Prévia do material em texto
câíl Editora uçp Átomo DIRETOR GERAL Wilon Mazalla Jr. COORDENAÇÃO EDITORIAL Willian F. Mighton COORDENAÇÃO DE REVISÃO E COPYDESK Helena Moysés REVISÃO DE TEXTOS Giovana Aparecida Tartari EDITORAÇÃO ELETRÔNICA Adriane Bergantin da Silva Camila Lagoeiro Fabio Diego da Silva Gisele de Cássia Ribeiro Amaral Tatiane de Lima CAPA Ivan Grilo Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Libânio, Marcelo Fundamentos de qualidade e tratamento de água/ Marcelo Libânio. - - Campinas, SP: Editora Átomo, 2010. 3a Edição Bibliografia 1. Água 2. Água - Estação de tratamento - Equipamento e acessórios 3. Águas naturais - Purificação 4. Água - Controle de qualidade I. Título. 05-6323 CDD-628.1 índices para Catálogo Sistemático 1. Água: Tratamento: Controle de qualidade: Tecnologia: Engenharia sanitária 628.1 ISBN 978-85-7670-165-1 Todos os direitos reservados à _ r Editora Atomo Rua Tiradentes, 1053 - Guanabara - Campinas-SP CEP 13023-191 - PABX: (19) 3232.9340 e 3232.0047 www.atomoealinea.com.br Impresso no Brasil Editora Á tom o CONSELHO EDITORIAL Área | Química Aécio Pereira Chagas Universidade Estadual de Campinas - UNICAMP Célio Pasquini Universidade Estadual de Campinas - UNICAMP Flávio Leite T & E Analítica Mário Sérgio Galhiane Universidade Estadual Paulista - UNESP Pedro Faria Universidade Estadual de Campinas - UNICAMP Ricardo Ferreira Universidade Federal de Pernambuco - UFPE Robson Fernandes de Farias Universidade Federal do Rio Grande do Norte - UFRN Ao meu querido tio (Rubens LiSânio, que desempenha há tanto tempo e com tanto desvefo um papeíque taívez não Che couBesse. A Leonardo Rarma e (Bernardo Macedo, amigos exemplares!, peta ventura de uma convivência já tocada pehos anos. A Ana Rereza e Mariana. IncondicionaCmente. Não há como deixar de reconhecer a importância das diversas pesquisas desenvolvidas sob a chancela de órgãos como Fundunesp, Fapemig, Finep, Capes e CNPq, cujos principais resultados foram, com êxito variável, transpostos para as páginas deste livro. Da mesma forma, o papel dos diversos alunos de graduação e pós com os quais tenho tido a satisfação de trabalhar. Destes, em especial, Maria de Lourdes Fernandes Neto e Vanessa Cristina Lopes. A primeira pela leitura aguda dos capítulos relacionados à qualidade de água, a segunda pelas diversas figuras que se espraiam pelas páginas do livro. A ambas pela atenção e delicadeza. Por fim, agradecimento especial aos colegas do Departamento de Engenharia Hidráulica e Recursos Hídricos da UFMG pelo constante apoio e acolhimento ao longo de mais de uma década de convívio tão profícuo quanto prazeroso. [...] Tudo o que quiserem, porque a terra que andamos puxados pelos pés, querendo deitar raízes, homens-árvore como no mito de Dafne, é a das serras em forma das chaminés, lanças, seios, anátemas, agulhas, manoplas, ereções, castelos, torreões, navios - azuladas pela manhã, quando emergem do mar de bruma dos vaiados, refulgentes ao sol do meio-dia e recortando-se sobre os tons de cobre, ouro e púrpura do entre dia-e-noite. Serras, serras, picos... Curral, Piedade, Rol a-Moça, Caraça, Itacolomi, Vertentes, Mantiqueira. Serras de cujas encostas descem os rios que vão ao São Francisco e Paraíba para soltar no Atlântico o nosso sangue mineral. Rios encachoeirados, rápidos ou lentos, turvos ou claros, limosos, vermelhos, lamacentos, verdes, cheios de ferrugem e de ouro em pó. Rios, rios, ribeirões... Sapucaí, Paraopeba, Arrudas, Santa Bárbara, Carmo, .Grande, Rio das Velhas, Rio das Mortes... Rios que levam até o mar o sabor de Belo Horizonte, Caeté, Sabará, O uro Preto, Mariana, Congonhas do Campo, Santa Bárbara do Mato Dentro. Rios que pela vida subterrânea dos lençóis d’água drenam do solo das igrejas e da terra dos cemitérios a substância calcária de meus parentes - porque deles há sempre um esqueleto em cada cripta ou cada campo santo - contido naquele círculo que começa e acaba em Queluz, tendo Rio Acima como centro do seu raio. Essas áreas não posso chamar de pátria, porque não as amo civicamente. O meu sentimento é mais inevitável, mais profundo e mais alto porque vem da inseparabilidade, do entranhamento, da unidade e da consubstanciação. Sobretudo, da poesia... Assim, onde é que já se viu um pouco d'água amar o resto da água? Se tudo é água... Pedro Nava - Baú de Ossos Sumário r • Apresentação à 3a Edição.............................................. ....................................... ..................13 Introdução.............................. 15 Conceito e histórico.............................................................................................. 15 Disponibilidade hídrica............. ...........16 Propriedades das águas naturais......................................... ............................................. 19 Características das Aguas Naturais.................................................... 25 Características físicas............................ 25 Características químicas.......................................................................................... 42 Características biológicas.......................................... ................. .............. ......................63 Características radioativas............................................................................ 78 índices de Qualidade de A gua................................................................................................. 79 Metodologia Delphi..................................................................................................• -.......80 índice de qualidade de água........................................................................ ......................80 índice de qualidade de água bruta....................................................... .............................84 A Evolução dos Padrões de Potabilidade................................................................................91 Histórico.......................... 91 Evolução dos padrões de potabilidade americanos.........................................................92 Evolução dos padrões de potabilidade nacionais.......................... 93 Tendências ...................................... .....98 CvüíAuv 33 Poluição e Contaminação de Mananciais............................................................... .......107 Conceito............................. 107 Tipos de captação e seus efeitos sobre a qualidade de água.......................................-111 Alterações nas características das águas superficiais................................. H6 Alterações nas características das águas subterrâneas.................................................. 123 Proteção de mananciais...... ............................................................................... ••••••....... 129 Tecnologias de Tratamento ............ .............................................. . Fatores intervenientes na definição da tecnologia de tratamento. Tecnologias de tratamento........... ................................................. Coagulação......................................................... .............................. ...... Histórico e conceito..... ................................................... ............... Mecanismos de coagulação.......................... .............. ................... Fatores intervenientes na coagulação............................................ Unidades de mistura rápida......... ............... .................................. Floculação.......................................................... .................................... Considerações iniciais................ .................................................... Mecanismos de transporte e intervenientes na floculação.......... Mecanismos de agregação e ruptura dos flocos............................ Fatores intervenientes na floculação............................................. Tipos de unidades defloculação..................................................... TTo 7v Decantação.......................................................... ................................... Conceito e histórico.............................................................. ........... Distribuição de água floculada........................................................ Sedimentação de partículas discretas............................................ Sedimentação de partículas floculentas......................................... Tipos de unidades de decantação................................................... Resíduos gerados nas unidades de decantação.............................. Cm? tule. Vj Filtração ............................................................................ ...................... Conceito e histórico.............................................................. ........... Mecanismos intervenientes na filtração......................................... ' Meio filtrante................................................................ ..................... Tipos de filtros empregados no tratamento de água..................... Sistemas de drenagem, camada-suporte e calhas de coleta......... Aspectos operacionais dos filtros rápidos...................................... Sistemas de controle de filtros......................................................... Adequação e Otimização de Estações.................................................. Introdução........................................................... ............................... Diagramas de coagulação.......................................................... ...... Ensaios de tratabilidade para estações existentes......................... Ensaios de tratabilidade para estações por construir..................... Procedimentos para realização dos ensaios em reatores estáticos Avaliação do desempenho das unidades filtrantes........................ .135 .135 .146 .153 .153 .157 .162 .196 .209 .209 .211 .216 .221 .237 .257 .257 .258 .262 .269 .270 .302 .309 .309 .311 .318 .332 .359 .365 .378 .385 .385 .387 .391 .401 .406 .408 Filtração em Membrana.................................................................................... .....................411 Introdução........................................................................................................................... 411 Histórico............................................................................................ 413 Aplicação e tipos de membranas.................... 414 Custos dos sistemas de filtração em membrana........................................... 417 Eficiência da tecnologia de filtração em membranas.......................................... 419 Capitulo 13 Desinfecção..............................................................................................................................421 Conceito e histórico.......................................................................................................... 421 Processos e mecanismos de desinfecção................ 423 Fatores intervenientes na eficiência da desinfecção...................................................... 424 Desinfecção com compostos de cloro.... ........... 427 Desinfetantes alternativos ao cloro........................ 436 Fluoretação.............. 445 Conceito......................... 445 Histórico.................................................. 445 Atuação preventiva do flúor............................................................................................. 447 Fluoretação no Brasil................................. 449 Compostos de flúor................................................................................................ 450 Aplicação do flúor.............................................................................................................451 Custo da fluoretação..........................................................................................................453 Corrosividade e Agressividade.............................................................................................. 455 Aloísio de Araújo Prince Introdução...........................................................................................................................455 Relevância..........................................................................................................................456 Corrosão metálica..............................................................................................................457 Agressão a concreto..........................................................................................................465 Métodos de combate à corrosão.......................................... 466 Condicionamento químico............................................................................................... 469 Teste para Determinar o Estágio de Saturação de Carbonato de Cálcio de uma Água (Teste de Mármore)................................................477 Referências..................................... 479 Apresentação à 3 a Edição É difícil precisar quando a motivação para escrever este livro manifestou-se pela primeira vez. Talvez tenha surgido de forma ainda tênue quando ministrei, em nível de graduação na Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, disciplina relacionada ao tema no final da década de 1980. Alguns anos depois o mesmo se deu na Universidade Estadual Paulista (Faculdade de Engenharia de Ilha Solteira). A partir de 1994, passei a ministrá-la com maior frequência no contexto do curso de Especialização em Engenharia Sanitária e pouco depois, de forma perene, no bojo do Programa de Pós-graduação em Saneamento, Meio Ambiente e Recursos Hídricos da UFMG. Tive também oportunidade de ministrar diversos cursos de curta duração em vários estados do Brasil, experiência que ajudou a consolidar o desejo de produzir uma obra que contribuísse para disseminação dos conceitos relacionados a tão importante tema. O discreto êxito das duas edições anteriores motivou-me, nesta 3a edição, a ampliar o espectro de abrangência da obra. Assim, como resultado de pesquisas que tive a satisfação de coordenar nos últimos anos, foram inseridos dois capítulos versando sobre indicadores de qualidade de água e filtração em membrana como emergente tecnologia de tratamento. Os demais capítulos expandidos centram-se nos aspectos fundamentais relacionados às características das águas naturais, enfatizando também a poluição de mananciais passíveis de serem empregados para abastecimento. Os principais processos e operações unitárias intrínsecos às tecnologias de tratamento mais extensivamente utilizadas ou que cujas características favoreçam seu emprego no País são abordados nos capítulos subsequentes. Destes, apenas a flotação por ar dissolvido não foi contemplada, de uso restrito ainda no País, embora em algumas estações na Região Sudeste esta operação unitária faça-se presente com resultados variáveis. Cabe destacar que o Capítulo 15 foi elaborado pelo engenheiro Aloísio Prince e os capítulos 9 e 12 contaram, respectivamente, com a colaboração dos engenheiros Nelson Guimarães e Alisson Bragança. O livro destina-se a profissionais e estudantes (em nível de graduação e pós), apresentando os fundamentos teóricos das etapas do tratamento e diversos exemplos de cálculo. Cálculos adicionais dos parâmetros hidráulicos inerentes às tecnologias de potabilização podem ser realizados por meio de software disponível no endereço www. ehr.ufmg.br. Por fim, resolvi incluir no início de cada capítulo verbetes hídrico-literários, incomuns em obra que mais das ciências exatas se aproxima, e que talvez - também pela significativa presença do maior ícone das nossas letras - possam se constituir deste texto a sua melhor parte. Introdução Um homem nunca se banha duas vezes no mesmo rio. Porque o homem nunca é o mesmo. £ nunca é o mesmo rio. Heráclito de Éfeso (470 d.C.) Conceito e histórico A águaocupa aproximadamente 75 % da superfície da Terra e é o constituinte inorgânico mais abundante na matéria viva, integrando aproximadamente dois terços do corpo humano e atingindo até 98 % para certos animais aquáticos, legumes, frutas e verduras. Constitui-se também no solvente universal da maioria das substâncias, modificando-as e modificando-se em função destas. Diversas características das águas naturais advêm desta capacidade de dissolução, diferenciando-as pelas características do solo da bacia hidrográfica. Como consequência, o corpo d’água, rio ou lago sempre inclui a bacia hidrográfica que, por sua vez, imprimir-lhe-á muitas das suas características no que tange à geologia, à pedologia, à morfologia, à hidrologia, à vegetação, ao clima predominante e, principalmente, às atividades antrópicas nela desenvolvidas. Aliada à mencionada capacidade de dissolução, a água atua como meio de transporte - em escoamento superficial e subterrâneo - permitindo que as características de um mesmo curso d’água alterem-se temporal e espacialmente. Por fim, as características das águas naturais influenciam e são também influenciadas pelo metabolismo dos organismos aquáticos, conferindo estreita interação entre estes e o meio ambiente, base da ciência denominada Ecologia.1 A relação do ser humano com os corpos d ’água data de tempos imemoriais. Estima-se que há 10000 anos, com a revolução da agricultura, o ser humano tenha começado a abandonar a caça como principal fonte de sustento e iniciaram-se as primeiras culturas e a criação dos rebanhos. Como consequência, renunciou-se progressivamente ao nomadismo, que caracterizava as primeiras comunidades, e a busca por fontes de abastecimento culminou com o estabelecimento dos primeiros povoados às margens dos cursos d’água, provavelmente na região da Mesopotâmia (Iraque). A partir daí delineou-se clara identificação dos primeiros povoados, e posteriormente das primeiras cidades, 1. Termo de origem grega - íóikos' (casa) + ‘lógos’ (arte, ciência) - que designa a ciência que estuda as relações dos seres vivos entre si ou com o meio ambiente. com o curso d’água que as margeia, muitas vezes emprestando-lhes o próprio nome. Consolidaram-se associações de, por exemplo, Viena e Budapeste ao Danúbio, Londres ao Tâmisa, Paris ao Sena, Roma ao Tíbere, entre outras tantas. Disponibilidade hídrica Estima-se entre 1,36 x 109 a 1,46 x 109 km3 o volume de água no Planeta e aproximadamente 97 % correspondem aos mares, oceanos e lagos de água salgada (Von Sperling, 2006). Ainda que a dessalinização como tecnologia de potabilização tenda a crescer, a água doce disponível, via de regra, constitui-se na alternativa de abastecimento mais facilmente acessível às populações. No Brasil, por exemplo, a parcela habitada do arquipélago de Fernando de Noronha/Pe é abastecida durante o período de escassez de chuvas por meio de uma unidade de dessalinização de osmose inversa, bem como diversas comunidades de pequeno porte no interior da Região Nordeste. Em nível mundial, diversas cidades - Riad (Arábia Saudita), Barcelona (Espanha), Cingapura, entre outras - são parcial ou totalmente abastecidas por meio de captação de água do mar. Todavia, a parcela mais significativa da água doce, disponível nas calotas polares, é praticamen te inaproveitável para fins de abastecimento para a quase totalidade da população terrestre, conforme evidenciado na figura 1.1. Figura 1.1. Distribuição percentual da água doce disponível na Terra. Fonte: Borghetti et al. (2004 apud Di Bernardo; Paz. 2009a). Dos percentuais apresentados na figura 1.1, destaca-se a ínfima parcela referente aos cursos d’água que se constituem usualmente na principal alternativa ao abastecimento de comunidades de médio e grande porte e, paradoxalmente, no principal corpo receptor ao lançamento de esgotos domésticos e industriais. A parcela referente às águas superficiais distribui-se entre os cinco continentes conforme denota a figura 1.2. Figura 1.2. Distribuição das águas superficiais entre os continentes. Fonte: Borghetti et al. (2004 apud Di Bernardo; Paz, 2009a). Os percentuais discriminados na figura 1.2 evidenciam o porquê de parcela significativa dos ^ ^ ^ países europeus ser majoritariamente abastecida, por vezes na totalidade como Lituânia e Dinamarca, i é por meio de aquíferos subterrâneos e a situação frequentemente dramática vivenciada pela população africana, estimada, em 2006, superior a 350 milhões de pessoas. O percentual das águas superficiais localizado nas Américas apresentado na figura 1.3 testifica o papel de relevo do Brasil no contexto mundial, representando algo como 13 % das reservas mundiais. Figura 1.3. Distribuição (%) da disponibilidade hídrica nas Américas. Fonte: Von Sperling (2006). Todavia, ao relacionar a disponibilidade hídrica à população do país, o Brasil cai para o 9o lugar em virtude da magnitude da população comparada à de outros países, conforme evidencia a figura 1.5. Disponibilidade hídrica per capita (mil m3/hab.ano) Figura 1.4. Relação dos nove países com maior disponibilidade hídrica per capita do planeta. Uma segunda constatação que emerge da figura 1.4 se reporta à relevância das Américas na disponibilidade hídrica do globo, uma vez que seis dos nove países listados se localizam neste Continente. Associada à disponibilidade hídrica apresentada na figura 1.2 insere-se o consumo de água nos continentes conforme mostra a figura 1.5. Figura 1.5. Distribuição do consumo de água nos continentes. Fonte: Borghetti et ai. (2004 apud Di Bernardo; Paz, 2009a). CAPÍTULO 01 1 7 Com base nos percentuais apresentados na figura 1.5 aflora a constatação do elevado consumo per capita2 nos Estados Unidos, pois este país representa algo como 4,8 % da população mundial e 71 % da população da América do Norte3. Corrobora esta afirmativa, inferência elaborada com fyase em dados de 1996 nos Estados Unidos, que apontou cota per capita média nos 51 estados americanos. Os valores extremos variaram de 494 L/hab.dia, no estado de Maine na Costa Leste, atingindo até 1230 L/hab.dia no desértico estado de Nevada na Costa Oeste, conforme apresentado na figura 1.6. Vale enfatizar que os valores listados na figura 1.6 referem-se tão somente ao abastecimento doméstico e industrial, não contemplando o consumo com irrigação. Figura 1.6. Consumo per capita de abastecimento doméstico e industrial em alguns estados dos EUA, referentes a 1996. Fonte: AWWA (1998). Em nível mundial, do volume total utilizado para consumo humano, o abastecimento responde pela menor parcela (10 %) quando cotejada ao uso agrícola (69 %) e industrial (21 %). No Brasil, tais percentuais apresentam-se ligeiramente distintos conforme mostra a figura 1.7. Figura 1.7. Consumo de água por setor em nível nacional. Embora dotado de significante disponibilidade hídrica comparada à da maioria dos países, o Brasil apresenta expressiva desuniformidade na distribuição no que tange às regiões mais populosas. A quase totalidade da população brasileira (95 %) habita as quatro regiões que respondem por aproximadamente 27 % da disponibilidade hídrica superficial do País. A classificação da disponibili dade per capita em nível dos estados brasileiros apresenta-se conforme evidenciado pela tabela 1.1. 2. Volume de água diário, requerido por indivíduo, usualmente expresso em L/hab.dia. Esse valor é adotado, nos projetos de sistemas de abastecimento de água, para satisfazer ao consumo doméstico, ao consumo comercial e industrial, ao consumo público e às perdas. 3. Estimativa elaborada baseada em populações de 420 milhões e 6,3 bilhões de pessoas para os EUA e o Planeta, respectivamente. CAPITULO 01 1 Q AO ..... ' ■ ' ' ■ ■ - ' ‘ -................. ............................................................................... . ..... Tabela 1.1. Classificação da disponibilidade hídrica per capita dos estados da Federação. . Situação Abundância > 20.000 m3/hab.ano Muito rico > 10.000 m3/hab.ano Rico > 5000 m3/hab.anoSituação correta > 2500 m3/hab.ano Pobre < 2500 m3/hab.ano Situação crítica < 1 500 m3/hab.ano Estado Roraima Amazonas Amapá Acre Mato Grosso Pará Tocantins Rondônia Goiás Mato Grosso do Sui Rio Grande do Sui Maranhão Santa Catarina Paraná Minas Gerais Piauí Espírito Santo Bahia São Pauio Ceará Rio de Janeiro Rio Grande do Norte Distrito Federal Alagoas Sergipe Paraíba Pernambuco Esta constatação evidencia-se mais significativamente pelo fato dos mananciais das regiões Sudeste e Sul, em especial, serem os mais fortemente impactados pelo lançamento dos despejos domésticos e industriais, tendendo a tomar progressivamente mais conflituosa a questão da prioridade de uso dos recursos hídricos. Em semelhante contexto, o consumo regional de água divide-se conforme a figura 1.8. Figura 1.8. Consumo de água (%) nas cinco regiões brasileiras. Propriedades das águas naturais Importante distinção deve ser feita entre as propriedades e as características (físicas, químicas, biológicas e radioativas) das águas naturais. As propriedades da água - ou, por definição, característica do que é próprio - constituem-se no que lhe é inerente e a distingue dos demais fluidos. CAPÍTULO 01 CAPÍTULO 01 2 2 Já as características diferenciam as águas naturais entre si, podendo se manifestar em uma ou outra circunstância. Por exemplo, para o abastecimento público, a estrutura de captação haverá de influenciar nas características da água bruta, mas não interfere nas suas propriedades. Vale também mencionar que uma importante característica das águas, a temperatura, influenciará em algumas das Suas propriedades. Neste aspecto, há controvérsia se a temperatura seria uma propriedade ou característica física. Optou-se pela última pela importância no tratamento e pela mencionada influência em algumas das propriedades das águas naturais, além do fato da temperatura não a diferenciar dos demais fluidos. \ Calor específico O calor específico é a quantidade de energia requerida, por unidade de massa, para elevar a temperatura de um fluido ou substância e, neste contexto, uma caloria (cal) é a energia requerida para elevar em 1,0 °C a temperatura de um grama de água. O elevado calor específico da água (1,0 cal/g °C), superado apenas pelo hidrogênio líquido e amoníaco, permite absorver grande quantidade de calor sem apresentar significativa variação de temperatura. Esta propriedade adquire crucial importância para a biota do meio aquático e também para o abastecimento público, pois significativa amplitude térmica do ar atmosférico manifesta-se em muito menor magnitude em termos da alteração da temperatura da água. Ilustra esta assertiva o fato de serem raros os casos de congelamento da água nas redes de distribuição nos países frios, mesmo para temperaturas do ar inferiores a 30 °C negativos. No contexto nacional, a recorrente limitação de algumas tecnologias ou etapas da potabilização raramente se manifesta no Brasil (reápectivamente, a filtração lenta e a coagulação), onde temperaturas médias mensais das águas naturais inferiores a 15 °C somente ocorrem em algumas cidades serranas das regiões Sul e Sudeste. Massa específica, densidade e peso específico Define-se massa específica4 (kg/m3) como o quociente entre a massa e o volume de um fluido ou de determinada substância, diferindo do conceito de densidade. Este adimensional refere-se à razão entre a massa específica do líquido ou sólido e a da água a 4 °C, e, para os gases, considera-se como referência a massa específica do ar atmosférico a 0 °C. Associa-se também ao conceito de massa específica, o peso específico (N/m3) como o produto desta e a aceleração da gravidade. Interessante particularidade da água manifesta-se em relação à massa específica, quando comparada aos demais líquidos, por apresentar o valor máximo a 4 °C (1000 kg/m3), ao passo que para os demais tal ocorre na temperatura de congelamento. À temperatura de 20 °C, usual na maioria dos sistemas de abastecimento do. País, a massa específica da água é 998 kg/m3 e o peso específico 9789 N/m3. A variação da massa específica da água com a temperatura assegura a manutenção da vida aquática e a constância do próprio abastecimento de água em diversos países; do hemisfério norte nos quais os invernos são muito rigorosos. Por ser mais densa a 4 °C do que a 0 °C, para temperaturas negativas a água termina por ocupar as camadas profundas de rios e lagos, permitindo que a superfície do corpo hídrico se congele. Desta forma, garante-se a preservação da comunidade aquática e a perenidade no abastecimento durante este período do ano. Conforme a tabela 1.2 a seguir mostra, as maiores variações na densidade da água verificam- -se para temperaturas superiores a 20 °C. Por exemplo, a diferença de densidade da água entre as temperaturas de 24 e 25 °C é 26 vezes maior da observada no intervalo de 4 a 5 °C. Esta propriedade 4. Utilizar-se-á sempre o Sistema Internacional (SI) como referência para as unidades das propriedades das águas naturais. assegura a estratificação de corpos d’água, principalmente lagos e represas. Dependendo da magnitude da diferença de temperatura, e de densidade, formam-se três camadas distintas, denominadas epilímnio, metalímnio e hipolímnio. A primeira camada superficial de maior temperatura e menor densidade, uma camada intermediária - na qual ocorre queda acentuada da temperatura - e a terceira ao fundo de menor temperatura e maior densidade. Evidentemente que quanto menor temperatura externa menor também será a diferença de densidade ao longo da profundidade e, portanto, menos significativa a estratificação térmica do corpo d’água. Desta forma, nos períodos mais frios do ano a densidade tenderá a apresentar menor variação ao longo da profundidade e nestas circunstâncias pode ocorrer o fenômeno do turn over, inversão térmica ou virada do lago ou reservatório, caso a ação dos ventos favoreça a circulação da água no seu interior. Quando da virada do reservatório, pode ocorrer o revolvimento do fundo e significativa alteração nas características da água bruta com efeitos negativos na eficiência do tratamento. Captações realizadas em reservatórios de acumulação, comumente apresentam torres de tomada que permitem a captação da água bruta a distintas profundidades da coluna d’água, visando a minimizar tais efeitos. A estratificação voltará a se estabelecer com aumento da temperatura da superfície. Esta propriedade da água, denominada anomalia térmica, decorre das variações na estrutura molecular da água com a temperatura. Na forma de gelo, a água apresenta estrutura tetraédrica ou cristalina, caracterizada pela existência de espaços vazios. A medida que a temperatura se eleva, a água assume gradativamente a estrutura conhecida como compacta, na qual as moléculas estão acondicionadas sem espaços vazios. Isto significa que com o incremento de temperatura valendo-se do congelamento, a água vai se tomando progressivamente mais densa. Em contrapartida, este aumento da temperatura provoca a expansão molecular nos corpos. Desta forma, dois fenômenos contrapõem- -se quando ocorre um aumento de temperatura. Por um lado a densidade aumenta, em razão de alterações na estrutura molecular, e ao mesmo tempo diminui, em decorrência da expansão molecular. A superposição destes dois fenômenos conduz à obtenção do mencionado ponto de densidade máxima a 4 °C, reduzindo-se posteriormente com o aumento da temperatura (Von Sperling, 2006). Viscosidade dinâmica Aviscosidade dinâmica ou absoluta (Pa.s) de um líquido traduz a sua resistência ao escoamento (ou ao deslocamento no interior da massa líquida), e o quociente entre esta e a massa específica denomina-se viscosidade cinemática (m2/s). Entre os líquidos, a água apresenta viscosidade baixa, superior apenas a do benzeno e da gasolina. A viscosidade dos líquidos é inversamente proporcional à temperatura, pois, com o aumento desta reduz-se a coesão entre as moléculas e consequentemente a resistência ao escoamento. Interessanteconstatar que para os gases, como as forças de coesão são muito menores, a viscosidade é diretamente proporcional à temperatura (Streeter; Wylie, 1981). Da mesma forma, para temperatura de 20 °C, a água apresenta viscosidade dinâmica de 10"3 Pa.s e viscosidade cinemática de 10'6 m2/s. Para o ambiente aquático esta propriedade interfere na sobrevivência de diversos organismos, como algumas espécies de algas que não apresentam movimentação própria, sendo assim forçadas a viver próximas à superfície, utilizando-se da viscosidade da água como meio de sustentação. Durante os períodos mais quentes do ano, com a redução da viscosidade, estes organismos tendem a se aprofundar na coluna d’água, onde há menor disponibilidade de luz e oxigênio. Na potabilização, em contrapartida, o aumento da temperatura da água e consequente redução da viscosidade favorecem a sedimentação de partículas, embora o aporte à estação de tratamento tenda a se elevar em virtude da concomitância das precipitações com o período mais quente do ano. CAPÍTULO 01 Pressão de vapor A evaporação sucede-se quando as moléculas de água escapam através da superfície líquida. Em ambiente fechado, o equilíbrio é atingido quando o número de moléculas que deixam a superfície iguala-se ao número de moléculas de vapor que se condensam ao atingir a superfície livre. Neste contexto, denomina-se pressão de vapor à pressão exercida no espaço pelas moléculas de vapor. A magnitude desta pressão é governada pela pressão reinante e pela temperatura, de forma que quando a pressão acima da superfície líquida iguala-se à pressão de vapor o líquido entra em ebulição, mesmo à temperatura ambiente. As mencionadas propriedades da água estão listadas na tabela 1.2 em função da tempe ratura. Tabela 1.2. Propriedades físicas da água no Sistema Internacional de Unidades. Temperatura (°C) Massa Específica (kg/m3) Peso Específico (N/m3) Viscosidade Dinâmica (IO'3 Pa.s) V iscosidade Cinemática (1 0 6 m 2/s) Pressão de V apo r (Pa) 0 999,9 9805 1,79 1,79 611 5 1000,0 9805 1,52 1,52 873 10 999,7 9803 1,31 1,31 1266 15 999,1 9798 1,14 1,14 1707 20 998,2 9789 1,01 1,01 2335 25 997,1 9779 0,89 0,90 3169 30 995,7 9767 0,80 0,80 4238 35 994,j 9752 0,72 0,73 5621 40 992,2 9737 0,66 0,66 7377 45 990,2 9720 0,60 0,61 9584 50 988,1 9697 0,55 0,56 12331 55 985,7 9679 0,51 0,51 15745 60 983,2 9658 0,47 0,48 19924 65 980,6 9635 0,44 0,44 25015 70 977,8 9600 0,41 0,42 31166 75 974,9 9589 0,38 0,39 35563 80 971,8 9557 0,36 0,37 47372 85 968,6 9529 0,34 0,35 57820 90 965,3 9499 0,32 0,33 70132 95 961,9 9469 0,30 0,31 84552 100 . 