. Os exemplos são intermináveis. A palavra de ordem dentre esses es- tudiosos era o ab ando no das velhas autoridades e preconceitos e a ace ita- ção som ente daq uilo que fosse possível comprovar pe la observação dire- ta. Paracelso, o maior experimentalista do período, renegou completa- mente o saber dos liv ros e das universidades, v ivendo isolado jun to à na- tureza nu ma investigação inc ansável de todos os fenô menos que lhe cha- mavam a atenção. Tratavase da fundação de um a no va concepção do sa- ber, completamente aversa aos dogmas medievais e voltada toda ela pa- ra o homem e para os problemas práticos que seu momento lhe coloca- va. A avidez de conhecimentos se torna tão intensa como a avidez do poder e do lucro, e na verdade as três passam a estar indissociavelmente ligadas na nossa sociedade. Religião Renovada e Ordem Política Estável No campo da fé, a interiorização e individualização da experiência religiosa eram também exigências peculiares aos humanistas, que luta- vam por uma religião renovada. O chamado humanismo cristão, ou filo- sofia de Cristo, desenvolveuse principalmente no Norte da Europa, centralizado na figura de Erasmo de Rotterdam e de seus companheiros mais próximos, como Thomas M orus e Jo hn Colet. A obra de Erasmo, o Elogio da Loucura, constitui o texto mais expressivo desse movimento. Todo repassado de fina ironia, ele ataca a imoralidade e a ganância que se haviam apossado do clero e da Igreja, o formalismo vazio a que esta- vam reduzidos os cultos, a exploração das imagens e das relíquias, o pa- lavrório obscuro dos teólogos, a ignorância dos padres e a venda das in- dulgências . Segundo essa corrente, o Cristianismo deve ria centrarse na leitura do Evangelho (Erasmo publicou em 1516 uma edição do Novo Testamento, apurada pela crítica filológica), no exemplo da vida de Cristo, no amor desprendido, na simplicidade da fé e na reflexão inte- rior. Era já o anseio da reforma da religião, do culto e da sensibilidade religiosa que se anunciav a e que seria desfechada d e form a radical, frac cionando a cristandade, por outros humanistas, como Lutero, Calvino e Melanchton. Um outro tipo de preocupação comum aos renascentistas dizia res- peito às leis que regiam o destino histórico dos povos e o processo de for- mação de sistemas estáveis de ordem política. Essa especulação se confi- gurou com maior nitidez sobretudo nas cidades italianas, onde os perío- 20 dos de ascensão e declínio da hege mon ia das várias repúb licas oscilavam constantemente e onde as formas republicanas, desde o século XIV, vi- nham sendo ameaçadas pela força de oligarcas e ditadores militares, os condottien. Os paduanos Albertino Musato e Marcílio de Pádua, já por volta do início do século XIV, consideravam que eram os homens e não a Providência Divina os responsáveis pelo sucesso ou o fracasso de uma comunidade civil em organizarse, prosperar e expandirse. Marcílio ia ainda mais longe e insistia em que a comunidadecivil se constituía comvistas à realização e à defesa dos interesses de seus membros, em cujas mãos, em última instância, repousava todo o poder político. Assim sen- do, nem os homens existiam e se reuniam para adorar a Deus, nem era ele o fundamento de toda autoridade. Surge, pois, uma concepção so- cial e uma teoria política completamente materialistas e utilitárias. Na geração seguinte, de meados do século XIV ao início do XV, se- riam os florentinos que fariam avanços nessas posições. Lutando contra os avanços de Milão ao Norte e com conflitos sociais internamente, os chanceleres humanistas de Florença, Coluccio Salutati e Leonardo Bru ni, revivem a lenda de que a cidade era a ‘‘filha de Roma” e a herdeira natural de sua tradição de liberdade, justiça e ardor cívico. Conclamavam assim seus concidadãos a lutarem pela preservação dessa tradição, pois se a autoridade políti ca desmorona sse e a cidad e p er- desse a independência, o segredo da civilização superior de Florença, seu respeito às liberdades e iniciativas individuais e a seleção dos melhores talentos seriam corrompidos pelo s “ bárbaros” . O fim de Florença seria o fim da cultura humanista e o fim do homem livre. Foi esse o mesmo medo que levou Maquiavel a escrever o seu O Príncipe, um a espécie de manual de política prática, destinado a instruir um estadista sobre como conquistar o pod er e