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O teatro e a literatura dramática ao longo da história Objetivos de aprendizagem Ao final deste texto, você deve apresentar os seguintes aprendizados: Definir teatro e drama. Analisar as influências sociais do teatro ao longo da história. Identificar o drama como criação coletiva e os papéis de autor do texto e do espetáculo. Introdução Definir teatro e drama é, certamente, o maior dilema que tem acompa- nhado a evolução histórica e formal das artes do espetáculo. Isso porque as próprias definições e significados de ambas as palavras têm mudado muito ao longo do tempo. A arte teatral é uma das formas criativas mais antigas que existem, remontando sua origem aos rituais que sempre acompanharam a humanidade, suas crenças e mitologias, e reinventando- -se sempre que sua comunidade produtora necessita. Neste capítulo, você conhecerá as principais noções de teatro e drama ao longo da história ocidental e aprenderá a localizá-las historicamente e relacioná-las com seus respectivos contextos. Você analisará a estrutura do feitio teatral, que abrange escrita, produção, encenação e recepção, bem como suas origens e as transformações que esses elementos sofreram ao longo do tempo. Entre noções: o que é teatro e o que é drama? Com certeza você já ouviu as seguintes expressões: “Você está sendo muito dramático!”, ao se referir a alguém que faz muito barulho por nada, ou “Você é um ótimo ator!”, a algum amigo que inventa desculpas e mentiras para se livrar de algo que não queira fazer, ou ainda “Você é um excelente comediante”, referindo- -se àquele amigo que tem sempre uma piada na manga para contar ao grupo. Os adjetivos dramático, cômico ou teatral costumam aparecer no nosso cotidiano nas mais diversas formas. No Brasil, comumente usamos a palavra drama em oposição à comédia. Aquilo que não é alegre e jocoso torna-se, portanto, triste, reflexivo, exagerado e... dramático. Apesar de serem atual- mente popularizadas e pautadas pelos meios da televisão e do cinema, estas características (e gêneros) têm, no entanto, origens bem mais antigas, que fazem parte das bases dos nossos conhecimentos ocidentais. Por isso, definir as noções de teatro e drama seria impossível sem retornar à Grécia Antiga, o período civilizatório do qual praticamente toda a nossa concepção filosófica, política e artística deriva. O teatro se estabelece, en- quanto forma e instituição, como o conhecemos, nesse momento da história. Obviamente, o teatro não nasce sendo o teatro com prédio, palco, luzes, diretor, texto escrito, atores e cenário. Assim como o teatro não é uma exclusividade do Ocidente e também não é uniformizado: não há apenas um jeito certo de se fazer teatro e drama. E isso não apenas hoje, mas desde sempre. É neces- sário remontar à história para que você compreenda as transformações nos conceitos de drama e teatro. Do rito ao texto: da oralidade ao gênero literário O teatro tem suas origens nas práticas rituais das civilizações primitivas. Do momento em que a humanidade começa a interpretar deuses e fi guras mitológicas em diante, começa a instauração de diferenças entre o fi ccional e o real. No entanto, para as comunidades primitivas, estas linhas eram muito mais tênues do que as nossas pós-iluministas separações entre crenças e realidade concreta. O teatro sempre habitou esse limiar e cumpriu um papel de comunicação entre esses dois mundos. É assim que ele se ergue, na Grécia Antiga, como um dos pilares da de- mocracia grega. Os nossos conceitos ocidentais de drama e teatro derivam principalmente da era de ouro das tragédias gregas e, principalmente, de um tratado filosófico e artístico cunhado por Aristóteles, chamado de Poética. No século V a.C, Atenas era uma cidade em polvorosa devido às Grandes Dionisíacas, festivais de tragédias que ocupavam os principais auditórios da pólis, ou cidade-Estado. Assistir às tetralogias, conjuntos de três tragédias e uma sátira, nos festivais competitivos era uma obrigação e um deleite do cidadão ateniense. O teatro e a literatura dramática ao longo da história14 Antes de Aristóteles conceituar os elementos da tragédia, Platão já havia comentado sobre a poesia em seu livro X, da República. Para Platão, a po- esia (e por poesia, entende-se a arte) deveria ser banida da pólis grega, por ser catalisadora de emoções (irracionalidade) e louvar imitadores, o que não serve aos preceitos da cidade, anteriormente estabelecidos por ele também na República. Platão (1965) diz que, na cidade, apenas devem ser permitidos os hinos aos deuses e os elogios às pessoas de bem. Para ele, a poesia imitativa distancia o cidadão da verdade