958,4 9438 0,28 0,30 101357 Tensão superficial Na interface entre um líquido e um gás, ou dois líquidos imiscíveis, desenvolve-se uma fina película em virtude das forças de atração entre as moléculas do líquido abaixo da superfície. Como consequência, da mesma forma que a viscosidade, a tensão superficial da água é inversamente proporcional à temperatura. Exemplo clássico refere-se à colocação de um pequeno alfinete sobre a superfície da água e constata-se que esta fina película suportará seu peso. Esta propriedade permite que diversos pequenos organismos possam sobreviver na interface água-ar atmosférico e desempenham importante papel na cadeia trófica do ambiente aquático. Além do efeito da temperatura, a tensão superficial da água pode ser afetada pelo lançamento de despejos contendo sabões e detergentes que causará o desequilíbrio deste ecossistema. Condutividade térmica A condutividade térmica de fluido constitui-se no coeficiente de transferência de calor em função do gradiente de velocidade, ou em outras palavras, é a capacidade de um fluido ou substância transmitir a energia térmica por meio das colisões moleculares. Diferentemente do calor específico, a água apresenta baixa condutividade térmica e a difusão de calor na massa líquida somente ocorre por convecção graças a variação da densidade (massa específica) com a temperatura na coluna d’água. Capacidade de dissolução Conforme salientado, as águas naturais apresentam capacidade de dissolução de grande diversidade de substâncias químicas e gases. A solubilidade das primeiras é significativamente influenciada pelo aumento da temperatura e redução do pH do ambiente aquático. A solubilidade dos gases na água, e a concentração por consequência, depende da denominada pressão parcial do gás e esta da temperatura. A relevância das substâncias dissolvidas presentes nas águas naturais relacionar-se-á com o tipo de uso e com as atividades desenvolvidas na bacia hidrográfica. Para fins de consumo humano, os compostos orgânicos têm adquirido progressivamente maior relevância pela dificuldade na remoção nas estações de tratamento, pela perspectiva de conferir odor e sabor à água tratada - favorecendo a rejeição da comunidade abastecida - e pela formação de subprodutos da desinfecção com compostos de cloro. No Brasil, principalmente pa região central do estado de Minas Gerais, os compostos de ferro e manganês representam outra importante característica, pois, quando se apresentam na forma dissolvida (Fe+2 e Mn+2) podem não ser adequadamente removidos no tratamento e, ao se oxidarem na rede de distribuição (Fe+3 e Mn+4), conferir cor à água de consumo. Corpos d’água em regiões de garimpo ou sujeitos ao lançamento de efluentes industriais tendem a apresentar concentração mais significativa de metais pesados - sobretudo, mercúrio, chumbo e cromo. Finalmente, vale mencionar os compostos de fósforo e nitrogênio (amônia, nitrito, nitrato) - originários do arraste de fertilizantes de solos agriculturáveis ou do lançamento de despejos - responsáveis pela eutrofização de lagos e reservatórios, bem como alguns ânions (carbonatos, bicarbonatos, cloretos e sulfatos) responsáveis pela alcalinidade e dureza das águas naturais. Em relação aos gases dissolvidos nas águas naturais, evidente importância recai para o oxigênio dissolvido (OD) pelo fundamental papel na manutenção da diversidade do ecossistema aquático. Embora existam organismos anaeróbios, capazes de utilizar o oxigênio contido em compostos como sulfatos (S 04'2) e nitratos (N 03~), a diversidade da biota de um ecossistema é assegurada pela concentração de OD. Reforça esta assertiva o fato da respiração anaeróbia favorecer a emanação de gases mal cheirosos como sulfeto de hidrogênio (H2S) e metano (CH4). Características das Águas Naturais [...] Como os rios não dormem. 0 rio não quer ir a nenhuma parte, ele quer é chegar a ser mais grosso, mais fundo. [...] Rebebe o encharcar dos brejos, verde a verde, veredas, marimbús, a sombra separado dos buritizais, ele. Recolhe e semeia areias. Guimarães Rosa - Grande Sertão: Veredas (1956) s características físicas, químicas, biológicas e radiológicas das águas naturais traduzem uma série de processos que ocorrem no corpo hídrico e na bacia hidrográfica, como consequência das mencionadas capacidades de dissolução de ampla gama de substâncias e de transporte pelo escoamento superficial e subterrâneo. Nas características físicas, químicas e biológicas listadas nos tópicos a seguir, far-se-á menção aos padrões de potabilidade nacional (Ministério da Saúde, 2004), americano (AWWA - American Water Works Association, 2006) e da Organização Mundial de Saúde (OMS) (World Health Organization, 2004). Características físicas As características físicas das águas de abastecimento encerram comumente o impacto de imediato ao consumidor, podendo, com alguma frequência, concorrer para recusa da água distribuída pela concessionária. Quando tal se sucede, a opção de abastecimento recai para fonte alternativa, não necessariamente segura. Esta percepção imediata abarca os sentidos da visão (turbidez e cor), paladar e olfato (sabor e odor). Temperatura A temperatura da água e dos fluidos em geral, indica a magnitude da energia cinética do movimento aleatório das moléculas e sintetiza o fenômeno de transferência de calor à massa líquida. As forças de coesão intermolecular são de natureza eletrostática e,em princípio, independentes da temperatura. Caso seja fornecida energia em forma de calor (aquecimento) à massa líquida, atingir- -se-á estado no qual as forças inerciais das moléculas em movimento serão de mesma magnitude às de coesão intermolecular. O novo aumento da temperatura fará com que ocorra a expansão e mudança de estado para gás ou vapor. A temperatura é diretamente proporcional (i) à velocidade das reações químicas - qpe praticamente dobra para elevação de 10 °C na temperatura das águas (ii) à solubilidade das substânciàs, (iii) à concentração do oxigênio dissolvido, (iv) ao metabolismo dos organismos presentes no ambiente aquático, (v) à formação de subprodutos da desinfecção, (vi) ao recrudescimento microbiológicç e (vii) à taxa de corrosão nas tubulações integrantes dos sistemas de abastecimento (Dezuane, 1997). A alteração da temperatura das águas naturais decorre em especial da insolação, esta influen ciada significativamente pelo clima e latitude, e, quando de origem antrópica, do lançamento de despejos industriais - em especial originários de indústrias de bebidas - e/ou de águas de refrigeração de máquinas e caldeiras. Para fins de tratabilidade, esta característica representa vantagem ainda maior para os países tropicais, nos quais as variações de temperatura da água são menos significativas. A etapa de coagulação, presente na quase totalidade das tecnologias de tratamento, realiza-se de forma menos exitosa a baixas temperaturas. No Brasil, à exceção de alguns mananciais das regiões Sul e Sudeste, nos quais a temperatura da água em períodos de inverno pode baixar a valores entre 5 e 15 °C - atingindo, em alguns casos excepcionais, até o ponto de congelamento -, as médias diárias das águas naturais afluentes às estações de tratamento nas demais regiões do País raramente apresentam-se inferiores a 18 °C. Em contrapartida, diversos países do hemisfério norte apresentam amplitude térmica anual frequentemente superior a 20 °C. Estas assertivas são ilustradas pela figura 2.1, na qual se apresentam as médias aritméticas mensais de 2004 da temperatura da água bmta afluente a uma estação de tratamento de água no estado de Minas Gerais (latitude 18S) e a outra na província de Alberta no Canadá (latitude 54N). O ETA Brasil □ ETA Canadá Meses (2004) Figura 2.1. Médias aritméticas mensais da temperatura da água bmta em duas estações no Brasil e Canadá. Na figura 2.1 evidencia-se a significativa menor variação da temperatura da água em países tropicais, no caso praticamente restrita ao intervalo de 20 a 25 °C, ao passo que na estação canadense, a temperatura da água bruta apresenta-se inferior a 1 °C em cinco meses do ano, superando 15 °C apenas durante os três meses de verão. A associação com águas naturais correntes favorece a maior aceitabilidade do consumidor a águas de baixa temperatura. O controle da temperatura da água natural inviabiliza-se e águas com temperatura elevada tendem a ser rejeitadas pela população em termos de consumo, também pela maior percepção gustativa do ser humano nestas condições aos problemas de odor e sabor. Adicionalmente, temperaturas mais altas tendem a favorecer a dissolução de uma mi rí ade de constituintes inorgânicos e compostos orgânicos passíveis de conferir às águas tais características. Aguas subterrâneas captadas a grandes profundidades, frequentemente necessitam de unidades de resfriamento a fim de adequá-las ao abastecimento, como ocorre em diversas cidades do interior do CAPÍTULO 02 estado de São Paulo. Para os sistemas de maior porte, é comum a conjunção de captações superficiais e subterrâneas, com a mistura ocorrendo na própria rede de distribuição. Com incremento do consumo de água envasada, mineral ou não, sobretudo nas classes economicamente mais abastadas, tem-se verificado menor rejeição do consumidor a águas de temperatura elevada, por reduzir o gasto doméstico de energia elétrica durante os banhos e por tomar a lavagem dos utensílios de cozinha menos dispendiosa. Em virtude dos insignificantes efeitos à saúde e extrema dificuldade de alteração na temperatura da água para abastecimento de maiores populações, os padrões de potabilidade brasileiro e da OMS não estabelecem temperatura máxima para água de consumo, limitada em 15 °C no padrão canadense e americano. Cor A cor da água é produzida pela reflexão da luz em partículas minúsculas, denominadas coloides, finamente dispersas de origem predominantemente orgânica e dimensão inferior a 10 pm, relacionando-se com a concentração de carbono orgânico presente no ambiente aquático. Pode também ser resultado da presença de compostos de ferro e manganês ou do lançamento de diversos tipos de resíduos industriais. Quando a cor se manifesta em águas subterrâneas, via de regra é resultado da presença destes compostos de ferro e manganês. Os compostos orgânicos que conferem cor às águas naturais são provenientes basicamente de duas fontes: i) em maior magnitude, da decomposição de matéria orgânica de origem predominantemente vegetal e do metabolismo de microrganismos presentes no solo; ii) de atividades antrópicas, tais como, descargas de efluentes domésticos ou industriais, lixiviação de vias urbanas e solos agriculturáveis. Corrobora afirmativa anterior, levantamento realizado no rio Mississipi (EUA) em 1977 apontando percentual da ordem de 80 % da matéria orgânica presente em virtude das substâncias húmicas de origem natural e elevado peso molecular, para apenas 15 % oriunda das atividades antrópicas. A prevalência das primeiras manifestava-se nas concentrações referenciadas em mg/L, ao passo que a matéria orgânica de origem antrópica em pg/L (Cohn; Cox.; Berger, 1999). Confere-se a genérica denominação de substâncias húmicas ao conjunto de compostos orgânicos de elevado peso molecular, de origem predominantemente vegetal e de dimensões coloidais, cuja constituição em média apresenta 87 % de ácidos fúlvicos, 11 % de ácidos himatomelânicos e apenas 2 % de ácidos húmicos, propriamente ditos. A supremacia dos primeiros, de cor amarela característica e menor peso molecular comparado aos demais, justifica-se por se constituir na fração mais solúvel do húmus natural dos solos (Branco, 1986). Para efeito de caracterização de águas para abastecimento, distingue-se a cor aparente, na qual se consideram as partículas suspensas, da cor verdadeira. A determinação da segunda realiza-se após centrifugação (a 3500 rpm por 30 min) ou filtração da amostra em filtro de papel para remoção das partículas suspensas. A determinação da intensidade da cor da água é realizada comparando-se a amostra com um padrão de cobalto-platina, sendo o resultado apresentado em unidades de cor (uC) ou unidade Hazen (uH). Desta forma, visando a facilitar a determinação da cor verdadeira, para sete amostras de águas naturais, com turbidez variando de 2,1 a 44 uT e cor aparente de 50 a 120 uH, foram realizadas determinações deste parâmetro após filtração em filtros de café (número 102) comumente encontrados no mercado e em filtros Whatman 40, o segundo de custo muito superior. Não foi detectada diferença significativa nos valores obtidos para cor verdadeira, indicando a possibilidade do uso do filtro de café para tais determinações na rotina de operação das estações de tratamento de água (Leal; Libânio, 2002). CAPITULO 02 Embora teores mais significativos de cor concorram para dificultar a manutenção da concentração residual do cloro nas redes de distribuição - além de favorecer a formação de subprodutos motivos eminentemente estéticos justificam o limite de 15 uH estabelecido pela Portaria 518 e pelo padrão americano.5 Valores acima do qual comumente são mais facilmente perceptíveis ao olho humano, concorrendo para rejeição da água fornecida pela concessionária pela população abastecida. Aguas com teores superiores a 100 uH, usualmente apresentam coloração semelhante ao chá e, salvo situações extremas de escassez, são plenamente rejeitadas pelo consumidor. A cor verdadeira constitui-se em importanteindicador da concentração de matéria orgânica presente nas águas naturais, embora não haja menção a este parâmetro para água tratada no atual Padrão de Potabilidade. Além da cor verdadeira, a inferência da concentração de matéria orgânica pode ser efetuada por meio da determinação do carbono orgânico total (COT), do oxigênio consumido, da demanda (bio)química de oxigênio - dois últimos raramente empregados em estações de tratamento de água - e da absorbância por raios ultravioleta6 a comprimentos de onda de 254 nm. Todavia, a cor ainda é monitorada na maioria das estações de tratamento do País por meio do emprego do disco comparador e, nos sistemas de maior porte, por espectrofotometria. Apesar da obsolescência e da imprecisão intrínseca decorrente da habilidade do operador da estação de tratamento, a confiabilidade do método de comparação visual é corroborada pelo Standard Methods. Recomenda-se que tal determinação deva ser realizada conjuntamente à do pH, pois a menores valores de pH associam-se maior intensidade da cor verdadeira. As águas naturais apresentam, em geral, cor verdadeira variando de 0 a 200 uH, e valores inferiores a 10 uH são praticamente imperceptíveis. Corpos d’água de cor naturalmente escura ocorrem em regiões ricas em vegetação e, consequentemente, de solos menos erodíveis. Neste contexto, o Rio Negro, afluente do Rio Amazonas, constitui-se exemplo paradigmático cujo nome alude à cor escura causada pela presença de produtos de decomposição vegetal e pigmentos de origem bacteriana. O intemacionalmente famoso encontro das águas reporta-se ao evidente contraste das águas escuras do primeiro com as turvas do segundo, conforme denota a figura 2.2. Figura 2.2. Encontro das águas entre o Rio Negro e o Rio Amazonas (Foto: Márcio B. Baptista, 2002). A importância da cor como parâmetro de qualidade de água adquiriu maior evidência após a confirmação, no início da década de 1970, da perspectiva de formação de produtos potencialmente 5. A Organização Mundial da Saúde não estabelece limite (denominado valor-guia) para cor. Recomenda o mesmo valor (15 uH) e estabelece máximo admissível de 50 uH. 6. É frequente no meio científico, menção à concentração de matéria orgânica em termos da adsorbância específica (SUVA - Specific Ultraviolet Light Asorbance) que consiste na razão entre a absorbância determinada a 254 nm e o carbono orgânico dissolvido (L/mg-m). Este por sua vez é a fração dissolvida do COT após filtração em membrana de 0,45 um. 28 ■ ■ ' ■ . ■ cancerígenos (trihalometanos - THM) como consequência da cloração de águas coloridas com a finalidade de abastecimento. Vale ressaltar que os THM não são os únicos subprodutos da desinfecção, mas, especialmente, verifica-se maior prevalência na formação de espécies halogenadas do que de outros subprodutos, e seus efeitos na saúde têm sido avaliados há mais de três décadas, a despeito da amplitude de variação deste parâmetro nos diversos países. Conforme mencionado, a matéria orgânica presente nas águas naturais é composta de substâncias húmicas e não húmicas. As primeiras referem-se ao mencionado conjunto de compostos orgânicos de dimensões coloidais e de origem predominantemente vegetal cuja constituição média congrega ácidos fúlvicos, em maior monta, e ácidos húmicos, propriamente ditos. Já proteínas, carboidratos, algas e seus produtos metabólicos, aminoácidos, ácidos carboxílicos e hidrocarbonetos, em especial, constituem as substâncias não húmicas. Há controvérsia acerca da parcela predominante na matéria orgânica, embora as substâncias húmicas tendam a prevalecer em mananciais menos impactados por atividades antrópicas ou nos quais não se verificam florações de algas. A distinção da parcela concernente aos ácidos fúlvicos na matéria orgânica natural ganhou projeção no meio científico pela menor susceptibilidade destes à coagulação. Por outro lado, os ácidos húmicos, de maior peso molecular, apresentam capacidade de ao complexarem traços de metais, como ferro por exemplo, contribuir ainda mais significativamente para cor das águas naturais e, embora mais facilmente removidos na coagulação, formam maiores concentrações de THM e ácidos haloacéticos (AHA) (Shomey; Freeman, 2004). Nesta perspectiva, o emprego de diversos processos oxidativos - ozônio, ultravioleta, peróxido de hidrogênio, isoladamente ou série - tende a reduzir o peso molecular destas substâncias tomando-as menos reativas com o cloro e reduzindo a coloração da água tratada (Owen; Amy; Chowdhury, 1993). A presença de matéria orgânica, além de fomentar a formação de subprodutos, pode conferir odor e sabor às águas, interferir na remoção de ferro e manganês e propiciar condições para o recmdescimento de microrganismos na rede de distribuição. Já há alguns anos, pesquisadores têm investigado os fatores intervenientes no crescimento dos biofilmes nas redes de distribuição, concluindo que o mesmo ocorre quando a matéria orgânica e os sedimentos acumulam-se nas redes e a temperatura da água eleva-se. Atribui-se à parcela não húmica da matéria orgânica papel mais relevante no desenvolvimento destes biofilmes. Fatores hidráulicos e ambientais - tais como pH, temperatura e pluviosidade, além da presença de resíduos de desinfetantes, a corrosão e a acumulação de sedimentos - têm sido relacionados ao crescimento de bactérias nas águas de abastecimento. Turbidez, sólidos suspensos e contagem de partículas Estes três parâmetros, em última instância, referem-se predominantemente à mesma carac terística, qual seja, a concentração de partículas suspensas e coloidais presentes na massa líquida e apresentam significados semelhantes em termos de qualidade de água, embora apenas a turbidez se insira nos padrões de potabilidade nacional e internacional. Comumente, respondem pela turbidez das águas naturais, fragmentos de argila, silte, plâncton, microrganismos, e matéria orgânica e inorgânica particulada. Ainda que com menor frequência, a turbidez pode também ser causada pela precipitação de carbonato de cálcio para águas duras, de óxido de ferro e de compostos de alumínio em águas tratadas. A determinação da turbidez adquiriu primazia como parâmetro de monitoramento do afluente e efluente da quase totalidade das estações de tratamento de água do Planeta pela simplicidade e rapidez da determinação, além do significativo menor custo do equipamento envolvido comparado aos necessários à determinação de sólidos suspensos e da contagem de partículas. A turbidez como característica física acaba por se constituir em uma inferência da concentração de partículas suspensas na água obtida por meio da passagem de um feixe de luz através da amostra, sendo expressa por meio de unidades de turbidez (uT), também denominadas unidades nefelométricas de turbidez (UNT) ou, em tempos idos, unidades Jackson. A despeito da miríade de materiais que confere turbidez às águas, a prevalência das partículas de silte e argila testifica-se pelo fato de 1,0 uT representar 1,0 mg Si02/L. Originalmente, constituía-se em um parâmetro de natureza limnológica por meio do qual se inferia a profundidade de penetração da luz no corpo d’água (Burlingame; Pickel; Roman, 1998). Posteriormente, segundo American Public Health Association, a turbidez passou a ser definida como expressão da propriedade óptica que faz a luz ser dispersa ou absorvida em vez de ser transmitida em linha reta através da amostra. Portanto, águas de mesma intensidade de turbidez podem apresentar partículas suspensas com características diferentes - em termos de tamanho, composição e forma -, de modo que os tipos de partículas hão de interferir na transmissão da luz (APHA; AWWA; WEF, 2005). O princípio básico do funcionamento dos equipamentos de determinação nefelométrica de turbidez consiste em um detector disposto a um determinado ângulo em relação ao raio de luz incidente. A posterior detecção da luz refletida pelas partículas suspensas e coloidais é convertida em sinal elétrico e registrada no painel doequipamento. Para o ângulo de 90°, o equipamento denomina- -se nefelômetro ou turbidímetro, e a técnica de determinação nefelometria. Aliado às características das partículas suspensas, o comprimento de onda da luz incidente interfere na transmitância da luz. Além disso, outros fatores podem afetar os valores de turbidez medidos por diferentes equipamentos. Destacam-se o tipo de lâmpada, as lentes, as células para amostragem, a deterioração e a mencionada orientação da fonte de luz e do detector, o número de detectores, a limpeza interna do medidor, a susceptibilidade a vibrações e a interferências eletrônicas, e a capacidade de fornecer estabilidade nas leituras. Neste contexto, alguns fabricantes têm procurado aprimorar a qualidade e a precisão de seus equipamentos, dotando-os de múltiplos detectores que compensam a interferência de fatores como a cor na amostra, flutuações de desvio de luz, entre outros fatores (Hach; Vanous; Heer, 1989). A turbidez natural das águas superficiais está geralmente compreendida na faixa de 3 a 500 uT, e inferior a 1,0 uT para águas subterrâneas com significativa frequência decorrente da presença de ferro e manganês como também ocorre para a cor. Em lagos e represas, onde a velocidade de escoamento da água é menor, a turbidez tende a ser bastante baixa, com muita frequência inferior a 10 uT. Além da ocorrência de origem natural, a turbidez da água pode também ser causada por lançamentos de esgotos domésticos ou industriais. No Brasil, a turbidez dos corpos d’água é particularmente elevada em regiões com solos erodíveis, onde as precipitações podem carrear partículas de argila, silte, areia, fragmentos de rocha e óxidos metálicos do solo. Grande parte das águas de rios brasileiros é naturalmente turva em decorrência das características geológicas das bacias de drenagem, dos índices pluviométricos e do uso de práticas agrícolas muitas vezes inadequadas. Por outro lado, regiões de clima frio menos susceptíveis a precipitações intensas apresentam águas naturais de turbidez significativamente mais baixa. Esta discrepância confirma-se na análise das figuras 2.3 e 2.4 nas quais estão apresentadas as médias mensais da turbidez da água bruta afluente a duas estações de tratamento no Brasil e no Canadá, respectivamente. Na figura 2.3 reporta-se à média geométrica mensal dos dados diários de turbidez da água bruta no período 1997-2000 afluente a uma estação de médio porte na Região Sudeste do País (vazão média de 145 L/s), ao passo que a figura 2.4 refere-se à média aritmética no período 2002-2004 para uma das estações da cidade de Edmonton (vazão média de 1,7 m3/s) na província de Alberta (Canadá). Cabe ressaltar que ambas captações realizam-se diretamente no curso d’água sem qualquer estrutura que minimize o aporte de sólidos às estações e a segunda unidade localiza-se praticamente na região central da cidade. CAPITULO 02 3 ® ................... ■ ........................... ■ • ...................................................................... ..................................................... Meses Figura 2.3. Média geométrica mensal da turbidez da água bruta afluente a uma estação de médio porte brasileira. Figura 2.4. Média aritmética mensal da turbidez da água bruta afluente a uma estação de grande porte canadense. A magnitude dos valores de turbidez para estação brasileira manifesta-se pelo próprio emprego da média geométrica como medida de tendência central, menos susceptível à influência de valores extremamente elevados que a média aritmética, e motivou a elaboração da figura 2.5. A significativa variação da turbidez da água bruta ao longo do período amostrado para estação brasileira motivou realização de uma análise de consistência dos dados, tendo sido detectado em períodos esparsos a improvável repetição de elevados valores de turbidez da água bruta, cujo descarte ou inserção, não comprometería o resultado das análises estatísticas realizadas em virtude do tamanho da amostra. A definição dos intervalos desiguais de frequência relativa estabelecidos para os valores da turbidez da água bruta, embora inusuais, objetivou inferir o tempo de funcionamento da estação para o qual tecnologia de potabilização mais simples pudesse ser empregada (Viana; Libânio, 2002). Enquanto a turbidez da água bruta afluente à estação canadense foi determinada por meio de equipamento de escoamento contínuo - inferindo-se a cada hora os valores máximo, mínimo e médio -, na estação brasileira a análise realizava-se por meio de equipamento de bancada. Para a segunda, ainda que possam ter ocorrido variações significativas entre duas análises sucessivas desta característica física, a magnitude do universo amostrai (mais de 34 mil resultados) permite associar os valores de turbidez ao tempo de