como mantêlo indifer ente às norm as d a ética cristã tradicional. Para Maquiavel, a única forma de garantir a paz e a prospe- ridade da Itália, ameaçada pelas lutas internas e pela cobiça simultânea dos monarca s do Impér io Alemão, da França e da Espan ha, seria a un ifi- cação nacional sob a égide de um líder poderoso. Os Utopistas A reflexão histórica e social e a ciência política, como se vê, nasce- ram juntas no Renascimento, num encontro que não foi meramente ca- sual. Desse mesmo cruzamento de interesses nascería urna outra corren- te de pensamento tão srcinal quanto ousada: os utopistas. As obras mais notáveis nesse gênero são a Utopia (1516) de Thom as Morus, a Ci dade do Sol (1623) de Campaneila e a Nova Atlântida de Francis Baco n. As três obr as tratam do mesmo tema: concebem um a com un ida de ideal , puramente imaginária, onde os homens vivem e trabalham felizes, com fartura, paz e mantendo relações fraternais. Todas essas comunidades contam com um poder altamente centralizado, porém justo, racional e inspirado, o que o torna plenamente legítimo e incontestável para os 21 mem bros da sociedade. Essas utopias refletem mod elos basicamente ur E banos, dispostos numa arquite tura geométrica em que cada detalhe obedece a um rigor matemático absoluto. Nessas comunidadesmodelo, a harmonia socia! deve ser uma derivação da perfeição geométrica do es- paço público. Por trás desses projetos utópicos, o que se percebe é um desejo de abolição da imprevisibilidade da História e da violência dos conflitos sociais. Seus autores revelam um nítido desejo de planificação total das relações sociais e produtivas e a perpetuação da ordem política racional. Um sonho muito caro para a camada que se arrogava agora o monopólio da razão. Como se pode perceber, são múltiplos os caminhos do pensamento renascentista e certamente a variedade, a pluralidade de pontos de vista e opiniões, foi um dos fatores mais notáveis da sua fertilidade. Grande parte das trilhas que foram abertas aí, nós as percorremos até hoje. É inútil querer procurar uma diretriz única no humanismo ou mesmo em todo o movimento renascentista: a diversidade é o que conta. Fato que, de resto, era plenamente coerente com sua insistência sobre a postura crítica, o respeito à individualidade, seu desejo de mudança. A concep- ção de que tudo já está realizado no mundo e que aos homens só cabem duas opções, o pecado ou a virtude, não faz mais sentido. O mundo é um vórtice infinito de possibilidades e o que impulsiona o homem não é representar um jogo de cartas marcadas, mas confiar na energia da pura vontade, na paixão de seus sentimentos e na lucidez de sua razão. En-fim, o homem é a medida de si mesmo e não pode ser tolhido por re- gras, deste ou do outro mundo, que limitem suas capacidades. E se cada indivíduo é um ser contraditório entre as pressões de sua vontade, de seus sentimentos e de sua razão, cabe a cada um encontrar sua resposta para a estranha equação do homem. As disputas, as polêmicas, as críti- cas entre esses criadores são intensas e acaloradas, mas todos acatam cio- sos a lição de Pico Delia Mirandola: a dignidade do homem repousa no mais fundo da sua liberdade. 22 3. a nova concepção nas aríes plásticas Sempre que se evoca o tema do Renascimento, a imagem que ime- diatamente nos vem à mente é a dos grandes artistas plásticos e de suas obras mais famosas, amplamente reproduzidas e difundidas até nossos dias, como a “ Monali sa” e a “ Ültima Ce ia” de Leonardo da Vin ci, o “Juízo Fina l” , a “ Pie tà” e o “ Moisés” de Michelangelo , assim como as inúmeras e suaves 1‘Madonas” de Rafael que permanecem ainda como o modelo mais freq üente de represent ação da mãe de Cristo. Iss o nos colo- ca a questão: por que razão o Renascimento implica esse destaque tão grande dado às artes visuais? Como veremos, de fato, as artes plásticas acabaram se convert endo n um centro de convergência de tod as as princi- pais tendências da cultura.renascentista. E mais do que isso, acabaram espelhando, através de seu intenso desenvolvimento nesse período, os impulsos mais marcantes do processo de evolução das relações sociais e mercantis. Conforme verificamos, a nova camada burguesa, pretendendo im porse socialmente, precisava combater a cultura medieval, no interior da qual ela aparecia somente como uma porção inferior e sem