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Semana 03 Etica

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Semana 03 Etica
A cidadania no Brasil
Olá!
Nesta terceira semana, vamos trabalhar com a história da cidadania no Brasil.
O estabelecimento do Brasil como nação trouxe muitos desafios para a criação e desenvolvimento da cidadania em território nacional. Alguns chegam a duvidar que ela realmente exista, outros preferem destacar os diferentes agentes em conflito e os avanços e retrocessos na sua efetivação, além daqueles que alertam para os perigos internos e externos que ela corre no atual sistema global.
Esta é a característica desta disciplina: diversas perspectivas e pontos de vista apresentados e o necessário chamado para que você construa o seu conhecimento e se posicione.
Assim, boa semana de estudos!
Habilidades e competências
Ao final da semana, você deve ser capaz de:
Refletir sobre a história da cidadania no Brasil;
Compreender as diversas fases da construção da cidadania brasileira;
Identificar práticas de cidadania.
Desafio
A partir do material disponibilizado para esta semana, comente no Fórum Temático as afirmações do geógrafo brasileiro Milton Santos sobre a cidadania no Brasil, apresentadas no vídeo a seguir:
Ao longo da semana, você vai estudar conteúdos que vão tratar do tema cidadania no Brasil, pelos quais aprenderá alguns conceitos que podem ajudar você a elaborar a própria resposta.
Revisitando Conhecimentos
O que você precisa saber para aproveitar melhor o conteúdo.
Nesta semana, vamos trabalhar com a cidadania no Brasil e, para isso, nada melhor do que revisitar o conhecimento de um dos grandes leitores da alma do brasileiro, que é o antropólogo Roberto DaMatta. Em 1979, ele publicou o livro Carnavais, malandros e heróis, considerado um dos grandes trabalhos de interpretação sobre o que é ser brasileiro. Nesta entrevista, Roberto DaMatta atualiza sua visão sobre o Brasil a partir das manifestações populares de 2013. Conhecer seu trabalho é essencial para entender “o que faz o Brasil, Brasil?”
Orientação de Estudo
Vamos aqui tratar um pouco sobre a formação do Brasil e de seu povo, em especial sob a perspectiva da cidadania. Como se conformou a cidadania brasileira na confluência de diversas tradições - como a europeia, a silvícola, a africana, entre outras - é o que nos move nesta parte da disciplina. Fique atento ao questionamento sobre o que é, o que foi e quais são as condições futuras para ser cidadão no Brasil.
Nesta semana, para que você possa se posicionar mais criticamente sobre essa questão, vamos ver vídeos e ler textos, além de assistir a uma entrevista.
PARA REFLETIR
Busque compreender as diversas fases da cidadania no Brasil, bem como as críticas de antropólogos, sociólogos, geógrafos sobre a identificação do cidadão brasileiro. A partir das diversas posições que serão apresentadas, pense: com qual você mais se identifica? Busque refletir sobre seu status de cidadão e a forma como ele se manifesta no seu cotidiano em comunidade.
Aprofundando o Tema
Há cidadãos no Brasil?
Leia a análise do prof. Milton Santos sobre a cidadania no Brasil. Ela teve sua primeira edição em 1987 e a última em 2007. Compare a realidade exposta por Milton Santos e a realidade que você, como cidadão, vivencia hoje. O texto que nos interessa aqui é justamente o do primeiro capítulo do livro O espaço do cidadão, que tem como título “Há cidadãos neste país?”
O que é formação para a cidadania?
Leia a entrevista com sociólogo Chico de Oliveira, realizada por Silvio Caccia Bava, em agosto de 2000. O que, para Chico Oliveira, é o cidadão pleno? Tal plenitude é possível? Como se dá a desconstrução da cidadania? Como deve ser a educação para a cidadania, segundo Oliveira? Link para a entrevista:
Educação política como instrumento de transformação
Assista à entrevista do sociólogo e doutor em ciência política Humberto Dantas ao jornalista Adalberto Piotto, sobre a necessidade da educação política para o brasileiro, como forma de torná-lo mais participativo e cidadão.
O Que é Formação para a cidadania? 
Entrevista com o sociólogo Francisco de Oliveira, realizada por Silvio Caccia Bava, diretor da ABONG, em dezembro de 1999.
SILVIO: - Eu gostaria que você primeiro situasse qual é o campo desse debate em torno da cidadania. Na verdade, quase todos os atores coletivos sociais, quase todos os partidos políticos, senão todos, se dizem defensores da cidadania... então, qual é a matriz de referência que nós podemos usar para discutir cidadania? Afinal, nós estamos falando de qual cidadania?
CHICO DE OLIVEIRA: - Nós estamos entrando na zona do agrião, porque embora todo mundo se refira à cidadania, é extremamente difícil de se lograr um conceito enxuto, que possa dar conta dessa complexidade, não é?
 Um caminho seria a gente tentar fazer uma definição que não é de ausência, nem de carências, mas é uma definição de plenitude. Cidadania seria uma espécie de estado de espírito em que o cidadão fosse alguém dentro da sociedade - evidentemente não haveria cidadão fora dela –, fosse alguém que estivesse em pleno gozo de sua autonomia, e esse gozo de sua autonomia não fosse um gozo passivo, mas sim um gozo ativo, de plena capacidade de intervir nos negócios da sociedade, e através de outras mediações, intervir também nos negócios do Estado que regula a sociedade da qual ele faz parte. Isso na concepção ativa de cidadania, não apenas de quem recebe, mas na verdade de um ator que usa seus recursos econômicos, sociais, políticos e culturais para atuar no espaço público.
 No fundo, a cidadania, a meu modo de ver, pode ser definida em forma sintética como o estado pleno de autonomia, quer dizer, saber escolher, poder escolher e efetivar as escolhas.
E isto no Estado moderno, na sociedade moderna, significa dizer um cidadão pleno, consciente e ativo dos seus direitos, dos direitos individuais e dos direitos coletivos. Então, como a gente vê, esse conceito é uma coisa totalmente escorregadia e difícil de precisar.
SILVIO: - Eu concordo com você que a referência com a qual a gente conversa é o cidadão enquanto indivíduo. Mas tem um problema, esse cidadão, ele só pode efetivar o pleno gozo e sua cidadania mediado pelo espaço público, só pode efetivar o pleno gozo de sua autonomia mediado por instituições. Ele não existe, portanto, sem a produção coletiva destas mediações. O indivíduo, então, não se realiza sem a sua expressão coletiva. O pleno gozo de sua autonomia, ele só consegue mediado por instituições. 
CHICO DE OLIVEIRA: - São as instituições que compõem a armadura material dos direitos da cidadania. Então, como é que ele efetiva? Esse é um trabalho permanente de criação, recriação, de invenção e reinvenção de instituições através das quais ele exerce essa autonomia.
 De fato, pensar no cidadão imaginado pelo ideário liberal, no mundo moderno, pensar no indivíduo que pode, através de seus próprios meios, exercer ativamente a sua autonomia, essa é uma quimera. É uma quimera que não deve ser abandonada, é uma quimera que deve ser criticada do ponto de vista de quais são os meios efetivos pelos quais, em sociedade, ele exerce essa autonomia que é individual no fundo, mas que é mediada por instituições.
 A gente pensa, num cidadão, no Estado moderno, na sociedade moderna, armado de direitos, possuidor de direitos, que exerce esses direitos através de instituições que são criadas de forma democrática e pública. É claro que em alguns recortes isso aparece como um exercício individual, mas na maior parte dos casos só aparece como um exercício que se dá através de instituições. Então, é fundamental pensar essa tensão de uma sociedade constituída por cidadãos que tenham a plena consciência de sua autonomia enquanto indivíduos, enquanto pessoas, e que as instituições coletivas serão pouco capazes de oferecer essa autonomia. É preciso ligar as duas pontas porque o cidadão, pode ser ativo mesmo em condições em que as instituições sejam desfavoráveis.
SILVIO: - Isso abre uma nova questão. Quando você fala que ser cidadão é exercer os seus direitos e os seus deveres, você estáfalando já de um pacto estabelecido. E como fica a idéia da contínua criação de direitos? Se para ser cidadão eu preciso respeitar os deveres que me são atribuídos, na verdade, então meu papel já está definido na sociedade.
 CHICO DE OLIVEIRA: - É evidente que a gente não está partindo do plasma que fundou o mundo e a sociedade. Você nasce com alguns princípios que a própria sociedade criou, quer dizer, você ingressa numa certa sociedade já, de alguma maneira, parametrizado. Mas cabe exatamente ao cidadão inventar e reinventar continuamente seu lugar no mundo, istoé,o impacto se faz andando, não é uma situação prévia de repouso absoluto, é uma situação sempre dinâmica e isso dá um outro caráter à questão da cidadania. O cidadão pleno não é só aquele que recebe o usufruto de sua plenitude, mas é aquele que forja a plenitude desse usufruto, e isso significa uma participação ativa no andamento da
sociedade, na intervenção dentro do Estado, na criação de instituições. Portanto, a gente não se restringe, desse ponto de vista, à imagem liberal do cidadão individual que é depositário de todos os direitos. Ele é mais o criador, o ativador desses direitos, do que apenas um repositário, um receptor.