divina, corrompendo-o, sempre, e apenas se ela conseguir mostrar-se valorosa e útil, poderá ser recebida na cidade bem policiada. Nem Homero, autor da Odisséia, escapa das críticas platônicas, que, assim, contraria a maioria de seus contemporâneos sobre a importância da extensa narrativa épica. De Platão, Aristóteles herda certos conceitos que são por ele desenvolvidos mais positivamente, entre eles, um dos mais caros ao teatro: o conceito de mimesis. Mimesis é a palavra que significa imitar no grego antigo. Enquanto para Platão imitar era algo artificial e representativo das coisas exteriores (não-verdadeiras), para Aristóteles (1986) o imitar é congênito no homem. Para ele, imitar é parte do processo de aprendizagem do homem, e nisso ele difere de todos os outros seres viventes. Dessa forma, a imitação por si só não é algo corruptível e desprezível, uma vez que ela representa os homens e as suas histórias, mas possui variáveis níveis de nobreza e baixeza, conforme o objeto imitado. É desta ideia inicial que Aristóteles parte para descrever e classificar os variados tipos de poesia e seus elementos constitutivos. Mais do que os elementos que compõem o texto trágico (como prólogo e episódio) ou as ações sofridas pelo herói (peripécia, reconhecimento, entre outros), você precisa conhecer principalmente os conceitos de drân, mythos e verossimilhança. Para Aristóteles, o público apenas pode ter prazer com a arte imitativa se ela representar aquilo que é conhecido. No entanto, o poeta não deve narrar a realidade, mas um de seus possíveis, do contrário, ele estaria construindo a história. Isso porque, ao contrário de Platão, Aristóteles concebe a poesia como um espaço de purgação coletiva de emoções (catharsis), e, para a purgação, é necessário um salto criativo, desde que respeitadas certas regras. Uma das mais importantes noções, e que repercute ao longo da história, é a ideia de imitação das ações, em vez do caráter humano. Uma tragédia deve ser composta de várias ações (drâns) que sigam uma lógica de linearidade e verossimilhança, as quais irão compor o mythos, conhecido também como fábula. Dessa forma, é necessário que se respeite a unidade de ação, que determina que os atos não sejam intercambiáveis entre si, de modo que a troca da ordem das ações afete o resultado total; assim como a unidade de 15O teatro e a literatura dramática ao longo da história tempo, que determina que a tragédia deve transcorrer no período de um sol (um dia), e a unidade de espaço, devendo manter-se em um local, tendo os acontecimentos narrados, em vez de mostrados ao público. Você pode perceber que a tragédia se compõe, então, de um universo fechado em si mesmo que dialoga continuamente com as crenças do público grego. Este é outro detalhe importante da Poética aristotélica: os mitos não devem ser alterados, o poeta apenas deve usá-los artisticamente. Dessa forma, as fábulas sempre ecoam a ética e moral da pólis. Há, ainda, uma característica especial que transformou a tragédia na mais importante arte grega na época: a elocução. Diferentemente da epopeia, que costuma ser um longo poema, a tragédia deve ser ouvida, e não lida. Numa Grécia em que apenas cidadãos homens sabiam ler, mas na qual todos preci- savam ser moralizados, a tragédia ocupou este espaço, uma vez que eraaberta a todos os cidadãos, inclusive mulheres e escravos (quando autorizados). A comédia, ao contrário, não era de livre acesso, sendo proibida às mulheres devido à baixeza de suas temáticas. Para saber mais sobre a democracia grega neste período, leia o artigo da Prof. Dra. Maria Dulce Reis, “Democracia grega: a antiga Atenas (séc. V a.C.)”, disponível no link a seguir. https://goo.gl/8JukiA Esta característica se relaciona diretamente com as origens do teatro grego, que vem dos rituais ao deus Dionísio (VI a.C), chamados de diti- rambos. Estes rituais circulares constituíam-se por um coro vestido com máscaras de bode e entoando cantos ao deus da embriaguez e da fertilidade, até que, no ano de 534 a.C (BERTHOLD, 2004), o ator Téspis, vindo de Icária, foi convidado a participar de uma dionisíaca em Atenas. Ele teve a criativa ideia de se desvencilhar do coro como solista e criou o papel do hypokrites, ou “respondedor”, construindo os primeiros diálogos. Etimo- logicamente, a palavra tragédia deriva de tragos, que significa “bode”, e ode, que significa “canto”, referindo-se diretamente aos rituais a Dionísio. Sabe-se que Téspis circulou pelas cidades gregas, e, com a maior popula- O teatro e a literatura dramática ao longo da história16 http://periodicos.pucminas.br/index.php/SapereAude/article/view/17648 ridade do gênero e o auge da democracia atingido no