importân- cia da população. Era, pois, necessário construir uma nova imagem da sociedade na qual ela, a burguesia, ocupasse o centro e não as margens do corpo social. Assim sendo, as grandes famílias que prosperavam com os negócios bancários e comerciais e os novos príncipes e monarcas come- çam a utilizar um a parte da sua riqueza pa ra a construção de palácios no centro das cidades; igrejas, catedrais e capelas, na entrada das quais co- locavam seus brasões e em cujo inte rior ente rrav am seus m ortos ; estátuas 23 gigantescas colocadas nas praças e locais públicos com as quais homena- geavam seus fundadores e seus heróis; e de resto quadros, gravuras, afrescos, que adornavam os recintos particulares e alguns prédios públi- cos, em q ue costumavam apar ecer em grand e des taq ue em meio aos san- tos ou às cenas do Evangelho, ou mesmo retratados em primeiro plano, predominando sobre um a cidade ou um a vasta região que aparecia em ponto menor ao fundo. Esses financiadores de uma nova cultura — burguesia, príncipes e monarcas — eram chamados mecenas, isto é, protetores das artes. Seu objetivo não era somente a a utopromoçã o, m as tam bé m a propagan da e difusão de novos hábitos, valores e comportamentos. Mais do que sua imagem, que podia ou não aparecer nas obras, o que elas deveríam vei- cular era uma visão racionai, dinâmica, progressista, otimista e opulenta do mu ndo e da socieda de. Uma vi são na qu al o modo de vida e os valo- res da burguesia e do poder centralizado aparecessem como única forma de vida e conjunto de crenças mais satisfatório para todas as pessoas. Essa ............... Stí.jB Monalisa — Leonardo da Vinci. 24 luta cultural deve ser compreendida, portanto, como uma das dimen, sões da luta d a burg uesia para afirmar se dia nte do clero e da nob reza e de seus ideais de submissão piedosa e da cavalaria medieval. A produção artística, portanto, acaba se tornando um dos focos principais desse confronto. As atividades e os campos de reflexão que mais preocupavam os pensadores renascentistas aparecem condensados nas artes plásticas: a filosofia, a religião, a história, a arte, a técnica e a ciência. Acompanhando a intenção da burguesia de ampliar seu domí- nio sobre anatureza e sobre o espaço geográfico, através da pesquisa científica e da invenção tecnológica, os cientistas também iriam se atirar nessa aventura, tentando conquistar a forma, o movimento, o espaço, a luz, a cor e mesmo a expressão e o sentimento. A arte renascentista é uma arte de pesqu isa, de invenções, in ovações e aperfeiço amen tos té cn i- cos. Ela acom panh a paralelamente a s conquist as da físi ca, da m ate máti- ca, da geometria, da anatom ia, da engenharia e da filosofi a. Bast a lem - brar a invenção da perspectiva matemática por Brunelieschi, ou seus ins- trumentos mecânicos de construção civil, ou os instrumentos de enge- nharia ci vil ou militar inventados por Leonardo da Vinci, ou as pesquisasanatômicas de Michelangelo, ou o aperfeiçoamento das tintas a óleo pe- los irmãos Van Eyck, ou os estudos geométricos de Albrecht Dürer, en- tre tantos outros. A Arte Medieval Mas, para que se possam destacar as peculiaridades da arte renas- centista, conviría antes que se apresentasse uma indicação breve e ele- mentar das características da arte medieval, com a qual ela iria formar um vivo contraste, tomandoa como um padrão de exclusão, ou seja, considerandoa como o conjunto de valores técnicos, estéticos e filosófi- cos a serem negados. A arte mais típi ca da cultura m ediev al d o Ocide nte europeu foi o estilo românico. Denso, pesado, com suas catedrais em forma de fortalezas militares — o qu e de fato eram — os artistas do ro - mânico representavam as imagens de um po nto de vista s imbólico, a bs- trato, sem qualquer consideração para com as características reais das coisas e dos seres representados, tais como tamanho, volume, forma, proporções, cor, movimento, etc. Suas figuras, exclusivamente religio- sas, eram estáticas, de formas e expressões invariáveis, de volumes e di-mensões uniformes, apareciam sobretudo nas esculturas e relevos que faziam parte da própria arquitetura das catedrais e dos monumentos mortuários, d aí seu aspecto sólido e maciço, como q ue con stitu ind o p e- quenos pilaretes perdidos no conjunto da constmção arquitetônica. As figuras eram chapadas contra o fundo, quase que suprimindo a idéia de espaço. Uma arte estática, rústica, inalterável e sagrada, como a socieda- de que ela representava. 