SILVIO: - Mas Chico, nós estamos falando por enquanto em termos gerais, genéricos. Se a gente procurar direcionar nossa conversa para o Brasil, quem se interessa pela questão da cidadania é quem não tem cidadania. Quem tem cidadania está querendo garantir o quê? Quem é o portador desse discurso de direitos?
CHICO DE OLIVEIRA: - O portador desse discurso de direitos, idealmente, deveriam ser todos. Evidentemente os direitos não significam uma equalização total, nem muito menos a equivalência. Então é claro, quem sofre mais carências de plenitude deve ser aquele que tem menos. Agora, também aquele que tem, é preciso lutar para mantê-la e ampliá-la, senão a gente terá um retrato estático da cidadania.
 No caso brasileiro, esta é uma sociedade, nós sabemos, em que ao contrário de nascer cidadão, você nasce quase não-cidadão. São muito poucos, é verdade, os que nascem com plenitude de autonomia. Aliás, essa plenitude de autonomia, veja como está sendo inventada.
 A plenitude de autonomia já está recuando do ponto de vista da faixa etária. Antes o cidadão era aquele maior de vinte e um anos, aquele que tinha responsabilidade civil e podia exercê-la em seu nome e não por procuração. Hoje, a própria luta pela cidadania, da qual o Pólis[i] como entidade faz parte, foi buscar lá os direitos da criança, do adolescente. Isso não foi pedido pelos adolescentes, nem pelas crianças, mas isso pode ter sido criação de adultos. Isto significa que esses adultos, já cidadãos, continuam ativos e criativos na criação e na invenção de nova plenitude. Então, é preciso criar e é preciso manter e é preciso
ampliar. E isso é um trabalho que é permanente. E numa sociedade como a nossa, em que a maior parte nasce constrangida, em lugar de podendo viver a plenitude, esse trabalho é muito mais duro, muito mais árduo.
 Aqui é preciso fazer uma diferença, que a imprensa confunde diariamente, entre o cidadão e o contribuinte. Eles reduzem freqüentemente a cidadania ao contribuinte. Isso é uma concepção liberal em que a cidadania eqüivale ao caráter de contribuinte. Na revolução burguesa essa proposição era ultra revolucionária, porque significava que os direitos não vinham só do nome, do status, mas eram direitos criados pelas atividades. Só que hoje continuar reduzindo o cidadão a contribuinte é uma perda. Por quê? Exatamente porque a nossa é uma sociedade imensamente desigual onde, se essa for a pressuposição, a grande maioria de brasileiros estará fora da cidadania.
 Então é preciso fazer o caminho do Marshall, que é um caminho em que os direitos econômicos e sociais são precedidos pela própria cidadania. A cidadania é que cria todos os direitos. Senão a gente fica na concepção economicista de que é preciso ter bem-estar, é preciso estar no gozo de usufrutos materiais, para poder ser cidadão. A cidadania pensada dessa forma se reduz ao contribuinte, anula qualquer capacidade criativa.
SILVIO: - Se a cidadania vem, vamos dizer assim, da capacidade dos indivíduos de atuarem sobre o espaço público de maneira a instituir direitos, essas mobilizações da sociedade, elas serão sempre referentes a alguma dimensão particular. A questão da mulher, a questão da criança, a questão do salário... É possível pensar uma formulação para a questão da cidadania onde cada uma dessas demandas particulares, desses movimentos sociais, se reconheça? Ou isso sempre será um mosaico fragmentado de mil partes?
CHICO DE OLIVEIRA: - Não, acho que não. Acho que é possível caminhar-se nessa direção. Aliás, acho que essa é uma questão da modernidade. Ao invés de se pressupor um estado geral e universal de cidadania, nós pressupomos uma espécie de caminho que se auto-constrói. Mas essa auto-construção requer que a própria cidadania seja capaz de integrar cada uma dessas especificidades sem a qual ela se tornará um universal vazio. É a partir dessas especificidades que você constrói a cidadania, não é negando-as.
SILVIO: - E como seria isso?
CHICO DE OLIVEIRA: - A cidadania enquanto uma dimensão universal não nega qualquer especificidade, ao contrário, reforça as especificidades. Quando se diz que você primeiro é cidadão e depois..., esse depois é uma forma só analítica de dizer. A cidadania ou incorpora a sua plenitude ou ela não é cidadania. É assim com cada um dos aspectos. Então não basta pressupor a cidadania universal, é preciso fazer um processo em que estejam presentes sua dimensão étnica, religiosa, econômica, política, cultural, para criar essa plenitude, se não você não poderá chegar a essa dimensão universal.
 Para dizer de uma forma banal, é pelo fato de você ser negro que eu posso ser judeu. Isso requer não somente a aceitação do ponto de vista de que é de direito.
SILVIO: - Você reconhece a alteridade do outro...
CHICO DE OLIVEIRA: - Requer a alteridade do outro.
SILVIO: - E percebe que essa multiculturalidade é uma condição necessária para a autonomia.
 CHICO DE OLIVEIRA: -Sim, essa multiculturalidade é que, num determinado momento, promove uma espécie de fusão. E daí ela passa a irradiar qualidades e forças para cada uma das especificidades. Ou seja, ela tem que se fundir. Se ela permanecer como especificidade aí de fato você tem uma perda. A perda seria, e só para usar uma metáfora espacial, no espaço da negritude você pode ser negro e no espaço da não-negritude você não ter direito de ser negro. Isso é interessante porque mostra a fragmentação da sociedade contemporânea da qual os Estados Unidos são talvez o caso mais exemplar... os guetos são a reiteração sobre a espécie. Você é negro em um bairro negro, mas em um bairro branco você não é negro, você não é ninguém. Você é um estranho.
SILVIO: - Mas se você diz que cidadão é aquele que tem o pleno gozo de sua autonomia, ninguém é cidadão. Porque nós não realizamos esse ideal. Estamos sempre a meio caminho, batalhando por ele.
CHICO DE OLIVEIRA:- Exatamente.
SILVIO: - Então não tem cidadãos?
CHICO DE OLIVEIRA: -Tem, mas cidadão é o que faz, não é o que recebe. É difícil pensar numa cidadania como uma acumulação. A cidadania é um gozo ativo que você pode cravar no momento em que o problema, o processo, o confronto, o litígio, o conflito, te acode. Eventualmente há a formação de um espaço público que é onde você atua e onde o cidadão ativo atua.
SILVIO: - A Hannah Arendt diz assim: o indivíduo existe no seu mundo privado, na sua família, nos seus grupos primários... ele se transforma em cidadão quando ele passa a atuar no espaço público. Seja na construção do espaço público, seja na representação dos seus interesses individuais e coletivos nas negociações que esse espaço oferece. Nesse caso há um momento em que o indivíduo não é cidadão. Você concorda com isso?
CHICO DE OLIVEIRA:- Não, não concordo. Talvez na reflexão de Hannah Arendt isso pudesse ser mais verdadeiro. Hoje eu nãoconcordo porque o que a gente vê na sociedade contemporânea é que há um duplo movimento: um movimento que é uma espécie de privatização do público e do outro lado uma publicização do privado. Nessa dialética você vê que a intimidade é o refúgio desse indivíduo arendtiano. Ora, sua intimidade está completamente compartilhada, para dizer o mínimo, pela televisão. Então, se você é só um indivíduo, você não pode impor à televisão nenhuma regra que impeça a invasão de teu espaço privado, porque estão se defrontando dois atores privados. Ora, a televisão é pública por definição, não porque isso tenha sido instituído, o movimento dela é de publicizar. Ela publiciza todo tempo, portanto acho que a complexidade da sociedade contemporânea avançou para além da definição de Hannah Arendt.
SILVIO: - Então, para você o indivíduo é cidadão a todo momento?
CHICO DE OLIVEIRA: -Tem que ser. Veja o Estatuto da Criança e do Adolescente como mostra isso: não tem mais pátrio poder que possa fazer qualquer coisa com a criança e o adolescente. Quer dizer, tem regras agora de publicização do privado que dão à criança e ao adolescente o direito de não ser espancado, o direito de não ser reprimido. O pátrio poder já está regulado também. A antiga intimidade já está regulada. Eu como pai não posso maisfazer o que me dá na telha.
SILVIO: - Mas então como é possível se falar em desconstrução da cidadania?
CHICO DE OLIVEIRA:- Pode-se falar em desconstrução da cidadania, mas esse discurso não deve supor, nem deixar nunca parecer, que se tem limites rígidos entre sociedade e Estado.
Esse recorte da vida privada, que antes se confundia com o espaço da intimidade, precisa de regras públicas para que se possa, na verdade, ser cidadão em pleno gozo de sua autonomia.
 É na esfera pública que você exercita tua autonomia. Aí você pode ter desconstrução da cidadania, exatamente porque a desconstrução também passa por esse conjunto de instituições mediadoras. A cidadania é atacada pela via da instituição. Essa ação faz de conta que não está fazendo nada com os direitos individuais, mas ataca pela via das instituições. Hoje nós estamos vivendo um período em que há tentativas efetivas de desconstrução da cidadania. Pode vir pelo Estado, pode vir pelo setor privado, pode vir pelos próprios movimentos que a gente chama de sociedade civil.