funcionamento da estação. Desta forma, pode-se afirmar que em mais de,26 % do tempo de funcionamento da estação afluiu a mesma água com turbidez superior a 200 uT e, no período chuvoso, frequentemente valores superiores a 1000 uT. Paradoxalmente, verificaram-se apenas 60 eventos pontuais desta natureza na estação canadense (turbidez superior a 200 uT) e em apenas três vezes este parâmetro superou 1000 uT quando do início do degelo. CAPÍTULO 02 30,00 i r 120 26,26 - 100 0,00 0 0 < x < 5 5 < x < 15 15 < x < 50 50 < x < 200 >200 Turbidez da água bruta (uT) Figura 2.5. Frequências relativas simples e acumulada dos valores de turbidez da água bruta afluente a uma estação de médio porte brasileira. Para fins de potabilidade, a turbidez da água filtrada vem progressivamente consolidando-se em todo Planeta como um dos principais parâmetros na avaliação do desempenho das estações de tratamento, transcendendo o aspecto estético a ela associado. Há muito no meio técnico consolidou-se a premissa da maior eficiência da desinfecção, independente do desinfetante empregado, para águas com turbidez baixa, em virtude da proteção conferida aos microrganismos pelas partículas suspensas na massa líquida, por vezes denominada efeito-escudo. Em outro contexto, as partículas suspensas podem ser capazes de adsorver substâncias tóxicas, tais como agrotóxicos organoclorados e outros compostos orgânicos, e sua remoção reduziría de roldão a concentração destes compostos. Esta assertiva comprova-se pelo padrão de potabilidade estabelecido pela Portaria 518, embora águas com turbidez inferior a 5,0 uT, comumente não cause rejeição pela população abastecida. Consoante com padrões internacionais, esta Portaria estabelece para águas de consumo humano, limite máximo permissível de 1,0 uT7 no efluente da estação de tratamento - recomendando enfaticamente valores inferiores a 0,5 uT em 95 % das amostras mensais -, essencialmente objetivando assegurar o êxito das etapas de clarificação na remoção física e da desinfecção nâ inativação de patogênicos mais resistentes. Limites ainda mais restritivos são empregados nos EU A -jam ais exceder 1,0 uT e 0,3 uT em 95 % das amostras em um dado mês - e províncias do Canadá, embora o padrão neste país também seja 1,0 uT. Contudo, diversos estados americanos e províncias canadenses adotaram voluntariamente limite de 0,1 uT. Por fim, embora a OMS não estabeleça valor limite em termos de risco à saúde (o valor de 5,0 uT é mencionado em termos de aceitabilidade pelo consumidor), há recomendação de se produzir água tratada com turbidez média inferior a 0,1 uT, como forma de avaliação da performance do tratamento e visando à otimização da desinfecção. O emprego da turbidez como parâmetro indicador da eficiência do tratamento encontra respaldo em recentes estudos associando a remoção desta característica física à de cistos e oocistos de protozoários. Nesta perspectiva, as normas mundiais para água de consumo têm-se tomado progressivamente mais restritivas para os limites da turbidez da água filtrada. A afirmativa anterior é corroborada por pesquisa (Patania et al., 1995), avaliando a remoção de cistos e oocistos de protozoários, Giardia muris e Cryptosporidium parvum, realizadaem diversas unidades-piloto, totalizando 105 pontos de amostragem, em três estados americanos - Oregon, 7. A Portaria 518 estabelece que até 5 % das amostras do efluente da estação de tratamento podem apresentar turbidez superior a 1,0 uT assegurando-se o valor máximo permissível de 5,0 uT na rede de distribuição.CAPÍTULO 02 Washington e Califórnia empregando águas naturais com turbidez inferior a 10 uT. Embora os resultados apontassem baixa correlação entre a remoção de turbidez e ad e protozoários, a elevação de 0,1 a 0,3 uT da turbidez da água filtrada esteve associada à redução de 1,0 log8 na remoção destes microrganismos. Também com intuito de inferir a concentração de partículas nas águas naturais, a partir da década de 1990 inseriu-se na rotina das estações de tratamento dos EUA e Canadá a contagem de partículas (n°/mL). O fundamento do emprego dos contadores de partículas calca-se na bidimensionalidade desta medida, ao passo que a determinação da turbidez - como o próprio princípio de funcionamento dos turbidímetros evidencia - ê uma medida unidimensional do grau de transparência da água. Esta determinação objetiva associar a remoção de partículas de determinada faixa de tamanho à de microrganismos patogênicos, uma vez que os contadores são capazes de detectar alterações na concentração de partículas não detectáveis pelos turbidímetros, especialmente para valores de turbidez inferiores a 0,1 uT. Exemplo do emprego dos contadores de partículas visou a avaliar a ocorrência de cistos de Giardia e oocistos de Crypto na água tratada em estudo realizado em 66 estações de tratamento localizadas em 14 estados dos EUA e uma província do Canadá. Em relação à água bruta, detectou- -se a presença dos mesmos, respectivamente, em 81 e 87 % das amostras oriundas de mananciais superficiais. A ocorrência de cistos e oocistos destes protozoários foi verificada em 39 % das amostras dos efluentes de estações de tratamento de água cuja turbidez média era de 0,19 uT. Em 78 % dos casos de detecção dos protozoários os efluentes apresentavam turbidez inferior a 0,5 uT. Embora as estações envolvidas nesta pesquisa apresentassem efluentes com turbidez média de mesma magnitude, a contagem do número de partículas apontou diferenças de até 1000 vezes (LeChevallier; Norton, 1997). Esta constatação também aflorou em pesquisa anterior utilizando contadores de partículas e turbidímetro de escoamento contínuo para o monitoramento da água filtrada. Verificou-se que variações de 0,01 uT redundavam em alterações da ordem de 550 partículas/mL com dimensão superior a 0,7 pm (Hargesheimer; Lewis; Yentsch, 1992). Uma vez que a maioria dos equipamentos detecta somente partículas maiores que 1 pm, esta contagem acaba centrando-se sobretudo nas partículas suspensas causadoras de turbidez. Desta forma, há significativa correlação entre a determinação de turbidez e a contagem de partículas, em especial para águas com turbidez superior a 0,1 uT. Tal correlação confirmou-se no mencionado estudo durante o monitoramento de 220 h da água filtrada com turbidez de 0,07 a 0,15 uT, apresentando coeficiente de determinação (R2) de 0,985. O emprego dós contadores de partículas de escoamento contínuo, para águas com turbidez consistentemente inferior a 0,1 uT, foi objeto de avaliação em outra estação de tratamento de grande porte da província de Alberta (Canadá). Neste estudo, diferentemente dos citados, objetivava-se aferir o resultado das alterações nas dosagens de produtos químicos valendo-se da contagem de partículas da água filtrada com dimensão maior ou igual a 2 pm, compatível à de cistos e oocistos de protozoários. Aplicaram-se dosagens de sulfato de 5, 6, 8 e 10 mg/L, e comprovou-se a maior acurácia da contagem de partículas em relação à determinação da turbidez na detecção de pequenas variações nas dosagens de coagulantes. A avaliação norteou-se nas análises de frequência acumulada de partículas detectadas nos efluentes dos filtros, culminando - após definição da melhor dosagem - com sensível redução do aporte de partículas na água filtrada (Hargesheimer et al, 1998). No Brasil o custo destes equipamentos praticamente os tem restringido às instituições de pesquisa e em raríssimas estações de tratamento de sistemas de maior porte estes se fazem presentes. 8. Há mais de uma década verifica-se a tendência de se reportar à redução de microrganismos em unidades logarítmicas, ou seja, 1 log corresponde a uma eficiência de 90 %, 2 log a 99 %, e assim sucessivamente. CAPITULO 02 33 Desta maneira, comparação entre o contador de partículas e o turbidímetro de bancada foi objeto de estudo englobando água bruta natural, decantada e filtrada em unidade-piloto instalada em uma estação de tratamento de água. Para as 90 amostras, a concentração de partículas - nesta pesquisa atipicamente referenciada em cm3/L - reportava-se o número de partículas ao diâmetro médio de caia uma das oito faixas de tamanho variando de 2 a 350 pm. Os resultados evidenciaram significativa correlação entre os dois parâmetros para água bmta e com menor significância para as águas decantada e filtrada, conforme evidencia a figura 2.6 (Pádua; Di Bernardo, 2001). Concentração de partículas (cm3/L) Figura 2.6. Relação entre a turbidez e volume médio de partículas para as águas bruta (a) e filtrada (b). A diferença significativa entre os dois coeficientes de determinação apontam para dois cenários. O primeiro evidencia a menor relevância do emprego dos contadores de partículas no monitoramento de água bruta, pois, a determinação da turbidez fornece informação expedita e fidedigna acerca da concentração de sólidos suspensos. Por outro lado, para os efluentes das estações de tratamento a contagem de partículas guarda maior especificidade, pois águas de turbidez de mesma magnitude podem apresentar predominância de tamanhos de partículas que tomem a desinfecção mais ou menos eficiente. Tal se deve ao mencionado efeito-escudo que protege os microrganismos da ação do desinfetante. Para valores praticamente equânimes de turbidez, a predominância de partículas cujas dimensões superam à dos microrganismos patogênicos tenderá a tomar a desinfecção por agente químico menos efetiva. É intrínseca a correlação entre a turbidez e a concentração de sólidos suspensos, como parcela dos sólidos totais cuja distribuição é apresentada na figura 2.7. Sedimentáveis Em suspensão Não sedimentáveis Sólidos totais < Voláteis Dissolvidos Fixos Figura 2.7. Distribuição genérica dos sólidos presentes nas águas naturais. As frações de sólidos podem ser assim definidas (Piveli; Kato, 2006): • sólidos totais constituem nos resíduos após evaporação em banho-maria e posterior secagem a 103-105 °C; • sólidos suspensos constituem-se a porção em massa com dimensões superior a 1,2 pm, retida após filtração; • sólidos voláteis é a porção dos sólidos totais, dissolvidos ou suspensos que se volatiliza após calcinação a 550-600 °C, por 15 min para sólidos suspensos ou 60 min para sólidos totais e dissolvidos; CAPÍTULO 02 A o i ) ^ • sólidos fixos, analogamente, constituem-se a porção dos sólidos totais, dissolvidos ou suspensos que resta após calcinação a 550-600 °C, por 15 min para sólidos suspensos ou 60 min para sólidos totais e dissolvidos; • sólidos sedimentáveis é a porção de sólidos suspensos que se sedimenta quando mantida em repouso em cone Imhoff de um litro durante uma hora. A parcela dissolvida dos sólidos haverá de conferir em especial cor verdadeira às águas naturais e o padrão de potabilidade estabelecido pela Portaria 518 reporta-se à concentração máxima de 1000 mg/L (como sólidos dissolvidos totais). A correlação entre a turbidez e a concentração de sólidos suspensos pôde ser demonstrada valendo-se do monitoramento da água bruta afluente a uma unidade-piloto de filtração lenta, conforme mostra a figura 2.8. A correlação entre sólidos suspensos para com a turbidez e a cor aparente foi objeto de uma avaliação mais abrangente contemplando18 anos de dados operacionais (1980-97) de duas estações de tratamento responsáveis pelo abastecimento de Vitória e Cariacica (ES) com base no mesmo curso d’água. A amostra constou de 312 determinações de sólidos totais e a análise balizou-se em quatro cenários: considerando todos os dados, e separando-os em dias de chuva, sem chuva e por faixas de concentração de sólidos suspensos. Os resultados para os três primeiros cenários estão apresentados na tabela 2.1, destacando-se os valores mais elevados do coeficiente de detenninação para cada cenário em função do tipo de modelo de regressão empregado (Piccolo; Pinto; Teixeira, 1999). Tabela 2.1. Valores de R2 valendo-se dos diferentes tipos de regressão e três cenários de análise. RegressãoTodos os dados Dados com chuva Dados sem chuva 55 x C. A 55x Turb. 55 xC. A 55 x iu rb . 55 x C. A 55x Turb. Linear 0,7837 0,7970 0,8669 0,8859 0,3516 0,4041 Potência • 0,6531 0,7464 0,8138 0,8627 0,4035 0,5231 Exponencial 0,5779 0,5819 0,5996 0,5848 0,4363 0,5329 Obs.: SS - sólidos em suspensão (mg/L); C. A. - cor aparente (uC); Turb. - turbidez (uT). Como seria de esperar, os coeficientes de determinação para regressão linear foram significativos tanto para cor aparente quanto para turbidez, e de mesma magnitude, para a totalidade dos dados e para os coletados em dias com chuva. Ao analisar os dados gerados em dias sem chuva, a correlação para com a cor aparente foi mais pronunciadamente inferior à da turbidez, pois, a parcela dos sólidos dissolvidos - não contemplada na análise de sólidos suspensos - contribuiu mais significativamente para aquele parâmetro. As baixas CAPÍTULO 02 35 correlações também para a turbidez podem ser explicadas pelo emprego de apenas uma estação pluvio métrica, podendo chuvas não detectadas por esta estação terem contribuído para a maior dispersão dos resultados. Os resultados da correlação por faixa de de concentração de sólidos suspensos são apresentados na tabela 2.2. Tabela 2.2. Valores de R2 por faixa de valores de sólidos suspensos. RegressãoSS < 30 mg/L 31 mg/L < S5 < 69 mg/L 70 mg/L < SS <28s mg/L S 5 x '€ A 55 x Turb. 55 x C. A. 55 x Turb. : 55 xC. A 55 x Turb. Linear 0,5372 0,8194 0,2272 0,1664 0,8803 0,9618 Potência 0,5725 0,8374 0,1664 0,1335 0,7905 0,8811 Exponencial 0,3517 0,6520 0,1921 0,1645 0,8955 0,9675 Os resultados da tabela 2.2 confirmam a estreita correlação entre os parâmetros avaliados para os valores mais elevados de sólidos suspensos, correspondendo aos períodos de precipitação o maior carreamento de partículas ao corpo d’água. E, como não podia deixar de ser, sempre que a correlação mostrou-se mais significativa, o coeficiente de determinação foi superior para turbidez. A determinação da concentração de sólidos, nos seus diversos matizes, não é comumente realizada nas estações de tratamento em virtude da morosidade das análises, aos equipamentos necessários e à menor precisão pra menores concentrações, sendo substituídas pelas análises de cor, aparente e verdadeira, e turbidez. Por fim, outro parâmetro diretamente associado à turbidez é a transparência, utilizada sobretudo no caso de lagos e represas, parâmetro obtido mergulhando-se na água um disco de 20 a 30 cm de diâmetro9 e anotando-se a profundidade de desaparecimento. Lagos turvos apresentam transparências reduzidas, da ordem de poucos centímetros até um metro, ao passo que em lagos cristalinos, a trans parência pode atingir algumas dezenas de metros. A estimativa da profundidade atingida pela luz, denominada zona fótica e de crucial importância para o desenvolvimento da comunidade fitoplanctônica, dá-se considerando aproximadamente o triplo da profundidade de desaparecimento do disco. Sabor e odor A conceituação de sabor envolve uma interação de gosto - salgado, doce, azedo e amargo - com o odor, sendo portanto imensuráveis. Apesar de sensações distintas, usualmente são referenciadas conjuntamente. Embora possam existir odores agradáveis, de ervas ou de terra, frequentemente associa-se o odor nas águas de consumo sob o ponto de vista negativo. Sua origem está associada tanto à presença de diversas substâncias químicas ou gases dissolvidos10, algumas das quais utilizadas no próprio tratamento como o cloro e, mais raramente, o ozônio. As manifestações de odor e sabor apresentam causas distintas para águas superficiais e subterrâneas. Para as primeiras, compostos orgânicos resultantes do metabolismo de alguns microrganismos - em especial algas, cianobactérias e actinomicetos11 -, decomposição de folhas e plantas aquáticas, lançamento 9. Disco de Secei, denominação em homenagem a seu inventor, naturalista italiano. 10. Gás carbônico, oxigênio, nitrogênio, amônia, sulfeto de hidrogênio e, em menor frequência, metano constituem-se os gases mais usualmente encontrados nas águas naturais, alguns dos quais passíveis de conferir odor e sabor. Os três primeiros perfazem a quase totalidade da composição do ar atmosférico e os demais decorrem da decomposição da matéria orgânica presente pela ação das bactérias. 11. Bactérias filamentosas comumente presentes no solo que apresentam odor característico de terra e capazes de produzir os compostos denominados Geosmina e 2-metilisobomeol (MIB). de efluentes industriais e lixiviação de solos agriculturáveis habitualmente constituem-se nas principais causas de sabor e odor nas águas superficiais. Diferentemente, para as águas subterrâneas odor e sabor advêm usualmente de fenômenos naturais, ainda que as ações antrópicas possam agudizar tais características. Em primeira instância, destaca-se a ação bacteriana na decomposição anaeróbia de enxofre orgânico, sulfatos e sulfitos gerando ácido sulfídrico - produzindo odor característico de ovo podre - e na redução de compostos de ferro e manganês (a ser detalhado em item subsequente). Inserem-se também nesta vertente, a dissolução de sais e minerais pa percolação da água através de solos e rochas, a intrusão de água do mar - usual nas regiões costeiras, especialmente onde se aduz vazão superior à capacidade do aquífero, elevando a concentração de cloretos - e, mais recentemente de característica eminentemente antrópica, a percolação do lixiviado de aterros sanitários (Montgomery, 2005). Diversos compostos podem conferir sabor e odor às águas e mesmo não causando dano à saúde fazem com que estas águas sejam prontamente rejeitadas pela população, situação que se não manifesta quando da presença de metais pesados, com maior frequência mais deletérios à saúde humana. Adicionalmente, sabor e odor podem estar também associados: • a compostos orgânicos aromáticos, majoritariamente presentes em efluentes industriais, como fenóis e nitrofenóis; • ao crescimento microbiano, e subsequente subprodutos do metabolismo, nas redes de distribuição; • a concentrações significativas de cloro residual e resultante reação com compostos orgânicos e/ou microrganismos na rede de distribuição. ' A importância do sabor e odor testifica-se na significativa possibilidade da mencionada rejeição pela população abastecida conduzir ao consumo e uso de outra fonte de qualidade duvidosa, mas insípida e inodora. No famoso surto de cólera ocorrido em Londres em meados do século XIX - que se constituiu em um marco para epidemiologia pela confirmação da cólera como doença de transmissão hídrica -, a população abastecia-se da água contaminada do poço no distrito de Broad Street devido ao seu gosto agradável. Mesmo moradores residentes próximos a outras fontes de abastecimento optavam pelo poço contaminado (Olcun, 1996). Dentre os compostos orgânicos naturais responsáveis por conferir odor e sabor às águas de consumo, destacam-se MIB (2-metilisobomeol) e geosmina - compostos produzidos por algas, cianobactérias e actinomicetos -, não associados a efeitos deletérios à saúde e passíveis de serem percebidos a concentrações inferiores a 5 ng/L. Além de naturalmente produzidos no ambiente, estes compostos apresentam padrão variável de ocorrência e difícil remediação com as tecnologiasusuais de tratamento, recaindo quase que via de regra para adsorção com carvão ativado, tomando-se a principal causa de reclamações de odor e sabor na América do Norte (AWWA - American Water Works Association, 2002). No Brasil, a quase totalidade das estações de tratamento de água encontra-se impossibilitada de realizar análises de MIB e geosmina, com o controle centrado nos microrganismos responsáveis por sua geração. Tal fato deve-se ao elevado custo das técnicas analíticas para sua identificação e quantificação (cromatografia gasosa acoplada a espectrofotômetro de massa) que requerem corpo técnico treinado e altamente especializado. Como consequência da contaminação dos aquíferos freáticos por postos de gasolina, recen temente o composto MTBE (metil terciário butil éter) inseriu-se no rol dos causadores de odor às águas. Trata-se de um aditivo misturado à gasolina objetivando reduzir a geração de gases nos motores a combustão. Assim como MIB e geosmina, o composto MTBE não é adequadamente removido pelas tecnologias usuais de potabilização, cuja solução também normalmente conduz à aplicação de carvão ativado. Para consumo humano e usos mais nobres os padrões de potabilidade exigem que a ágga seja insípida e completamente inodora. Todavia, mesmo em nível internacional, não há metodologia estabelecida bem como padrões de qualidade aptos a se inserir na rotina operacional das estações de tratamento para detecção de odor e sabor nas águas de abastecimento. Desta forma, o controle de odor e sabor nas estações de tratamento brasileiras, e em significativa maioria dos países, realiza-se de forma absolutamente pmpírica calcado na “suposta” sensibilidade dos responsáveis pela operação em perceber alterações de sabor e odor na água de consumo. Ilustra esta afirmativa, estação de tratamento de médio porte no estado de Minas Gerais, vazão média afluente da ordem de 400 L/s, dotada de operação altamente qualificada na qual a dosagem de carbono ativado em pó era alterada com base no odor percebido pelo responsável pela operação. A concentração algal e a pré-cloração na unidade de captação favoreciam a presença de compostos orgânicos, cuja remoção era otimizada por meio de aplicação de carvão ativado em pó, aplicado em dosagens de 5 a 10 mg/L na entrada da estação de tratamento. Além da mencionada dificuldade de monitoramento destes compostos orgânicos, a intan gibilidade da aferição de sabor e odor tem motivado o desenvolvimento de técnicas alternativas, tais como Painel Sensorial e Número Limiar de Odor12. O último fundamenta-se em sucessivas diluições da amostra de água de consumo. Desta forma, às amostras cujo odor somente é perceptível sem a diluição da amostra atribui-se número 1, ao passo que àquelas cujos odores continuam a se manifestar após cinco diluições recebem valor 5. Enquanto a maioria dos parâmetros de qualidade de água encontra-se com os valores máximos permissíveis estabelecidos, as análises de sabor e odor apresentam dificuldade intrínseca relacionada à variedade de compostos químicos que não causam malefícios à saúde, mas que se constituem, junto com as características concernentes ao aspecto visual da água (cor e turbidez), nas reclamações mais recorrentes dos consumidores. Esta relevância das características da água que aguçam os sentidos da visão (cor e turbidez) e do paladar e olfato (sabor e odor) manifestou-se claramente em amplo levantamento realizado em 2000 contemplando 160 sistemas de abastecimento de água americanos e canadenses. Neste levantamento foram listadas as reclamações mais frequentes dos consumidores, cujos resultados estão apresentados na figura 2.9. Outros - 5% 3% - Cloro Residual Cor e Turbidez - 43% 5% - Análise Bacteriológica 44% - Sabor e Odor Figura 2.9. Principais reclamações dos consumidores em sistemas americanos e canadenses. Evidencia-se pela figura 2.9 que 87 % das reclamações advieram do aspecto visual (43 %), e gustativo e olfativo (44 %), e as próprias reclamações acerca de cloro residual poderiam ser inseridas também como problemas de odor e sabor. 12. Técnicas desenvolvidas nos EUA denominadas, respectivamente, Flavor Profile Analysis e Threshold Odor Number. Levantamento mais amplo realizado em 1989, contemplando 377 sistemas de estados ameri canos e da província de Alberta (Canadá), com vazão variando de 308 L/s a 66 m3/s (média de 530 L/s) e população média abastecida de 220 mil pessoas, apontou que os problemas de odor e sabor são mais pronunciados nos sistemas que utilizam água superficial. Estimou-se o dispêndio recursos para o controle de sabor e odor como da ordem de 4,5 % do orçamento dos sistemas de abastecimento (Suffet et al., 1996). Dos sistemas cujos responsáveis que responderam o questionário,13 16 % avaliaram como sérios os problemas de sabor e odor, de ocorrência sazonal e significativamente relacionados à rede de distribuição e à concentração do cloro residual. Como seria de se esperar, as causas prováveis dos eventos de odor e sabor eram de distintos matizes e intrinsecamente relacionados ao tipo de manancial, conforme denota a figura 2.10. «oO Compostos orgânicos sintéticos Esgotos domésticos e industriais Bactéria Inversão térmica Decaimento de vegetação Compostos inorgânicos Plâncton Desinfetante Rede de distribuição th H Superficial □ Subterrâneo 0 5 10 15 20 25 30 35 40 Respostas (%) Figura 2.10. Principais causas prováveis dos eventos de sabor e odor nos 377 sistemas amostrados em função do tipo de manancial. Apesar de algumas respostas algo imprecisas - por exemplo, é pouco crível como a inversão térmica14 em um reservatório possa afetar significativamente a qualidade da água subterrânea -, análise da figura 2.10 evidencia o menor número de causas prováveis dos eventos de sabor e odor para os mananciais subterrâneos, pois 91 % das respostas referem-se a tão somente três causas mencionadas pelos responsáveis. Em contrapartida, a inequívoca maior susceptibilidade dos mananciais superficiais à poluição, tanto pontual como difusa, traduziu-se por distribuição mais uniforme das respostas com pelo menos seis causas mais significativas. Dos sistemas que utilizavam somente água superficial - perfazendo 45 % da amostra - 54 % reportaram-se a problemas de odor e sabor de intensidade semelhante à verificada em 25 % dos sistemas que utilizavam somente águas subterrâneas (20 % do universo amostrai15), conforme mostra a figura 2.11. 13. O questionário foi enviado aos responsáveis pela operação de 826 sistemas, dos quais 426 de grande porte e 200 de pequeno e médio porte. 14. Nas regiões de clima temperado, o degelo da camada superficial do lago ou reservatório no início da primavera favprece a elevação da temperatura e ao atingir 4 °C, condição de máxima densidade (ou massa específica), esta parcela de água toma-se mais pesada e desce em direção ao fundo revolvendo as camadas mais profundas, justificando a denominação spring turnover. Nas regiões tropicais, em algumas épocas do ano, o resfriamento da camada superficial no final do dia pode resultar em semelhante fenômeno. 15. O restante do universo amostrãl compunha-se de sistemas de abastecimento que adquiriam água valendo-se de outros ou que utilizavam concomitantemente mananciais superficiais e subterrâneos. CAPÍTULO 02 CAPÍTULO 02 Figura 2.11. Grau severidade dos eventos de odor e sabor em função do tipo de manancial. Na mesma vertente, a duração dos episódios de distribuição de água com odor e sabor, quando do uso de mananciais superficiais, foi significativamente superior (figura 2.12). semana semanas semanas Figura 2.12. Duração dos episódios de odor e sabor em função do tipo de manancial. Por fim, o levantamento contemplou avaliação da sazonalidade dos episódios de geração de odor e sabor. Como seria de esperar, para os sistemas abastecidos por mananciais de superfície, 75 % dos episódios ocorreram durante a estação chuvosa, primavera e verão, na qual o carreamento de substâncias passíveis de conferir odor e saboràs águas de consumo toma-se mais significativo e o florescimento algal mais proeminente pela elevação da temperatura e da insolação. Esta supremacia foi menos pronunciada para os mananciais subterrâneos (55 % dos episódios), menos susceptíveis às variações sazonais de qualidade de água. A mencionada técnica do Painel Sensorial foi aplicada em estudo realizado em dois dos sistemas de abastecimento da Região Metropolitana de São Paulo, Guarapiranga e Alto Tietê, que atendem população da ordem de seis milhões de pessoas à vazão média em tomo de 14 e 10 m3/s, respectivamente. Em ambos sistemas, cujas captações realizam-se por meio de reservatórios de acumulação, havia registros de ocasionais problemas de sabor e odor causados pela presença de MIB e geosmina na água tratada. O painel foi composto por gmpos de quatro ou cinco técnicos da concessionária e utilizou-se a Roda de Sabor e Odor16 desenvolvida no final dos anos 80 pela American Water Works Association para avaliação das análises sensoriais. A intensidade de sabor e odor foi avaliada numericamente por meio de escala contendo sete níveis de percepção: isento (0), limiar (2), fraco (4), fraco a moderado (6), moderado (8), moderado a forte (10) e forte (12). O estudo visou a correlacionar as concentrações de MIB e geosmina na água tratada, à percepção dos painelistas e às reclamações dos usuários. 16. Técnica de análise sensorial na qual se listam em uma carteia circular 13 distintas percepções de sabor e odor, de terra/mofo a sensação táctil, passando por clorado, peixe, salgado e amargo. A pesquisa apontou, valendo-se do histórico de reclamações dos consumidores, maior tolerância a concentrações de MIB, que no sistema Guarapiranga atingiram de 300 a 500 ng/L. Segundo os autores, tal constatação pode estar relacionada ao longo tempo (15 anos) que a população é abastecida com água com concentrações variáveis deste composto orgânico - acostumando-se aos odores característicos mais facilmente assimiláveis -, e pela sua presença em concentrações ainda mais elevadas em ampla gama de alimentos, como batata, beterraba e cenoura. De forma geral, recomenda- -se a análise sensorial como alternativa viável, sobretudo após se efetuar a descloração da amostra, na previsão de odores relacionqdos a MIB e geosmina, cujas manifestações foram posteriormente confirmadas pela determinação das concentrações destes composto (Ferreira Filho; Alves, 2006). Condutividade elétrica A condutividade elétrica ou condutância específica indica a capacidade da água natural de transmitir a corrente elétrica em função da presença de substâncias dissolvidas que se dissociam em ânions e cátions - usualmente íons de ferro e manganês, além de K+, CF, Na+, Ca+2, Mg+2 sendo, por consequência, diretamente proporcional à concentração iônica. Soluções nas quais se faz presente a maioria dos compostos inorgânicos apresentam condutividade elevada e, em contrapartida, compostos orgânicos que não se dissociam em soluções aquosas, quando presentes reduzem a transmissão da corrente elétrica. A condutividade elétrica da água relaciona a resistência elétrica ao comprimento e é expressa comumente em pS/cm (microSiemens) - já o foi em mho/cm17. A correlação entre esta característica física e a concentração de cátions e ânions comprova-se pela figura 2.13. Nesta figura, apresenta-se a correlação entre as médias da condutividade elétrica e do somatório das concentrações dos cinco mencionados cátions e ânions18 registrada no monitoramento de cinco corpos d’água da Região Amazônica. As médias apresentadas na figura 2.13 referem-se a aproximadamente 25 determinações para cada parâmetro (Tundisi; Tundisi, 2008). Figura 2.13. Correlação entre condutividade elétrica e o somatório da concentração dos cátions mais comumente presentes nas águas naturais. Como consequência da intrínseca relação exemplificada na figura 2.13, a condutividade elétrica vincula-se ao teor de salinidade, característica relevante para muitos mananciais subterrâneos e águas superficiais próximas ao litoral passíveis de intrusão de água salgada. Este parâmetro também se mostra relevante em regiões susceptíveis a elevadas taxas de evaporação e baixa intensidade pluviométrica, por vezes apresentando balanço hídrico negativo, como alguns países e estados da Região Nordeste. 