25 O românico prevaleceu por toda a Alta Idade Média, mas na última fase do período medieval aparece o gótico, uma arte de raiz germânica e que, por tanto, pen etr a pelo Norte da Europa. Se bem que mante nha al- gumas características do românico, o estilo gótico traz consigo a leveza e a delicadeza das miniaturas e o policromatismo da arte autenticamente popular. Sua difusão ajuda a romper com a rigidez do românico e as ca- tedrais g anha riam um a nova concepção, baseada n a leveza dos arcos ogi vais e na s utileza da iluminação d os vitrais, dinâmic os e multicoloridos. Começavase a ganhar em termos de espaço, movimento, luz e cor. A região da Península Itálica, ao sul, entretanto, permanecia ainda sob a forte influência da arte bizantina, presa, pois, a uma concepção iconizada da imagem, exclusivamente religiosa e rigorosamente ligada a normas fix as de composição como o hieratismo (form a rígida e majesto sa imp osta por um a tradição inv ariável), a fron talid ade (obrigação de só re- presentar as imagens de frente), o tricromatismo (normalmente o azul, o dourado e o ocre), a isocefalia (todas as cabeças de uma série com a mesma altura), a isodactilia (todos os dedos de uma mesma mão com o mesmo tamanho) e a hierarquia dos espaços (com o destaque variando Igreja em estilo românico com detalhes de escultura: NotreDam e - La - Grande. 26 Arquitetura em estilo gótico com arcos e vitrais: Sainte das figuras mais sagradas para as menos sagradas). Mais do que normas, esses requisitos da imagem eram dogmas religiosos, rompêlos era sacri- légio, acarretando a destruição da obra e a punição do artista. De qualquer forma, nesses três estilos, a arte era concebida como um instrumento didático. Num universo social de analfabetos (pratica- mente só o clero sabia ler e escrever), eram as imagens, vistas pelos fiéis por dentro e por fora, ao longo de toda a igreja, que transmitiam e repe- tiam imutáveis as lições da teologia cristã. A arte não tinha, pois, um fim em si mesma e não guardava n enhuma relação necessár ia com a rea- lidade concreta e cotidiana do mundo; ao contrário, era preciso trans- cender as imagens para além delas encontrar a doutrina e a verdadeira salvação. As imagens era m apenas uma inspira ção e um con vit e pa ra qu e a meditação se d irigisse ao mu nd o espir itual e celestial, o ún ico qu e c on - tava, guiada pela palavra do clero e assegurada pelo braço da nobreza. 27 .! Mosaico da Capela Palatina: ícone bizantino. Norte da Itália: Berço do Renascimento Devido a suas condições históricas particularmente favoráveis, con- forme já vimos, a região do Nor te da Itália p ode ser considerada como o berço da arte renascentista. Um variado cruzamento de influências con- correu para esse fi m . O desenvolvi mento da espiri tualid ade franci scana junto aos grupos populares, envolvendo uma at itude mística e ascética, porém voltada para a realidade material do mun do , a contemplação da natureza, o otimismo da vida e a beleza dos elementos. A difusão do neoaristotelismo nos meios cultos a partir da Escola de Pádua. A pene- tração do gótico através da intensificação das trocas comerciais com o Norte da Europa. O aum ento da curiosidade pela arte e cultura clássica a partir do surgimento do humanismo. Por toda parte, a palavra de or- 28 dem era ‘ ‘viver mais pe lo sentido do que pelo e spírito’ ’. Com base nesse jogo de fatores, mestres pintores como Cimabue e Duccio, já na segun- da metad e do século XIV, p assaram a dar a suas imagens um toq ue mais humanizado, dando maior expressão às figuras, demonstrando ainda a preocupação de produzir um a certa ilusão de espaço e movimento em suas composições. O sucesso alcançado por sua arte foi imediato, ela vi- nha de encontro à nova sensibilidade das camadas urbanas e com elas iniciouse o dolce s til nuovo (doce estilo novo). O primeiro grande mestre desse estilo, porém, seria Giotto. Elabo-rando o universo dinâmico e colorido do gótico com a noção de paisa- gem típica da arte bizantina e o frescor humano e naturalista da sensibi- lidade franciscana, esse pintor criaria uma arte srcinal que encantou os homens d e seu tem po . As person agens de sua s pin tura s preserv avam sua