SILVIO: - Aí tem uma questão interessante. Se cidadania se constrói através da
institucionalização de regras e de direitos, no Brasil nós temos um monte de leis que são muito boas e que não funcionam... Então, como as instituições podem garantir a cidadania?
CHICO DE OLIVEIRA: - Eu acho que esse é um ponto interessante, mas a gente deve radicalizar a questão. É claro que as leis sozinhas não fazem tudo, por isso é preciso finalmente que cada indivíduo esteja ativo, tenha consciência da posse de seus direitos, sem isso dificilmente você terá uma cidadania com plenitude.
 A lei cria o espaço da virtualidade, ela não é efetiva mas ela cria o espaço da virtualidade, através dela você pode interrogar o outro, você pode interrogar as instituições, não apenas o outro indivíduo. A lei tem essa dimensão, exatamente de criação de um espaço virtual, por isso que é preciso retornar à questão do indivíduo, fazer a ligação permanente, porque a lei cria apenas o espaço virtual, se cada um de nós não formos ativos, se não ativarmos as instituições, aí você fica só no reino da virtualidade.
 Não é por outra razão que estão se fazendo reformas. Por quê? Porque a Constituição de 1988 criou virtualidades, e a luta pela cidadania é a luta contra o constrangimento do seu direito físico, a luta contra o constrangimento do seu direito à informação, contra qualquer outro constrangimento. Se vai ocorrer o litígio, o confronto, o conflito, depende de cada um e depende evidentemente dessa virtualidade.
 A gente podia dizer que, no fundo, ou a democracia e a cidadania estão na raiz da construção da sociedade, ou elas de fato se efetivam muito pouco. Mas é bom chamar a atenção para esse espaço virtual. A Constituição de 1988 criou espaços virtuais a partir dos quais você pode hoje contestar informações, você pode interrogar aquele que dispõe de seus dados e obrigá-lo a se explicar.
SILVIO: - Eu fico pensando, às vezes, que tem algumas noções que são mais mistificadoras
do que qualquer outra coisa. Por exemplo, essa história do empoderamento dos pobres que nós adotamos como uma referência para nosso trabalho. Nas pesquisas que realizamos, de avaliação de políticas que se orientam para atender as necessidades dos mais pobres, como as de renda mínima, o discurso é o de transformar os pobres em cidadãos, mas essas políticas não conseguem fazer isso, e se o Estado retira seu apoio estes grupos voltam à condição de miserabilidade em que se encontravam antes. Será que não tem algumas pré-condições para a construção da autonomia, do empoderamento?
CHICO DE OLIVEIRA: - Eu acho que não, arriscaria dizer que não tem pré-condições porque senão a gente faria um caminho tipo “Big- bang”. O que é que detona a construção da cidadania, quer dizer, esse empoderamento? E aí ficaria uma questão metafísica, que talvez ao nível da filosofia possa ser respondida, eu não tenho condições de responder.
SILVIO: - Mas eu estou levantando a questão de que, sem saber ler e escrever, por exemplo, fica muito difícil você acessar o espaço público.
CHICO DE OLIVEIRA: - Evidente, evidente.
SILVIO: - Se a pessoa não consegue ler num ônibus a direção do sentido da sua viagem, como é que ele consegue gozar de sua autonomia?
CHICO DE OLIVEIRA: - Evidente. Aí você toca num tema fundamental. Essa plenitude de autonomia não é um vazio, ela significa que você é capaz de acessar, de trabalhar, de manipular, manipulação no sentido de utilizar os recursos, usufruir e utilizar os recursos, de acordo com a sua contemporaneidade. Essa contemporaneidade numa sociedade complexa, vai dizer exatamente que se alguém não domina as linguagens universais pela quais acessa os reconhecimentos da sociedade, acessa o outro, acessa a alteridade do outro, evidentemente cidadão não é. Ele não tem condições de ser.
SILVIO: - Numa sociedade de signos, de símbolos, como a nossa, é quase analfabeto quem não consegue entender a linguagem do computador...
CHICO DE OLIVEIRA: - É claro, você já está passando num nível que não é mais ter de saber português e as quatro operações fundamentais de matemática, de aritmética. Você vai ter de saber computador. Então, a cidadania ativa... por isso ela tem que inventar. Isso significa dizer que, para ser cidadão hoje no Brasil, você tem que ser capaz de acessar e trabalhar os códigos, símbolos, signos da sociedade, senão você não é.
SILVIO: - Então tem muita gente que não é?
CHICO DE OLIVEIRA: -Tem, evidente. Numa sociedade com essa tradição autoritária como a nossa, o que é cercear a palavra, não é cercear a inteligibilidade dos signos da sociedade?
Veja o abuso de signos em inglês na cidade, não é?
Há uma parcela da população que não domina o inglês e pode entrar numa farmácia pensando que está num posto de gasolina ou tomar um porre de diazepan, sei lá, porque está tudo em inglês, não é? E isso faz parte do conflito social permanentemente.
SILVIO: - Eu fico pensando nos acampamentos do MST, aqueles pequenos produtores rurais que quebraram, que perderam as terras, que estavam no limite da sobrevivência e excluídos de qualquer tipo de integração comunitária. Eles se inscrevem em uma comunidade, são valorizados por essa comunidade, se reconhecem no código da comunidade, e eu diria que são cidadãos aí, sem saber ler e escrever, coisa que eles não seriam em São Paulo. Então, nós podemos falar de distintas cidadanias? Como é que nós tratamos essa diversidade toda?
Esse produtor rural analfabeto, ele consegue ser cidadão em uma situação e não consegue ser cidadão em outra?
 CHICO DE OLIVEIRA: -Não, certamente se ele se colocar enquanto indivíduo, isso pode ocorrer, mas aí a questão é a capacidade de se criar instituições mediadoras, porqueevidentemente se ele vier para São Paulo como indivíduo, ele se ferrou, ele não será cidadão, porque ele não domina recursos, até linguísticos, da sociabilidade. Mas se ele vier a São Paulo enquanto membro de uma cooperativa, de uma organização qualquer da sua comunidade, ele pode acessar e manipular os signos da sociabilidade aqui em São Paulo.
 Esse é o truque da dominação, um dos truques da dominação, consiste precisamente nisso... Por que foi que até o fim da ditadura os sindicatos, as centrais sindicais, não eram reconhecidas? Porque se trata de um recurso de método criado pelos dominados, que sendo cerceados, eles não tem como ativar o conflito.
SILVIO: - Você está falando que todo indivíduo é cidadão porque o público e o privado de alguma maneira se misturaram, e agora você está dizendo que tem brasileiros que não são cidadãos porque não acessam os signos. Como é que ficam essas duas afirmações que aparentemente são contraditórias?
CHICO DE OLIVEIRA: - Todos brasileiros virtualmente são cidadãos. Por isso eu insisto na coisa da criação, da invenção. Se você considerar um estado inicial de paz onde todos são cidadãos, aí não tem nada a criar. Deus terminou sua obra no sexto dia e no sétimo descansou e está em pleno repouso. Essa outra concepção afirma que você pode construir a tua forma de plenitude, mesmo no estado de carência.
 Veja o exemplo que nós acabamos de discutir. Você tem um trabalhador rural, um camponês, um assentado, que é analfabeto, não domina computador. Se ele vem enquanto indivíduo para São Paulo, está ferrado porque ele não lê códigos, nem lê nem pode se comunicar, a não ser com ele mesmo. Ora, a criação da instituição mediadora pela qual ele vem a São Paulo já é uma forma de auto-criação da cidadania. Visto dessa forma essa contradição que você assinala permanece?
SILVIO: - Claro que permanece.
CHICO DE OLIVEIRA: - É que você está no mundo do privado, você está no mundo da intimidade e, de fato, aí há uma multidão de cidadãos, virtualmente cidadãos, que não o são. Agora, para a gente não pensar da forma liberal - e pensar da forma liberal não é uma questão pejorativa - como é que o indivíduo adquire as próprias armas? Numa forma socialmente determinada você pode pensar que há, de fato, gente que socialmente não tema cesso aos códigos, para dizer como o Chacrinha, não se comunica.
 É a falta de cidadania, muito mais do que o mercado, que gera a exclusão. E isso é importante para que a gente escape do reducionismo liberal, em que no mercado indivíduo e cidadão se equivalem. Por quê? Porque era legítimo no século XVII falar de mercado enquanto lugar da autonomia, mas hoje não é.
SILVIO: - Hoje o Ignácio Ramonet, por exemplo, do Le Monde Diplomatique, fala que nós estamos passando de uma economia de mercado, para uma sociedade de mercado, onde a regulação do espaço público se dá pela lógica do mercado...