17. Como medidas da condutividade, 1,0 ju,S/cm = 1,0 pmho/cm e 1 mS/cm = 10 pmho/cm. 18. As concentrações de ferro e manganês nos cinco corpos d’água (dois rios e três reservatórios) eram desprezíveis comparadas à dos mencionados ânions e cátions. CAPÍTULO 02J,1 Águas naturais apresentam usualmente condutividade elétrica inferior a 100 pS/cm, podendo atingir 1000 pS/cm em corpos d’água receptores de elevadas cargas de efluentes domésticos e industriais. Embora não seja um parâmetro integrante do padrão de potabilidade brasileiro, e também ppr isto, somente monitorado nas estações de maior porte, constitui-se importante indicador de eventual lançamento de efluentes por relacionar-se à concentração de sólidos totais dissolvidos (STD). A correlação entre estes parâmetros manifesta-se diferentemente para cada corpo d’água. Em certo contexto, para lagos e represas, após estabelecida esta correlação, o monitoramento da concentração de sólidos dissolvidos - cuja determinação é muito mais morosa - efetua-se por meio da determina ção da condutividade elétrica. Em soluções mais diluídas esta relação aproxima-se de algo como STD = 0,5 CE . Todavia, em soluções mais concentradas (STD > 1000 mg/L e CE > 2000 pS/cm) a proximidade entre os íons presentes reduz a capacidade do meio de transmitir a corrente elétrica. Para soluções ainda mais concentradas a relação aproxima-se de STD = 0,9 CE. Desta forma, tais variações no coeficiente de correlação linear recomendam manter a individualidade de cada corpo d'água ou, em outras palavras, determinar o coeficiente de correlação entre a condutividade elétrica e a concentração de sólidos totais dissolvidos especificamente para cada corpo d’água, seja aquífero, lago, rio ou reservatório. Características químicas pH O potencial hidrogeniônico (pH) consiste na concentração dos íons H+ nas águas e representa a intensidade das condições ácidas ou alcalinas do ambiente aquático. No valor do pH, aliada à dissociação da molécula de água, incorpora-se o hidrogênio resultante da dissociação de ácidos orgânicos naturais ou inorgânicos presentes em efluentes industriais (Piveli; Kato, 2006). O pH talvez se constitua no parâmetro de maior frequência de monitoramento na rotina operacional das estações de tratamento de água pela interferência em diversos processos, e operações unitárias inerentes à potabilização, da aplicação dos coagulantes ao processo de desinfecção química. Este monitoramento sucede-se por meio potenciométrico em equipamento denominadopotenciômetro ou, mais vulgarmente, pHmetro, em unidades de bancada ou de escoamento contínuo. A dissociação da molécula de água dá-se por meio da equação 2.1. H20 ^ H+ + OH- (2.1) A constante de equilíbrio desta dissociação é: [H"] [OIT] ' H20 (2.2) Como o valor da concentração molar da água é 55,6 mol/L19 e a nova constante de equilíbrio (Kw) a 25 °C vale IO14. Desta forma, tem-se: Kw = [ET] [OH ] (2.3) As concentrações dos íons H+ em soluções aquosas fazem com que tenha que se lidar com valores muito baixos que, paradoxalmente, correspondem a intervalos muito significativos de diferença 19. Massa de 1,0 L de água (1000 g) dividido pelo respectivo peso molecular (18 g). de concentrações. O problema foi contornado extraindo-se o logaritmo na base 10 e empregando posteriormente escala anti-logarítmica20: pH = - log [H+] (2.4) pH + pOH = 14 (2.5) Desta forma, à temperatura de 25 °C, valores de pH inferiores a 7 indicam condições ácidas e superiores condições alcalinas da água natural. Vale mencionar que o valor de Kw vincula-se à temperatura, alterando o ponto de neutralidade da água natural, elevando-o para temperaturas maisaltas e reduzindo-o para mais baixas. O pH influi no grau de solubilidade de diversas substâncias, e como consequência na intensidade da cor, na distribuição das formas livre e ionizada de diversos compostos químicos, definindo também o potencial de toxicidade de vários elementos. As águas naturais de superfície apresentam pH variando de 6,0 a 8,5, intervalo adequado à manutenção da vida aquática, embora a prevalência de concentração significativa de matéria orgânica, manifestada na intensidade da cor verdadeira, concorra para valores abaixo de cinco, como do mencionado Rio Negro utilizado no abastecimento de Manaus (AM). Alterações podem ser decorrentes da atividade algal - fotossíntese e respiração -, da dissolução de rochas e do lançamento de despejos domésticos e industriais. Mais raramente, em regiões industrializadas, pode ocorrer abaixamento do pH motivado por chuva ácida devido à complexação de poluentes gasosos ao vapor d’água presente na atmosfera. A relevância do pH manifesta-se em diversas vertentes na potabilização das águas de consumo humano: • na desinfecção com compostos de cloro, pois a formação do ácido hipocloroso (HOC1), significativamente mais eficiente na inativação dos microrganismos, é governada pelo pH21; • na coagulação com sais de ferro e alumínio que se vincula a uma faixa de variação do pH na qual o processo consubstancia-se, usualmente mais ampla para os primeiros e mais restrita para os segundos; • no controle da corrosão nas adutoras e redes de distribuição; • na formação de subprodutos de trihalometanos, mais pronunciada a valores mais elevados de pH; • no abrandamento de águas de dureza mais significativa. O valor do pH da água de consumo não apresenta efeito digno de nota sobre a saúde humana e diversas bebidas e frutas22 com valores significativamente mais baixos de pH são usualmente ingeridas. Desta forma, os padrões de potabilidade nacional e da OMS estabelecem amplo intervalo para pH da água tratada (6,0 a 9,5) objetivando minimizar as perspectivas de corrosão (para os valores muito baixos) oü incmstação (para os elevados) nas redes de distribuição. 20. Escala anti-logarítmica para a determinação do pH foi proposta em 1909 pelo químico dinamarquês Sõren Peter Sõrensen (1868). 21. A recomendação da Portaria 518 de realizar a desinfecção com compostos de cloro em pH inferior a 8,0 fia-se nesta premissa. 22. Exemplifica a assertiva anterior a faixa de valores de pH para refrigerantes (2,0 - 4,0) e maçãs (2,9 - 3,3), além do fato da urina (4,8 a 8,4) indicar a tolerância do organismo humano a expressivas variações de pH. CAPÍTULO 0243 Alcalinidade A alcalinidade das águas naturais traduz a capacidade de neutralizar ácidos (os íons H+) ou a capacidade de minimizar variações significativas de pH (tamponamento), constituindo-se especialmente de bicarbonatos (HC03~), carbonatos (C03~2) e hidróxidos (OH ). Napotabilização das águas para consumo humano, a alcalinidade adquire função primordial no êxito do processo de coagulação minimizando a redução muito significativa do pH após a dispersão do coagulante. As três formas da alcalinidade manifestam-se em função do pH. Para águas com pH entre 4,4 e 8,3 a alcalinidade será em virtude apenas de bicarbonatos, pH entre 8,3 e 9,4 a carbonatos e bicarbonatos, e para pH maior que 9,4 a hidróxidos e carbonatos. Desta forma, para a maioria das águas naturais de superfície, a alcalinidade decorre apenas de bicarbonatos, em especial, de cálcio e magnésio. A prevalência dos bicarbonatos justifica-se pela reação do gás carbônico presente nas águas superficiais - resultante da incorporação da atmosfera e/ou oxidação da matéria orgânica - com os minerais do solo, de acordo com a equação 2.6: C 02 + CaC03 + H20 Ca(HC03)2 (2.6) A alcalinidade é determinada por titulação com ácido sulfurico ou outro ácido forte e expressa em termos de mg/L de CaC03, não apresentando significado sanitário e, desta forma, não sendo contemplada pelo padrão de potabilidade. Aguas naturais de origem superficial no Brasil apresentam alcalinidade comumente inferior a 100 mg/L de CaC03. Valores mais elevados de alcalinidade nos corpos d’água estão associados a processos de decomposição da matéria orgânica, à atividade respiratória de microrganismos, com liberação e dissolução do gás carbônico (C 02) na água, e ao lançamento de efluentes industriais. Os valores de alcalinidade, pouco pronunciados nos mananciais superficiais brasileiros, toma-se comum no processo de potabilização o emprego de alcalinizante, visando a evitar redução muito significativa do pH na coagulação e recebendo vulgarmente a denominação de cal primária. A aplicação ao final do tratamento, usualmente após a desinfecção, com a denominação de cal secundária, objetiva desenvolver uma película nas adutoras e redes de distribuição reduzindo os problemas de corrosão. Acidez Em contraposição à alcalinidade, a acidez é a característica química de neutralizar bases e também evitar alterações bmscas no pH, graças, especialmente, a concentração de gases dissolvidos como C 0 2 e H2S ou de ácidos húmicos, fúlvicos e himatomelânicos. Pode ter origem natural - pela absorção da atmosfera e decomposição da matéria orgânica - ou antrópica, pelo lançamento de despejos industriais e lixiviação do solo de áreas de mineração. Similarmente em relação à alcalinidade, a distribuição das formas de acidez efetua-se em função do pH. Para águas com pH inferior a 4,5 a acidez decorre de ácidos minerais fortes - geralmehte resultantes de despejos industriais -, pH entre 4,5 e 8,2 indica acidez devido ao C 0 2 e para pH maior que 8,2 indica ausência de C 0 2 livre. A acidez é expressa da mesma forma que a alcalinidade (mg/L de CaC03) e também não tem significado sanitário, podendo fomentar a rejeição da população abastecida quando a acidez mineral for mais pronunciada. Sua significância prende-se à perspectiva de corrosão das adutoras e das redes de distribuição. Dureza A dureza indica a concentração de cátions multivalentes em solução na água, sobretudo de cálcio (Ca+2) e magnésio (Mg+2), e em menor magnitude alumínio (Al+3), ferro (Fe+2), manganês (Mn+2) e estrôncio (Sr+2), e se manifesta pela resistência à reação de saponificação. Esta característica química acaba por refletir a natureza geológica da bacia hidrográfica, sendo mais evidente nas regiões de formação calcárea e menos significativa em zonas de terrenos arenosos ou argilosos. A água de chuva em contato com o solo tem sua concentração de gás carbônico elevada e por conseguinte seu poder de dissolução das formações calcáreas. A dureza pode ser classificada como dureza carbonato ou dureza não carbonato, dependendo do ânion com o qual está associada. A primeira é sensível ao calor, precipitando o carbonato ao aumento significativo de temperatura - usual de ocorrer quando a água atravessa, por exemplo, a resistência dos chuveiros domiciliares - e por esta razão recebe a denominação de dureza não perm anente. Semelhante mecanismo verifica-se no abrandamento de águas duras por meio do emprego de cal visando a favorecer a precipitação do carbonato de cálcio, conforme enunciam as equações 2.7 e 2.8. Ca++ + 2 HCOf + Ca(OH)2 -> 2 CaC03| + C 02| + H20 (2.7) Ca++ + 2 HCOf + Ca(OH)2 4 2 CaC03| + 2 H20 (2.8) A dureza carbonato corresponde à alcalinidade, estando portanto em condições de indicar a capacidade de tamponamento da água natural. Em contrapartida, a dureza não carbonato, também denominada perm anente, não pode ser reduzida por ebulição e resulta da presença de íons metálicos divalentes ligados a sulfatos, cloretos ou nitratos, podendo ser determinada pela diferença entre a dureza total e a alcalinidade da água. A dureza é expressa em mg/L de equivalente em carbonato de cálcio (CaC03) e, ainda que com alguma imprecisão em virtude da perceptibilidade variável da população abastecida, em função deste parâmetro a água pode ser classificada em: • mole ou branda: < 50 mg/L de CaC03; • dureza moderada: entre 50 e 150 mg/L deCaC03; • dura: entre 150 e 300 mg/L de CaC03; • muito dura: > 300 mg/L de C aC 03. Em relação à classificação anterior, convém ressaltar que os padrões de potabilidade brasileiro, americano e da OMS estabelecem o limite de 500 mg/L CaC03, idêntico ao adotado no Canadá (Sum m ary o f Guidelines fo r Canadian D rinking Water Quality, 2004). Em relação ao último, há menções de que, embora dureza até 200 mg/L CaC03 possa ser tolerada, intervalo de 80 a 100 mg/L CaC03 apresenta maior aceitabilidade pela população abastecida. De fato, no Brasil verifica-se maior consumo de água mineral pela parcela mais abastada da população abastecida quando a água distribuída apresenta dureza superior a 100 mg/L. Diversas cidades do interior do estado de São Paulo, abastecidas por águas subterrâneas, confirmam esta assertiva. Contudo, a aceitabilidade e a perceptibilidade do consumidor para com águas de dureza mais significativa apresentam significativo grau de subjetividade. Avaliação realizada com o corpo de funcionários de uma companhia estadual de saneamento avaliou a aceitabilidade da água com distintos valores de dureza. Em primeira instância a população amostrada (188 pessoas) foi orientada a escolher a água que melhor lhe apetecesse. Os resultados desta avaliação são apresentados na figura 2.14 (Von Sperling, 2004). 501 Dureza (mg/L CaC03) Figura 2.14. Percentual de aceitabilidade de distintos teores de dureza para população amostrada. Evidencia-se pela figura 2.14 que de fato mais de 40 % dos integrantes do universo amostrai prefeririam a água com menor dureza, mas ocorreu distribuição relativamente uniforme para o restante no que tange à aceitabilidade mesmo para valores elevados. Posteriormente, avaliou-se a perceptibilidade da população amostrada a distintos valores de dureza. Nesta etapa, os participantes foram instados a identificar a água com maior teor de dureza e os resultados estão apresentados na figura 2.15. Dureza (mg/L CaC03) Figura 2.15. Percentual de perceptibilidade da dureza na população amostrada. Da mesma forma, a água com menor dureza foi facilmente identificada pela quase totalidade da população. Contudo, dureza superior a 100 mg/L CaC03 pareceu conferir a mesma sensação de gosto pela distribuição aproximadamente uniforme das respostas. Conforme mencionado, frequentemente a dureza tem origem natural pela dissolução de rochas calcáreas, ricas em cálcio e magnésio e, em menor monta, decorrente do lançamento de efluentes industriais. No Brasil, salvo algumas exceções como a Região Norte do estado de Minas Gerais, as águas superficiais são brandas ou moderadamente duras (valores comumente inferiores a 100 mg/L CaC03), com teores significativos de dureza ocorrendo mais usualmente para águas subterrâneas. Objetivando novamente comparar os valores médios mensais de dureza de dois mananciais superficiais, no Brasil (Minas Gerais) e Canadá (Alberta), foi elaborada a figura 2.16, na qual se evidencia significativa diferença para os valores da dureza da água bmta afluente às respectivas estações de tratamento durante o ano de 2004. A dureza não apresenta significado sanitário e seu inconveniente é de natureza econômica por reduzir a formação de espuma, elevando o consumo de sabões e xampus, e a salientada perspectiva de poder provocar incmstações nas tubulações de água quente, caldeiras e aquecedores, em virtude da precipitação do carbonato a temperaturas mais elevadas. Não há ainda comprovação científica que relacione o consumo de água com maior teor de dureza ao aparecimento de pedras nos rins na população abastecida. Em contrapartida, há indícios de que as doenças cardiovasculares manifestam CAPÍTULO 02 n -se com menor intensidade em regiões nas quais a população abastece-se com águas de dureza mais acentuada. Meses Figura 2.16. Médias mensais da dureza da água bruta afluente a estações no Brasil e Canadá. Oxigênio Dissolvido Ainda que uma afirmativa peremptória possa não se aplicar em alguma situação particular, a concentração de oxigênio dissolvido (OD) é reconhecidamente o parâmetro mais importante para expressar a qualidade de um ambiente aquático. Na rotina operacional das estações de tratamento, o OD não se constitui parâmetro usual de controle, pois, a própria escolha do manancial para abastecimento, comumente recaindo para ambientes menos impactados, já subliminarmente o considerou como parâmetro relevante. Usualmente refere-se à concentração de OD como percentual da concentração de saturação, pois os valores absolutos podem não necessariamente traduzir as condições do corpo d’água. A concentração de OD à saturação é diretamente proporcional à pressão atmosférica - ou inversamente à altitude - e indiretamente proporcional à temperatura. Assim, a concentração de OD à saturação traduz a concentração teórica máxima àquela temperatura e pressão atmosférica. Neste contexto, regiões ao nível do mar tenderíam a apresentar maiores concentrações de OD quando comparadas às verificadas nas regiões montanhosas. Ao nível do mar e à temperatura de 20 °C, a concentração de OD à saturação é 9,17 mg/L. Também a salinidade exerce fator limitante à concentração de OD, ou seja, a água do mar nas mesmas condições de pressão atmosférica e temperatura apresentará menor concentração de OD quando comparada à água doce. As concentrações de OD à saturação ao nível do mar em função da temperatura e da concentração de cloretos são apresentadas na figura 2.17. Figura 2.17. Concentração de OD à saturação ao nível do mar em função da temperatura e da concentração de cloretos. CAPÍTULO 02 Além das ações antrópicas no lançamento de efluentes, as concentrações de OD podem variar naturalmente. Cursos d ’água de velocidade mais elevada favorecem o aporte do oxigênio da atmosfera, ao passo que em lagos e reservatórios a concentração de OD pode superar à de saturação em dias de intensa atividade fotossintética da comunidade algal e das plantas aquáticas. Este fenômeno denominado supersaturação de OD somente pode ocorrer pela atividade fotossintética. A redução do OD pode ocorrer por razões naturais, especialmente pela respiração ou pela degradação da matéria orgânica pelos organismos presentes no ambiente aquático, conforme evidencia a equação 2.9. C6H 120 6 + 6 0 2 —» 6 C 02 + 6 H20 + Energia (2.9) Outra forma de redução do OD nos corpos d’água refere-se às perdas para a atmosfera e oxidação de íons. Nesta última premissa, lagos e reservatórios por vezes apresentam variações significativas nas concentrações de OD no período noturno, graças ao inverso do processo da fotossíntese (equação 2.10) realizado pelas algas e plantas aquáticas que, na respiração, consomem o oxigênio e liberam o gás carbônico (C02). 6 C 0 2 + 6 H20 + Energia —» C6H120 6 + 6 0 2 (2.10) O aumento da concentração de C 0 2 pode causar também a redução mais significativa do pH e favorecer a ressolubilização de diversos compostos depositados no fundo do corpo d ’água. Conforme mencionado, a elevação das concentrações de ferro e manganês solúvel em águas captadas em reservatórios de acumulação constituem consequência da redução do pH. As variações nos teores de OD estão associadas aos processos físicos, químicos e biológicos que ocorrem nos corpos d’água. Para a manutenção da vida aquática aeróbia são necessários teores mínimos de oxigênio dissolvido de 2 a 5 mg/L, de acordo com o grau de exigência de cada organismo. A concentração de oxigênio disponível mínima necessária para sobrevivência das espécies de água doce é de 4 mg/L para a maioria dos peixes e de 5 mg/L para tmtas e salmões, o que explica a prevalência destas espécies em águas de baixa temperatura principalmente no norte dos EUA e Canadá. Em condições de anaerobiose (ausência de oxigênio dissolvido) os compostos químicos são encontrados na sua forma reduzida (não oxidada), geralmente solúvel no meio líquido, disponibilizando, portanto, as substâncias para assimilação pelos organismos que sobrevivem nestas condições no ambiente aquático. A medida que se elevaa concentração de oxigênio dissolvido os compostos vão se precipitando, ficando armazenados no fundo dos corpos d’água. Salinidade A salinidade das águas naturais vincula-se à presença de sais minerais dissolvidos formados por ânions como cloreto, sulfato e bicarbonato e cátions como cálcio, magnésio, potássio e sódio. A dificuldade inerente à determinação da concentração de cada sal - cujo somatório seria a mais precisa indicação da magnitude da salinidade - culminou com o usual emprego da concentração de cloretos como estimativa desta característica química. A concentração de cloretos como indicador da salinidade insere-se também, guardadas as especificidades de cada corpo d’água, a condutividade elétrica ou a concentração de sólidos totais dissolvidos. Como consequência, a determinação da condutividade elétrica constitui-se indicador confiável da salinidade do corpo d’água. A salinidade dos corpos d'água resulta sobretudo dos seguintes fatores (Esteves, 1988): i) intmsão de água do mar no aquífero freático, por vezes maximizada pela magnitude da vazão recalcada e consequente rebaixamento do nível do lençol; ii) grau do intemperismo e composição das rochas e solos da bacia de drenagem; iii) balanço hídrico referente à precipitação e à evaporação; CAPÍTULO 02 4[ & iv) influência e características das águas subterrâneas; v) lançamento de águas residuárias domésticas e industriais.23 Exemplifica o fator (iii) o aumento progressivo da concentração de cloretos em açudes da Região Nordeste do País, em razão da significativa evaporação e da curta duração da estação chuvosa, usualmente compreendida entre abril e julho. Apesar de não apresentar significado sanitário, maiores concentrações de cloretos conferem sabor à água de consumo e maior índice de rejeição por parte da população abastecida. A afirmativa anterior e a intrínseca relação entre salinidade e a concentração de sólidos dissolvidos confirmam-se pelas premissas estabelecidas pelos padrões de potabilidade nacional, americano, canadense e da OMS, que convergem para os mesmos valores máximos recomendáveis para concentração de cloretos e sólidos totais dissolvidos de 250 mg/L e 1000 mg/L, respectivamente. A Resolução 357 do Conama estabelece para águas doces salinidade inferior a 0,5 %o (500 mg/L), águas salobras até 30 %o e águas salinas valores superiores a 30 %o. A perspectiva de redução da salinidade usualmente restringe-se ao emprego de unidades trocadoras de íons, osmose inversa (tipo de filtração em membrana) ou, para vazões muito baixas, destilação solar. Demandas Química e Bioquímica de Oxigênio Os parâmetros Demanda Bioquímica de Oxigênio (DBO) e Demanda Química de Oxigênio (DQO) expressam a presença de matéria orgânica, constituindo-se em importante indicador de qualidade das águas naturais. O primeiro parâmetro indica a intensidade do consumo de oxigênio (em mg/L) necessário às bactérias na estabilização da matéria orgânica carbonácea, acabando por também indicar a concentração do carbono biodegradável. A determinação da DBO realiza-se com base na diferença na concentração de OD em amostra de água no período de cinco dias e temperatura de 20 °C. Desta forma, se amostra de água natural apresentar DBO de 5 mg/L serão necessárias 5 mg de oxigênio dissolvido para estabilizar, no período de cinco dias e à temperatura de 20 °C, a quantidade de matéria orgânica biodegradável contida em 1,0 L da amostra. Já a DQO é determinada por titulação química com dicromato de potássio (K2Cr20 7) e abarca toda matéria orgânica - passível ou não de degradação pela ação bacteriana - e o resultado é obtido em menos de 3 h, sendo utilizada no monitoramento mais estrito da performance de estações de tratamento de esgotos. Desta forma, a DBO refere-se à matéria orgânica passível de ser estabilizada biologicamente, enquanto a DQO engloba a parcela estabilizada quimicamente, tendo, portanto, valor sempre superior. Da mesma forma que para o oxigênio dissolvido, ambos parâmetros não são monitorados nas estações de tratamento de água, pois, a própria definição do manancial de abastecimento há de recair para águas naturais com DBO comumente inferior a 5 mg/L. Valores mais elevados sucedem-se em corpos d’água receptores de efluentes domésticos (estes com DBO da ordem de 200 a 400 mg/L) e industriais ou de águas lixiviadas de criatórios de animais (currais ou pocilgas). Carbono Orgânico total Como um dos indicadores da concentração de matéria orgânica nas águas naturais, o carbono orgânico total (COT) divide-se em frações referentes às parcelas dissolvida ou particulada. A medida 23. Estima-se que uma pessoa elimine diariamente algo como 6 g de cloretos, resultando em concentrações superiores a 15 mg/L nos esgotos domésticos. Em contexto similar, efluentes de refinarias, indústrias farmacêuticas e curtumes, comumente apresentam significativas concentrações de cloretos. do COT dá-se valendo-se da determinação do C 02 liberado, devendo ser removidas as formas inorgânicas, como, além do próprio C 02, carbonatos e bicarbonatos, passíveis de artificialmente elevar o resultado. Determina-se a fração dissolvida (carbono orgânico dissolvido - COD) ao filtrar a amostra de água em membrana 0,45 pm, com a parcela retida constituindo o carbono orgânico particulado (COP). A maior ou menor prevalência da parcela referente ao COD é resultante da origem da água natural. Por motivos óbvios, águas subterrâneas usualmente apresentam parcela ínfima de COP, ao passo que mananciais susceptíveis a receber despejos ou águas originárias do escoamento superficial sobre áreas urbanas tenderão a apresentar percentuais mais significativos de matéria orgânica particulada, corroborados também pela maior turbidez. Também neste caso, a perspectiva de florações algais haverá de contribuir para incremento desta parcela na matéria orgânica presente nas águas. Em águas superficiais o teor de COT varia de 1 a 20 mg/L, elevando-se para até 1000 mg/L nas águas residuárias. Desta forma, alteração significativa deste parâmetro constitui-se em indicativo de novas fontes poluidoras e balizador das análises a serem realizadas, tais como cor verdadeira, clorofila a, fósforo total etc. Na figura 2.18 são apresentados os intervalos usuais para a concentração de COT em águas naturais e residuárias. ^ Água do mar Águas subterrâneas ___ _________________ Águas superficiais ___ H H I Efluentes de tratamento biológico Média das Águas Superficiais = 3,5 mg/l Águas residuárias 0.1 0.2 0.5 1 2 5 10 20 50 100 200 500 1000 Carbono Orgânico Total • mg C/l Figura 2.18. Amplitude de variação da concentração do COT em águas naturais. Fonte: Cohn, Cox e Berger (1999). A amplitude da concentração de COT nas águas superficiais guarda relação com a região na qual se insere o corpo d ’água. Monitoramento realizado em oito corpos d’água (rios, lagos e reservatórios) da Região Amazônica apresentou concentrações significativamente superiores à média da figura 2.18. As concentrações médias registradas com base em 20 a 28 observações variaram de 8,7 mg/L a 16,2 mg/L. O COT, sobretudo na forma dissolvida, assume papel preponderante no desenvolvimento da comunidade algal no ecossistema aquático. Além de se inserir na cadeia trófica de bactérias e algas - como agente precipitador de nutrientes na camada bentônica para produção primária -, o COT atua também no processo de fotossíntese, por intermédio da interferência na penetração das radiações solares no corpo d’água. A relevância do monitoramento do COT consolidou-se na perspectiva de minimizar a formação dos THM e outros subprodutos da desinfecção. Neste contexto, pesquisa realizada com águas sintéticas, objetivou avaliar os riscos de câncer decorrentes da formação de trihalometanos, à razão de número de casos anuais por milhão de pessoas. Inicialmente, aferiu-se a formação individual das espécies em função da concentração de COT. Os ensaios - cujos principais resultados estão apresentados na figura 2 .1 9 -foram realizados à temperatura de 25°C, tempo de contato de 3 horas e dosagens de cloro de 0,5 a 1,5 mg/L (Black; Harrington; Singer 1996). O Clorofórmio □ Bromodíclorometano A Dibromoclorometano O Bromofórmio Figura 2.19. Concentrações das espécies de THM resultantes da cloração de águas sintéticas. Da análise dos resultados expressos na figura 2.19 depreende-se que a concentração total de THM - somatório das quatro espécies - supera os limites máximos permissíveis no Brasil (100 pg/L) para teor de COT superior a 3 mg/L. Embora as águas naturais usualmente apresentem baixas concentrações de íon brometo - concentrações mais elevadas sucedem-se em áreas costeiras em virtude da intrusão salina -, que favorece a significativa formação de compostos bromados, o limite de 3,0 mg/L de COT pode ser superado para outras águas sem ocasionar concentrações elevadas de THM. Diversos pesquisadores demonstraram significativas correlações entre FPTHM (Formação Potencial de THM) e COT para águas naturais potabilizáveis. Como exemplos, estudo realizado por meio da análise das 59 sequências de amostras de água bruta afluente a 12 estações de tratamento, determinou-se nítida correlação (R2 = 0,828) entre tais variáveis obtidas conforme mostrado na figura 2.20 (Singer; Chang, 1989). Posteriormente, significância ainda maior foi obtida (R2 = 0,936) para 133 amostras de águas drenadas de solos agriculturáveis, e oriundas de mananciais superficiais - lagos, rios e reservatórios - e subterrâneos (Chapra; Canale; Amy, 1997). Figura 2.20. Correlação entre as concentrações de FPTHM e COT referentes