individualidade, tendo cada qual traços fisionômicos, vestes e posturas diferenciadas e sempre muito expressivas de seu estado de espírito. Giotto procurava ainda destacar o volume de suas imagens em toda a grandeza de sua tridimensionalidade. E temos aí o fato mais prenhe de conseqüê ncias: ao definir o volum e tridimen siona l de suas figuras, Giot- to teve que desenvolver uma concepção mais nítida de espaço, dando um efeit o de profu ndida de em suas compo sições. Ro mp ia ass im com o tradicional fundo dourado, contra o qual as figuras góticas e bizanunas ficavam chapadas, o que eliminava a noção de espaço, reduzindo a figu- ração a um plano bidimensional e fechado. Essa nova concepção do es A morte de São Francisco de Asssis (detalhe) — Giotto. I paço em profundidade, ou em perspectiva, será o eixo de toda a nova pintura praticam ente até fins do século XIX. Inovações semelhantes a essas apareciam quase que simultaneamente na Boêmia, na Alemanha, na França e na Flandres, em parte como evolução do gótico e em parte como imitação da pintura italiana. Seus introdutores no norte seriam mestres como Dirk Barts, Petrus Christus, Bertram, Francke e principal- mente os irmãos Limbourg e Jan Van Eyck. Perspectiva Intuitiva Segundo o comentário do pintor Albrecht Dürer, a expressão pers- pectiva significa “ ver através” . Essa impressão inéd ita de olharse para uma parede pintada e parecer que se vê paraalém dela, como se ali ti- vesse sido aberta uma janela para um outro espaço, o espaço pictórico, era o princip al efeito buscado pel os novos artistas. A pi ntu ra tra diciona l, gótica ou bizantina, praticamente se restringia ao plano bidimensional das paredes, p roduz indo no máximo um efeito decorativ o. O novo esti - lo artístico multiplicava o espaço dos interiores e, com a preocupação de dar às pessoas, objetos e paisagens retratados a aparência mais natural possível, parecia multiplicar a própria vida. Uma arte desse tipo impres- sionava muito mais os sentidos que a imaginação, convidava muito mais ao desfrute visual do que à meditação interior. Era uma arte que remetia o homem ao próprio hom em e o induzia a um a identif icação m aior co m seu meio urbano e natural, ao contrário dos estilos medievais que pre- dispunham as pessoas a penetrarem nos universos imateriais das hostes celestiais. A arte renascentista, portanto, mantinha uma consonância muito maior com o modo de vida implantado no Ocidente europeu com o incremento das relações mercantis e o desenvolvimento das cidades. 30 Técnica do “ Olho Fixo” Contudo, as técnicas de perspectiva introduzidas por Duccio, Giot to e pelos mestres francoflamengos careciam ainda de um acabamento mais rigoroso, já que nem todas as dimensões do espaço retratado se subm etiam à mesm a orientação de pro fun dida de. Sua técnica foi por is- so denominada perspectiva intuitiva. A invenção da perspectiva mate- mátic a, ou “ perspec tiva exata” , em q ue todos o s pontos do esp aço re- tratado obedecem a uma norma única de projeção, deveuse com uma grande dose de certeza a Filippo Brunelleschi, arquiteto florentino, por volta de 1420. Baseado no teorema de Euclides, que estabelece uma re- lação matem ática proporci onal entre o o bjeto e sua representação pictó - rica, Brunelleschi instit uiu a técnica do “ olho fixo” , que obs erva o espa- ço como que através de um instrumento óptico e define as proporções dos objetos e do espaço entre eles em relação a esse único foco visual. As- sim, o plano do quadro é interpretado como sendo um a “ intersecção da pirâmide visual’ ’ cujo vértice consiste no olho do pin tor e a base na cenaretratada, estabelecendose desse modo uma construção geométrica ri- gorosa, cujos elementos e cujas relações são matematicamente determi- nados. Esse método obteve de imediato uma tal aceitação dos pintores, por sua qualidade de lhes propiciar um total controle do espaço repre- sentado, q ue foi denominado “construção legítim a” . Ele seria aperfei- çoado pelo arquiteto Leon Battista Alberti em seu Tratado de Pintura de 1443, que simplificaria o trabalho do pintor, propondo a elaboração da perspectiva em função de dois esquemas básicos: planta e elevação, que são depois combinados para produzir o efeito de profundidade deseja- do. Assim facilitado, o método se difundiría com notável rapidez e se tornaria uma das