CHICO DE OLIVEIRA: - Pois é. E isso exclui. Porque o mercado introduz a divisão entre quem tem e que não tem...a gente podia ser muito cínico e dizer que mesmo o mendigo participa do mercado, evidentemente daquela maneira, com as linguagens que o mercado introduz, com a desigualdade que o mercado introduz. Então, passar de uma economia de mercado para uma sociedade de mercado pode ser fatal. Por isso que é preciso insistir nessa não redução, senão a gente corre o risco de confundir o cidadão com o contribuinte, quer dizer, tem direito só quem é contribuinte. E quem não é?
SILVIO: - Então vamos passar para a segunda fase da entrevista. Nós tentamos cercar essa conceituação para discutir uma questão mais específica, o que vem a ser formação para a cidadania?
CHICO DE OLIVEIRA: - Aí é que é complicado. É complicado, mas não devemos recusar o debate nem deixar de enfrentá-lo. Digo isso exatamente porque não estamos partindo de uma pressuposição de um estado inicial de paz. Acho que é obrigação daqueles que são cidadãos - porque acessam, manejam, trabalham, manipulam todos os códigos da sociabilidade – é obrigação remontar esse processo, como já se fez na questão da criança e do adolescente. Não precisou de passeatas das crianças para pedir seus direitos. Em algum momento a complexificação da sociedade exige, requer isso....quer dizer, o mundo privado, o mundo da família, o mundo da intimidade, não dá mais conta desse processo.
 Por que se afirmam os direitos das crianças e dos adolescentes? Porque o mundo privado não pode, não tem capacidade, de processar a violência. O mundo privado não tem mais essa capacidade, se ele foi sempre o refúgio da violência, no mundo contemporâneo ele é uma aberração. Então é a sociedade que requer, pela sua complexidade, que mesmo aquele que não pode fazer passeata no meio da rua, a ele sejam reconhecidos os direitos e a plenitude de sua autonomia, porque senão é a sociedade complexa que “vai pagar o pato”.
 Essa discussão é também a discussão da crise da Febem, por exemplo. O que é a Febem? A Febem, como todas as instituições carcerárias, é um lugar de separação, um lugar que a sociedade define como uma separação temporária, para que o infrator, ele se recupere. No caso da Febem, para que a Febem reencaminhe para a vida. Essa separação termina produzindo a exclusão, porque ela termina construindo um perfil do excluído, que não tem mais capacidade de ativar seus mecanismos de inclusão na sociedade, sua plenitude de autonomia.
 Então eu sugiro pensar o problema da Febem desse ângulo, relendo de outro modo. Ao invés de vê-lo de uma forma penal, vê-lo de uma forma cidadã, sem nenhuma ingenuidade. Para isso há um trabalho de formação sim a ser feito nesse nível, que ninguém deve recusar. Nós não podemos recusar, principalmente quem trabalha com a questão de políticas públicas e da exclusão não pode recusar, porque senão se fica num beco sem saída, quer dizer, será que as crianças e adolescentes internados na Febem já dominam todos os meios de acesso à cidadania e portanto eles podem sair? Certamente não.
SILVIO: - O Eder Sader falava da liberação das energias da sociedade civil, você fala em ativar a plenitude da autonomia, traduz isso, o que quer dizer ativar a plenitude da autonomia?
CHICO DE OLIVEIRA: - Ativar quer dizer usar um conjunto de instituições, de mecanismos que já existem na sociedade; usá-los para exercer de fato sua autonomia. Esse ativar tem sentido de um movimento em expansão, não é um estado de repouso. Isso pode ser traduzido também nos termos do Eder Sader. Trata-se de possibilitar a criação pela sociedade civil desses mecanismos, regulamentos, instituições, sem os quais ela na verdade não existe, sem os quais se reduz de novo a sociedade civil a um conjunto atomizado de indivíduos, e aí não funciona.
SILVIO: - Nós ficamos sempre numa situação de indefinições quanto às reais possibilidades do exercício da plenitude do gozo da cidadania pelo indivíduo. Ele enquanto indivíduo não tem essa capacidade de ativar os seus direitos, tem?
CHICO DE OLIVEIRA: - Não. Muito pouco. A questão é como você ativa os seus direitos numa sociedade. Para isso é bom entender o passado brasileiro. Os escravos tinham direitos, suas rebeliões, suas revoltas, ativaram o campo virtualmente possível, mas toda vez que eles saíam pela solução individual, o que pegavam do outro lado era a repressão dessa sociedade.
SILVIO: - Já é a terceira vez que eu engasgo com o seu “virtualmente”, o virtual seria, vamos dizer assim, o campo da imaginação criadora, pode construir qualquer coisa?
CHICO DE OLIVEIRA: - Não, o virtual é socialmente determinado. O virtual é um campo de possibilidades, e esse campo de possibilidades é socialmente determinado e se enfrenta com uma dimensão de iniquidade que é socialmente construída. Seria um campo de possibilidades, virtualidade é isso, mas isso é materialmente construído, não é uma coisa telemática.
SILVIO: - Quando você fala que a complexificação da sociedade requer a cidadania porque a violência atravessa toda a sociedade, pega todo mundo, pode-se dizer que hoje há questões como a poluição eo trânsito que pegam todo mundo. Isso de alguma maneira dilui os recortes de classe?
CHICO DE OLIVEIRA: -Não. Não dilui recortes de classe. Porque estamos num campo de possibilidades, mas são ainda possibilidades burguesas, não no sentido pejorativo, mas no sentido exatamente da cidadania, tal como ela se constituiu no campo burguês. Em outras palavras, a âncora mais forte do campo de possibilidades é a âncora da propriedade. Mas de alguma maneira, não recusemos esse confronto porque é dessa espécie de embate que se afirma o novo. Num primeiro movimento é mimetismo mas num segundo é criação, é desse campo que você extrai o teu recurso de método.
 O MST de novo é o melhor exemplo. A promessa burguesa é a da propriedade para todos. Então eu quero também. Por isso o MST, sempre tão conservador, é tão revolucionário. Nesse paradigma burguês a propriedade da terra é coisa fundamental, embora hoje seja muito menos... O Bill Gates não precisa de propriedade da terra.
SILVIO: - Você sabe que há um ano, mais ou menos, houve uma discussão antevendo a profundidade da crise social, e eu me peguei fazendo um trabalho com outros companheiros da ABONG de elaboração de propostas de corte puramente keynesiano, defendendo frentes de trabalho, renda mínima, essas coisas. Quando você fala que o marco de estruturação do campo de possibilidades é burguês, no sentido de que hoje nós não temos uma outra alternativa colocada, me fica essa pergunta: você acha que existe uma virtualidade diferente da burguesa na sociedade brasileira?
CHICO DE OLIVEIRA: - Acho que existe. Não é o caso de ficar num lamento do paraíso perdido, não é Proustiano, quer dizer, é para frente, eu acho que nós temos que utilizar ao máximo os recursos da racionalidade burguesa. Com isso eu quero dizer que não estou identificado com o tímido Genoíno para dizer que a única maneira é ser uma democracia radical. Ao contrário, eu estou tentando dizer que é preciso extrapolar esse marco, é preciso ir além dele. Até mesmo porque ele já está caindo aos pedaços.
SILVIO: - Não parece. Por que é que está caindo aos pedaços?
 CHICO DE OLIVEIRA: - Se você reparar toda nova dominação é virtual, portanto a reclamação do MST só é revolucionária porque esta sociedade ainda está fincada na propriedade material, quer dizer que a própria burguesia está extrapolando...
SILVIO: - Mas isso é um reforço no sentido de dizer que o paradigma burguês, ele é tão mais forte hoje em dia por força deste capital financeiro voando .... essa nuvem de trilhões, por força das corporações transnacionais, pela debilitação do Estado nacional... Todas essas coisas tornam, vamos dizer assim, uma outra possibilidade de organização societária mais difícil.
CHICO DE OLIVEIRA: - Fica mais difícil, sem dúvida nenhuma fica mais difícil. Ninguém pode pensar que você controla esses movimentos de capitais. Mas essa nuvem de trilhões, ela também é uma virtualidade. Hoje, se trabalha em rede...
SILVIO: - Nós estaríamos retomando o caminho da construção do Estado do Bem-Estar em escala planetária? Nós nunca checamos os fundamentos dessa lógica.
CHICO DE OLIVEIRA:- Não, acho que não. Em muitos casos se tende a uma espécie de reclamação de um mundo "keynesiano”, mas acho que isso extrapola, tende a romper esse limite. Se a questão da propriedade for deslocada, se rompe as barreira do som, daí essa luta hoje entre o Governo Americano e Microsoft. Ela é muito interessante para ser analisada, para ser percebida, aí está o conflito, o conflito na sua exacerbação, quer dizer, é uma espécie de batalha do século XXI.
 E qual é o conflito? O conflito é de um lado a Microsoft tentando radicalizar a virtualidade, o que quer dizer falta de forma; e por outro lado o Estado Americano tentando cercar essa virtualidade, porque sem forma não há conteúdo, sem forma não há como estabelecer nenhum contraponto e aí de fato o risco será, se essa tendência do virtual vencer, aí nós entramos num mundo extremamente perigoso, não sabemos se é bom ou ruim, porque falta a forma através da qual se acessa, se dialoga, se interroga, falta a forma.