governo de Péricles, iniciaram-se as construções dos grandes e famosos edifícios teatrais gregos e os grandes festivais. Essas construções eram compostas por várias estruturas que a subdividiam, cada uma com um propósito, e é de umas delas que deriva a palavra teatro. Theatron é a palavra grega que designa o local de onde se vê o espetáculo, logo, o espaço ocupado pelos espectadores (PAVIS, 2008). O teatro só se referirá ao edifício inteiro muito mais tarde, sendo chamados, na época, de auditórios ou arenas; assim como só será concebida a obra dramática como teatro também mais adiante na história. As palavras theatron e drân são as mais importantes no que tange às definições de teatro e drama, uma vez que são, respectivamente, suas origens etimológicas. No entanto, você pode perceber a transformação destas desde as suas primeiras concepções no ambiente da Grécia Antiga até o uso cotidiano contemporâneo. Após conhecer suas origens, será que ainda cabe chamar alguém de dramático? O drama, que na Grécia Antiga se referia ao conjunto de ações realizadas em uma fábula, escrita por um tragediógrafo e encenada segundo regras de representação bastante restritas, mudou tanto de concepção quanto as sociedades evoluíram ao longo do tempo. No entanto, no que concerne a Aristóteles (1986, p. 111), o elemento mais importante da tragédia é o drama: “[...] a trama dos fatos, pois a tragédia não é imitação de homens, mas de ações e de vida, de felicidade [...]”. Logo, o que mais importa ao drama e à tragédia é a ação. E como se dá a ação no texto teatral? Como você já viu, o teatro surge a partir da evolução do ritual que passa de um coro que conta toda a história para um coro com um solista. O que acontece quando temos dois elementos trocando informações? Diálogo. A forma das ações no drama e na tragédia se dá por meio dos diálogos, o que é uma maneira bem mais imediata de transmissão de mensagens do que os versos de uma epopeia. A elocução, o diálogo, a verossimilhança e a fábula de ações reconhecíveis é o que torna a tragédia, na Grécia Antiga, uma expressão puramente democrática. Ao longo da história, os elementos e conceitos da tragédia foram fi- cando obsoletos. Unidade de tempo, ação e espaço se tornaram requisitos dispensáveis, e o texto teatral escrito foi se reinventando. Após um longo período de proibição na Idade Média, o texto teatral retoma toda sua força no Renascimento. E é aí que a maioria dos teóricos concorda ter nascido a noção de drama moderno. No Renascimento, o drama deixa de ter estes elementos da tragédia e passa, além disso, a representar, de forma escrita, 17O teatro e a literatura dramática ao longo da história histórias que não são mitos conhecidos por toda a sociedade, mas sim cria- ções livres sobre as relações humanas. O principal exemplo desse período é Shakespeare. Podemos dizer, então, que o drama moderno é um texto literário com- posto principalmente por diálogos, que propõe uma sequência de ações e que é produzido especialmente para a elocução, respeitando uma lógica de mundo interno absoluta. Dos elementos trágicos, o principal remanescente é a ação. No entanto, o fim do século XIX marca uma série de crises no texto dramático e na instituição teatral, dentre elas, a crise da ação. Os textos não necessariamente precisam mais ter uma sequência lógica de ações, nem unidades de tempo, nem uma fábula reconhecível. Logo, os diálogos também são dispensáveis. No século XX, o teatro das vanguardas histórias e os épicos brechtianos rompem totalmente com o resto dessa estrutura. Samuel Beckett cimenta a não-ação e as formas pós-Segunda Guerra Mundial tornam o texto dramático o gênero talvez mais livre dentro da literatura. Mas como definir, então, o drama? O drama, na concepção contemporânea, relaciona-se exclusivamente com a intenção da expectação. Assim como os gregos construíram uma arquibancada nos auditórios, que se chamava theatron, para que o público pudesse ver e ouvir o espetáculo (e nisso se constitui a diferença entre o teatro e o ritual), o que diferencia um texto dramático de qualquer outro texto literário é a expectativa de encenação (de que o texto seja encenado) e, logo, a expectativa de possíveis novas camadas de recepção. Dessa forma, o drama e suas derivações nominais (dramaturgia, texto dramático) referem-se ao texto escrito que pretende ser mais do que apenas lido, ao passo que o teatro é o nome que se dá a esta arte que não funciona sem a interlocução com o público. Quando dizemos que alguém está sendo dramático e usamos o adjetivo com essa conotação, estamos nos referindo principalmente às heranças do melodrama. As representações exageradas e a glorificação dos