características fundamentais da arte renascentista e de todo o Ocidente europeu até o início de nosso século. Como efeito da utilização dessa perspectiva central, ou perspectiva linear, todo o espaço pictórico fi ca subordin ado a um a ún ica diretri z vi- sual, representa da pel o pon to de fug a, ou sej a, qua nto maior a distânci a com que os objetos e elementos são percebidos pelo olhar do pintor, tanto menores eles aparecem no quadro, de forma que todas as linhas paralelas da composição tendem a convergir para um único ponto no fundo do quadro, que representa o próprio infinito visual. Obtémse as- sim uma completa racionalização do espaço e das figuras pintadas que dá aos quadros um tom de uniformidade e homogeneidade em que na- da, nem o mínimo detalhe escapa ao controle geométrico matemático do arti sta. A imag em fica claramente def inida em funç ão desses dois re- ferenciais básicos: o “ olhar fixo” do pinto r fora do qua dr o e o po nto d e fuga no seu fund o. Que m quer que obser ve a obra dev erá col ocarse exa- tamente na posiçã o do olhar do artista e terá sua observa ção dirigida n e- cessariamente pela dinâmica qu e o ponto de fuga imp õe à totalid ad e da obra. Ã liberação do olhar do artista corresponde, desse modo, a subor- 31 dinação d o olh ar do observ ador, a quem só fica abe rta a possibilida de de uma única leitura da obra. A essa altur a a composição de um a obr a pictórica implicava um a tal sofisticação que não estava mais à altura do artesão comum. De fato, a elaboração d a perspectiva linea r envolvia necessariam ente o dom ínio de noções bastante profundas de matemática, geometria e óptica. As dife- renças de coloração impostas pela profundidade (quanto mais distantes os elementos representados, mais opacos e diluídos eles ficam), os jogos de luz e sombra, de tons e meiostons, im pu nh am po r sua vez um estu- do minucioso do fenômeno da luz, do reflexo, da refração, das cores e, portanto, das tintas, dos pincéis e das telas. A representação realista da figura hum ana , por sua vez, exigia um domínio com pleto sobr e a anat o- mia do corpo, os recursos do movimento e a psicologia das expressões. Nessas condições, o p in tor já não era um artesão, mas um cientista com- pleto, como Leonardo, Michelangelo, Dürer e tantos outros. Abrese um enorme fosso entre a arte voltada para a elite e presa a todos esses procedimentos científicos e a arte popular, a que se hab ituou chamar de primitiva. Arte e Ciência Brunelleschi foi o primeiro a exigir que as artes plásticas saíssem do universo do artesanato e entrassem para o círculo da cultura superior, junto à poesia, à filosofia, à teologia, à matemática e à astronomia. E não era sem sen tido sua exigência. Com efeito, pod em os verificar que o desenvolvimento artístico acompanhava paralelamente o desenvolvi- mento científico. O esforço de toda nova astronomia de Copérnico, Ni colau de Cusa e Galileu era no sentido de contestar a hierarquização e a finitude do espaço cósmico, conforme proposto por Aristóteles e Ptolo meu e reiterad o pela Igreja. O sonho desses astrônom os, nas palavras de Descartes, era reduzir a ciência astronômica à matemática e demonstrar a definição incomensurável do espaço e dos corpos estelares. Ora, o que fizeram os pin tores com a introdução da técnica da p erspec tiva linear foi justamente a redução do espaço pictórico a um conjun to de relações ma- temáticas e a sua projeção para o infinito indicado pelo ponto de fuga, ao invés do espaço fechado do mundo gótico e bizantino. Não havia mais como separar a arte e a ciência, ambas representavam a vanguarda da aventura burguesa da conquista de um mundo aberto e de riquezas infinitas. Um fato notável e que não pode ser tomado como meramente ca- sual é que dois dos maiores perspectivistas do Renascimento, Brunelles- chi, o criador do méto do , e Dürer, que escreveu os mais completos trata- dos sobre a teoria das proporções humanas, haviam sido relojoeiros e ti- nham u ma longa p rática na cons trução de relógios. Da í sua grande habi- lidade com o cálculo, o projeto, a mecânica e a precisão rigorosa. A visão fixa e monocu lar po r sua vez tornouse uma prática h ab itua l com a utili- 32 zação de instrumentos ópticos de srcem árabe, destinados à mensura ção geométrica e cálculo m atem ático, como a alidade , utilizados p or