SILVIO: - Vamos pensar, a partir dessa idéia da deflagração das energias que constroem direitos, a questão da formação para cidadania. É possível pensar uma formação do ponto de vista, por exemplo, de cursos? Eles contribuiriam para a formação da cidadania? A formação para a cidadania envolve o quê?
 CHICO DE OLIVEIRA: - Difícil de se prever. Se a gente exagerar, quase em qualquer ato da vida social se encontra o espaço de ativação. Mas é bom não ficar só nisso porque senão é tudo e não é nada. É preciso construir formas mediante as quais se possa dar densidade ao conteúdo. Os cursos continuam sendo uma das formas da formação, uma atividade que pode ao mesmo tempo informar e formar no sentido reflexivo. Formar por quê? Não é para fazer nenhuma apologia das teorias da informação. Formar porque é necessário que se tenha e conheça as formas da sociabilidade, que se possa decodificar os signos da sociabilidade sem o que não se pode ativar a cidadania e isto se passa através de conhecimento formal.
 Conhecimento formal não tem nada parecido com formalismo. Conhecimento formal quer dizer, precisamente, sem a forma você não pode reproduzir e é preciso reproduzir. É preciso reproduzir e produzir. Portanto, a educação formal, entendida nesse sentido, continua sendo um dos melhores meios para lograr, se não lograr completamente, pelo menos para se criar,produzir o conflito no campo de significados.
SILVIO: - A idéia que eu estou querendo trabalhar é a seguinte, é mais uma opinião minha, eu acho que você ativa a disposição de se informar e se tornar analítico e reflexivo. E isso também depende de uma disposição, não sei se psicológica, social ou antropológica, no sentido lato da palavra, de um engajamento emocional, de uma vivência que transforme e resignifique os seus valores.
Me lembro uma figura que conheci. Era uma mulher, chefe de família, negra, favelada, operária, vivia cumulativamente tudo que você puder imaginar de discriminações. E ela resolveu se inscrever no espaço público pela via da Sociedade Amigos de Bairro. Podia ter sido por qualquer outra dessas frentes, eram igualmente sensíveis para ela, mas ela encontrou as amigas, o cotidiano, um espaço acolhedor, foi por aí então. Para falar em formação para cidadania, eu fico com muito temor de cursos formais. Depois de ter umas aulas de sociologia, de história, de política, de como funciona a nossa sociedade, fica o quê?
 Eu sempre imaginei que a questão da formação da cidadania necessariamente deveria inscrever a possibilidade da ação coletiva e do sujeito se encontrar nessa ação coletiva com seus pares e seus opositores. Acho difícil que a escolaridade permita mudar a qualidade do engajamento, da reflexão, do sentido de pertencimento, o que você acha disso?
CHICO DE OLIVEIRA: - Não concordo inteiramente com você. Acho que sem dúvida reduzir a formação da cidadania a bancos escolares é pobre. Mas eu diria que sem isso também não ocorre. Esse movimento contínuo de ampliação no teu espaço de percepção faz parte da tua aquisição da cidadania. Você precisa saber, de alguma maneira dizer isso parece um exagero, que esta mulher negra, operária, favelada, precisa um dia saber o que é que houve na Grécia no século IV.
SILVIO: - Por aí você encontraria uma maneira de trabalhar a questão da formação da cidadania no seu sentido universal, o que de alguma maneira se contrapõe a isso que eu estou falando de que essa construção da inclusão se faz pela via do coletivo, pela via da mobilização social...
CHICO DE OLIVEIRA: - E nela pela via do reconhecimento do outro, o outro é o conflito,não é paz, o outro é conflito. Ninguém se faz de cidadão voltado para dentro feito avestruz,voltado para fora que você faz a formação para a cidadania. Se você botar esta mulher favelada nesta única dimensão, ela não sai dali. É preciso colocá-la em conflito com as outras dimensões, para que ela possa ativar...
SILVIO: - Você acha que é forçara mão eu dizer assim: então, a formação para a cidadania é impulsionar para o conflito?
CHICO DE OLIVEIRA: - Acho que é...Para você não ficar exatamente numa concepção passiva e apenas de usufruto, de receber, você caminha para um conflito...
SILVIO: - Numa sociedade tão desigual como a nossa, a inclusão significa impulsionar o conflito para que este tenha um caráter redistributivo.
CHICO DE OLIVEIRA: - No exemplo da mulher, ela saiu da sua casca de caracol, é claro, vendo por esse lado emocional que você falou. Certamente na dimensão operária ela não encontrava espaço. Por quê ? Porque nós sabemos que o operariado é mais machista do que Judas, então na sociedade amigos de bairro ela encontrou aí uma atividade em que parece que ela está só entre iguais, mas não é verdade. Quer dizer, elas não se reuniam para festejar seu favelismo, para celebrar o seu favelismo, se reuniam para romper...Se ela não tivesse caminhado para o conflito em torno de algo, não sei o quê, dali não saía nada. Então eu acho que formar cidadãos é além de reflexivo, é formar para o conflito, senão a inversão fica impossível.
SILVIO: - O que eu tenho falado é que a cidadania é um processo contínuo de ampliação de novos direitos, em bases aos acumulados historicamente em cada momento...
CHICO DE OLIVEIRA: - Sim, isso significa que você domina o conjunto que está a sua disposição.
SILVIO: - Agora, nós estamos numa situação contraditória, quer dizer, que novos direitos são esses? Nós estamos perdendo os velhos...
CHICO DE OLIVEIRA: - Por isso mesmo que o processo de cidadania é contínuo. Você não pode estar em estado de repouso nunca. Atenção para o argumento: se tem cidadania porque encaminhar para o conflito? Por que cidadania é conflito. Tem outros poderes tentando destruir ali o campo onde você se ativou, onde você construiu organizações populares. O Programa "Comunidade Solidária" não é inocente...
SILVIO: - Ele não ativa a cidadania?
CHICO DE OLIVEIRA: - Pode até ativar, mas é como os sindicatos rurais durante a ditadura. Ela fez de tudo para co-habitá-los, os sindicatos de carimbo... E hoje o sindicalismo rural combativo é muito maior que o urbano, apesar de 80% da população estar nas cidades. É possível que por dentro do Comunidade Solidária os sujeitos estejam se ativando, mas ele é feito com o único propósito de despolitizar, um programa que não é inocente...
SILVIO: - Se construir cidadania, de alguma maneira, é ampliar a esfera do conflito, isso significa politizar os temas da sociedade. O que é politizar os temas da sociedade, os temas da agenda social, os temas que são restrições à cidadania. O que é politizar o social ?
CHICO DE OLIVEIRA: - De forma muito genérica, é passar do estado de carência para o estado do direito. Acho que politizar significa em primeiro lugar isso, identificar o espaço da política como um lugar de onde se contesta. Isso requer instituições! Mas basta criar instituições? Não! Ao fazer essa passagem você dá um passo que é exatamente introduzir a cidadania e reconhecer a cidadania como forma de conflito. O direito só se dá quando se tem o conflito, a carência não. Você pode ter carência e isso não gerar conflito nenhum, pode gerar violência, que é outra coisa e nós não estamos falando de violência, estamos falando de conflito. Então, fazer essa passagem é absolutamente necessário, tanto para continuar ampliando os direitos como para resistir à sua desconstrução.
* Instituto Pólis de Estudos, Formação e Assessoria em Políticas Sociais, ONG situada em São Paulo – SP. 
Há cidadãos neste país?, por Milton Santos
Redação
jornalggn@gmail.com
Publicado em 16 de julho de 2016, 21:19
Geocríticas
Cabem, pelo menos, duas perguntas em um país onde a figura do cidadão é tão esquecida. Quantos habitantes, no Brasil, são cidadãos? Quantos nem sequer sabem que não o são? O simples nascer investe o indivíduo de uma soma inalienável de direitos, apenas pelo fato de ingressar na sociedade humana. Viver, tornar-se de um ser no mundo, é assumir, com os demais, uma herança moral, que faz de cada qual um portador de prerrogativas sociais. Direito a um teto, à comida, à educação, à saúde, à proteção contra o frio, a chuva, as intempéries; direito ao trabalho, à justiça, à liberdade e a uma existência digna.
O discurso das liberdades humanas e dos direitos seus garantidores é, certamente, ainda mais vasto. Tantas vezes proclamando e repetido, tantas vezes menosprezado. É isso, justamente, o que faz a diferença entre a retórica e o fato. O respeito ao indivíduo é a consagração da cidadania, pela qual uma lista de princípios gerais e abstratos se impõe como um corpo de direitos concretos individualizados. A cidadania é uma lei da sociedade que, sem distinção, atinge a todos e investe cada qual com a força de se ver respeitado contra a força, em qualquer circunstância.