atores na época construíram essa noção. A estética do melodrama é a base da televisão e do cinema contemporâneos, ou seja, ser dramático não tem nada a ver com os gregos e as concepções de drama de Aristóteles, mas sim com uma forma de teatro dos séculos XVIII e XIX. O teatro e a literatura dramática ao longo da história18 Um panorama das relações entre teatro e sociedade Como você já viu, as características do teatro são extremamente moldadas pela sociedade na qual ele é criado. Para os gregos, a tragédia era a máxima representação do espírito democrático. Além de entretenimento, ela deveria ajudar na manutenção do espírito coletivo e da moral da pólis. No entanto, mulheres não podiam atuar e nem assistir às comédias; a cidadania excluía estrangeiros, mulheres e escravos. A arte é produto de seu tempo, mas também sua matéria-prima. Apesar das expressões institucionalizadas de teatro, sempre houve, durante toda a história, as expressões populares – e ambas influenciaram uma a outra. Na Atenas do século de ouro das tragédias, também estavam perambulando pelas comunidades os saltimbancos e os mimos, que, em oposição ao teatro que glorificava deuses, prestava atenção ao povo anônimo e às suas estereotipias. Estes espetáculos, normalmente improvisados, também contaram com registros escritos, como é o caso de fragmentos de uma peça de Sófron (430 a.C.) que, aparentemente, serviu de inspiração para o personagem de Bottom em Sonho de uma noite de verão, de Shakespeare. Além disso, nos mimos e nas danças populares, as mulheres não eram proibidas de participar, e várias ficaram conhecidas como grandes performers. Antes do teatro grego, as civilizações egípcias e mesopotâmicas já tinham formas de teatro. No ano 610, com a instauração do islamismo e sua subsequente divisão entre sunitas e xiitas, surge no Irã uma forma de paixão, chamadade ta’zya. Na Índia, o “manual” das artes do espetáculo hindu, chamado de Natyasastra, composto por Bharata Muni (datado entre 200 a.C e 200 d.C), faz inveja à poética aristotélica: ele é composto por tantas partes quanto é possível imaginar, as quais vão desde a concepção das histórias a serem encenadas até como se compõe o palco. A tradução em inglês (não há versão em língua portuguesa) tem quase mil páginas de explicações. Os códigos de gestos que compõem as formas de teatro indianos servem também para explicitar as castas hindus. Tudo está muito bem classificado por Bharata. A relação entre religião, rito e teatro é ainda primordial. Os teatros chinês e japonês também não ficam para trás em história. Nos séculos XIII e XIV, o teatro celebrou seus triunfos nos livros impressos. Os espetáculos chineses contam com uma tradição de 5 mil anos. Estas expressões eventualmente se cruzam nos trânsitos do mundo. A maioria delas, como as do Oriente próximo e da Ásia, ficam conhecidas pelos 19O teatro e a literatura dramática ao longo da história ocidentais com as expedições de comércio e dominação. Um movimento similar ao que acontece na literatura, de expansão e colonização, acontece no teatro. Por exemplo, durante o período imperial britânico na Índia, as formas tradicionais de teatro foram proibidas, o que criou na região centros urbanos em que o teatro é idêntico – em forma – ao ocidental. Enquanto isso, na Europa, a república romana começava a expandir seus territórios, dominando vários dos povos ao seu redor. No século II a.C, os romanos finalmente ocuparam os territórios gregos, dentre eles Atenas, e, com isso, apropriam-se muito de sua cultura. O panteão politeísta grego é então adaptado para o latim, e os teatros gregos são reconfigurados pelos dominadores. A república romana e o período de sua expansão dura apro- ximadamente 500 anos, e, em função de inúmeras revoltas populares, acaba sendo implantado o império. Durante o império, para desviar a atenção da população de escândalos de corrupção, é criada a política de “pão e circo”, e o teatro tem um caráter de entretenimento, na maioria das vezes sanguinário e satírico, muito distante do equilíbrio moral pretendido pelas tragédias gregas. Os principais anfiteatros, como o Coliseu, foram palco de batalhas e inclusive de inundações (ele possuía um sistema de drenagem para isso), e, muitas vezes, pessoas eram executadas durante os espetáculos. A barbárie romana começa a prever seu fim quando o império deixa de perseguir os cristãos que viviam em seu território e acatam o cristianismo como religião oficial. A queda do império romano e a entrada sucessiva no Período Medieval, ou Idade das Trevas, vêm em conjunto com a demonização da arte teatral. Nem tudo no teatro romano era pura barbárie. Os mimos, que antes eram trupes