as- trônomos, engenheiros, arquitetos, construtores civis e navais, relojoei- ros, navegadores e matemáticos. A perspectiva linear, portanto, deriva- va de uma série de práticas e procedimentos que já se haviam tornado habituais para a nova dite burguesa. Eis porque ela assimilou de ime- diato essa forma de representação do espaço e passou a considerála co- mo a única forma exata e possível. Tratavase, no entanto, apenas de uma possibilidade dentre várias. A perspectiva linear absolutamente não corresponde à complexidade psicofisiológica da visão humana. Para começar, a visão hum ana é bifo- cal e não monocular; ela é tam bém dinâmica — form and o imagens atra - vés de movimentos constantes — e não fixa, e devido ao for mato esferói de do globo ocular, percebe a realidade através de planos curvos e não retilíneos, como na perspectiva geométrica. A grande vantagem desse método para os pintores renascentistas consistia no princípio da unidade nele implícito. O espaço na arte medieval era criado pela justaposição de imagens, comp osta em paralelismos coord enados ou e m se qüên cia livre, de forma que o observador deveria movimentarse o tempo todo para observar o conjunto, mudando sempre seu foco óptico. Já o espaço da arte renascentista é rigorosamente concen trado, sen do a visão de conju n- to da obra sim ultânea e não desdobrada como no outro. O seu pr incípi o fundamental é, pois, o da unidade e da unificação: unidade de espaço, unidade, de tempo, unidade de tema e unidade de composição sob os cânones unificados das proporções. Nada mais adequado a um mundo marcado pelos esforços da unificação: unificação política sob as Monar- quias nacionais, unificação geográfica através do m ap ea men to de todo o globo terrestre, unificação da nature za sob o prim ado das leis universais. Criação Individualizada Esse zelo racional totalizante de que os artistas pretendem cercar as obras de arte é uma indicação segura da conceoção da arte científica que se srcina com Bru nelleschi e principalm ente com Alb erti, o prim eiro a teorizar que a matemática é o terreno comum da arte e da ciência. Nasce daí um novo orgulho do artista — a pretensão de desfrutar de uma dig- nidade social e cultural superior. Do âmago de sua liberdade ele escolhe o ponto de vista qu e vai fixar na tela para o r egalo dos ob servadore s. Se, graças à criação do esp aço pictórico pro duz ido pela técn ica da pe rsp ecti- va, a pintura aparece como uma janela aberta para o mundo, a ele cabe decidir onde deve abrir essa janela e que cena deve mostrar. Assim sen- do, a criação artística tornase livre e cada artista tornase um criador in- dividualizado. Brunelleschi foi o primeiro a romper ruidosamente com as corporações de ofíc io, joga ndo todo o peso de sua co mpetên cia con tra os regulamentos medievais: a adminis tração da cidade o pto u pelo arqu i- teto e mandou os mestres que o perseguiam para a cadeia. 33 E se a geração de BruneJleschi ainda se encontrava sob a tutela de mecenas como Cosme de Médici, que dominava Florença e encomenda- va trabalhos aos artistas, seu neto, Lourenço de Médici, dito o Magnífi- co, preferia comportarse como colecionador, comprando obras de arte livremente elaboradas e vendidas pelos artistas em seus ateliês. Isso au- men tava aind a mais a liberd ade dos artistas, reforça va sua individ ualida - de e consagrava a formação de um mercado de obras de arte nas grandes cidades. Livre das guildas, preservando sua autonomia ante os mecenas, confirmados na sua individualidade, os artistas se esforçam para conse- guir melhor posição social. Filarete passa a exigir que todos os artistas as- sinem seus quadros, que assim se tornavam a expressão da individuali- dade de seu criador, mas também um valor de mercado, pois o valor dos quadros passa a ser medido também pelo prestígio de sua assinatura. Os pintores pela primeira vez ousam pintarse a si mesmos, privilégio antes só reservado a os santos, aos n obres e aos grand es burgueses. Gh ibe rti es- creve a primeira autobiografia que se conhece de um pintor e Vasari as primeiras biografias dos grandes artistas de seu tempo. Ticiano conquis- ta títulos d e no brez a e freq üenta os círculos mais arist ocráticos. É conhe - cida a história, verdadeira ou não, de que o Imperador Carlos V se abai- xou para apanhar um pincel caído das mãos de Ticiano. É