A cidadania, sem dúvida, se aprende. É assim que ela se torna um estado de espírito, enraizado na cultura. É, talvez, nesse sentido, que se costuma dizer que a liberdade não é uma dádiva, mas uma conquista, uma conquista a se manter. Ameaçada por um cotidiano implacável, não basta à cidadania ser um estado de espírito ou uma declaração de intenções. Ela tem o seu corpo e os seus limites como uma situação social, jurídica e política. Para ser mantida pelas gerações sucessivas, para ter eficácia e ser fonte de direitos, ela deve se inscrever na própria letra das leis, mediante dispositivos institucionais que assegurem a fruição das prerrogativas pactuadas e, sempre que haja recusa, o direito de reclamar e ser ouvido.
A cidadania pode começar por definições abstratas, cabíveis em qualquer tempo e lugar, mas para ser válida deve poder ser reclamada. A metamorfose dessa liberdade teórica em direito positivo depende de condições concretas, como a natureza do Estado e do regime, o tipo de sociedade estabelecida e o grau de pugnacidade que vem da consciência possível dentro da sociedade civil em movimento. É por isso que, desse ponto de vista, a situação dos indivíduos não é imutável, está sujeita a retrocessos e avanços. Os homens, pela sua própria essência, buscam a liberdade. Não a procuram com a mesma determinação porque o seu grau de entendimento do mundo não é o mesmo. As sociedades, pela sua própria história, são mais ou menos abertas às conquistas do homem.
E os Estados nem sempre coincidem com a sociedade civil, mas, ao contrário, refreiam-lhe os impulsos, e frequentemente desrespeitam os indivíduos, sob as justificativas e disfarces mais diversos. A dialética da vida social leva em conta o movimento desses fatores: o dado institucional, o dado econômico, o dado cultural e o dado individual interdependem e interagem.
F. C. Weffort (1981, pp. 139-140) mostra como, no seu clássico Citizenship and Social Class, Marshall reconheceu no interior das democracias modernas a existência de uma tensão permanente, uma “guerra”, diz ele em determinado momento, entre o princípio de igualdade implícito no conceito de cidadania e a desigualdade inerente ao sistema capitalista e à sociedade de classes (Marshall, 1965m p. 92).
Países com tradição de cidadania e outros não?
A cidadania evolui por meio de um processo de lutas e desenvolvidas paralelamente em diversos países, que leva da condição de “membro da sociedade nacional” no século XVII*, ao “direito de associação” no século XIX**, até serem alcançados os “direitos sociais” em pleno século XX***. Em um belo ensaio, Tereza Haguette (1981-1982) descreve a evolução que começa com a aquisição do status de cidadão, membro de uma sociedade civil reconhecida como tal, isto é, a conquista de direitos políticos individuais, prossegue com o reconhecimento de direitos coletivos, pertinentes aos grupos que constituem a coletividade nacional e autorizados a formar associações representativas legitimadas, até aqui “um terceiro conjunto de direitos – os direitos sociais – garantiriam ao indivíduo um padrão de vida decente, uma proteção mínima contra a pobreza e a doença, assim como uma participação naherança social”.
A própria palavra cidadão vai se impor com a grande mutação histórica marcada na Europa com a abolição do feudalismo e o início do capitalismo. Marx e tantos outros autores saudaram a chegada do capitalismo com a abolição de vínculos de servidão entre o dono da terra e “seu” trabalhador, e o surgimento do trabalhador livre, dono dos meios de produção. As aglomerações humanas, os burgos, foram o teatro principal dessa luta e o palco dessa enorme conquista. Com o homem do burgo, o burguês, nascia o cidadão, o homem do trabalho livre, vivendo num lugar livre, a cidade.
Assim, com a passagem do feudalismo para o capitalismo, a do trabalho servil para o trabalho livre não se deu de uma noite para o dia. O processo de formação da cidadania não foi tão brutal como equivocadamente podem pensar os observadores longínquos da história, considerando os eventos como se fossem um ponto fixo no tempo. As relações sociais feudais e a forma de trabalho correspondente geraram, lentamente, um novo caldo de cultura, assentando as bases de um pensamento revolucionário e de sua expansão, oferecendo à rebeldia os fundamentos de um êxito que iria desembocar em novas relações sociais e de trabalho.
As conquistas cidadãs não ficaram aí. A prática dessa porção de liberdade adquirida foi o aprendizado para novas liberdades, até que se chegasse às ideias modernas de sociedade civil, um corpo social que só existe porque há homens ciosos dos seus direitos; e existe a despeito do Estado. Não fora assim e o ideário liberal não se teria alastrado na Europa e, dela, não se teria transferido para outros continentes. É assim que esse projeto chega aos Estados Unidos, fazendo desse país seu principal bastião.
O fato, porém, é que não é lícito confundir o liberalismo de Tocqueville ou o cidadão da era do capitalismo concorrencial com o cidadão da era teletrônica. Impõe-se a necessidade de atualização do conceito e do instituto correspondente.
Em diversos países – e isso em maior ou menor grau -, o ideário da cidadania e a legislação correspondente foram se adaptando. A herança cultural, as novas ideias políticas, as novas realidades do mundo do trabalho, as novas definições do intercâmbio social foram os fermentos dessa mudança. As revoluções socialistas, desejosas de romper com as relações sociais impostas pelo capitalismo e de reconhecer os direitos das massas, tiveram, também, um papel dialético nessa transformação, ainda que críticos atuais do que chamam o “socialismo real” protestem contra a ausência de conteúdo liberal na promoção social empreendida no leste.
Notas:
*. “Com relação ao conceito de cidadania […] uma rápida incursão histórica nos mostra que, no século XIX, com a emergência do Estado-nação em toda a Europa, este conceito adquiriu um importante elemento: a qualidade de membro. Pelo simples fato de ser membro de um Estado-nação, todos os habitantes ascendiam ao status de cidadão, apesar de que o mais elevado direito do cidadão, o direito político de participar da construção da sociedade, se efetivaria somente através do voto. Até um passado bem recente – início do século XX – este direito era reservado a alguns […]” (T. Haguette, 1981-1982, p. 123).
**. “No século XIX, o direito de associação – que representa um importante direito político – foi incorporado ao status da cidadania, proporcionando as bases para a classe trabalhadora adquirir direito político. Em outras palavras, enquanto os direitos civis eram essencialmente individuais, o direito de assiciação deu poder aos grupos de se fizerem ouvir” (idem, p. 124). 
***. “Finalmente, já em meados do século XX, um terceiro conjunto de direitos – os direitos sociais – garantia ao indivíduo um padrão de vida decente, uma proteção mínima contra a pobreza e a doença, assim como uma participação na herança social. O exercício destes direitos é, ainda hoje, privilégio dos países já integrados ao sistema do welfare state” (idem, ibidem). 
Neoliberalismo e cidadania atrofiada
A grande crise econômica em que vivemos conduziu a certos retrocessos em matéria de conquistas sociais e políticas. O neoliberalismo, ao mesmo tempo em que prega a abstenção estatal na área produtiva, atribui ao Estado capitalista uma grande cópia de poder sobre os indivíduos, a título de restaurar a saúde econômica e, assim, preservar o futuro. A alegação do que o grande desemprego é necessário para aumentar o emprego daqui a alguns anos é um desses argumentos consagrados para justificar uma recessão programada. Os “socialistas reais” também prometem, a partir das restrições atuais às liberdades clássicas, um sistema social em que, no futuro, a intervenção autônoma do Estado (separado da sociedade civil) será minimizada, se são abolida, na regulação da vida social.
“Bolsa por 32 euros – comida de 1 semana por 4 euros”. O nosso atual modelo econômico altera a lógica de direitos das pessoas nas sociedades, tonando-as antes consumidoras do que cidadãs – portadoras de direitos sociais básicos. Foto: Gutewebung/ ONG Cordaid.
Um traço comum a esses países vem, todavia, do fato de que neles houve condição para que a luta histórica pela conquista dos direitos dos cidadãos abrangesse, ao longo do tempo, parcela considerável da população imbuída, consciente ou inconsciente, da ideia de sociedade civil e da vocação de igualdade. A instalação de tal estado de espírito e de tal estado de coisas precede à implantação das grandes mudanças sociais que viriam comprometê-los: o papel da máquina e do industrialismo no intercâmbio social, o uso da astúcia ou da força nas relações internacionais, a chegada do capitalismo corporativo e a instrumentalização das relações interpessoais, a vitória do consumo como fim em si mesmo, a supressão da vida comunitária baseada na solidariedade social e sua superposição por sociedades competitivas que comandam a busca de statos e não mais de valores. Em tais sociedades corporativas, reina a propaganda como fazedora de símbolos, o consumismo como seu portador, a cultura de massas como caldo de cultura fabricado, a burocracia como instrumento e fonte de alienação.
Esse quadro, hoje comum a todos os países capitalistas, ganha ainda mais nitidez nos países subdesenvolvidos como o nosso.
É necessário lembrar que, para muitos países do Terceiro Mundo, o empobrecimento da moralidade internacional atribuiu aos imperativos do progresso a presença de regimes fortes, as distorções na vida econômica e social, a supressão do debate sobre os direitos dos cidadãos, mesmo em suas formas mais brandas.
Deixaram de ser permitidos: a defesa do direito ao trabalho e a uma remuneração condigna, o reclamo dos bens vitais mínimos, o direito à informação generalizada, ao voto e, até mesmo, a salvaguarda da cultura.