às análises do afluente de 12 estações de tratamento localizadas em seis estados americanos. CAPÍTULO 02 ■ • ■ ■ • ' 51 Embora a Portaria 518 não faça menção ao COT - como também não o faz o padrão de potabilidade americano e canadense o uso extensivo dos compostos de cloro como desinfetantes passou a conferir maior importância a esse parâmetro, pois os ácidos fulvicos, assim como a biomassa de algas e cianobactérias, constituem-se importantes precursores da formação dos THM. Todavia, o elevado custo dos equipamentos de determinação do COT toma raríssimo no Brasil o monitoramento deste parâmetro. Um dos raros empregos de equipamentos para medição de COT em escala real no País ocorre em uma estação de tratamento de médio porte (Q = 400 L/s) em Minas Gerais. A amostragem efetua se em escoamento contínuo altemadamente por período de 12 horas entre a água bmta e tratada, a primeira captada diretamente sem qualquer estrutura de acumulação. Na figura 2.21 são apresentadas as distribuições de frequência e frequência acumulada do monitoramento das concentrações de COT verificadas no afluente no período de estiagem (agosto 1998). Tais concentrações foram determinadas com base nas médias aritméticas dos valores instantâneos durante cada período diário de 12 horas. Concentração de COT (mg/L) Figura 2.21. Histograma da concentração de COT e curva dos percentuais acumulados para a água bmta. Posteriormente, realizou-se idêntico monitoramento durante o mês de janeiro de 1999 e não se verificou elevação significativa na concentração de COT. Em ambas situações, a correlação entre a concentração de COT e a turbidez da água bmta foi insignificante e, como seria de se esperar graças aos baixos valores de COT, pouco superior para o período de estiagem (r2 = 0,163) quando a turbidez média foi da ordem de 24 uT elevando para 170 uT no período chuvoso. Em ambos períodos, observam-se mais de 80 % dos valores amostrados iguais ou inferiores a 1,0 mg/L de COT. No período chuvoso, verifica-se uma elevação deste percentual para 90 % das amostras. Tais resultados provavelmente apontam menor capacidade das argilas predominantes na bacia hidrográfica de adsorver compostos orgânicos. Valendo-se dos resultados do monitoramento constata-se o baixo teor de COT nesta água bmta, quando comparados aos observados nos mananciais americanos, e a possibilidade de acréscimos significativos no afluente à estação de tratamento pode ser consequência de alguma atividade antrópica na bacia hidrográfica. Os teores de COT na água tratada - também aferidos diariamente durante 12 horas - mantiveram-se consistentemente abaixo de 0,8 mg/L (Libânio et al., 2000). Compostos orgânicos Relacionada ao COT, pois todos compostos ou contaminantes orgânicos têm o carbono associado a um ou mais elementos, a concentração de diversos contaminantes orgânicos na quase CAPÍTULO 02 52 totalidade reflete as consequências das atividades antrópicas para com a qualidade dos corpos d’água. Grupo de compostos orgânicos denominado hidrocarbonetos contêm apenas átomos de carbono e hidrogênio, ao passo que vários outros incorporam também o oxigênio. Destacam-se pela presença nas águas naturais o benzeno (C6H6), tolueno (C7H8), xileno (C8H10) e metano (CH4). Além dos subprodutos da desinfecção e dos agrotóxicos, destaca-se variedade de compostos orgânicos sintéticos resultado do lançamento de efluentes industriais, lixiviação de solos agriculturáveis e de vias urbanas, e percolação de solos contaminados. Estes compostos, além do carbono e hidrogênio, podem conter halogênios, tais como flúor e cloro, e metais inorgânicos, e a quase totalidade causa efeitos adversos à saúde humana. Parcela destes compostos, utilizada na fabricação de solventes, é passível de volatilização recebendo a óbvia denominação de compostos orgânicos voláteis. Embora alguns destes possam causar danos à saúde humana, a principal dificuldade de monitoramento reside na acurácia necessária à determinação de concentrações muito baixas na água de consumo. Na Portaria 518, no grupo de substâncias químicas passíveis de risco à saúde, listam-se 12 compostos orgânicos sintéticos e estabelecem-se limites que variam de 0,50 pg/L para a acrilamida - composto integrante dos polímeros orgânicos sintéticos por vezes utilizados no tratamento de água - a 70 pg/L para o tricloroeteno, utilizado como solvente na indústria química. No padrão de potabilidade americano os contaminantes orgânicos incluem os agrotóxicos em listagem que integra 53 dos 87 parâmetros de qualidade de água que compõem a lista (AWWA - American Water Works Association, 2006). Na tabela 2.3 apresentam-se as concentrações máximas dos 12 compostos orgânicos integrantes dos padrões de potabilidade nacional americano. Vale ressaltar a significativa convergência, para a quase totalidade dos compostos orgânicos listados, entre os limites estabelecidos pela Portaria 518 e pela OMS, na qual recebem a denominação de valores-guia. Tabela 2.3. Concentrações máximas dos compostos orgânicos inseridos na Portaria 518 e no padrão de potabilidade americano. Composto Orgânico Padrão de Potabilidade Padrão de Potabilidade Nacional (pg/L) Am ericano* (pg/L) Acrilamida 0,5 0,5 Benzeno 5 5 Benzo[a]pireno 0,7 0,2 Cloreto de vinila 5 2 1.2 Dicloroetano 10 5 1.1 Dicloroeteno 30 7 Diclorometano 20 5 Estireno 20 100 Tetracloreto de carbono 2 5 Tetracloroeteno 40 5 Triclorobenzenos 20 70 Tricloroeteno 70 5 * O padrão americano reporta-se :a mg/L e a alteração objetivou facilitar a comparação entre ambas legislações. A comparação entre as concentrações máximas dos 12 compostos orgânicos comuns às duas legislações remete aos distintos estágios de desenvolvimento industrial entre os EUA e o Brasil. Apenas para três compostos orgânicos, a concentração máxima no padrão americano supera à do nacional, provavelmente graças a maior susceptibilidade das águas nos EUA a esse tipo de contaminação e aos equipamentos necessários às análises. A USEPA {United States Environmental Protection Agency) estabelece interessante distinção para os contaminantes orgânicos, dividindo-os em três categorias (AWWA, 2003). A primeira (Categoria I) congrega os compostos sobre os quais há forte evidência acerca das suas propriedades CAPÍTULO 02 carcinogênicas e a recomendação é de se atingir como objetivo concentração nula nas águas de consumo (.Maximum Contaminant Levei Goal). Todavia, há limitações em termos da detecção destescompostos por meio de técnicas laboratoriais confiáveis e da própria remoção na estação de tratamento. Para os integrantes da Categoria II as evidências acerca das propriedades carcinogências não são definitivas, mas outros efeitos nocivos à saúde já foram confirmados. Para os demais, Categoria III, não há evidência de efeitos carcinogênicos, mas outros efeitos à saúde já se confirmaram, tais como, danos ao fígado e aos sistemas cardiovascular e nervoso central. Com base nestas categorias estabelece-se valor numérico para cada çontaminante. Recentes pesqúisas têm-se reportado a produtos da indústria farmacêutica utilizados em tratamentos de reposição hormonal, constituintes de pílulas anticoncepcionais e de cosméticos presentes nos efluentes de estações de tratamento de esgotos. Estes compostos recebem denominações várias de perturbadores endócrinos a agentes hormonalmente ativos, esta mais abrangente por abarcar também alguns metais pesados, agrotóxicos e outros compostos orgânicos passíveis de atuar no sistema hormonal dos seres vivos (Bianchetti, 2008). Há indícios que tais compostos nas águas naturais possam afetar a biota aquática por meio da feminilização da fauna ictiológica reduzindo sua capacidade de reprodução. Em segunda instância, podem fomentar o desenvolvimento de diversos tipos de tumores e mesmo redução da fertilidade humana. Ferro e Manganês Ambos metais originam-se da dissolução de compostos de rochas e solos. Por ser um dos elementos mais abundantes, o ferro é habitualmente encontrado nas águas naturais, superficiais e subterrâneas, apresentando-se nas formas insolúvel (Fe+3) e dissolvida (Fe+2), como óxidos, silicatos, carbonatos, cloretos, sulfatos e sulfitos. A segunda forma é frequente em águas subterrâneas de poços artesianos, e no fundo de lagos e reservatórios de acumulação onde se verificam baixas concentrações de oxigênio dissolvido. A equação 2.11 ilustra a forma usual do ferro em águas subterrâneas. FeC03 + C 02 + H20 -> Fe+2 + 2 HCOf (2.11) Embora bem menos abundante e quando presente frequentemente associado ao feno, o manganês também se apresenta na forma dissolvida (Mn+2) e insolúvel (Mn+3 e Mn+4) em menores concentrações quando comparado ao ferro. Por se apresentar mais estável na forma reduzida do que o ferro, a oxidação do manganês toma-se mais difícil e a simples aeração geralmente não é suficiente para sua remoção. Em contrapartida, como usualmente apresenta-se nas formas de óxidos, carbonatos ou hidróxidos pouco solúveis, as concentrações de manganês em águas superficiais raramente excedem 1,0 mg/L, à exceção das mesmas circunstâncias verificadas para o ferro em relação a águas subterrâneas de póços profundos com baixas concentrações de oxigênio dissolvido. Para águas superficiais, a condição de anaerobiose nas camadas mais profundas dos reservatórios de acumulação resulta da decomposição de matéria orgânica, favorecendo a solubilização de compostos de ferro e manganês anteriormente precipitados. Conforme mencionado, tais metais apresentam-se na forma de hidróxidos (Fe(OH)2 e Mn(OH)2), bicarbonatos (Fe(HC03)2 e Mh(HC03)2), sulfatos (FeS04 e M nS04), entre outras. Adicionalmente, estes metais podem se apresentar complexados à matéria orgânica, perspectiva que, embora não afete substancialmente os mecanismos de remoção, pode favorecer a formação de subprodutos quando se efetua a pré-desinfecção com compostos de cloro. Caso ocorra inversão térmica, compostos solúveis de ferro e manganês atingem as camadas superficiais do corpo d’água e, com alguma frequência, o ponto de captação da água bmta. A aeração superficial em razão da ação do vento fecha o ciclo por meio da nova oxidação destes compostos e posterior sedimentação. Assim, estruturas de captação que permitem afluência da água bmta a distintas CAPÍTULO 02 54 profundidades, denominadas torres de tomada, devem ser operadas pouco abaixo da superfície nos reservatórios nos quais se verifica maior perspectiva de floração algal e pouco acima da camada na qual a concentração de oxigênio dissolvido é nula. Na estação de tratamento, a oxidação do ferro comumente conduz à formação do precipitado de hidróxido de ferro, de fácil sedimentabilidade ou retenção no meio filtrante. Por outro lado, as formas de dióxido de manganês decorrentes da oxidação deste metal apresentam-se como flocos muito pequenos de menor sedimentabilidade e passíveis de mais facilmente não serem retidos no meio filtrante. Atenua esta característica, a possibilidade dos flocos de hidróxido de ferro envolverem os flocos de dióxido de manganês, favorecendo sua remoção. Todavia, nas águas superficiais, com alguma frequência o ferro apresenta-se complexado à matéria orgânica. Nestas circunstâncias, a matéria orgânica pode envolver o metal, minimizando a oxidação e subsequente precipitação na forma de hidróxido. Diversas pesquisas evidenciaram a capacidade de alguns ácidos orgânicos, como tânico e húmico, de formar complexos com ferro ferroso (Fe+2), praticamente inviabilizando a oxidação com oxigênio. Como estes ácidos resultam da decomposição da matéria orgânica de origem vegetal, reduz-se significativamente a remoção do ferro (Sommerfeld, 1999). Neste contexto, a oxidação pode ser realizada com maior eficiência com permanganato de potássio, cloro e seus compostos. Mais rápida forma de oxidação dos compostos de ferro e manganês ocorre por meio de grupo específico de bactérias aptas a converter o ferro solúvel (Fe+2) em insolúvel (Fe+3), sobretudo dos gêneros Crenotrix, Leptothrix, Sphaerotilus e Gallionella e, não sem razão, recebem a denominação de ferrobactérias. Estes microrganismos fazem-se presentes em águas subterrâneas em praticamente todas as partes do Globo e, em condições favoráveis, mesmo em reservatórios de acumulação e lagos. Além da presença de ferro e manganês, fatores como temperatura, insolação, pH, matéria orgânica e potencial redox24 hão de influenciar no desenvolvimento das ferrobactérias Especificamente nos sistemas de abastecimento de água, o desenvolvimento destes microrganismos, habitualmente como consequência da desinfecção inadequada e remoção insatisfatória de ferro e de manganês, conduz a severas incrustações nas paredes das tubulações causadas pela própria biomassa e pelas formas insolúveis destes metais. Quando tal se sucede, reduz-se expressivamente a capacidade de escoamento nas adutoras e redes de distribuição e confere-se cor, odor e sabor à água de consumo. Sob condições favoráveis o biofilme já estabilizado formado por ferrobactérias toma-se praticamente imune às dosagens de cloro residual comumente verificadas nas redes de distribuição. Embora por si só não causem danos à saúde humana, as ferrobactérias podem mascarar a presença de eventuais patogênicos e elevar as dosagens (demanda) de desinfetante. Concentração mais significativa destes compostos na água bmta e remoção insatisfatória, principalmente do manganês, culminaram no final da década de 1980 com a alteração do sentido do escoamento dos filtros (de ascendente para descendente) de estação de filtração direta de grande porte (vazão da ordem de 1,7 m3/s) que abastece a Região Metropolitana de Belo Horizonte. Ainda que as condições de coagulação pareçam ter sido determinantes para resolução do problema, é igualmente possível que as características do novo meio filtrante tenham favorecido a retenção de flocos de menores dimensões e melhorado a qualidade do efluente da estação. Situação semelhante foi vivenciada pelos profissionais responsáveis pela operação da estação de tratamento de água da cidade canadense de Muskolca (vazão afluente da ordem de 350 L/s), na província de Ontário, em setembro de 2001. A água bruta afluía à estação com concentração de 24. Potencial redox constitui a medida (em volts) da prevalência entre as forças redutoras ou oxidantes. Desta forma, valores negativos indicam ambiente propício à redução, no caso de Fe+3 para Fe+ e Mn+ para Mn+2, formas mais facilmente assimiláveis pelas ferrobactérias. 55 manganêsde 0,44 mg/L - predominantemente na forma solúvel - e a redução era pouco significativa no tratamento (0,38 mg/L), com efluente significativamente superior ao padrão de potabilidade da Província (0,05 mg/L). A água bruta captada no Lago Stewart apresentava elevada concentração de carbono orgânico total, da ordem de 5,3 mg/L, tomando temerária a pré-desinfecção com cloro pela perspectiva de formação de THM e praticamente ineficaz a aeração. A solução recaiu para o emprego da pré-oxidação com permanganato de potássio (KMn04), com dosagens de 1,5 a 2,0 mg/L. Dosagens superiores de K M n04 conferiam cor à água tratada e elevavam o residual de manganês (AWWA, 2003). O ferro não aprèsenta inconveniente sanitário, mas de caráter econômico por produzir manchas em roupas e aparelhos sanitários em concentrações superiores a 0,3 mg/L, e em maiores concentrações conferir sabor à água de consumo. APortaria 518 e a OMS estabelecem concentração máxima de ferro total de 0,3 mg/L, idêntico valor adotado pelo padrão americano e canadense. A remoção de ferro pode se realizar por aeração - para favorecer a oxidação à forma insolúvel -, coagulação ou pré-desinfecção com compostos de cloro. Como o ferro, o manganês nas concentrações comumente encontradas nas águas naturais não apresenta significado sanitário25 e os inconvenientes são de natureza estética e, em concentrações superiores a 0,01 mg/L, de sabor adstringente. Concentrações superiores a 0,05 mg/L podem favorecer o aparecimento de manchas em vestes e aparelhos sanitários. O padrão de potabilidade brasileiro estabelece concentração máxima de 0,1 mg/L, ao passo que o americano e canadense limitam em 0,05 mg/L. Interessante salientar que a OMS estabelece valor significativamente mais elevado (0,4 mg/L), ressaltando a possibilidade de reclamações dos usuários acerca da aparência, sabor e odor. Por fim, ambos metais, após a oxidação por vezes na própria residência, atingindo a forma insolúvel podem conferir cor marrom ou avermelhada à água de consumo e fomentar a rejeição pela população abastecida. Nitrogênio O nitrogênio, gás mais abundante na atmosfera terrestre (78 %), pode ser encontrado nos corpos d’água em função do seu estado de oxidação (que varia de -3 a +5) sob as formas: i) nitrogênio orgânico na forma dissolvida (compostos orgânicos nitrogenados como ureia e aminoácidos26) e particulada integrando a biomassa dos organismos do meio aquático; ii) nitrogênio molecular (N2), sujeito a constantes perdas na atmosfera; iii) nitrogênio amoniacal, gás amônia (NH3) e íon amônio (NH4+), formas reduzidas presentes em condições anaeróbias27; iv) nitrito (NOf), forma intermediária encontrada em concentrações insignificantes sob condições aeróbias em virtude da quase instantânea oxidação a nitrato; v) nitrato (N 03‘), forma oxidada e nutriente essencial para a maioria dos organismos do corpo hídrico. O nitrogênio constitui, junto com o fósforo, nutriente essencial ao crescimento de algas, cianobactérias e plantas aquáticas, facilmente assimilável nas formas de amônio e nitrato. Em relação à forma molecular, fator relevante à floração de algumas espécies de algas e de cianobactérias em 25. Concentrações elevadas podem provocar distúrbios de natureza psicológica e neurológica. 26. Molécula orgânica usual componente das proteínas que apresenta pelo menos um grupo amina ligado a um grupo carboxila. 27. A amônia apresenta-se na forma não ionizada (NH3) e/ou como íon amônio (NH4+). lagos e reservatórios de acumulação, refere-se à capacidade de fixação do nitrogênio atmosférico - e conversão a nitrato permitindo o seu crescimento mesmo quando as outras formas de nitrogênio não estão disponíveis na massa líquida. As principais fontes naturais da parcela dissolvida do nitrogênio constituem a decomposição e excreção do fitoplâncton (sobretudo cianobactérias) e das macrófitas, a lise celular decorrente da senescência ou herbivoria, proteínas, clorofila e outros compostos orgânicos. Estima-se que 10 % do nitrogênio assimilado pelo fitoplâncton retome ao meio aquático como nitrogênio orgânico dissolvido. De modo geral, o aporte externo de matéria orgânica e inorgânica, as precipitações e a mencionada capacidade de fixação do nitrogênio atmosférico por algumas algas, bactérias e cianobactérias retratam outras fontes naturais de nitrogênio para os corpos d’água (Esteves, 1988). Além da origem natural, a presença do nitrogênio nas águas pode denotar também significativa origem antrópica, graças ao lançamento de despejos domésticos - a quase totalidade nas formas de nitrogênio orgânico (40 %) e amônia (60 %) -, industriais e de criatórios de animais, assim como dos fertilizantes (na forma de nitrato) utilizados em solos agriculturáveis passíveis de serem lixiviados pelas chuvas. O ciclo do nitrogênio, de forma simplificada, realiza-se por meio de bactérias nos processos denominados nitrificação e desnitrificação. O primeiro consiste da sucessiva oxidação do gás amônia (NH3) a nitrito e posteriormente a nitrato, realizado sob condições aeróbias pelas bactérias nitrificantes do gênero Nitrosomonas, ao passo que o segundo refere-se à redução do nitrato a nitrogênio gasoso realizado pelas bactérias do gênero Nitrobacter sob condições anóxicas (ausência de oxigênio livre). Desta maneira, as formas do nitrogênio traduzem o estágio da poluição do corpo d'água. Concentrações de nitrato e nitrito e as formas oxidadas indicam poluição remota, ao passo que nitrogênio orgânico ou amoniacal poluição recente.28 Adicionalmente, concentrações significativas do íon amônio resultam em redução do oxigênio dissolvido despendido na nitrificação e, em águas de pH elevado, ocorre a conversão no gás amônia29, nocivo a algumas espécies de peixes mesmo em concentrações da ordem de 0,5 mg/L. O efeito nocivo da amônia e sua relação com o pH das águas explica os distintos limites estabelecidos pela Resolução 357 do Conama30 para águas de Classe 3, na qual se estabelecem concentrações máximas de nitrogênio amoniacal total de 1,0 mg/L (para pH > 8,5) a 13,3 mg/L (para pH < 7,5). Em termos de potabilidade, a Portaria 518 limita em 1,5 mg/L a concentração máxima de amônia (como NH3), valor coincidente com o recomendado pela OMS visando a atenuar os problemas relacionados a odor da água de consumo. A forma de nitrato está associada à doença metahemoglobinemia, responsável por acometer bebês ao dificultar o transporte de oxigênio na corrente sanguínea podendo levar à morte. A denominação genérica de doença do bebê azul decorre da redução do nitrato a nitrito na saliva ou no trato intestinal e ao atingir a corrente sanguínea confere esta cor à pele da criança. Esta forma do nitrogênio oxida a hemoglobina (proteína responsável pelo transporte de oxigênio) do sangue a metahemoglobina, levando à anoxia. A redução é mais significativa, atingindo até 100 %, nos primeiros três meses de vida da criança, ao passo que nos adultos somente 10 % do nitrato ingerido é passível 28. É comum na caracterização de afluentes, a estação de tratamento de esgotos reportar-se aò Nitrogênio Total Kjeldahl (NTK) como o somatório do nitrogênio orgânico e amoniacal. 29. Esta conversão dá-se por meio da equação NH3 + H+ <-» NH4+. Assim, para valores de pH inferiores a 8, praticamente toda amônia presente encontra-se na forma ionizada (NH4+), pH igual a 9,5 as formas ionizada e não ionizada equivalem-se e pH superior a 11 toda amônia apresenta-se como NH3. 30. Tanto a Resolução 357 como a Portaria 518 reportam-se à concentração de nitrogênio em termos de amônia, nitrito ou nitrato ou N-NH3, N-N02‘e N- NOf. Desta forma, 1,0 mg/L de nitrito (como N) equivale a 1,0 mg/L de nitrato (como N), pois ambas formas apresentam apenas um átomo de nitrogênio. Similarmente, 4,43 mg/L de nitrato é igual a 1,0 mg/L de nitrato (como N), razão entre o peso molecular do nitrato e do nitrogênio (62/14). CAPÍTULO 02 57 de ser reduzido a nitrito. Águas de consumo com concentração inferiores a 10 mg/L não resultam em desenvolvimentoda metahemoglobinemia e somente 2,3 % dos casos parecem se relacionar a concentrações entre 10 e 20 mg/L de nitrato. Por esta razão, a Portaria 518 e o padrão de potabilidade americano estabelecem idênticos limites para nitrato (10 mg/L) e nitrito (1,0 mg/L). A OMS recomenda para nitrato concentração de 50 mg/L (aproximadamente 11,3 mg/L como nitrogênio) e para nitrito 3 mg/L (aproximadamente 0,70 mg/L como nitrogênio). A assimilação do nitrato pelas plantas - a ação fotossintética converte-o a nitrogênio orgânico como integrante celular - concorre para que as concentrações sejam baixas nas águas superficiais, usualmente inferiores a 2 mg/L. Em contrapartida, aquíferos freáticos em regiões de vegetação mais escassa passíveis de contaminação por esgotos ou fertilizantes podem apresentar concentrações superiores a 20 mg/L (Dezuane, 1997). Fósforo Por ser menos abundante que o nitrogênio, o fósforo - quase sempre na forma de fosfato derivado do ácido fosfórico - acaba por se constituir com muita frequência no principal fator limitante ao desenvolvimento de algas e plantas no meio aquático. Em termos mais generalistas, o fosfato apresenta-se nos corpos d'água na forma orgânica ou inorgânica e particulada ou dissolvida, com o fosfato total constituindo-se no somatório destas quatro frações. A parcela orgânica do fosfato, particulada ou dissolvida, apresenta-se complexada à matéria orgânica dos organismos integrantes do ecossistema aquático. Já o fosfato inorgânico de origem natural usualmente origina-se da lixiviação das rochas fosfatadas, predominantemente constituídas de apatita31, ou da agregação a compostos inorgânicos como hidróxido de ferro. Em áreas menos afetadas pela ação antrópica, graças a percolação e armazenamento nos interstícios do solo, as águas subterrâneas apresentam concentrações mais significativas de fosfato comparadas às águas superficiais. As formas mais comuns nos corpos d'água, ortofosfatos e polifosfatos, resultam também do lançamento de despejos domésticos32 e industriais, fertilizantes e lixiviação de criatórios de animais. Os polifosfatos, todavia, apresentam baixa relevância em virtude da hidrólise e imediata conversão a ortofosfatos. As formas de ortofosfatos, sendo HPOf2 a mais comum para as faixas de pH das águas naturais, são as mais facilmente assimiláveis por algas e macrófitas incorporando-o à biomassa. Em águas não poluídas, esta capacidade do fitoplâncton e das plantas aquáticas resulta em concentrações de fosfato dissolvido comumente inferiores a 0,02 mg/L próximo à superfície do corpo d'água. O fósforo não apresenta inconveniente de ordem econômica ou significado sanitário para águas de consumo humano, não integrando os padrões de potabilidade nacional, americano e da OMS. Fluoretos Menos frequentes em águas superficiais que os cloretos, concentrações de fluoretos (F‘) são relativamente comuns em águas subterrâneas decorrentes da decomposição de solos e rochas. Eventuais lançamentos de despejos industriais concorrem para elevar as concentrações nas águas superficiais. Em concentrações superiores a 2,0 mg/L podem favorecer o desenvolvimento da fluorose - progressivo escurecimento e deterioração dos dentes. Não há comprovação de nenhum tipo de carcinose ou outros efeitos adversos à saúde decorrente da ingestão de fluoretos. Todavia, ingestão 31. Mineral de fosfato de cálcio constituinte das rochas fosfatadas e empregado na fabricação de fertilizantes e do ácido fosfórico. 32. Os esgotos domésticos concorrem para significativo aporte de fosfatos aos corpos d’água, consequência da matéria orgânica e, em especial para as populações mais abastadas, do extensivo empregado de detergentes. CAPÍTULO 02 durante período prolongado de água com concentrações superiores a 4,0 mg/L pode favorecer o desenvolvimento de osteoesclerose33 assintomática. O padrão de potabilidade brasileiro e da OMS estabelecem limite de 1,5 mg/L, ligeiramente superior ao estabelecido pela Resolução 357 do Conama para águas Classe 3 (1,4 mg/L). A despeito da perspectiva da fluorose, o padrão de potabilidade americano limita em 4,0 mg/L a concentração máxima de fiuoreto em água de consumo. As concentrações de fluoretos nas águas de consumo objetivam minimizar o desenvolvimento da cárie dentária em crianças até 12 anos e são condicionadas à temperatura média do ar, em função do volume diário ingerido. Metais pesados A genérica denominação de metais pesados inserem-se amplo rol de elementos como cromo, cobre, mercúrio, magnésio, chumbo, cádmio, zinco, cobalto, níquel, molibdênio e prata passíveis de causar algum dano à saúde humana.34 Embora alguns possam desempenhar importantes funções aos integrantes da biota aquática - por exemplo, magnésio e cobre, respectivamente, como integrantes da clorofila e dos citocromos35 -, a quase totalidade apresenta algum grau de toxicidade aos organismos. Interessante ressaltar que eventual hierarquia da toxicidade dos metais pesados apresentar-se-ia distinta em função do organismo a ser considerado. Esta premissa reforça-se por eventuais efeitos sinérgicos com outras características das águas naturais - turbidez, temperatura e oxigênio dissolvido -, bem como pelo ânion ao qual o metal associa-se. Desta forma, a se considerar tão somente a fauna ictiológica, mercúrio, cobre e zinco desempenham papel de relevo. Diversos metais pesados são encontrados na forma dissolvida nas águas naturais, resultado do lançamento de efluentes industriais (líquidos e gasosos), de fertilizantes e da lixiviação de áreas de garimpo e mineração, com agravante de, conforme já mencionado, não conferir sabor ou odor à água de consumo. Quando o aporte advém de fontes naturais em razão do intemperismo das rochas, apresentam-se usualmente complexados à matéria orgânica, maximizando a sedimentação e reduzindo a cor e turbidez das águas superficiais. Aliada à toxicidade, estes metais tendem-se a potencializar na cadeia trófica. Cabe afirmar, a concentração eleva-se à medida que se ascende na cadeia alimentar. Tal se deve pela capacidade do fito e zooplancton de absorverem alguns metais. No primeiro caso, nos períodos de insolação mais significativa e por consequência da atividade fotossintética, a concentração dos metais dissolvidos tende a se reduzir no superfície do corpo d ’água. No que tange aos eventos de intoxicação humana, constitui exemplo emblemático a contami nação por mercúrio ocorrida na Baía de Minamata no Japão na década de 1950 que ceifou a vida de muitas pessoas, além de danos no sistema nervoso central em outras tantas. Naquela ocasião, despejos de uma indústria eram lançados no mar e verificou-se o progressivo aumento da concentração de mercúrio - na forma orgânica (metilmercúrio) - na biomassa dos peixes e dos habitantes da baía. Ainda que menos frequente, o chumbo ocorre em águas também por meio da corrosão de tubulações mais antigas soldadas com este metal. Uma série de danos pode ser causada pela contaminação com chumbo, têm sido verificadas propriedades carcinogênicas em experiências com cobaias. Denomina-se satumismo à intoxicação aguda por ingestão de chumbo e há uma suposição de alta incidência desta enfermidade na população da Roma antiga, cujas canalizações eram constituídas por este metal. 33. Doença que leva ao aumento da densidade dos ossos, dificultando os movimentos. 34. Há controvérsia no que tange a inserção do arsênio como metal pesado. Embora apresente efeitos bioacu mulativos - os organismos são incapazes de expeli-lo é tecnicamente considerado um metaloide, ou seja, assemelha-se a um metal sem apresentar suas características (p.ex., condução da corrente elétrica). 