itinerantes, tornaram-se uma das formas mais adoradas pelos romanos. Inclusive, há registros de mulheres mimos. Elas eram muito malvistas, assim como os atores em geral. Uma delas era Teodora, que se tornou a esposa de Justiniano, imperador do período Bizantino (500 d.C). A história a representa como prostituta, e não como atriz. No entanto, ela foi a única mulher a governar lado a lado com o imperador, e foi responsável pela construção de uma das mais importantes obras arquitetônicas da época, a Hagia Sofia, hoje na cidade que chamamos de Istambul. A implantação do cristianismo foi gradual, mas extremamente opressiva. Os atores sofreram extrema perseguição. A arte de atuar, que andava tão O teatro e a literatura dramática ao longo da história20 próxima das “baixezas morais”, só encontrou espaço na Idade das Trevas quando a representação fosse de temas bíblicos. Os mistérios medievais são uma das principais formas do período, sendo um gênero que sempre enfatiza a grandiosidade de Deus. Eles eram interpretados apenas por homens que não podiam ser atores, que representavam as próprias ocupações. Os mistérios eram encenados normalmente em formato circular, em uma praça, com vários carrinhos, cada um com uma cena de alguma história bíblica. Nem por isso o teatro popular deixou de existir. Apesar de perseguidos, o teatro profano seguia, nômade, perambulando entre as comunidades, e o teatro de corte misturava temas circenses e bíblicos. O teatro de catequiza- ção, dentro dos seminários, desenvolveu os autos sacramentais. Aos poucos, esta distinção entre sacro e profano foi se acentuando, principalmente com a profissionalização do teatro profano. Com a igreja perdendo força para uma filosofia mais antropocêntrica e cética, os avanços científicos e a arte voltaram a florescer, em um retorno à Antiguidade Clássica, à Grécia Antiga. O Renascimento é um período de difícil definição temporal, mas há um consenso de que sua duração abrangeu o período entre os séculos XIV e XVI. Suas ressonâncias e criações se estendem por toda a Europa. Quanto ao teatro, suas manifestações são especialmente importantes na Itália, Espanha e Inglaterra. A popularização do teatro, a profissionalização de companhias, a transição do centro de importância das peças da mera representação de ações para o conflito individual são algumas de suas características. A Inglaterra tem, por meio de Shakespeare, uma explosão linguística e artística. O teatro italiano vê a Comédia Erudita coexistir com a commedia dell’arte. A Espanha usa o teatro para a difusão da língua espanhola e ainda sofre mais que os outros territórios com as heranças medievais: primeiramente, mulheres não assistiam, e, depois, ganham uma ala separada nos espaços de encenação. Passam a existir e serem nomeados os gêneros da tragicomédia e drama histórico. O teatro floresce lindamente durante o Renascimento. Durante o Neoclassicismo Francês, o teatro volta a ter um caráter sepa- ratista: a elite assiste ao teatro institucionalizado, ao passo que as classes mais baixas criam suas próprias formas. No século XVIII, a França instaura a Comédie Française, por decreto do rei Luís XV, e se torna uma das princi- pais instituições teatrais da modernidade. Com o Iluminismo e a Revolução Francesa, a monarquia entra em colapso, e a Europa vê surgir um novo modelo social e humano. Há uma nova classe emergindo, que se firma com a Revolução Industrial e Científica: a burguesia. O drama burguês, do qual deriva o teatro de boulevard e o melodrama, torna-se a principal vertente popular do teatro. De modo paralelo, o movi- 21O teatro e a literatura dramática ao longo da história mento Romântico alemão traz à tona a importância dos sentimentos, com uma expressividade grandiloquente, não importando mais tanto a forma de sua exposição, mas sim a sua efetiva comunicação. Além das movimentações locais na Europa, o mundo todo recebia suas influências, devido à movimentação colonizadora do século XV. Os conceitos filosóficos, literários e artísticos viajavam nas malas de aristocratas e estadistas, e o teatro popular circulava nos porões dos navios. É importante que você perceba que, a partir do Re- nascimento, não há apenas uma história sendo contada, mas sim múltiplas narrativas coabitando um tempo. Aos poucos, não interessa mais ao público a ficção, e o teatro deve re- presentar puramente a realidade. Daí decorrem as correntes Naturalistas e Realistas, sendo a primeira a exacerbação do realismo, recriando cenários com detalhes excruciantemente reais. O Naturalismo, além disso, tem um caráter determinista (raça, hereditariedade e meio social), além de uma crítica explícita à sociedade. O