O não-cidadão do Terceiro Mundo
Mas há cidadania e cidadania. Nos países subdesenvolvidos, de um modo geral, há cidadãos de classes diversas; há os que são mais cidadãos, os que são menos cidadãos e os que nem mesmo ainda o são. Para Tereza Haguette (1981-1982), o escopo da cidadania “não é o mesmo nos países metrópoles e nos satélites”*. Trata-se, devemos ressaltar, de escopo outorgado, estabelecido pelos que mandam, mas jamais de escopo finalístico a atingir. É certo que a cidadania se realiza segundo diversas formas, mas não podemos partir do princípio de que homens livres possam ter respostas diferentes aos seus direitos essenciais apenas pelo fato de viverem em países diferentes. A própria autora, aliás, falando do estado de bem-estar (p. 124), critica o fato de que o exercício dos direitos correspondentes seja, ainda hoje, um privilégio de alguns países.
Nota: 
*. “[…] a cidadania, como subdesenvolvimento, está associada à divisão internacional do trabalho. Seu escopo não é o mesmo nos países metrópoles e nos satélites. Em uma economia mundial baseada em metrópoles politicamente fortes e satélites nacionais fracos, a cidadania – como a riqueza e o desenvolvimento econômico – é desigual e estratificada” (T. Haguette, 1981-1982, p. 125). 
A elaboração brasileirado não-cidadão
O caso brasileiro tem de ser analisado sob essa luz, na medida em que tais fatores, escalonados no tempo nos países do Norte, aqui aparecem e se implantam de uma só vez. A convergência de várias causas, ao mesmo tempo revolucionárias e dissolventes, iria ter um impacto fortemente negativo no processo de formação da ideia de cidadania e da realidade do cidadão. Mas nesta, como em outras questões, há uma especialidade brasileira a realçar.
Em nenhum outro país foram assim contemporâneos e concomitantes processos como a desruralização, as migrações brutais desenraizadoras, a urbanização galopante e concentradora, a expansão do consumo de massa, o crescimento econômico delirante, a concentração da mídia escrita, falada e televisionada, a degradação das escolas, a instalação de um regime repressivo com a supressão dos direitos elementares dos indivíduos, a substituição rápida e brutal, o triunfo, ainda que superficial, de uma filosofia de vida que privilegia os meios materiais e se despreocupa com os aspectos finalistas da existência e entroniza o egoísmo como lei superior, porque é o instrumento da busca da ascensão social. Em lugar do cidadão formou-se umconsumidor, que aceita ser chamado de usuário.
Em menos de trinta anos, isto é, no espaço de uma ou duas gerações, essas transformações se deram concomitantemente no Brasil, o que multiplicou exponencialmente o seu potencial já por si só negativo, sobretudo porque a classe média então criada já nascia debaixo das influências indicadas acima. Na realidade, tais mudanças perversas não apenas se deram paralelamente, mas sistematicamente, o que acentua a sua força ideológica, na medida em que os fenômenos correspondentes acabam por se justificar a partir de suas próprias relações causais, isto é, naturalmente. O quadro não está, certamente, completo.
Com certeza não saberíamos empreender a imensa lista de variáveis com valor explicativo, mas temos de acrescentar, pelo menos, mais duas, extremamente imbricadas com as demais. Uma é a imersão do país, desde praticamente o fim da Segunda Guerra Mundial, em um clima de guerra fria e o concomitante engajamento em uma política econômica subordinada à Aliança Atlântica. Essa causa é muito pouco mencionada quando se deseja equacionar a problemática nacional, mas realmente está presente na equação política internacional e interna, na condução da economia, na conformação da sociedade e na moral correspondentes, tanto quanto na configuração territorial.
O modelo econômico que conduziu ao chamado “milagre econômico” vai buscar suas raízes nos mesmos postulados que levaram à supressão das liberdades civis, acusadas então como um fermento deletério, capaz de levar o país à anarquia. Trata-se, também, de um modelo político e social, responsável tanto pela eliminação do embrião de cidadania que então se desenvolvia, como pela opção de alargamento de uma nova classe média em detrimento da massa de pobres que o “milagre” não apenas deixou de suprimir, como também aumentou*. O crescimento econômico assim obtido, fundado em certos setores produtivos e baseado em certos lugares, veio a agravar a concentração da riqueza e as injustiças, já grandes, de sua distribuição. Entre as pessoas e entre os lugares. Como tal crescimento se fazia paralelamente ao apelo a um consumo impossível de se generalizar, as linhas de crédito abertas para fortalecer os produtores ajudaram a agravar as desigualdades e santificar as distorções. O equipamento do país, destinado ao escoamento mais frágil e mais rápido dos produtos, serviu, ao modelo econômico que o gerou, para a criação do modelo territorial correspondente: grandes e brutais migrações, muito mais migrações de consumo que de trabalho, esvaziamento demográfico em inúmeras regiões, concentração da população em crescimento em algumas poucas áreas, sobretudo urbanas, com a formação de grandes metrópoles em todas as regiões e a constituição de uma verdadeira megalópole do tipo brasileiro no Sudeste.
Além do que, para os seus moradores menos móveis, a cidade é impalpável. Ela, porém, impõe-se como um amontoado de signos aparentemente desencontrados, agindo, no entanto, em concerto, para limitar mais do que para facilitar a minha ação, tornando-me impotente diante da multiplicidade das coisas que me cercam e de que posso dispor**.
Notas:
*. “Não existe um livro chamado ‘O espírito das futuras leis brasileiras’, nem Montesquieu para escrever este livro. […] O texto não existe porque o espírito que buscamos necessita de uma conjuntura de ideias e instituições inéditas. 
E esse espírito tem de enquadrar um sistema de desenvolvimento acelerado com a redistribuição de renda e um Estado com sérias capacidades para manter o processo de desenvolvimento e redistribuição da renda ao mesmo tempo. Esse espírito exige instituições que possam manter a liberdade individual e a participação social e política” (Truber, 1981, pp. 151-152). 
**. A concentração urbana e, com ela, a diferenciação crescem mais depressa para a produtividade. É o fundamento da alienação urbana. Um equilíbrio neurótico termina, no entanto, por se estabelecer em benefício da ordem mais coerente da produção […]” (Baudrillard, 1970, p. 87). 
Uma sociedade multitudinária
Criava-se, assim, uma sociedade multitudinária – seria, já, uma sociedade de massas ou um seu arremedo? – sem o concomitante de um real consumo de massa, pois o poder aquisitivo faltava cruelmente a uma grande parcela dos novos urbanos. O consumo de massa é multiforme e abrangente. O que se deu no Brasil foi um consumo exclusivo que, mesmo para os estratos sociais beneficiados, mais se referiu a alguns bens materiais que ao conjunto de bens, a começar pelos bens imateriais, que facilitam o acesso a uma vida não apenas confortável, como, também mais digna*.
O consumo de massa esboçado valeu-se da mídia, em crescimento vertical, para impor gostos e preços. Esse trabalho de sedução foi facilitado pela própria atração que as novas mídias impuseram sobre o público**. Criadores da moda, difusores do crédito, o papel dos meios de difusão deve ser realçado como o do colaborador privilegiado das artimanhas da produção de massas estilo brasileiro, uma produção de massas contente de si mesma e necessitada apenas de um mercado voluntariamente restringido. Isso garante o não-esgotamento da revolução das esperanças – isto é, das grandes esperanças de consumir -, e ajuda a colocar, como meta, não propriamente o indivíduo tornado cidadão, mas o indivíduo tornado consumidor.
Os efeitos daninhos dessa metamorfose ainda se farão sentir por muito tempo, e agora funcionam mais como um fator limitativo na elaboração de um projeto nacional mais consequente, já que os projetos projetos pessoais afloram e se exprimem com um vasto componente de alienação. É assim para a maioria da população, desprovida de meios para uma análise crítica de sua própria condição.
Também é ainda mais grave para os milhões de indivíduos que nasceram depois que tal processo se iniciou ou que a ele se incorporaram sem poder distinguir aspirações pessoais legítimas e imposições do sistema econômico e político. Trata-se aqui daquela confusão entre liberdade e dominação, de que fala Marcuse quando se refere às condições de existência no mundo de hoje***.
A urbanização fundada no consumo é, também, a matriz de um combate entre a cultura popular que desertava as classes médias para ir se abrigar nos bairros pobres, cultura popular hoje defendida pelos pobres, cuja pobreza impede, afinal, sua completa imersão nessas novas formas de vida, fundadas pelo mesmo consumo que levou os pobres à cidade ou nesta fez pobres os que ainda não o eram.
Na cidade, sobretudo na grande, os cimentos se dissolvem e mínguam as solidariedades ancestrais. Ali onde o dinheiro se torna a medida de tudo, a economização da vida social impõe a competitividade e um selvagismo crescentes. As causas dos males aparecem como se fossem a sua solução, círculo vicioso que escancara as portas das favelas para a cultura de massas,com o seu cortejo de despersonalização, e a substituição dos projetos pessoais saídos da cultura, isto é, de dentro do indivíduo, por outros projetos elaborados de fora deste mesmo indivíduo, projetos decididos a conquistar todo mundo pela força da propaganda*¹. Assim, a cultura popular, cultura “selvagem” e irracional, é substituída, lenta ou rapidamente, pela cultura de massas; o espaço “selvagem” cede lugar a um espaço que enquadra e limita as expressões populares, e o que deveria surgir como sociedade de massas apenas se dá como sociedade alienada*².