35. Proteínas integrantes das mitocôndrias e que atuam no transporte de elétrons durante a respiração celular. As concentrações máximas listadas nos padrões de potabilidade nacional - idênticas às estabelecidas pela OMS - e americano para os cinco metais pesados mais frequentemente encontrados, junto aos potenciais efeitos à saúde, são apresentadas na tabela 2.4. Tabela2.4. Concentrações máximas e potenciais efeitos à saúde dos cinco metais pesados presentes nas águas naturais. M etal Pesado Portaria 518 (mg/L) Padrão A m e r ic a n o (mg/L) Potenciais Efeitos à Saúde Cádmio 0,005 0,005 Danos ao sistema renal e evidências de carci nose por inalação. Chumbo 0,01 0,015 Danos no desenvolvimento menta! em crianças e problemas renais relacionados a pressão elevada em adultos. Cobre 2,0 1,3 Disfunção intestinal para curta exposição e danos nos rins e no fígado para exposição mais prolongada. Cromo* 0,05 0,1 Dermatite alérgica. Mercúrio 0,001 0,002 Danos ao sistema renal. * Os danos referem-se ao cromo hexavalente. Há evidências de carcinose em cobaias por inalação de cromo hexavalente. Estudos epidemiológicos apontaram evidências de inalação de cromo hexavalente com desenvolvimento de câncer nos pulmões. Arsênio Este metaloide integra a crosta terrestre apresentando-se predominantemente na forma de arsenopirita (FeAsS), orpimenta (As2S3) e realgar (AsS). Dos quatro estados de oxidação (-3, 0, +3 e +5) apresenta-se mais comumente nas águas naturais como arsenito (+3) e arsenato (+5). A prevalência de uma ou outra forma é governada pelo pH e na faixa de 6,5 a 8,5 - usual para significativa maioria das águas superficiais e subterrâneas a espécie arsenito (H3A s03) predomina, ao passo que a forma de arsenato (HAsCfr2) far-se-á presente no intervalo de pH de 7 a 11,5 (Montgomery, 2005). Este apresentava-se predominantemente na forma dissolvida e mais tóxica (+3) prevalente em águas com baixa concentração de oxigênio dissolvido. Estima-se que o arsenito seja 25 a 60 vezes mais tóxico que o arsenato. As concentrações de arsênio são geralmente mais elevadas em águas subterrâneas e, salvo exceções, nas águas superficiais as concentrações apresentam-se comumente em níveis abaixo dos limites estabelecidos pelos padrões de potabilidade. Levantamento realizado valendo-se de 31250 amostras de mananciais subterrâneos, contemplando a totalidade dos estados americanos apontou concentrações variáveis de arsênio em mais de 25 % das amostras (Hund et al., 2002). Além das fontes naturais, o aporte de arsênio às águas naturais poderá advir de atividades antrópicas relacionadas à mineração, à agricultura - como fungicida, inseticida e herbicida -, à indústria madeireira e diversas atividades industriais (especialmente vidros e eletrônicos), além da queima de combustíveis fósseis e posterior arraste pelas chuvas. No início do século XVIII o arsênio foi empregado de forma medicinal visando ao tratamento da anorexia, reumatismo, tuberculose, asma e diabetes. Ingestão oral de altas concentrações de arsênio culminam irritações gastrointestinais, acom panhadas pela sensação de sede, dificuldades de deglutição, baixa pressão sanguínea e convulsões. Doses ainda mais elevadas podem levar à morte por colapso cardiovascular. A ingestão mais significante de arsênio para maioria da população decorre dos alimentos, em especial, peixes e frutos do mar. Embora menos significantes, por inalação os danos remetem ao desenvolvimento de câncer nos pulmões. Estudos acerca dos possíveis danos à saúde humana em virtude do consumo prolongado de água contendo arsênio emergiram nas últimas décadas apontando para desenvolvimento de tumores nos rins, fígado e bexiga, além de danos à pele e ao sistema circulatório. Países como Mongólia, China, Argentina, EUA, Chile, Hungria, México, entre outros, apresentam parcela da população abastecida com águas subterrâneas com concentrações significativas de arsênio. Neste contexto, destaca-se a contaminação ocorrida em Bangladesh que se estima tenha acometido população da ordem de 35 milhões de pessoas. Tal se deu, a partir da década de 1970, graças a significativa mortalidade infantil verificada à época decorrente, entre outros fatores, do consumo de água superficial contaminada por esgotos domésticos. A supressão das fontes superficiais conduziu à perfuração de inúmeros poços freáticos, levando à significativa redução da mortalidade infantil nas três décadas subsequentes. Todavia, a despeito das melhores características bacteriológicas dos mananciais subterrâneos, descobriu-se no final da década de 1980 que tais águas eram ricas em arsênio naturalmente presente no solo da região. A sucessão de doenças de pele na população abastecida confirmou como provavelmente o mais severo evento de contaminação por água de consumo que se tem notícia (Rott; Kauffman, 2008). O caráter cumulativo do arsênio nos seres humanos tem justificado a frequente denominação de metal pesado. Os possíveis danos à saúde reverberaram na progressiva redução das concentrações máximas estabelecidas pelos diversos padrões de potabilidade. Notadamente no Brasil, o limite preconizado pela Portaria 518 (0,01 mg/L, idêntico ao estabelecido pelo padrão americano e pela OMS) é dez vezes inferior ao recomendado pela Portaria 36 que vigeu até janeiro de 2003. Vale mencionar que o evento de contaminação mencionado culminou com concentração limite de 0,005 mg/L estabelecida pelos padrões indiano e de Bangladesh, pois estima-se que 85 milhões de pessoas possam vir a ser contaminadas por arsênio. Agrotóxicos A denominação genérica de agrotóxicos, pesticidas ou defensivos agrícolas abrange vasta relação de compostos orgânicos sintéticos utilizados como herbicidas, inseticidas, fungicidas e acaricidas extensivamente empregados, sobretudo na agricultura, no controle de pragas. Dados relativos a 2008 indicam que a comercialização de tais produtos no País movimentou algo como R$ 10,3 bilhões - representando 5,2 % do faturamento da indústria química -, montante dividido em herbicidas (45 %), inseticidas (28 %) e fungicidas (21 %). As classificações toxicológica e ambiental dos agrotóxicos com registro de uso no Brasil englobam quatro classes cada uma (classes I a IV), apresentadas nas figuras 2.22 e 2.23 (Fernandes Neto, 2010). Figura 2.22. Classificação toxicológica dos agrotóxicos com registro de uso no País. Figura 2.23. Classificação ambiental dos agrotóxicos com registro de uso no País. CAPÍTULO 02 6 i Cabe mencionar que 22 % dos agrotóxicos tiveram seus registros publicados anteriormente ao Decreto de 98816 de 1990 e não apresentam classificação de periculosidade ambiental. Os agrotóxicos podem também ser divididos em organoclorados - dos quais BHC e DDT i proibidos no Brasil desde 1983 organofosforados, organonitrogenados e carbamatos. Os primeiros apresentam toxicidade variada inferida em função de bioensaios nos quais se determinam as doses letais para 50 % das cobaias (LD50). Mesmo proibido em ambientes domésticos o BHC e o DDT ainda tiveram grande uso. As campanhas de combate aos mosquitos e outros insetos transmissores de doenças como a malária e a doença de Chagas utilizavam o BHC ainda por volta do início da década de 1980. No Brasil, seu uso foi limitado pela Portaria 329 de 02/09/85, permitindo sua utilização somente no controle a formigas (Aldrin) e em campanhas de saúde pública (DDT e BHC). A grande presença dos agrotóxicos organoclorados em amostras de água, especialmente superficiais, tem surgido da extensiva aplicação agrícola e emissão industrial, como também a aplicação direta em lagos e superfícies de rios para combater mosquitos e outros organismos. A conhecida persistência deve-se à estabilidade química e à biodegrabilidade, junto com biossolubilidade em tecidos lipídicos. Os resíduos destas combinações tomam-se parte intrínseca dos ciclos biológicos, geológicos e químicos da terra, e já foram detectados no ar, água, solo e até mesmo na neve da Antártica, onde ao que se sabe não foram empregados. Diversas pesquisas comprovaram que a presença de agrotóxicos organoclorados em águas de abastecimento eleva os riscos de câncer e causa danos ao fígado e aos sistemas nervoso, cardíaco, endócrino e reprodutor (Rand; Petrocelli, 1985). Os agrotóxicos organoclorados são relativamente inertes e sua alta estabilidade está relacionada às ligações carbono-cloro. Alguns destes compostospodem persistir por 15 a 20 anos no solo e parte destes serem arrastados pelas chuvas (por lixiviação) para o interior dos cursos d’água, que também recebem estes compostos por meio de efluentes industriais, de esgotos, de sedimentos, da atmosfera e por contaminação direta durante a aplicação. Assim, tanto mananciais de abastecimento quanto os peixes que se alimentam de materiais retirados do fúndo desses locais apresentam concentração de agrotóxicos, mesmo anos após a cessação da aplicação destes em regiões vizinhas. A biodisponibilidade de determinado agrotóxico, ou seja, a quantidade deste composto que existe disponível no meio ambiente para os peixes e vida silvestre, varia consoante às características do próprio composto e do ambiente. A solubilidade na água e a adsorção às partículas do solo são essenciais para determinar a tendência de determinada substância para se movimentar, ou não, através do solo junto com águas de infiltração. A maioria dos agrotóxicos que apresenta baixa solubilidade na água tem tendência para se ligar fortemente ao solo. A sua persistência e volatilidade afetam também os padrões dè distribuição das substâncias. A estrutura e composição do terreno são também muito importantes, uma vez que definem a taxa de infiltração, por exemplo, solos ricos em argila e matéria orgânica tendem a adsorver muito mais facilmente um composto do que solos arenosos e pobres em matéria orgânica. Além disso, a chuva, as práticas de irrigação e a evapotranspiração podem afetar a mobilidade dos compostos. Características da água como pH, temperatura, concentração de partículas suspensas e de outras substâncias químicas dissolvidas implicam necessariamente em diferentes destinos dos agrotóxicos. A tecnologia convencional de tratamento usualmente não é efetiva na remoção de agrotóxicos organoclorados, havendo registros de concentrações praticamente equânimes nas águas bmta e tratada (U. S. Environmental Protection Agency, 1992). No intuito de otimizar a remoção destes agrotóxicos descortina-se, predominantemente, o emprego de carvão ativado, granular ou em pó, como adsorvente. Adicionalmente, tais agrotóxicos podem também ser adsorvidos por alguns tipos de argilas, removidas por sua vez no tratamento. O padrão de potabilidade nacional estabelece concentrações máximas para 22 agrotóxicos, número praticamente idêntico ao da legislação americana (23). Na tabela 2.5 apresentam-se os principais danos à saúde e as concentrações máximas estabelecidas para os 11 agrotóxicos comuns a ambas legislações. Tabela 2.5. Concentrações máximas e potenciais efeitos à saúde de 11 agrotóxicos presentes nas águas naturais. Agrotóxico Portaria 518 Padrão Am ericano*Potenciais fcfeitos à Saúde Ciug/L) Í|ig/L) Alaclor 20,0 2 Anemia, aumento de risco de câncer e danos aos rins, fígado e olhos. Atrazina 2 5 Danos ao sistema cardiovascuíar e reprodutivo. Clordano 0,2 2 Danos ao fígado e sistema nervo so, aumento de risco de câncer. 2,4 D 30 70 Danos aos rins, fígado e às glân dulas adrenais. Endrin 0,6 2 Danos ao fígado. Glifosato 500 700 Danos aos rins e sistema repro dutivo. Heptacloro e Heptacloro epóxido 0,03 0,04 e 0,02 Danos ao fígado e aumento de risco de câncer. Hexaclorobenzeno 1 1 Danos aos rins, fígado e sistema reprodutivo; aumento de risco de câncer. Lindano (y-BHC) 2 0,2 Danos aos rins e fígado. Metoxicloro 20 40 Danos ao sistema reprodutivo. Pentaclorofenol 91 Danos aos rins e fígado; aumento de risco de câncer. Simazina 2 4 Danos ao sangue. * O padrão americano reporta-se a mg/L e a alteração objetivou facilitar a comparação entre ambas legislações. A análise da tabela 2.5 evidencia menor sobreposição entre as duas legislações, não se verificando tendência do padrão americano apresentar - como para os compostos orgânicos listados na tabela 2.4 - concentrações máximas inferiores ao padrão nacional. Convém destacar que a quase totalidade dos agrotóxicos não listados na legislação americana, e presentes na Portaria 518, tiveram sua produção e utilização suspensas. Todavia, a toxicidade, persistência no ambiente e capacidade de bioacumulação justificam sua manutenção no atual padrão de potabilidade brasileiro. Assim como para substâncias radioativas, a OMS estabelece as concentrações máximas calcadas em algo como ingestão diária aceitável, expressa em função da massa corporal (60 kg) e do consumo médio diário per capita de água (2 L). Interessante constatar, além da praticamente igualdade das concentrações com a Portaria 5 1 8 -1 5 dos 16 agrotóxicos presentes em ambas legislações -, que esta metodologia estabelece que a ingestão de agrotóxicos por meio da água de consumo perfaz 10 %, cabendo o restante aos alimentos. Para os seis agrotóxicos constantes na Portaria 518 e ausentes no padrão de potabilidade da OMS, a justificativa embasa-se no fato dos efeitos tóxicos na saúde humana não serem observados para as concentrações comumente verificadas nas águas naturais. Características biológicas As características biológicas das águas naturais referem-se aos diversos microrganismos que habitam o ambiente aquático. Sua relevância manifesta-se na possibilidade de transmitir doenças e na transformação da matéria orgânica dentro dos ciclos biogeoquímicos de diversos elementos como nitrogênio. Na primeira premissa, diversas enfermidades são passíveis de serem transmitidas por ingestão ou contato com água contaminada, conforme enuncia a tabela 2.6 (Daniel et ai, 2001). CAPÍTULO 02 Tabela 2.6. Principais microrganismos relacionados às doenças de transmissão hídrica. Principais Quantidade excretada Máxima Orç por indivíduo infectado/g sobrevivência Dose infectante* Doenças '. ; VIL!■ : na água (dias) Escherichia coti Gastroenterite 108 90 102-109 1 S alm onella typ h i Febre tifoide 106 Vibrio cholerae Cólera 106 30 108 S alm onella Salmonelose 106 60-90 106-107 C ryptosporidium Cryptosporidiose 102 1-130*** E n tam o eb a histolytica Disenteria amebiana 107 25 10-100 Giardia lam blia Giardíase 105 25 1-10 A d en o víru s (31 tipos) Doenças respiratórias 106 - Enterovírus (71 tipos) Gastroenterite, anomalias 107 90 1-72 j (polio, echo, coxsackie) no coração, meningite etc. H e p a tite A Hepatite infecciosa 106 5-27 1-10 Rotavírus Gastroenterite 106 5-27 1-10 Ascaris lu m b rico id es ** Ascaridíase 10-104 365 2-5 Taenia solium (solitária) Cisticercose 103 270 1 Schistosom a m anso ini Esquistossomose - - - * Dose infectante que provoca sintomas clínicos em 50 % dos indivíduos testados. ** Modo de infecção: ingestão de ovos infectados, em água ou solo contaminado por fezes humanas ou ingestão de produtos crus contaminados. *** Variável com a idade e o estado de saúde do indivíduo. A segunda vertente consiste na degradação da matéria orgânica realizada por bactérias na qual obtêm-se compostos minerais inorgânicos como nitratos, sulfatos e fosfatos, passíveis de serem assimilados por outros microrganismos. O controle da qualidade da água de consumo para minimizar a possibilidade de transmissão de doenças fundamenta-se no emprego de organismos indicadores, pois o monitoramento individual dos microrganismos patogênicos seria inexequível. Adicionalmente, a diluição dos despejos, a baixa concentração dos patógenos nas águas naturais e o fato de apenas parcela da população afetada apresentar os sintomas inerentes à doença corroboraram o extensivo uso de indicadores como forma de elevar a confiabilidade microbiológica da água de consumo. Neste contexto, os resultados negativos das análises biológicas - bem como das físicas e químicas - , ainda que realizadas rotineiramente, indicam que a qualidade da água atende aos requisitos do padrão de potabilidade apenas no momento da coleta da amostra. Na premissa do emprego de indicadores microbiológicos de contaminação de origem fecal algumas características lhes são inerentes (Cohn; Cox; Berger, 1999): i) estar presente, e em significativas maiores concentrações, sempre que os microrganismos patogênicos também estiverem e ausenteem águas não contaminadas; ii) responder às características do meio ambiente e aos métodos de tratamento de forma similar à dos microrganismos patogênicos; iii) ser incapazes de se multiplicarem no ambiente externo ao intestino; iv) ser de origem exclusivamente humana, estável - apresentando facilidade na contagem - e não patogênico; v) ser membro usual da flora intestinal de indivíduos sadios; vi) dispor de métodos de análise de fácil exequibilidade, baixo custo e com obtenção dos resultados confiáveis em curto espaço de tempo. Bactérias coliformes As bactérias do grupo coliforme habitam normalmente o trato intestinal dos animais de sangue quente, servindo portanto como indicadoras da contaminação de uma amostra de água por fezes, além de existirem naturalmente no solo e na vegetação. A maioria das doenças associadas à CAPÍTULO 02 água — denominadas de transmissão ou veiculação hídrica - é transmitida por via fecal, ou seja, os organismos patogênicos eliminados pelas fezes atingem o ambiente aquático. Desta forma, pode ocorrer a contaminação das pessoas que se abasteçam ou, em contexto mais amplo, que tenham contato com esta água. As bactérias do grupo coliforme apresentam diversas características que explicam o extensivo emprego como indicadores microbiológicos de qualidade de água. A primeira refere-se à elevada quantidade eliminada diariamente por um indivíduo (de 1/3 a 1/5 do peso das fezes), culminando com concentrações nos esgotos domésticos de 106 a 108 organismos/mL. Assim, eleva-se a probabilidade da detecção dos coliformes nas amostras de água bruta e a possibilidade da presença de patogênicos a estes associados. O termo ‘coliformes totais’ inclui amplo rol de bactérias ambientais e de origem fecal capazes de sobreviver no meio aquático, fermentar a lactose e produzir ácido ou aldeído em 24 horas à temperatura de 35 a 37 °C. Outro grupo de bactérias, denominadas termotolerantes por serem capazes de fermentar a lactose em temperatura elevada - 44,5 ± 0,2 °C - por um prazo de 24 horas, engloba predominantemente (algo como 90 %) o gênero Escherichia, e em menor monta, Citrobacter, Klebsiella e Enterobacter, os dois últimos passíveis de serem isolados em ambientes não poluídos como água, solo e plantas. E. coli diferencia-se dos demais coliformes termotolerantes pela capacidade de produzir a enzima (3-glucorinidase e, embora haja algumas evidências de poder se desenvolver em solos tropicais, apresenta-se em elevadas concentrações nas fezes humanas e de animais, constituindo- -se em indicador de poluição fecal. Os gêneros mencionados representam percentual variável entre 3 e 4 % nas fezes humanas e 3 a 8 % nas fezes de animais. Estas assertivas confirmam-se por meio da figura 2.24 (a e b) que se reporta a monitoramento da água bruta realizado em uma estação de tratamento canadense, cuja captação efetua-se, sem qualquer estrutura de armazenamento, diretamente no curso d'água praticamente no centro da cidade. 0 1000 2000 3000 Coliformes termotolerantes (NMP/100 ml) 0 1000 2000 3000 E coli termotolerantes (NMP/100 mL) Figura 2.24. Relação entre a coliformes totais e termotolerantes (a) e coliformes totais e E. coli (b) na água bruta afluente à estação de tratamento de Edmonton (Canadá). Os gráficos da figura 2.24, elaborados com base em 373 análises bacteriológicas realizadas em 2003, apontam - ainda que de forma subliminar - para a boa qualidade microbiológica da água bruta, pois indicam que apenas parcela da concentração de coliformes termotolerantes é de fato de origem fecal. Tal afirmativa comprova o êxito no controle das atividades antrópicas na bacia hidrográfica, não ocorrendo em escala mais significativa lançamento de esgotos a montante do ponto de captação. Posterior avaliação entre E. coli e coliformes totais, como não podia deixar de ser, apontou coeficiente de determinação (R2) ainda menos significante (0,255). Estas assertivas encontram respaldo em avaliação microbiológica de águas superficiais e subterrâneas realizada em diferentes regiões da índia. A análise de coliformes termotolerantes para águas superficiais indicou 96 a 99 % como E. coli, ao passo que em águas subterrâneas, menos susceptíveis à contaminação fecal, esse percentual reduzia-se para 54 a 61 % (Ramteke et a l, 1992). Desta forma, o impreciso termo coliformes fecais reporta-se às bactérias termotolerantejs, incluindo os gêneros não necessariamente de origem fecal (Cerqueira; Horta, 1999). Já o termo ‘coliformes totais’ congrega um gmpo ainda mais amplo de bactérias aeróbias ou anaeróbias também capazes de fermentar a lactose em 24 a 48 horas à temperatura 35 a 37 °C. E. coli apresenta tempos variáveis de sobrevivência no ambiente e algumas formas são capazes de causar sérios problemas intestinais (E. coli 0157:H7). Adicionalmente, exibe baixa ocorrência no solo e na vegetação, e comumente não se multiplica no ambiente aquático. Como consequência, consolida-se progressivamente no meio técnico a tendência do emprego do exame de E. coli no monitoramento da água bmta, objetivando avaliar a probabilidade da presença de protozoários e outros patógenos, e de coliformes totais para os efluentes das estações de tratamento, como balizador da qualidade da água tratada e da própria eficiência da potabilização, e de avaliar a integridade do sistema de distribuição. Nesta premissa, o padrão de potabilidade nacional estabelece que o efluente da estação de tratamento e toda água de consumo - independente se de sistema individual (fontes, minas ou poços) e coletivo - deva ser isento de coliformes totais. A detecção de coliformes totais e fecais, qualitativa ou quantitativa, pode ser realizada pelo método dos tubos múltiplos - técnica nos EUA utilizada quase exclusivamente até meados da década de 1960 -, e por meio da contagem em membrana filtrante e em substrato cromogênico. Os resultados apresentam-se termos de NMP/100 mL (Número Mais Provável por 100 mL), para o primeiro e terceiro métodos, e de UFC/100 mL (Unidades Formadoras de Colônias por 100 mL) quando do emprego da técnica de membrana filtrante. O método do substrato cromogênico apresenta como principal vantagem o tempo de resposta de 24 horas, uma vez que realiza a determinação simultânea de E. coli e coliformes totais, prescindindo de ensaios confirmatórios. Todavia, além dos resultados destas análises reportarem- -se ao intervalo de confiança de 95 %, as limitações deste indicador (E. coli) residem em não identificar com certeza a presença da espécie E. coli 0157:H7, de cistos e oocistos de protozoários e de viras. Desta forma, seus resultados devem ser interpretados em conjunto com uma acurada avaliação sanitária da bacia hidrográfica que identificará possíveis fontes de poluição e contaminação. Algas e Cianobactérias As algas (verdes e diatomáceas) e cianobactérias exibem nítida ubiquidade nas águas superficiais, fazendo-se presentes em lagos, reservatórios de acumulação e cursos d’água, respondendo por meio da fotossíntese por parcela significativa da concentração de oxigênio dissolvido do meio aquático. Especificamente, as cianobactérias fazem-se presentes em praticamente toda superfície terrestre há mais de 3,5 bilhões de anos e a maioria das espécies apresenta crescimento significativo nas faixas de pH (6,0 a 9,0) e temperatura (15 a 30 °C) usuais nos corpos d’água das regiões tropicais. A adaptabilidade ao ambiente faz com que as cianobactérias possam predominar mesmo em ambientes pobres em nutrientes, pela capacidade de algumas espécies de fixação do nitrogênio do ar atmosférico na forma metabolizável de amônio em estrutura denominada heterocito. Fossuem mecanismos que as tomam aptas a tolerar altas concentrações de metais pesados e baixas de oxigênio dissolvido, e incidência de radiação utravioleta, além de estruturas (aerótopos) que permitem o deslocamento ao longo da coluna d' água. Já receberam a denominação de algas azuis, algas cianofícias e, a partir da década passada, algumas características semelhantes às bactérias justificarameste último silogismo. Os cursos d ’água pela própria aeração natural e pelo material em suspensão, salvo em situações muito específicas, acabam apresentando concentrações (ou densidades) de algas e cianobactérias menos pronunciadas. Contudo, excepcionalmente, verificou-se em outubro de 2007 no Rio das Velhas - curso d'água que abastece mais da metade da população da Região Metropolitana de Belo Horizonte - crescimento abmpto (denominado floração36) da concentração de cianobactérias, comprometendo a qualidade das suas águas e culminando com cerceamento de diversos dos seus usos em parcela significativa de sua extensão. Esta floração traduziu as próprias condições adequadas ao desenvolvimento das cianobactérias. A menor vazão do curso d’água no final do período de uma estiagem mais severa - reduzindo a velocidade de escoamento e consequentemente a capacidade de aeração da massa líquida a temperatura elevada, a menor concentração de sólidos suspensos, favorecendo a maior penetração da luz solar, e o aporte de nutrientes forneceram as circunstâncias propícias para o surgimento da floração. Com o início das chuvas, tais fatores (à exceção dos nutrientes) minimizaram-se e a concentração de cianobactérias reduziu-se, embora o cenário anterior à floração permanecesse inalterado. A interferência da presença de algas na potabilização das águas revela-se em várias perspectivas de acordo com o(s) gmpo(s) predominante(s). Alguns gmpos de algas interferem no tratamento das águas de diferentes formas. Usualmente, ocorrem aumento do consumo de produtos químicos, redução da sedimentabilidade dos flocos e das carreiras de filtração,37 elevação da demanda de cloro na desinfecção, com maior possibilidade de formação de THM, ocasionando maiores riscos à saúde humana. Embora ainda sejam casos raros no Brasil, sucessivas florações culminaram com a mudança do manancial ou com a alteração da tecnologia de tratamento com o emprego da flotação por ar dissolvido, em virtude da mencionada baixa sedimentabilidade dos flocos formados. Apesar das substâncias húmicas constituírem-se nos principais precursores de THM em águas cloradas, pesquisas em laboratório confirmaram a relação entre a presença das algas e dos seus subprodutos metabólicos com a concentração de THM. Constatou-se que os compostos orgânicos excretados por algumas espécies apresentam igual importância na formação de clorofórmio (CHC13), por unidade de COT, quanto os ácidos fúlvicos e húmicos. A importância destes compostos como precursores de THM evidencia-se significativamente em populações predominantemente jovens, nos períodos de elevada atividade metabólica da comunidade algal - meses de maior insolação, última fase exponencial de crescimento. Este fato comprova-se pela análise da figura 2.25 na qual é apresentada a relação entre a concentração total de THM e clorofila a, observada no reservatório de Occoquan (Virgínia, EUA) no período de maio a novembro de 1975. Carbono Orgânico Total (mg/L) Figura 2.25. Correlação entre as concentrações médias de clorofila a e THM na água tratada. Fonte: Hoehn et al. (1980). 