a imagem do mecenas se submetendo ao artista. Tal é seu prestígio social já em mea- dos do século XV, que eles se tornam nomes da moda, o que lhes dá maior valor de mercado e maior prestígio a seus compradores e proteto- res, reforçando todo o ciclo. Mas essa espiral crescente de valorização da arte e do artista, como o reforço de uma sociedade individualista e suntuosa, não poderia deixar de ter conseqüências para ambos. Por exemplo, no que se refere ao rit- mo de produção. Qua nto mais rápido u m artista pro du z, maio res enco- mendas recebe, poi s a rapidez de entrega se torna ta mb ém um valor de mercado. Mas para que produza tão rápido é preciso que racionalize a produção das obras através da divisão social do trabalho. Assim sendo, vários artistas e aprendizes participam da composição de uma mesma obra de que o artista pouco mais faz do que o esboço geral e assinatura final. Esse processo certamente aumenta seus dividendos, porém reduz sua espontaneidade e sua individualidade. Alguns tentam resistir a essa situação, exigindo um ritmo própriode trabalho e produção, como Leonardo da Vinci, que dizia: “o pintor deve viver só, contemplar o que seus olhos percebem e comunicarse consigo mesm o” . Mas o tempo e o espaço da contem plação não existem mais numa sociedade de concorrência brutal, de ritmo frenético e de profund a divisão social do trabalho. E se o artista pretend e recuperálo, só poderá fazêlo isolandose como Michelangelo e Tintoreto, que não admitiam ninguém no seu ambiente de trabalho e tornaramse homens terrivelmente sós . A solidão irremediável do artista mo dern o é um passo para seu encerramento na torre de marfim de seu ofício e seu mergulho na alienação completa. A alienação e a angústia por sua vez são a fonte 34 da angústia do homem dividido e fragmentado, preso à liberdade de sua individualidade, essa herança desconfortável que todos trazemos do hom em moderno e que é a marca própria da m ode rnida de. Dela na sceu a terribilità tão falad a do com portame nto de M ichelangelo, pelo s eu ca- ráter atormentado e sua arte tensa, pois ele foi o homem para quem a consciência dessa divisão e fragmentação assumiu um caráter agudo, num tempo trágico, marcado pelo movimento reformista, pela invasão e saque de Roma sob as ordens do imperador da Alemanha e pela crise da econo mia italiana diante das navegações ibéricas. Com ele tam bém a ar- te renascentista se transforma no maneirismo, e a placidez racional da ‘ ‘Últim a Ceia’’ de Leonardo dá lugar à turb ulê nc ia em ocion al in contid a do “Juízo Final’’ da Capela Sistina. 35 .. .............. 4. literatura e teatro: a criação das línguas nacionais ■ O marco mais significativo da criação da literatura moderna é um tanto ambíguo. Tratase da Divina Comédia de Dante Alighieri (1265 1321). Dizemos que é um marco ambíguo, porque, assim como as ima- gens de Giotto, a literatura de Dante guarda intocadas inúmeras carac- terísticas da mentalidade e da expressão medievais. A Divina Comédia consiste na realidade n um longo po em a épico, compo sto de 100 cantos e organizado em tercetos (grupos de três versos cada) decassílabos. A obra tem um conteúdo simbólico e místico, bem ao gosto medieval e narra a trajetór ia alegórica de Dante que, perdido nu ma floresta terre na, dali é tirado pelo poet a latino Virgílio, qu e o guiaria pelo reino dos mor- tos, através do inferno e do purgatório, até o paraíso, onde o entrega à salvação nas mãos de sua amada Beatriz. Ao longo de seu percurso, Dante tem a oportunidade de transmitir toda a concepção da ordem do mundo, da criação, da queda e da salvação final que consubstanciavam a teologia cristã e apresentála numa narrativa orgânica e inspirada tal como recomendavam as diretrizes da filosofia escolástica, na qual ele se baseou rigorosamente. O que pode ter de moderno um tal poema? Praticamente nada e praticamente tudo. A obra é provavelmente a síntese mais bem acabada de todos os valores que nortearam o mundo medieval. Mas traz consigo também os prenúncios dos fundamentos em que irá se basear a civiliza- ção moderna. Para começar, porque o poema é escrito em dialeto tosca no e não mais em latim, como era o hábito na Idade Média. Para conti- nuar, porq ue os guias de Da nte nessa travessia sacra e simbólica s ão um 36
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