Em lugar do cidadão surge o consumidor insatisfeito e, por isso, votado a permanecer consumidor.Sua dependência em relação aos novos objetos limita sua vocação para obter uma individualidade e reduz a possibilidade dos encontros interpessoais diretos e enriquecedores, porque simbólicos em sua própria origem. A comunicação entre as pessoas é frequentemente intermediada por coisas. Frequentemente os movimentos de massa também se esgotam nas coisas, tendo uma lógica mais instrumental que existencial*³. As mobilizações são locais ou setoriais. A socialização capitalista, originária de uma divisão de trabalho que a monetarização acentua, impede movimentos globais e um pensamento global. A reivindicação de uns não raro representa um agravo para o outro. A força da alienação vem dessa fragilidade dos indivíduos, quando apenas conseguem identificar o que os separa e não o que os une.
Uma visão mais abrangente das coisas e dos fenômenos acaba por ser negada aos cidadãos comuns, em vista da concentração da mídia, da sobrecarga de informações irrelevantes**¹ e da tendência a apenas ampliar certos aspectos da realidade, cuja escolha para a exibição pública é, com frequência, ligada ao mundo da política e dos interesses. Lindbeck (1975, p. 35) já havia chamado a atenção para a dramatização que é feita sob “problemas específicos e concretos” que atraem e fixam a atenção sobre aspectos geralmente menores dos eventos. Quem olha a televisão com algum senso crítico já deve ter-se apercebido dessa forma de manipulação dos acontecimento.
Notas: 
*. Em uma de suas colaborações semanais à página 2 da Folha de S. Paulo, intitulada “Celso Furtado Revisitado”, Jarbas Passarinho comenta a impressão que obteve, há vinte anos, do livro “A Pré-Revolução Brasileira”, do renomado economista brasileiro. Celso Furtado já se referia ao dilema entre a liberdade e o desenvolvimento rápido, considerado como um falso dilema pelo comentarista atual. Na verdade, a contradição se deu entre um crescimento material acelerado pouco preocupado com a essência e a realização cultural da sociedade, oferecendo como resultado as cidadanias de segunda e terceira classe que caracterizavam a esmagadora maioria dos brasileiros. Cidadãos de primeira classe são os que se beneficiam desse crescimento econômico distorcido. 
**. “A deformação que se faz a respeito dos meios de comunicação eletrônicos decorre, portanto, da evidente deformação do significado do que eles efetivamente transmitem e de uma incompreensão a respeito da relação entre a aparência e a essência dos fenômenos no processo de conhecimento. Se a televisão e o rádio são ainda os únicos instrumentos que atingem as dezenas de milhões de brasileiros que mal manejam um lápis, que mal soletram o ABC, a papagaiada em torno do fim das barreiras culturais entre povos, a falência da escrita – e do jornalismo escrito – são criações de intelectuais que leram excessivamente e tiveram contato quase nenhum com as lutas políticas, econômicas, culturais e ideológicas práticas do povo brasileiro” (“Projeto de um Diário”, Retrato do Brasil, São Paulo, Política, 1984, p. 7). 
***. “Psicologicamente, e é só isso o que aqui nos preocupa, a diferença entre dominação e liberdade está se tornando menor. O indivíduo reproduz, em seu nível mais profundo, na sua estrutura de instintos, os valores e os padrões de comportamentos que servem menos para manter a dominação, enquanto a dominação se torna cada vez menos autônoma, menos ‘pessoal’, mais objetiva e mais universal. O que hoje domina é o aparelho econômico, político e cultural, que se tornou uma unidade indivisível construída pelo trabalho social” (Marcuse, 1970, p. 3). 
*¹. A propósito da forma como a imprensa escrita, falada e televisionada influi sobre a mente dos indivíduos, pode ser útil a leitura de um livro didaticamente redigido: “Mídia: O Segundo Deus”, de Tony Schwartz (1986). Um enfoque filosófico do tema é oferecido por Hans Magnus Enzensberger em “The Consciousness Industry…” (1974). 
*². “A mídia tende a focalizar mais as notícias ruins do que boas, a mostrar as aberrações em lugar do que é normal. É possível que, fazendo assim, esteja correspondendo ao gosto público. Mas o resultado […]” (Rybczynski, 1985, p. 27). 
*³. “O poder social é, hoje, mais que nunca, mediado pelo poder das coisas. Quanto mais intensa a implicação do homem com as coisas, e mais as coisas o dominam e mais lhe faltam aqueles traços individuais genuínos e mais sua mente será transformada em um autômato da razão formalizada” (Horkheimer, 1974, pp. 129-130). 
**¹. “Esse estado de superinformação perpétua e de subinformação crônica caracteriza nossas sociedades contemporâneas. 
O imediato torna, de fato, a decifração de um acontecimento ao mesmo tempo mais fácil e mais difícil. Mais fácil porque choca de imediato, mais difícil porque se manifesta totalmente de imediato. Num sistema de informações mais tradicional, o acontecimento assinala por seu próprio conteúdo sua área de difusão. Sua rede de influências era, cada vez mais, definida por aqueles aos quais tocava. Seu traço era mais linear […] estando doravante cortados os intermediários, opera-se uma telescopagem, e na incandescência das significações ficamos cegos” (Nora, 1976, p. 189).
Em síntese
Darcy Ribeiro começa seu livro O povo brasileiro com a seguinte sentença: “O Brasil e os brasileiros... Surgimos da confluência, do entrechoque e do caldeamento do invasor português com índios silvícolas e campineiros e com negros africanos, uns e outros aliciados como escravos.” Esse “entrechoque” tem implicações até hoje na formação e desenvolvimento da cidadania nacional. Mas, de qualquer forma, pode-se perceber mais ganhos do que perdas nesse processo de afirmação do cidadão - aquele dotado de direitos e participante ativo nas decisões sobre os caminhos da nação. O ponto alto desse processo, sem dúvida, foi a promulgação da Constituição Federal de 1988, a qual busca consolidar uma série de reivindicações sociais, tais como a universalização do direito à saúde e à educação, além de incluir a cidadania como um de seus fundamentos. É nesse sentido que a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (Lei 9394/96) vai estabelecer como um de seus fins a educação da criança e do jovem “para o exercício da cidadania e sua qualificação para o trabalho”. O que evidencia uma consciência nacional e uma consequente necessidade educacional.
Parabéns! Você chegou ao fim do conteúdo desta semana.
Como já dizia o maestro Antônio Carlos Jobim, “o Brasil não é para principiantes”. As lutas sociais para a conquista e efetivação dos direitos reservados a todos os cidadãos é contínua e exige educação e conhecimento profundo das diversas realidades que constituem o país. Esperamos que as leituras e discussões desta semana tenham alcançado os objetivos propostos e que você esteja mais consciente da necessidade de sua contribuição para transformar o Brasil num país mais justo e inclusivo. Na próxima semana, vamos trabalhar ética e cidadania para além dos espaços regionais, em direção ao global.
Questões 
1-) Sobre a história da cidadania no Brasil, assinale a alternativa correta.
Resposta Selecionada:	
Correta 
A Proclamação da República não teve participação popular.
Comentário da resposta:	
Você acertou! Essa é a alternativa correta. “O povo assistiu àquilo bestializado, atônito, surpreso, sem conhecer o que significava. Muitos acreditavam seriamente estar vendo uma parada” Aristides Lobo.2-)Considerando os conceitos apresentados na videoaula Práticas de Cidadania, avalie as afirmativas: 
· Pode ser considerado como prática de cidadania o voto. 
· As práticas de cidadania podem ser vistas, de forma resumida, como aqueles deveres que o cidadão tem para com o Estado ou para com a Comunidade. 
· A participação do indivíduo na redução da desigualdade social pode ser considerada uma prática de cidadania. 
Resposta Selecionada:	
Correta 
I, II e III
3-)No campo dos direitos sociais, a grande inovação trazida pela Constituição Federal de 1988, se refere? 
Correta 
À ruptura estabelecida com a tradição varguista de conceber a cidadania como uma condição regulada pelo trabalho, ou seja, o acesso aos direitos dependia da ocupação do indivíduo. 
Comentário da resposta:	
resposta material-base Direitos Humanos, de Marco Mondaini, páginas 75 e 76.
4-)Questão referente ao texto-base Aprendendo a votar
Considerando como se pode definir o voto, considere as afirmativas: 
O voto é um dever e não um direito. 
O voto é o modo de manifestar a vontade ou opinião num ato eleitoral ou numa assembleia; sufrágio. 
O voto é o ato ou processo de exercer o direito à manifestação da vontade ou opinião, e seu resultado. 
As afirmativas corretas são: 
Correta 
Apenas II e III

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