36. Confere-se esta denominação quando o número de células de algas ou cianobactérias supera o valor médio comumente registrado no corpo d’água. 37. Tempo, comumente em horas, entre duas lavagens consecutivas de uma unidade filtrante. Em contexto provavelmente mais relevante, compostos orgânicos excretados por algumas espécies de algas e cianobactérias podem conferir odor e sabor e, em maiores concentrações, toxicidade às águas. Estima-se que dos aproximadamente 150 gêneros descritos, 40 sejam capazes fie produzir toxinas (cianotoxinas) passíveis de causar algum dano à saúde (Molica; Azevedo, 2009). Às cianotoxinas apresentam toxicidade variável, podendo levar à morte por parada respiratória, logo após a exposição, ou produzir danos de efeitos mais prolongados. Segundo o seu modo de ação, as toxinas produzidas por cianobactérias podem ser divididas nos seguintes grupos: hepatotoxinas, neurotoxinas, endotoxinas e toxinas irritantes da pele. Os efeitos tóxicos, relacionados à cianotoxina e ao gênero de cianobactérias responsáveis pela produção da mesma, estão apresentados na tabela 2.7. Tabela 2.7. Principais efeitos sobre a saúde e cianobactéria e cianotoxinas responsáveis. Cianotoxina Microcistina Nodularina Cilindrospermopsina Saxitoxina Anatoxina Gênero de cianobactéria responsável Anabaena spp, Microcysíis, Nostoc, Plankothrix, Hapalosiphon, Anabaenopsis Nodularia Cylindrospermopsis, Plankothrix, Aphani zomenon, Umezakia Anabaena, Aphanizomenon, Cylindros permopsis, Lyngbya Anabaena, Aphanizomenon, Plankothrix . Efeitos tóxicos Danos ao fígado e desenvolvimento de tumores. Danos ao fígado. Danos aos rins, fígado e outros órgãos, e desenvolvimento de tumores. Danos ao sistema nervoso, falhas respira tórias e sintomas agudos*. Danos ao sistema nervoso, falhas respira tórias e sintomas agudos*. Fonte: * Os sintomas agudos manifestam-se por febre, distúrbios gastrointestinais, irritações na pele, garganta, olhos e nas vias respiratórias. Fonte: AWWA (2003). Algumas dúvidas ainda persistem em relação à possível vantagem adaptativa na produção de cianotoxinas pelas cianobactérias. A hipótese mais aceita sustenta que estas substâncias tóxicas tenham função de defesa, como a dos anti-herbívoros produzidos por algumas plantas, que inibem a ação de predadores ou de algas competidoras. Às cianobactérias tóxicas reporta-se a maioria dos casos de intoxicações envolvendo ficotoxinas de águas doces ou marinhas. Tais intoxicações em humanos podem ocorrer pelo contato com a água contendo células tóxicas, pelo consumo de peixes de locais contaminados e/ou de água contaminada, sobretudo oriundas de reservatórios de acumulação. A ingestão de água contaminada por cianotoxinas pode ocasionar distúrbios orgânicos de distintas naturezas. Em caso de acesso direto à corrente sanguínea a sua atuação é geralmente fatal, como demonstrou o conhecido caso dos pacientes de uma clínica de hemodiálise na cidade de Camam-PE em 1996, considerado um marco na comprovação dos danos à saúde humana. Neste evento, 110 pacientes renais crônicos, após terem sido submetidos a sessões de hemodiálise, passaram a apresentar quadro clínico compatível com hepatotoxicose. Posteriormente, 54 pacientes renais crônicos vieram a falecer no decorrer de cinco meses após o inicio dos sintomas. As análises laboratoriais possibilitaram o isolamento e detecção da microcistina-LR no sistema de purificação de água da clínica, bem como amostras de sangue e fígado dos pacientes intoxicados. As contagens de fitoplâncton realizadas nos anos anteriores demonstraram a presença dos gêneros de cianobactérias Microcysíis ssp., Anabaena ssp e Anabaenopsis ssp no manancial (Viana-Veronesi et al., 2009). Há evidências que as tecnologias de tratamento usuais, envolvendo a coagulação química, não são capazes de efetivamente remover as cianotoxinas dissolvidas na água. Tal provavelmente ocorra porque os coagulantes usualmente empregados são ineficazes na desestabilização e precipitação desses compostos, não sendo possível a separação das cianotoxinas nas etapas seguintes da potabilização (Choras; Bartram, 1999; Azevedo; Brandão, 2003). CAPÍTULO 02 Há intrínseca relação entre a concentração média de fósforo e a magnitude da comunidade algal. Tal se deve pelo fato do fósforo ser provavelmente, para significativa maioria dos corpos d ’água, o principal fator limitantes do crescimento da população de algas, juntamente com o nitrogênio. Este, por sua vez, abundante no ar atmosférico (78 %), é fixado no meio aquoso por algumas espécies de algas e, especialmente, cianobactérias, contribuindo ainda mais para a floração algal. A relação entre a concentração de nutrientes e a formação de biomassa algal não é no entanto linear, adquirindo usualmente uma configuração exponencial. Uma das alternativas de controle da floração de algas consiste na pré-cloração ou aplicação de algicidas, taiscomo compostos de cobre, sulfato de cobre em maior escala, e permanganato de potássio. Também são usados em menor frequência compostos de prata, sais orgânicos de zinco, ozônio, solventes aromáticos e peróxido de hidrogênio (água oxigenada). Nestas circunstâncias, o rompimento da parede celular das algas ou das cianobactérias pode causar a liberação de diversas toxinas deletérias à saúde humana e outros animais. Adicionalmente, pode ocorrer o aproveitamento do material celular das algas mortas como substrato para outros microrganismos, também passíveis de conferir sabor e odor às águas. A dificuldade na remoção das cianotoxinas tem fomentado o estudo de algumas alternativas com o fito de minimizar a afluência de cianobactérias à estação de tratamento. Experiência exitosa ocorreu a partir de 2002 em uma captação de pequeno porte em um curso d’água próxima a Belo Horizonte. Ao corpo hídrico de vazão de pequena magnitude aportava o efluente de diversas pocilgas instaladas às margens, culminando com a floração de cianobactérias. Por meio de uma estrutura de ferro galvanizado, em forma de anel, dotada de duas fileiras de orifícios posicionadas em ângulos de 45° e 90°, aplicava-se ar comprimido por meio de um compressor. Este aparato foi imerso 30 cm acima do crivo da bomba e proporcionou aumento significativo da carreira de filtração, decréscimo no tempo de funcionamento da estação de tratamento em virtude da maior produção de água - com consequente redução do consumo de energia elétrica e de outros custos operacionais - e melhoria da qualidade efluente, sobretudo no que tange à remoção de sabor e odor. O evento de Camam e as confirmações científicas acerca dos efeitos danosos à saúde humana em razão da ingestão de água contendo cianotoxinas concorreram para que na Portaria 518, além de vedar o uso de algicidas, recomendasse o monitoramento mensal de cianobactérias na água bruta quando o número de células for inferior a 10000 células/mL e semanal se superior. Caso o número de cianobactérias na água bmta exceder 20000 células/mL, o monitoramento deverá se estender para o efluente da estação de tratamento, entrada de clínicas de hemodiálise e indústrias de injetáveis. Esta ampliação do monitoramento toma-se dispensável caso os bioensaios com camundongos atestem a ausência de toxicidade da cianotoxina. Estabelecem-se ainda concentrações máximas de 1,0 pg/L para microcistinas - facultando em 10 pg/L em até três análises consecutivas ou não no período de 12 meses - e de 15,0 e 3,0 pg/L, respectivamente, para cilindrospermopsina e saxitoxinas. Outras cianotoxinas não foram inseridas pela inexistência de técnicas de detecção padronizadas e pela necessidade informações mais consolidadas. O padrão de potabilidade americano não se reporta a cianotoxinas e a OMS estabelece de forma provisória apenas para microcistina-LR concentração máxima de 1,0 pg/L. Protozoários Os gêneros de protozoários associados a doenças de transmissão hídrica incluem Giardia, Cryptosporidium, Toxoplasma, Cyclospora, Entamoeba, Isospora belli, Naegleria fowleri e Acanthamoeba, capazes de produzir cistos ou oocistos resistentes às condições do ambiente. A exceção dos dois últimos gêneros de vida livre, os demais fazem-se presentes nas fezes dos indivíduos infectados. C A PÍTULO 02 Mesmo nos países desenvolvidos verifica-se, ainda que em muito menor monta, a prevalência das doenças de veiculação hídrica. Embora diversas endemias comuns aos países em desenvolvimento, em especial àqueles situados entre os trópicos, dificilmente são registradas nas nações desenvolvidas, outros parasitos mais resistentes às condições do ambiente e à ação dos desinfetantes ainda grassam em muitas regiões do Planeta. Dentre os parasitos usuais em mananciais de abastecimento destacam-se os protozoários presentes mesmo em águas pristinas, julgadas até então imunes a quaisquer tipos de deterioração da qualidade por origem antrópica. A salientada forma como os protozoários se apresentam na natureza, como cistos e oocistos, explica sua prevalência em distintos tipos de ambiente e dificulta o controle nos mananciais empregados para abastecimento. Adicionalmente, verifica-se a significativa maior resistência à ação dos desinfetantes, em especial o cloro cujo mecanismo predominante de inativação consiste na ruptura/oxidação da parede celular do microrganismo. Neste contexto, os protozoários consolidaram-se comopatógenos emergentes no cenário dos microrganismos indicadores de qualidade de água de consumo humano. Destacam-se dois gêneros de protozoários - e mais especificamente uma espécie de cada um - de maior interesse para águas de abastecimento. Giardia lamblia - que também recebe as denominações de Giardia intestinalis e Giardia duodenalis - constitui-se na espécie de protozoário mais frequentemente encontrada nas águas naturais passíveis de serem empregadas para abastecimento. Apresenta-se na forma de cistos elipsoidais, com dimensão de 6 a 14 fim, e vários fatores, ainda que não plenamente comprovados, concorrem para assegurar sua prevalência no meio ambiente, tais como apresentar diversos mamíferos - castores, veados, entre outros - como reservatórios no reino animal e o fato de permanecer infectante na água por um a três meses, especialmente a baixas temperaturas. Apresenta dose infectante de até 10 cistos, condicionada à idade e ao estado de saúde do indivíduo, e, embora a principal via de transmissão seja hídrica, outras formas de infecção têm sido verificadas (Cohn; Cox; Berger, 1999). Estima-se que de 100 mil a 2,5 milhões de pessoas são infectadas anualmente nos EUA e este gênero consiste no protozoário parasita mais frequentemente detectado em todo Globo (AJPHA; AWWA; WEF, 2005). A atual relevância da Giardia como um dos principais patógenos apresenta temporalmente caráter interessante. Até meados da década de 1950, Giardia lamblia era considerado um comensal,38 tendo sido utilizado como placebo39 em prisioneiros para identificação de outro protozoário (Entamoeba histolytica) e, naquelas circunstâncias, nenhum tipo de malefício foi detectado, provavelmente, por se tratar de um grupo assintomátieo (Rendtorff, 1954 apud Lindquist, 2004). Em relação a outro gênero de protozoário, das 16 espécies conhecidas duas, Cryptosporidinm parvum e Cryptosporidinm hominis, relacionam-se com os humanos e têm implicações com surtos transmitidos por águas de consumo a partir da década de 1980 - atingindo tanto imunocompetentes quanto imunocomprometidos embora outras espécies tenham sido isoladas valendo-se de infecções humanas. As demais espécies acometem mamíferos, aves e répteis (Franco, 2007). O primeiro caso comprovado de patogenicidade humana com C. parvum data de 1976 e as parasitoses humanas usualmente referem-se a esta espécie. Apresenta-se na forma de oocisto, dimensão de 4 a 6 pm, com amplo espectro de reservatórios no reino animal - incluindo gado, cães, gatos, coelhos, veados, entre outros - e alta prevalência em águas superficiais. Estima-se que jovens bezerros ou carneiros infectados possam produzir diariamente mais oocistos de Crypto que 1000 indivíduos imunocomprometidos, atingindo algo como 1010 oocistos por dia (Crockett; Haas, 1997). Concentrações da ordem de 14000 e 5800 oocistos/L já foram reportadas em esgoto bruto e águas superficiais, 38. Parasita apto a viver no interior do organismo do hospedeiro sem, contudo, causar-lhe dano à saúde. 39. Substância sem efeito farmacológico, ministrada em substituição a um medicamento, com a finalidade de suscitar ou controlar as reações geralmente de natureza psicológica. CAPITULO 02 r/ t r ' ' . respectivamente. Desta forma, têm sido detectados oocistos de Crypto mesmo em mananciais imunes ao aporte de efluentes, especialmente durante o período chuvoso, provavelmente devido à lixiviação do solo e consequente arraste das fezes de animais. Há controvérsia sobre a dose infectante, também variável com a virulência da cepa, a idade e o estado de saúde do indivíduo. Pesquisa com voluntáriossaudáveis apontou dose de 132 oocistos como suficiente para acometer metade da população amostrada, com 20 % de infecção para 30 oocistos (Hroncich, 1999). Há ainda menção à infecção de portadores do vírus HIV com apenas um único oocisto. O segundo relato de um surto de criptospodiose ocorreu em SanAntonio, Texas (EUA), em 1984. Posteriormente, em Carrolton, Geórgia (EUA), surto de grandes proporções infectou aproximadamente 13 mil pessoas em 1987. No ano seguinte, na Inglaterra em Ayrshire, infiltração de dejetos de bovinos utilizados como fertilizantes contaminou o reservatório de abastecimento da cidade, resultando em aproximadamente 44 % de internações, indicando maior vimlência daquela cepa (Daniel et al., 1996). No período de 1971 a 1985, registraram-se nos EUA 502 surtos envolvendo 111.228 casos de doenças de veiculação hídrica. Aproximadamente na metade dos casos foi identificado o parasito e, deste montante, um total de 92 surtos - acometendo 24.365 indivíduos -, foi atribuído ao protozoário Giardia lamblia (Dubey; Speer; Fayer, 1990). Vale mencionar que parcela significativa dos casos relatados originou-se de sistemas com operação deficiente das estações de tratamento ou desinfecção ineficaz, por vezes apresentando ausência de cloro residual nas redes de distribuição. No período entre 1988 e 1993, exames microbiológicos em 347 mananciais superficiais empregados para abastecimento público nos EUA detectaram a presença de Giardia e Ciypto em, respectivamente, 53,9 e 60,2 % dos mesmos. Embora os resultados não apontem a virulência da cepa, dificuldades têm sido encontradas no intuito de superar a dicotomia, quando do emprego do cloro e seus compostos como desinfetantes, de assegurar a inativação dos protozoários e de evitar a formação de subprodutos da desinfecção. Igualmente, tem sido recomendada a coleta de amostras nas águas dos mananciais e de abastecimento para a detecção de Giardia, de forma a avaliar a variação da intensidade de ocorrência do parasito. Tal constatação agrava-se pelo estudo realizado pelaUSEPA, no estado americano do Colorado, estimando em 25 % o percentual dos surtos convenientemente registrados. No período de 1986 e 1992 ocorreu redução do número de surtos (110) e de indivíduos afetados (47 mil). A maioria dos surtos reportados deveu-se à ineficácia no tratamento (49 %) e à contaminação no sistema de distribuição (32 %), com significativa parcela decorrente do uso de água subterrânea sem ou com ineficiente desinfecção. O foco da comunidade científica em outros bioindicadores de qualidade de água direcionou-se para os protozoários após o surto de Crypto ocorrido em Milwaukee, Wisconsin (EUA), acometendo mais de 403 mil pessoas40 causando 4400 internações e 100 óbitos em abril de 1993 e custo global estimado em 96,2 milhões de dólares. Naquela ocasião, os despejos da estação de tratamento de esgoto eram lançados no mesmo Lago Michigan utilizado para abastecimento da população. Em decorrência de suas dimensões e da forma encistada, este protozoário mostrou-se menos susceptível às dosagens de cloro utilizadas na estação de tratamento de água, possibilitando o aparecimento do surto. Convém salientar que a maioria dos óbitos (69) referiu-se a indivíduos com algum tipo de comprometimento do sistema imunológico. A magnitude do surto e a virulência da cepa maximizam-se pelo fato da estação de tratamento em questão abastecer população da ordem de 840 mil pessoas (de uma população total da Cidade estimada à época em 1,5 milhão). Por fim, cabe ressaltar que durante o evento a água tratada 40. Esta estimativa fundamentou-se em uma pesquisa por amostragem, realizada por telefone, indagando quantas pessoas na residência foram acometidas por diarréia no período de 18 de março a 08 de abril de 1993. CAPÍTULO 02 ?I atendeu aos requisitos de qualidade microbiológica calcada nos organismos indicadores, a despeito do efluente apresentar, em virtude de problemas operacionais na estação, concentrações de oocistos variando de 6,7 a 13,2 oocistos/100 L e turbidez de até 2,7 uT. De janeiro a maio do ano seguinte ocorreu em Las Vegas no estado de Nevada (EUA) o mais adequadamente documentado surto de criptosporidiose. Neste período foram acometidas 78 pessoas, 63 portadoras do vírus HIV, resultando em 41 óbitos. A água tratada efluía de uma estação de grande porte, vazão afluente da ordem de 17,3 m3/s, cuja captação realizava-se por meio de reservatório de acumulação à profundidade de 40 m. A água bruta apresentava características quase pristinas, com turbidéz média de 0,14 uT e máxima de 0,30 uT. Monitoramento de 18 meses da água bruta iniciado em agosto do mesmo ano confirmou tais características, pois apenas 6,4 % das 578 amostras foram positivas para coliformes termotolerantes, com concentração máxima de 4 NMP/100 mL. Diferentemente do evento ocorrido em Milwaukee, durante o período do surto não se verificou qualquer anomalia na performance da estação de tratamento e o monitoramento de Crypto no efluente da estação realizado 18 meses após o surto (46 amostras) apontou apenas um único resultado positivo de 1 oocisto/100 L. Por fim, posterior entrevista com as pessoas infectadas evidenciou que 90 %41 mantinham hábito de consumir água sem qualquer tratamento domiciliar (Roefer et a!., 1996). O primeiro surto de giardíase na Noruega ocorreu em outubro de 2004 na cidade de Bergen acometendo 1400 pessoas42 que se abasteciam do Lago Svartediket, um dos cinco mananciais superficiais da cidade de população da ordem de 245 mil habitantes. Após o aparecimento do surto, a concessionária responsável pelo abastecimento reduziu de 25 mil para 7000 pessoas a população abastecida pelo Lago Svartediket. O surto ocorreu a despeito deste se localizar em região de montanhas sem área residencial estabelecida nas cercanias, apenas construções esparsas à margem ligadas ao sistema de coleta de esgotos da cidade. A conjunção de precipitações significativas nos meses de agosto e setembro, de atividades de recreação às margens do lago e de vazamentos na rede coletora de esgotos (que resultaram também em concentrações significativas de E. coli) parece ter sido a causa do aporte de Giardia lamblia ao manancial. Por fim, a inadequação do tratamento - que se restringia quase que apenas à desinfecção - forneceu as condições propícias para o aparecimento do. surto. Após a comprovação do surto, aliada a uma série de medidas de proteção do manancial, uma nova estação de tratamento de água a qual afluía água do Lago Svartediket entrou em operação em junho de 2007 apta a abastecer 55 mil pessoas (Eiltebroldc et al., 2008). No Brasil, embora as informações sejam escassas, já foi comprovada a ocorrência de Crypto em águas de abastecimento e, em outros dois estudos, a detecção de oocistos em 2,8, 4,3 e 24 % das amostras de fezes diarreicas em, respectivamente, Alfenas e Uberlândia, em Minas Gerais, e Perus, no estado de São Paulo, atingindo especialmente crianças de 0 a 6 anos da área urbana da cidade. Similarmente, 94 casos de diarréia em crianças de 0 a 5 anos na cidade catarinense de Criciúma foram predominantemente atribuídos à presença de Crypto. Percentuais mais elevados, 9,7 e 19,1 %, foram identificados nas fezes de pacientes portadores do vírus HIV em Santos e Campinas, respectivamente. Na cidade de Rio Grande (RS), provavelmente devido ao consumo de água contaminada, a totalidade das 17 amostras de fezes coletadas em um grupo de dezenas de pessoas com quadro diarreico de um acampamento apontou prevalência de oocistos de Crypto (Cerqueira, 2008). 41. Diferentemente do Brasil, é comum nos EUA e Canadá a população não fazer uso de unidades domiciliares de tratamento de água, consumindo água diretamente da torneira (tap water). 42. 1400 pessoas foram diagnosticadas com giardíase, mas estima-se de 4000 a 6000 pessoas infectadas e destas 200 a 400 ainda apresentavam os sintomas 18 meses após o surto. CAPÍTULO 02 7 — Estudo epidemiológico mais abrangente realizado em Belo Horizonte apontou prevalênciatotal de criptosporidiose em aproximadamente 25 % da população infantil amostrada entre 1 e 5 anos. Não se verificou significância estatística entre a população atendida e não atendida por redes de abastecimento de água e coletora de esgotos na prevalência desta doença. O estudo, cuja síntese de resultados está apresentada na tabela 2.8, concluiu que as protozooses podem ser transmitidas mesmo em condições adequadas de distribuição de água e coleta de esgotos, tomando os cistos de Giardia e oocistos de Crypto inadequados como indicadores de saúde (Azevedo, 2003). Tabela 2.8. Parasitas nas fezes em população infantil de favelas de Belo Horizonte. ÁREA - núm ero (%) CACE CASE SASE Cryptosporidium Positivo 32 (20,7) 45 (29,2) 39 (25,7) Negativo Giardia 123 (79,3) 109 (70,8) 113 (74,3) Positivo 36 (23,4) 38 (24,7) 39 (25,7) Negativo 119 (76,6) 116 (75,3) 113 (74,3) CACE: área com abastecimento de água e com esgotamento sanitário. CASE: área com abastecimento de água e sem esgotamento sanitário. SASE: área sem abastecimento de água e sem esgotamento sanitário. Pesquisa objetivou avaliar a concentração de cistos e oocistos de protozoários em distintos ambientes. Em primeira instância, foram coletadas amostras no interceptor de esgotos sanitários da Bacia do Ribeirão Arrudas, Belo Horizonte, durante duas semanas distintas, uma em um período não chuvoso e a outra em período chuvoso. Em cada semana foram coletadas 15 amostras, compreendendo cinco dias e três horários diários, apresentando concentrações médias de 102 a 104 oocistos/100 L e de 103 a 105 cistos/100 L. Não foi identificado padrão de variação diária e semanal na concentração de protozoários, verificando-se pequena elevação nos dias chuvosos. Posteriormente, a presença de protozoários foi avaliada nos dois mananciais superficiais que abastecem a cidade de Viçosa/MG. Detectaram-se concentrações médias de Giardia e Crypto da ordem de 4-7 cistos/L e 6-20 oocistos/L; respectivamente, atingindo nos eventos de pico 510 oocistos e 140 cistos/L. Em um dos mananciais, as concentrações de Giardia parecem estar associadas às de endosporos e à turbidez, e as de Crypto apenas à turbidez. No outro manancial, Giardia se associa com coliformes e com turbidez, e Crypto novamente com turbidez. Em ambos mananciais as ocorrências de cada protozoário associam-se fortemente entre si. No que tange à remoção dos protozoários, em apenas uma das três estações de tratamento, a unidade mais nova, não foram verificadas ocorrências na água filtrada. As concentrações detectadas no efluente das duas estações apresentaram-se superiores aos limites estabelecidos para riscos anuais de infecção de 10'4(uma infecção anual para cada grupo de 10.000 pessoas) e pelo padrão de potabilidade europeu de 10 oocistos/100 L (Heller et a l, 2004). Ainda em nível nacional, a persistência dos protozoários foi avaliada na desinfecção com cloro do efluente de quatro estações de tratamento de esgotos, com distintas tecnologias, da Região Metropolitana de Porto Alegre. Os resultados apontaram para uma concentração média dos efluentes das estações de 1042 oocistos/100 L e 431 cistos/100 L, e para ausência de correlação com os valores de turbidez, DQO e coliformes termotolerantes e totais. Verificou-se remoção total de cistos e oocistos no efluênte de lagoas de estabilização em série, consequência da adsorção pelos sólidos sedimentáveis. Todavia, estimou-se remoção de cistos de Giardia de 60 a 90 % e de oocistos de Crypto de <10 a 90 % em estações com tratamento secundário. A desinfecção realizada em regime de batelada com tempos de detenção de 110, 61 e 30 min e dosagem de cloro de 6 mg/L, na forma de ácido hipocloroso, mostrou-se insuficiente para inativação destes patógenos (Cardoso; Carli; De Luca, 2003). O monitoramento dos protozoários é problemático, graças a suas dimensões, à baixa concen tração na massa líquida, ao volume necessário de água para consecução das análises, à inabilidade em aumentar o número de indivíduos em culturas in vitro e à dificuldade de identificação quando misturados a outras partículas. A USEPA estabelece como padrão para determinação de cistos e oocistos em água o Método 162343 que preconiza distintos volumes de amostragem visando a elevar a confiabilidade dos resultados. Para água bruta estabelece-se volume da amostra de 10 L e para água tratada de 100 a 1000 L - pela maior presença de partículas suspensas e coloidais. O Método 1623 apresenta como vantagens a mais precisa distinção dos cistos de Giardia e oocistos de Crypto e, decorrente do emprego de anticorpos específicos aos protozoários, a não ocorrência de falso-positivos. As principais limitações reportam-se (Martins et al., 2009) (Pontius, 1996): i) à incerteza da viabilidade e infecciosidade do microrganismo; ii) a não permitir a identificação da espécie; iii) ao custo elevado e à necessidade de mão de obra especializada; iv) à presença de partículas suspensas e cátions bivalentes que podem interferir na ligação dos anticorpos aos oocistos; v) às perdas de oocistos no processo de concentração, resultando em contagens significati vamente inferiores à concentração real de protozoários na água de estudo; vi) ao tempo excessivamente longo para detecção (um a dois dias). Os sintomas da giardíase e da criptosporidiose, após período de incubação de uma a duas semanas, são similares aos de outras doenças de veiculação hídrica, tais como náuseas, diarréias, dor intestinal e, por vezes, anorexia. Finalmente, também integra o rol dos protozoários passíveis de causar alguma doença de veiculação hídrica a espécie Entamoeba histolytica. Contudo, esta espécie não apresenta reservatório no reino animal, restringindo sua transmissão aos corpos d’água receptores de esgotos. O padrão de potabilidade nacional e da OMS não explicitam concentração máxima de protozoários e, para o primeiro, o controle se faz de forma indireta ao recomendar turbidez do efluente filtrado inferior a 0,5 uT em 95 % dos dados mensais e que toda água captada superficialmente deva ser submetida à filtração, em virtude da maior resistência destes microrganismos à desinfecção com cloro. A partir de 2006 a USEPA estabelece como recomendação para os sistemas de abastecimento de pequeno porte a realização de monitoramento de Crypto em função da concentração de E. coli. Na última edição do StandardMethods de 2005, sem especificar metodologia de determinação, descrevem-se métodos para amostragem, concentração e purificação visando à análise de Giardia e Ciypto. Os volumes de amostra variam de 10 a 1000 L (podendo ser de 500 mL para esgotos), dependendo do método de concentração empregado e das características das águas bmtas ou tratadas.44 Adicionalmente, listam-se as vantagens e limitações de cada método de concentração e de purificação das amostras, basicamente em termos do volume da amostra, do custo dos equipamentos e de pessoal necessários, da taxa de recuperação de cistos e oocistos, e do tempo despendido para realização das análises (APHA; AWWA; WEF, 2005). Provavelmente como consequência desta padronização, o padrão americano recomenda remoção de 2 log e 3 log para oocistos de Crypto e cistos de Giardia, respectivamente. Esta recomendação aplica-se aos sistemas de abastecimento que utilizam águas superficiais (ou subterrâneas sob influência de água superficial) nos quais não há unidades de filtração. 43. Filtração, eluição, concentração, separação imunomagnética, imunofluorescência e identificação microscópica integram as etapas do Método 1623. 44. Para concentração dos cistos e oocistos, considera-se como turbidez baixa valor inferior a 1,0 uT, moderada de 1,0 a 10 uT e alta superior a 10 uT. CAPÍTULO 02 As mencionadas dificuldades na detecção de cistos e oocistos de protozoários, associadas ao alto custo das análises, têm fomentado o emprego de outros parâmetros que permitam estimar a presença destes microrganismos na água bruta e tratada. Neste viés, a USEPA, a partir de 2006, passou a recomendar que as determinações daconcentração de Crypto no afluente aos sistemas de pequeno porte vinculem-se à concentração de E. coli e ao tipo de manancial superficial. Desta forma, concentrações de E. coli superiores a 10 NMP/100 mL em reservatórios ou lagos e 50 NMP/100 mL em cursos d’água apontam para necessidade da determinação do protozoário. Todavia, a utilização destes parâmetros substitutos, tradução literal de surrogate parameters, como indicadores da presença de cistos e oocistos de protozoários em águas ainda é controvertida. Em recente pesquisa, contemplando sete mananciais cujas águas bmtas afluíam a quatro estações de tratamento de grande porte no estado americano de Utah, efetuou-se monitoramento de Crypto ao longo de sete anos perfazendo 228 análises (empregando o mencionado Método 1623 da USEPA). Os resultados foram classificados em função do tipo de manancial - cursos d’água (146) e reservatórios de acumulação (82) -, das referidas recomendações da USEPA e das quatro estações do ano. Avaliou- -se correlação entre a concentração de Crypto para com turbidez e concentração de E. coli. As análises estatísticas apontaram correlações pouco significativas,45 e por vezes negativas, para com ambos indicadores (Nieminski et al., 2010). Especificamente em relação a E. coli algumas conjecturas podem ser tecidas visando a explicar a recorrente baixa correlação verificada nesta e em outras pesquisas. Nos corpos d’água, bactérias do gmpo coliforme tendem a se aglutinar junto às partículas de argila ou à matéria orgânica favorecendo o aumento da velocidade de sedimentação, ao passo que os oocistos mantém sua individualidade. Desta forma, toma-se compreensível as baixas correlações entre concentrações de Crypto e de E. coli, principalmente para águas captadas em lagos e reservatórios. Outra hipótese recai para maior persistência dos protozoários no ambiente comparada à da bactéria E. coli. Enquanto os primeiros apresentam mortalidade natural em aproximadamente 67 dias, para as bactérias indicadoras esta persistência reduz-se para algo como 2,5 a 5 dias. Em relação aos fatores sazonais afloram duas perspectivas. As menores dimensões das bactérias contribuem para maior penetração nos interstícios do solo, reduzindo o arraste durante os eventos de precipitação menos pronunciados. Com alguma similaridade, a eliminação de oocistos pelos animais também apresenta caráter sazonal e, ao passo que a presença de E. coli manifesta-se em todas as fezes, os oocistos fazem-se presentes apenas nos indivíduos infectados. Vírus entéricos Diversas espécies de viras desenvolvem-se no trato intestinal (daí a denominação entéricos) dos animais homeotermos, estes também designados animais de sangue quente, e pelas fezes atingem os corpos d’água superficiais e subterrâneos. Esta denominação genérica abarca os vírus da hepatite A e E, enter o vírus, adeno vírus, rotavíras, entre outros (AWWA, 2006). Deste rol, os vírus da hepatite e os enterovíras respondem por significativa parcela das infecções, especialmente nos países em desenvolvimento. Vale destacar que, embora a transmissão pela água contaminada seja relevante - e preponderante para o vírus da Hepatite E -, verifica-se transmissão por meio dos alimentos e contato pessoal. Por não serem usualmente encontrados na flora intestinal dos humanos, somente os indivíduos infectados, crianças em sua maioria, são capazes de excretar estes microrganismos, em magnitude 45. Como os resultados não apresentaram distribuição normal, realizaram-se testes não paramétricos deter minando-se o coeficiente de Spearman. A correlação mais significativa apontou coeficiente de Spearman de 0,54, que corresponde a coeficiente de determinação (R2) de aproximadamente 0,29, entre os valores médios da concentração de Crypto e da turbidez de cada estação. 