Realismo encontra muita ressonância na Rússia, de onde surgirá uma das principais correntes de técnica de atuação: o método de Stanislavski. Nele, pela primeira vez no teatro institucionalizado, o ator passa a vivenciar as situaçõesem vez de representá-las, de forma mais intimista, criando uma noção de realidade. Todas essas correntes se perturbam na virada do século XIX com a consti- tuição dos sistemas capitalista e socialista. Nadamais serve àqueles que fazem a arte, tudo precisa ser revisto. Aí temos uma sequência de movimentos de extrema importância, que também são conhecidos como vanguardas históricas: Simbolismo, Expressionismo, Futurismo, Construtivismo, Dadaísmo, Surrea- lismo, entre outras. As primeiras duas décadas do século XX são extremamente movimentadas e muito impulsionadas pela Primeira Guerra Mundial. A criação de uma crítica cada vez mais forte ao teatro e à arte como um todo leva ao derradeiro fim da ideia do teatro como purgação de emoções e de arte ficcionalmente envolvente. Entre 1920 e 1930, Bertolt Brecht começa seus trabalhos na Alemanha pós-guerra e pré-nazista. De posicionamento político abertamente Marxista, Brecht é reconhecido como o precursor do teatro épico. Para ele, o teatro é uma forma de construir o pensamento reflexivo-crítico nas massas, e precisa debater as dinâmicas de poder sociais. Por meio de canções, máscaras, narrações, Brecht atinge o público e transforma o fazer teatral institucionalizado no Ocidente. Uma de suas principais contribuições foi o rompimento da, até então, importante quarta parede. A quarta parede é como se chama a instauração de uma parede imaginária entre atores e público, com a intenção de tornar o teatro um mundo fechado em si mesmo, do qual os espectadores não participam. O teatro e a literatura dramática ao longo da história22 Nas vanguardas históricas e nas formas populares de teatro, a quarta parede não era instituída. A performance dos artistas, em ambas, dependia muito da interação com a plateia. No entanto, Brecht estava fazendo teatro em edifícios teatrais, e dirigir-se ao público nesses casos era uma ruptura bastante grande – sem o rompimento, ele não poderia promover a reflexão que pretendia. Na época da Segunda Guerra Mundial, com uma Europa arrasada, as artes e os exilados políticos perseguidos pelo regime nazista acabaram se refugiando nos Estados Unidos. O drama norte-americano, os musicais da Broadway e o cinema do país se tornam uma corrente própria, a qual, depois, foi extensamente exportada pelo mundo. Com a derrota de Hitler, o sentimento de devastação e o contexto da Guerra Fria propulsionam uma nova forma de teatro, representada pelo francês Samuel Beckett: o teatro do absurdo. Já não havia realismo, paixões ou moralidades a serem representadas, e ninguém melhor que Beckett reproduziu em texto o vazio da época. Os movimentos por direitos civis negros nos Estados Unidos, a independências de várias nações colonizadas, a liberação sexual e o femi- nismo, a Guerra do Vietnã, os regimes ditatoriais na América Latina, o avanço científico e bélico, o desenvolvimento tecnológico iminente e o estruturalismo francês são apenas alguns dos temas e das disciplinas que passam a influenciar o teatro e a arte no pós-guerra. A representação desses movimentos no plano estético passa a se dar de variadas formas concomitantes. De um lado, o teatro antropológico, de outro, a performance, mais tarde as novas formas de drama e, inclusive, um audacioso possível teatro pós-dramático. A história do teatro sempre esteve ligada à sociedade na qual ele se de- senvolve, principalmente por partir de um princípio muito básico durante quase 2 mil anos: o teatro a reflete, diretamente. Nos séculos XIX e XX, o teatro passa a contestar essa sociedade de forma aberta – a contestação, no nível subjetivo, sempre houve, em todos os tempos. Entretanto, a liberdade de criticar as determinações sociais vem em conjunto com as liberdades de crença, ideologia, sexualidade. O teatro no panorama contemporâneo tem se tornado interessante. Ele- mentos clássicos coexistem com movimentos pós-coloniais e emergentes. Nunca nos estudos teatrais tem se falado tanto de outras narrativas e de novas dramaturgias. Depois da década de 1980, na qual o corpo e as dramaturgias construídas em sala de ensaio se tornaram regra no fazer teatral, temos um renascer dramatúrgico com diversos movimentos sincrônicos despontando nos anos 1990. Um deles, o inglês in-yer-face, alçou a dramaturga Sarah Kane, que é responsável por alguns dos textos mais desconstruídos do contempo- râneo. Em sua peça, Crave, não há personagens, ordem ou história, apenas 23O teatro e a literatura dramática