75 significativamente inferior à das bactérias coliformes.46 Vírus entéricos apresentam dimensões de 18 a 120 nm, são incapazes de se multiplicar no ambiente e estima-se em mais de 120 diferentes tipos passíveis de infectar seres humanos. Usualmente atribui-se à infecção por viras as epidemias de doenças de transmissão hídrica cujo agente etiológico não foi adequadamente identificado. Levantamento realizado nos EUA, abarcando 449 surtos de doenças de transmissão hídrica no período de 1971 a 1994, apontou a giardíase e a doença gastrointestinal aguda de etiologia não determinada como as mais frequentes (Rose; Daeschner; Patz, 2000). Todavia, a quase totalidade dos vírus já identificados é susceptível às tecnologias de tratamento normal mente empregádas, incluindo-se a desinfecção com compostos de cloro, sendo relativamente usual remoção e inativação de 2 a 4 log. A despeito dos avanços na área de biologia molecular, não é recomendado o monitoramento rotineiro de vírus no efluente das estações de tratamento de água. Desta forma, as legislações nacional, americana e da OMS estabelecem os mencionados padrões de eficiência de remoção de turbidez, associados às condições para realização da desinfecção47 visando à inobservância de vírus e cistos e oocistos de protozoários na água de consumo. Outros indicadores microbiológicos Em termos microbiológicos, a prática de avaliação de qualidade da água de consumo humano no Brasil centra-se no controle da presença de bactérias do grupo coliforme, seguindo tendência internacional em vigor até o final da década de 1980. Tal controle baseia-se na lógica de organismos indicadores, baseado no pressuposto de que, dadas as características dos coliformes, sua ausência nas águas de abastecimento - sobretudo dos mencionados coliformes termotolerantes e mais especificamente da bactéria Escherichia coli - significaria uma garantia sanitária da segurança microbiológica da água em termos de saúde pública. Todavia, a despeito dos avanços nos métodos de detecção, tem sido constatada a fragilidade deste controle. Embora de grande praticidade, conforme mencionado, o teste de coliformes não garante a ausência nas águas de outros patogênicos, mais resistentes que as bactérias. Preocupações mais recentes com o potencial patogênico das águas de consumo vêm se dirigindo, além dos protozoários Giardia e Crypto, a outras bactérias, como Campylobacter e Aeromonas, e diversos tipos de vírus entéricos. Doenças do aparelho respiratório também têm sido associadas à água, como a pneumonia transmitida pela bactéria Legionella pneumophila. Ainda no contexto dos mencionados indicadores da presença de cistos e oocistos de proto zoários, descortina-se a utilização de outros indicadores microbiológicos mais resistentes que E. coli objetivando elevar a possibilidade de, na sua ausência, também estarem ausentes cistos e oocistos de protozoários e vírus entéricos. Clostridium perfringens tem sido utilizado como indicador bacteriológico de contaminação fecal, pois sua incidência no meio aquático está constantemente associada a dejetos humanos, sendo sua presença detectada em fezes, esgotos e águas poluídas. Por serem esporaladas, estas bactérias apresentam grande resistência aos desinfetantes e às condições desfavoráveis do meio ambiente. A excepcional longevidade de seus esporos na água é útil na detecção de contaminação fecal remota em situações em que outros indicadores menios resistentes como E. coli já não estão mais presentes. 46. Conforme mencionado neste capítulo, as bactérias coliformes respondem por 1/3 a 1/5 do peso das fezes e por concentrações 106 a 108 organismos/mL nos esgotos domésticos. Vírus entéricos são eliminados à razão de 107 a 1010 por grama de fezes. 47. A Portaria 518 recomenda realizar a desinfecção com pH inferior a 8,0 e efluente da estação com concentração de cloro residual livre superior a 0,5 mg/L. Os colifagos constituem-se outra alternativa por serem víms bacteriófagos que infectam e replicam em cepas hospedeiras de E. coli e parecem estar sempre presentes na amostra em estudo na qual a E. coli é isolada, podendo também servir como indicadores da eficiência no tratamento na remoção de Enterovíms e outros víms comoo dá hepatite (Cerqueira; Horta, 1999). Por fim, as bactérias heterotróficas, cuja determinação reporta-se à contagem em placa em termos de UFC/100 mL -, constituem-se microrganismos que utilizam o carbono orgânico como fonte de energia, constituem outro indicador ainda que de menor especificidade. Concentrações repentinamente elevadas indicam má qualidade microbiológica da água em razão provavelmente da desinfecção ineficaz. A despéito da reconhecida maior relevância de outras parcelas da matéria orgânica, estudo em escala-piloto apontou conversão dos ácidos húmicos, que se relacionam à cor verdadeira das águas naturais, em biomassa pelas bactérias heterotróficas nas redes de distribuição, favorecendo o crescimento do biofilme nas tubulações. O crescimento das bactérias heterotróficas pareceu ser mais pronunciado quando se adicionou ácido húmico com baixo e alto peso molecular (Esteves, 1988). No Brasil, as bactérias heterotróficas são comumente empregadas para avaliação da qualidade microbiológica da água nas redes de distribuição. Neste contexto, visando a avaliar a integridade da rede de distribuição, os padrões nacional e americano estabelecem valor-limite de 500 UFC/100 mL e, no caso da Portaria 518, contemplando 20 % das amostras mensais coletadas para análise de coliformes totais. Comunidades hidrobiológicas O conjunto dos organismos e microrganismos que habitam o ambiente aquático constitui as três principais comunidades hidrobiológicas: plâncton, necton e benton. As algas, cianobactérias e bactérias formam o fitoplâncton, ao passo que microcmstáceos, larvas de insetos e de moluscos, vermes, protozoários e rotíferos constituem o zooplâncton. A comunidade planctônica traduz a base da cadeia trófica, respondendo pela degradação da matéria orgânica e produção de oxigênio, essenciais ao ecossistema aquático. No topo da cadeia trófica, a comunidade ictiológica representa o necton e algumas espécies mais exigentes em termos da concentração de oxigênio dissolvido tomam-se bons indicadores da qualidade da água e, em outro contexto, podem desempenhar papel cmcial em programas de biomanipulação visando à redução da eutrofização de lagos e represas. Por fim, a comunidade bentônica, composta por larvas de insetos e anelídeos que habitam o sedimento aquático, ou sua superfície, de lagos e rios, atua na solubilização do material sedimentado. O fitobentos constitui-se de vegetais inferiores e superiores (como algumas macrófitas) e sua distribuição no sedimento é governada pela penetração da luz e resultante fotossíntese. Em rios e lagos de baixa profundidade e baixa concentração de sólidos suspensos, toda a superfície do sedimento pode ser colonizada e influenciar significativamente diversos processos no ambiente aquático. O zoobentos constitui-se, além de alguns representantes do zooplâncton, animais vertebrados e invertebrados - moluscos, cmstáceos, insetos -, estes aptos a utilizar as macrófitas, a vegetação e as pedras como substrato. Intervém de forma relevante na dinâmica de nutrientes no corpo aquático pela decomposição da matéria orgânica e por se constituírem em alimento de diversos organismos aquáticos, especialmente peixes. Sua distribuição é governada pela disponibilidade e qualidade de alimento, tipo de sedimento (orgânico, arenoso ou argiloso), concentração de oxigênio dissolvido e gás sulfídrico, e temperatura do corpo d’água. Por serem sensíveis às alterações ambientais e apresentarem reduzida locomoção, vinculada à velocidade de escoamento para os cursos d’água, acabam por se constituir excelentes indicadores de qualidade de água (Esteves, 1988). 77 Características radioativas Radioatividade pode ser conceituada como a desintegração espontânea, por unidade de massa e de tempo, de um elemento radioativo - tais como urânio, rádio, tório, césio, entre outros - com emissão de radiação, corpuscular ou eletromagnética. Radionuclídeos48 denominam-se os átomos que Se desintegraram pela emissão da radiação e os raios alfa, beta ou gama são os mais comumente emitidos. A radioatividade é medida em curies49 ou becquerel que traduz a taxa de caimento da radioatividade ou o número de desintegrações por segundo que sofre o núcleo de um elemento radioativo. A partir das décadas de 1950 e 1960, com o advento dos testes nucleares em diversos países, passou-se avaliar a perspectiva de contaminação da população abastecida pela água de consumo que pudesse conter substâncias radioativas ou elementos radioativos. A tais substâncias atribuem danos à saúde humana que abrangem desenvolvimento de tumores, além de efeitos mutagênicos, somáticos e teratogênicos.50 Contudo, quando comparada à exposição à radioatividade decorrente de causas naturais, os efeitos à saúde humana advindos da água de consumo parecem ser comumente desprezíveis. Estima-se que mais de 71 % das emissões radioativas passíveis de atingir o ser humano advêm de fontes naturais, com o restante originando-se nos usos na medicina (20 %), na água e alimentos (8 %) e outras fontes antrópicas (1 %) (World Health Organization, 2004). Aguas superficiais e subterrâneas podem apresentar, em virtude do contato com solos e rochas, radioatividade natural. Neste contexto, as concentrações de elementos radioativos tendem a ser mais significativas em aquíferos profundos e fontes. Estima-se que em regiões como o estado de Kerala (índia) e de Poços de Caldas a exposição natural da população à radiação seja até 10 vezes superior à média, e não foram detectadas até o momento quaisquer anomalias na população. Aliado aos testes nucleares, o crescente uso de radioisótopos na medicina para diversos tipos de tratamento toma real a possibilidade de contaminação das águas superficiais pela disposição inadequada destes resíduos. O padrão de potabilidade nacional refere-se à radioatividade global alfa e beta, estabelecendo, respectivamente, valores máximos permissíveis de 0,1 e 1,0 Bq/L. Ao passo que o padrão americano lista quatro radionuclídeos, a OMS estabelece extensa lista de nucleotídeos cujos valores-guia foram definidos com base em uma dose individual preestabelecida e de consumo diário per capita de 2,0 L. 48. Podem ser citados como exemplos de radionuclídeos Urânio-234, Rádio-226, Chumbo-210, Tório-230, Césio-134, entre outros. 49. Curie (Ci) equivale a 3,7 x 1010 desintegrações por segundo ou becquerels (Bq). Desta forma, mais usualmente reporta-se a pico Curie (pCi = 10"12 Ci) e, em termos de concentração de atividade, a Bq/L. 50. Teratogênese consiste no desenvolvimento de anomalias no útero que levam à má formação do feto. índices de Qualidade de Água [...] Riacho Siriminzinho, então, possui-se, cheio de peixes grandes. Roca e barulha: em vez de correr para baixo, sobe ao arrepio, faz ondas, empurra-se para trás com tanta água do rio, supera o chão e o tempo e confirma: toda a vida, todas as vidas, sim. Guimarães Rosa - Ave Palavra (1970) divulgação da interpretação de dados e parâmetros de qualidade de água de forma inteligível ao público leigo, ainda que não seja exclusividade desta área de conhecimento em questão, tem sido motivo de esforços de diversos pesquisadores. Há um grande número de tentativas de reproduzir em único valor o significado de um conjunto de dados de distintas naturezas. Emergem desta constatação, por exemplo, o índice de Desenvolvimento Humano (IDH) e o índice de Gini. O primeiro constitui um índice estabelecido pelo Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), também aplicável em nível municipal e estadual, que traduz as condições atingidas por uma sociedade no tocante à educação, saúde (longevidade) e Produto Interno Bruto per capita. Assume o máximo de 1,0 e estabelece-se como alto o valor de IDH superior a 0,80, médio no intervalo de 0,50 a 0,80 e baixo IDH inferior a 0,50.51 O segundo índice, cuja denominação reporta-se ao pesquisador italiano Corrado Gini, mede o grau de desigualdade de renda das populações, variando de 0 a 1,0. A medida que o índice se aproxima da unidade, cresce adesigualdade. Especificamente relacionado à qualidade de água, neste capítulo serão abordados a metodologia mais comumente empregada para o desenvolvimento de tais indicadores e, mais detalhadamente, dois dos principais resultados da sua aplicação. 51. Especificamente em relação ao Brasil, de 2006 a 2007 o IDH do País variou de 0,808 para 0,813, mantendo a 79a posição no conjunto de 182 países liderados por Nomega (0,971), Austrália (0,970) e Islândia (0,969). Em nível estadual, os últimos dados referentes a 2005 apontam nítida distinção entre as regiões Sul, Sudeste e Centro-Oeste, e as regiões Norte e Nordeste. Distrito Federal (0,874), Santa Catarina (0,840) e São Paulo (0,833) apresentam-se como os estados com os mais elevados IDH, enquanto Alagoas (0,677), Maranhão (0,683) e Piauí (0,703) os mais baixos. Metodologia Delphi Esta metodologia foi desenvolvida na década de 1950 e, à época, visava a obter o mais significativo consenso de opinião sobre a seleção de uma meta ótima para o sistema industrial americano, estabelecendo estimativa do número necessário de bombas atômicas como retrato do auge da Guerra Fria entre os EUA e a ex-URSS. A metodologia consiste na aplicação de questionários a um grupo de especialistas, objetivando definir pontos e estratégias consensuais sobre diversos temas, de currículos acadêmicos ao planejamento urbano e regional. Para a consecução deste objetivo, quatro pressupostos devempermear sua aplicação (Linstone; Turoff, 1975): i) a garantia do anonimato, visando a reduzir fatores psicológicos, tais como a possível influência da opinião de participantes com maior grau de especialização sobre os demais; ii) a interação, por meio das várias rodadas de questionários permitindo aos participantes revisarem suas decisões; iii) o feedback, controlado entre duas rodadas sucessivas de questionários para informar cada membro do grupo da opinião dos demais, comumente apresentado como um sumário numé rico anexado aos argumentos apresentados pelos painelistas; iv) a representação estatística dos resultados. A evolução do Delphi deu-se em duas formas distintas. Amais comum é a versão de papel e lápis, na qual um monitor elabora um questionário a ser enviado a um grupo de respondentes. Quando este é retomado, o monitor sumariza os resultados e baseando-se nestes desenvolve um novo questionário. Ao grupo de respondentes é dado a oportunidade de revisar suas opiniões individuais, forma denominada Delphi convencional. Na outra forma, denominada conferência Delphi, o monitor é substituído por um programa de computador, este faz a compilação dos dados à medida que os participantes enviam suas respostas e após a última resposta remetem-se o relatório e o novo questionário. Esta ferramenta tem a vantagem de realizar o processo em tempo real (Lopes, 2005). A metodologia Delphi constitui uma forma rápida e eficiente de debater temas polêmicos, principalmente quando tempo e custo são fatores limitantes na promoção de encontros e conferências ou quando os desacordos podem ser minimizados pelo anonimato. No entanto, este pode ser bastante complexo e de difícil administração. Uma das maiores críticas ao processo é a falta de padronização e consequente aplicação do método a diversos e diferentes tipos de problemas - como aos relacionados à biodiversidade de florestas, turismo, disputas ambientais, previsões e outros (Rowe; George; Bolger, 1991). índice de qualidade de água Baseando-se na metodologia Delphi, desenvolveu-se sistema de indexação para interpretar a qualidade da água para recreação com contato na Nova Zelândia. Utilizou-se grupo de 16 profissionais da área de qualidade da água provenientes de empresas de consultoria e de gerenciamento ambiental, de institutos de pesquisa e de universidades. A pesquisa foi composta por duas fases, sendo a primeira composta por quatro questionários objetivando levantar os parâmetros a serem incluídos no índice. A segunda fase, composta por três questionários, solicitou aos painelistas que desenhassem curvas relacionando a conformidade da qualidade da água para o uso recreacional à variação dos valores de cada parâmetro. Finalmente um último questionário foi enviado aos respondentes questionando se concordavam com as curvas definitivas. A novidade deste trabalho centrou-se na formulação final do índice. Não foram definidos pesos para os parâmetros, pois o valor atribuído ao corpo d’água será igual ao menor valor obtido por um dos parâmetros extraído das curvas resultantes. A justificativa para a CAPÍTULO 03 2 © não utilização de somatório ou produtório foi que o emprego destas técnicas de agregação de escores de parâmetros individuais pode mascarar o valor baixo de um determinado parâmetro se os demais possuírem valores elevados (Nagels; Davies-Colley; Smith, 2001). A metodologia Delphi foi utilizada para coletar informações de especialistas visando ao desenvolvimento de um plano de gerenciamento de 25 reservatórios de múltiplos usos nos EUA. Estas informações eram basicamente acerca dos níveis necessários à sobrevivência da fauna ictiológica. Questionários foram elaborados para cada reservatório e enviados a 26 especialistas, e, o número de respondentes por reservatório variou de dois a oito, podendo um único especialista responder os questionários referentes a mais de um reservatório. O primeiro questionário solicitava aos especialistas que listassem as espécies críticas e o período que cada uma destas espécies eram particularmente sensíveis às variações do nível do reservatório. No segundo questionário, os especialistas reavaliariam suas respostas à luz da opinião do grupo. A pesquisa alcançou 85 % de retomo dos questionários e alta convergência das opiniões para todos os reservatórios. As informações obtidas constituíram signiíicante componente para o desenvolvimento de um modelo de auxílio-a-decisão no gerenciamento destes reservatórios. Com isto, a pesquisa demonstrou que o método Delphi pode ser utilizado para obter informações importantes para o gerenciamento de questões ambientais complexas (Taylor; Ryder, 2003). Com o intuito de desenvolver um indicador que, por meio dos resultados das análises das características físicas, químicas e biológicas, pudesse fornecer ao público em geral um balizador da qualidade das águas de um corpo hídrico, foi desenvolvido o índice de Qualidade de Agua (IQA). Para tal, utilizou-se a metodologia Delphi para estruturar a opinião de um gmpo de 142 profissionais da área de qualidade da água. Dos painelistas inicialmente convidados, 66 % devolveram o primeiro questionário a tempo de participar da segunda etapa, restando 94 painelistas dos quais 77 devolveram o segundo questionário que finalmente estabeleceu o índice, culminando com abstenção de 46 %. Inicialmente, foi elaborada uma lista enviada aos 142 integrantes do painel composta de 35 parâmetros, selecionados arbitrariamente para possível inclusão em um índice de qualidade da água. Cada participante deveria selecionar para cada parâmetro uma das opções Incluir, Não Incluir ou Indeciso, sendo possível listar outros parâmetros não incluídos nesta primeira lista. Cada parâmetro selecionado com o item Incluir deveria receber peso variando de 1 a 5. Sumário dos resultados desta primeira rodada foi enviado aos participantes, junto com o 2o questionário, para que comparassem suas respostas com as do grupo e as reavaliassem, sendo também solicitada uma lista dos 15 parâmetros mais importantes. Por fim, definiu-se lista composta por nove parâmetros e respectivos pesos integrantes do IQA, conforme mostra a figura 3.1. IQA (%) Figura 3.1. Parâmetros e pesos finais para determinação do IQA.CAPÍTULO 03 A importância do OD como principal parâmetro de caracterização qualidade do ambiente aquático manifesta-se na própria determinação do IQA, respondendo por 17 % do valor final e sendo individualmente o parâmetro mais relevante dos nove que o integram. Interessante também notar certa sobreposição de alguns parâmetros que fornecem informaçõessemelhantes, tais como o b e DBO, turbidez e sólidos totais, e, em muitas circunstâncias, coliformes termotolerantes e DBO. A concentração de sólidos totais e a turbidez, a despeito da sua relação com a parcela de sólidos suspensos, respondem em conjunto e em igualdade por 16 % do valor a ser atribuído ao curso d’água. Definidos os parâmetros integrantes do IQA arrolados na figura 3.1 e os respectivos pesos, no terceiro questionário coube aos painelistas esboçarem as curvas que segundo seu julgamento representassem a variação da qualidade da água produzida pelas várias possíveis medidas do parâmetro. As nove curvas utilizadas para o cálculo do IQA constituíram-se das curvas médias obtidas das respostas de todos os respondentes (Brown et al., 1970). Definidos os parâmetros integrantes do IQA e os respectivos pesos, no terceiro questionário coube ao painelista desenhar as curvas que, segundo seu julgamento, representassem a variação da qualidade da água produzida pelas várias possíveis medidas do parâmetro. As nove curvas utilizadas para o cálculo do IQA constituíram-se das curvas médias obtidas das respostas de todos os respondentes. Interessante ressaltar que a conjunção das respostas dos 77 painelistas restantes culminou com o fato de todas as curvas resultantes dos nove parâmetros não contemplarem o valor de 100 %. Inicialmente, o valor do IQA foi considerado como o somatório apresentado pela equação 3.1: !QA = X w> • o. i=l (31) Na qual: w( = peso do parâmetro i; q; = pontos recebidos pelo parâmetro i, retirados das curvas resultantes da opinião dos especialistas; n = número de parâmetros. Posteriormente, pesquisadores propuseram forma multiplicativa para o IQA devido funda mentalmente à possibilidade de eventual valor muito baixo de um dos parâmetros tomar-se menos evidente pela formulação anterior. Na forma multiplicativa, os pesos manifestam-se como potências dos pontos obtidos para cada parâmetro de qualidade de água, conforme enuncia equação 3.2 (Landwehr; Deininger, 1976). 9 iQA=IIqr i=l (3.2) Avaliação particular foi realizada acerca da presença de agrotóxicos e outras substâncias tóxicas. Estabeleceu-se que caso a concentração total de agrotóxicos excedesse 0,1 mg/L o valor do IQA seria nulo, independentemente dos demais parâmetros. Na figura 3.2 são apresentadas as curvas resultantes para os parâmetros OD à saturação e Coliformes termotolerantes. O mencionado fenômeno da supersaturação de OD, em virtude da atividade fotossintética das algas, cianobactérias e plantas aquáticas explica a descontinuidade no valor a ser conferido ao curso d’água. Por exemplo, caso o curso d’água apresente concentração de OD à saturação de 120 % e como o peso deste parâmetro é 0,17, acrescería no valor final do IQA 0,153 (produto de 0,17 e 0,9). Analogamente, concentração de coliformes termotolerantes de 1000 NMP/100 mL (3 log) resultaria em 0,03 (produto de 0,15 e 0,20). Coliformes termotolerantes (log MPN/100 mL) Figura 3.2. Variação da pontuação para os parâmetros O D à saturação (a) e C oliform es term otolerantes (b). As curvas resultantes da avaliação dos especialistas para os parâmetros pH e DBO são apresen tadas na figura 3.3 (a e b). Figura 3.3. Variação da pontuação para os parâmetros p H (a) e D BO (b). Da mesma forma, para um curso d ’água com pH da ordem de 6,6, sabendo-se que o peso relativo deste parâmetro é 12%, este parâmetro contribuiria com 0,072 (produto de 0,12 por 0,6) no valor final do IQA. O IQA, além de comparar a qualidade de distintos corpos d’água, permite inferir o impacto de ações que visem à preservação dos ecossistemas aquáticos. Com base no cálculo do IQA, definem- -se os níveis de qualidade do corpo d’água relacionando o intervalo de variação do IQA a uma cor de referência, conforme mostra a tabela 3.1. Tabela 3.1. Classificação da qualidade da água em função do IQA. Nível de Qualidade Excelente Bom Médio Ruim Muito ruim Intervalo do IQA IQA > 90 70 < IQA < 90 50 < IQA < 70 25 < IQA < 50 0 < IQA < 25 Cor de referência Azul Verde Amarelo Marrom Vermelho ' Esta classificação singela estabelecida pela tabela 3.1 apresenta como vantagem a fácil comunicação com o público leigo, abarcando inclusive a associação presente no inconsciente da população ao relacionar a água de ótima qualidade à cor azul. Em contexto mais amplo, permite a inserção das informações de qualidade das águas nos mapas das bacias hidrográficas, permitindo de forma expedita identificar os pontos críticos dos cursos d’água e mesmo simular os efeitos da construção de estações de tratamento de esgotos. CAPÍTULO 03 índice de qualidade de água bruta A despeito do seu emprego em diversos países do Planeta e por diversos órgãos ambientais no Brasil como indicador da saúde ambiental dos corpos d’água, o IQA, como qualquer índice, apreserita suas limitações. Conforme mencionado, evidencia-se nítida sobreposição de alguns parâmetros que fornecem informações semelhantes, tais como OD e DBO, turbidez e sólidos totais, e, em muitas circunstâncias, coliformes termotolerantes e DBO. Todavia, nestas sobreposições não reside a inaplicabilidade do IQA como indicador da tratabilidade das águas naturais. Uma vez que a maioria dos mananciais de abastecimento apresenta baixa DBO, significativa concentração de OD à saturação - parâmetros que respondem em conjunto por 27 % do índice -, indicador que abrangesse outras características das águas naturais teria maior aplicabilidade. Similarmente, a maioria dos cursos d’água apresenta também baixa concentração de nitratos e fosfatos, pois tais parâmetros manifestam-se mais significativamente quando a captação realiza-se valendo-se de reservatórios de acumulação com algum grau de eutrofização. Por fim, ainda no mesmo contexto, parâmetros como a cor verdadeira e contagem de algas (e/ou cianobactérias) - ainda que subliminarmente contemplados no IQA - representam papel relevante no tratamento e seriam importantes balizadores para distinção da tratabilidade das águas naturais. Diante do exposto, salvo alguns mananciais mais comprometidos, o IQA apresentaria resultados de mesma magnitude e pouco interferiria como instrumento de comparação das águas naturais em termos da maior ou menor dificuldade na potabilização. As mencionadas limitações do IQA motivaram pesquisa visando ao desenvolvimento de um indicador que hierarquizasse, em relação à tratabilidade, as águas brutas afluentes às estações de tratamento. Desta forma, para elaboração índice de Qualidade de Agua Bruta (IQAB), utilizou-se a mesma metodologia Delphi. O painel compôs-se por 24 especialistas brasileiros em qualidade e tratamento de água com formação em nível superior em Engenharia Civil (20) e Ciências Biológicas (4), responsáveis por pesquisas, projetos e operação de estações de tratamento de água, abarcando universidades, companhias estaduais de saneamento e empresas de engenharia das regiões Sul e Sudeste. Deste grupo, 18 mantiveram-se até o final da pesquisa, resultando abstenção total de 25 % (Souza; Libânio, 2009). A pesquisa foi desenvolvida em duas fases distintas, consoantes com a metodologia Delphi. Inicialmente, elaborou-se lista com 21 parâmetros de caracterização das águas naturais, apresentada na tabela 3.2 encaminhada no Io questionário. Tabela 3.2. Lista das características das águas naturais incluídas no Io questionário enviado aos painelistas. Turbidez Cor Verdadeira E. coli Dureza Algas Cianobactérias Alcalinidade pH Sólidos Totais Amônia Sólidos Dissolvidos Temperatura Carbono Orgânico Total Nitrato Fosfato Ferro Condutividade Elétrica Coliformes Termotolerantes Coliformes Totais Cloretos Manganês Vale mencionar que, à exceção do Carbono Orgânico Total, a quase totalidade destes parâmetros é monitorada, ainda que com frequência variável, em parcela significativa das estações de médio e grande porte do País. Tal assertiva justifica a ausência de alguns relevantes parâmetros de qualidade e tratabilidade de água, tais como contagem de partículas, carbono orgânicodissolvido, absorção UV-254, entre outros. No Io questionário apresentou-se introdução explicitando todas as etapas da pesquisa, eviden ciando o papel de cada painelista, e a mencionada lista das características das águas naturais para as quais o respondente deveria assinalar uma entre as três alternativas: Incluir, Não Incluir e Indeciso. Após esta avaliação, caberia ao respondente atribuir nota até 100 - somente para as características anteriormente assinaladas como Incluir —, de acordo com sua influência na tratabilidade da água. Por fim, considerou-se a soma de todos os pontos atribuídos pelo respondente igual a 100, visando a facilitar a padronização da distribuição dos pesos. As respostas evidenciaram a inaplicabilidade do IQA como indicador da tratabilidade das águas superficiais, conforme evidencia a figura 3.4. Sólidos Dissolvidos — Temperatura Sólidos Totais Coliformes Termotolerantes Fosfatos Dureza Cloretos Coliformes Totais Condutividade Elétrica Nitratos COT Amônia Alcalinidade E. coli Cianobactérias Manganês Ferro Algas PH Cor verdadeira Turbidez □ 2° □ 1° Questionário Questionário 0 20 40 60 80 100 Percentual de Inclusão (%) Figura 3.4. Percentual de inclusão dos 21 parâmetros de qualidade de acordo com o painel. De acordo com a figura 3.4, dos nove parâmetros que integram o IQA (figura 3.1), apenas pH e Turbidez apresentaram percentual de inclusão superior a 60 % de acordo com a opinião dos painelistas. Como seria de se esperar, a temperatura apresentou-se como característica pouco relevante (20a posição em relevância somente superando Sólidos Dissolvidos), embora a coagulação de águas de baixa temperatura seja significativamente mais difícil, situação usual nos países temperados. Contudo, conforme mencionado no Capítulo 2, salvo algumas localidades específicas, as águas naturais nos países tropicais acabam por apresentar variação pouco significativa nas temperaturas médias, proporcionada pelo elevado calor específico deste fluido. Uma segunda constatação reporta-se ao papel de destaque conferido ao parâmetro Turbidez. Uma vez que não é incomum estações de tratamento produzir efluente filtrado com turbidez inferior a 0,5 uT, mesmo nos períodos chuvosos nos quais esta característica física na água bmta supera frequentemente 300 uT, esta supremacia parece retratar mais sua importância sanitária como indicador da remoção de cistos e oocistos de protozoários do que a dificuldade de remoção propriamente dita. Para favorecer a aplicabilidade do IQAB, decidiu-se restringi-lo a oito parâmetros a serem definidos pelos painelistas no 2o questionário. Nesta escolha, os oito primeiros parâmetros mantiveram- -se, ainda que com percentuais distintos, e novamente coube ao parâmetro Turbidez o maior percentual de inserção (100 %) entre os integrantes do IQAB, conforme mostra a figura 3.5.