ao longo da história letras enunciando monólogos. Temáticas como a opressão feminina e LGBT, ancestralidade negra e problemas imperialistas têm surgido em todo o mundo. O teatro, que por muito tempo serviu para uma aristocracia e foi ensinado e vendido a partir de uma visão eurocêntrica, tem começado a levantar sua voz e se feito ouvir em todos os cantos do planeta. O fazer teatral Se há uma arte que não existe sem o fazer coletivo, ela é o teatro. Como você pôde observar, a arte teatral passou por formas tão múltiplas quanto podemos imaginar. Nesta refl exão que o teatro faz de seu tempo, não é possível presumir que o fazer teatral tenha permanecido o mesmo ao longo dos milênios. Todavia, há, entre os papéis de uma produção, alguns que aparecem e reaparecem com funções similares, mesmo que com nomes distintos. Entre eles, estão as nossas noções contemporâneas de dramaturgos e diretores, ou autores do texto e do espetáculo, respectivamente. A palavra alemã dramaturg viria a nomear a noção de dramaturgo moderno. Ela aparece com Lessing, em 1767, em uma coletânea de escritos produzidos por ele para a encenação de um espetáculo. Dessa forma, o dramaturg é uma pessoa que prepara as peças para a sua encenação, ao passo que o dramatiker é aquele que escreve a peça. O alemão distingue os dois termos, diferentemente do francês. Hoje, a noção de dramaturgo, além de incorporar aquele que escreve a peça, pode servir também àquele que prepara o texto para a encenação, normalmente em conjunto com o diretor, e o aconselha literariamente. Há, no português, ainda duas distinções possíveis: a de dramaturgo e a de dramaturgista, que seria a pessoa que acompanha e registra os ensaios, transformando-os em texto escrito registrado. Além dessas duas figuras, temos uma infinidade de possíveis funções a serem preenchidas: atrizes e atores, técnicos de som e luz, operadores de som e luz, designers ou criadores de luz, compositores da trilha, músicos, produtor, assessor de vendas, bilheteiro, figurinistas, cenógrafos, assistentes de dire- ção, maquiadores, operadores e designers de vídeo, coreógrafos, tradutores, dramaturgistas, assistentes de palco, entre outros. Assim como um espetáculo O teatro e a literatura dramática ao longo da história24 pode necessitar de todas essas funções ocupadas, você também pode fazer um espetáculo solo, no qual uma atriz ou ator está sozinho no palco (também chamado de monólogo). As configurações do fazer teatral variam muito, conforme o meio em que ele está inserido. No Brasil, há poucas grandes companhias que conseguem sobreviver financeiramente neste modelo acima citado, portanto, a maior parte da produção teatral se dá de forma mais modesta. A máxima de que a necessidade ensina a ser criativo é uma realidade. Contudo, estas duas figuras, de diretor e dramaturgo, apesar de não serem pré-requisitos para a existência do teatro, são figuras persistentes na história dessa arte. Na Grécia Antiga, como você já viu, Téspis foi o primeiro ator, criando a figura do hypokrites, ou “respondedor”. O primeiro tragediógrafo do qual se tem registro foi Ésquilo, porém se sabe que ele não ganhou seu primeiro festival de teatro em Atenas. Pelo contrário, ele participou de vários espetáculos até ser premiado. Na época, os concursos eram responsabilidade do arconte, que, depois de selecionar suas peças favoritas, indicava a cada poeta um corega, um patrocinador que arcava com todos os custos da produção. Era uma grande honra ser um corega, e aquele que fosse premiado recebia uma boa quantia de dinheiro e uma coroa de louros. No entanto, inicialmente, o próprio tragediógrafo era seu corega, diretor e ator principal. Estemodelo de dupla função existe até hoje; não é incomum que os próprios dramaturgos encenem seus espetáculos, de forma que consigam passar na obra exatamente o que esperavam com o texto. No período que se estende do Renascimento até o século XIX, considera-se que o principal elemento do teatro era o texto dramático e que ele importava mais que qualquer outro elemento na cena. Os atores e as atrizes precisavam declamar os textos com grande talento, e o dramaturgo normalmente os dirigia para que isso funcionasse. Nesta época, o teatro, apesar de ser uma obra de encenação, ainda dava muita importância ao seu caráter literário. Durante o século XIX, Constantin Stanislavski inaugura a concepção moderna de diretor. Ele não escrevia textos dramáticos, mas produzia textos teóricos sobre a arte do ator e como encenar um espetáculo. Stanislavski trabalhou muito próximo do autor russo Anton Chekhov, autor de A Gaivota. O trabalho deles consistia em um grande estudo prévio à encenação, o que hoje é chamado de trabalho de mesa. Antes mesmo de pedir aos atores que improvisem ou criem sobre o texto, o diretor e o dramaturgo se reúnem para conversar sobre o texto dramático, entendendo seu contexto, subtexto e demais itens necessários à concepção estética do espetáculo. 25O teatro e a literatura dramática ao longo da história A concepção geral do espetáculo costuma ficar a cargo do diretor, que tem o controle de como os processos serão conduzidos. Há várias maneiras de se conduzir um processo de produção teatral. Um deles baseia-se nesta concepção stanislavskiana. Contudo, cada diretor tem preferências formais e estéticas específicas, que influenciam diretamente no resultado final. Na virada do século XIX, vários diretores que não eram dramaturgos, mas sim críticos e teóricos, surgiram. Entre eles estão o russo Vsevolod Meyerhold (1874-1940), que desenvolveu um método de atuação chamado de biomecâ- nica; o alemão Erwin Piscator (1893-1966), que usava de todos os meios para fazer um teatro político que engajasse as massas; o simbolista inglês Edward Gordon Craig (1872-1966), que criou a noção do ator como supermarionete; e o não bem-sucedido diretor, mas importantíssimo teórico francês, Antonin Artaud (1896-1948), que desenvolveu a teoria do teatro da crueldade. Todos eles inauguraram uma época de diretores que se tornaram pensadores sobre o fazer teatral, o que antes estava era trabalho dos críticos. Outro fato que você precisa conhecer é que a presença feminina na direção e dramaturgia é recente. As mulheres sempre escreveram, sim, até mesmo durante a idade média: a freira da ordem das Canonesas, chamada Hrosvitha (935-973), conhecida em língua portuguesa como Rosvita de Gandersheim, escrevia teatro dentro de um mosteiro alemão. No entanto, durante muito tempo, as mulheres foram proibidas de aprender a ler e escrever, principalmente aquelas que não pertenciam a uma classe alta na sociedade de sua época. Além disso, elas também foram impedidas de publicar e ter uma profissão pública. Até a primeira onda feminista e a luta pelo sufrágio universal, a mulher era relegada ou à domesticidade ou a uma vida de “perdi- ção”. Apesar de mulheres atuarem no teatro “oficial” desde o Renascimento, o papel de gestor e criador de espetáculos foi predominantemente masculino até a metade do século passado. A noção de diretor-crítico se estendeu por todo o século XX e permanece no século XXI. As formas de fazer teatro e as configurações da equipe mudam conforme a produção e as inclinações estéticas dos envolvidos. As funções, após a Segunda Guerra, com o advento da performance, dos happenings e de novas formas de fazer dramaturgia, tornaram-se cada vez mais flexíveis e abrangentes. De qualquer forma, o teatro sempre será um fazer coletivo, mesmo que o espetáculo seja composto por uma pessoa encenando e diri- gindo a si mesma: não há teatro sem o espectador. Logo, mesmo que todas O teatro e a literatura dramática ao longo da história26 as configurações teatrais sejam esgotadas, o palco, a rua ou onde quer que seja que o teatro seja feito, precisa de alguém que o veja, e, dessa forma, já é essencialmente coletivo. A performance é um conceito que viaja através das disciplinas. Ela surge em uma mistura de artes visuais e arte teatral, na década de 1960, colocando o teatro fora das margens do edifício teatral, muito como era o antigo teatro popular, mas auxiliada por tecnologias e pela noção de arte conceitual. Muitas vezes, o objetivo da performance é chocar o espectador, para que ele atente a alguma situação crítica. A performance costuma ter um caráter muito político e simbólico, similar aos happenings, que foram cunhados no fim da década de 1950 pelo norte-americano Allan Kaprow. ARISTÓTELES. Poética. 7. ed. Lisboa: Universidade Nova de Lisboa, 1986. BERTHOLD, M. História mundial do teatro. São Paulo: Perspectiva, 2004 PAVIS, P. Dicionário de teatro. São Paulo: Perspectiva, 2008. PLATÃO. A república. São Paulo: Difusão Européia do Livro, 1965. v. 2. Leituras recomendadas ARTAUD, A. O teatro e seu duplo. São Paulo: Martins Fontes, 2006. CARLSON, M. Teorias do teatro: estudo histórico-crítico, dos gregos à atualidade. São Paulo: UNESP, 1997. REIS, M. D. Democracia grega: a antiga Atenas (séc. V a. c.). Sapere Aude, Belo Horizonte, v. 9, n. 17, p. 45-66, jan./jun. 2018. RYNGAERT, J-P. Introdução à análise do teatro. São Paulo: Martins Fontes, 1996. SARRAZAC, J-P. (org.). Léxico do drama moderno e contemporâneo. São Paulo: Cosac Naify, 2012. SZONDI, P. Teoria do drama moderno. São Paulo: Cosac Naify, 2011. 27O teatro e a literatura dramática ao longo da história
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