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Cap_livro_psicoterapia de ASI adulto

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CAPÍTULO 4 – PSICOTERAPIA EM SITUAÇÕES 
DE ABUSO SEXUAL INFANTIL: UM ESTUDO 
DESCRITIVO COM ADULTO SOBREVIVENTE
Sue Ann Ferreira Sales 
Paula Tavares Amorim
Caroline Martines de Souza
 Marck de Souza Torres
INTRODUÇÃO
O Abuso Sexual Infantil (ASI) pode ser definido como conta-
to sexual com uma criança que ocorre sob uma de três condições: (1) 
quando existe diferença maturacional entre os parceiros; (2) quando o 
parceiro estiver em posição de autoridade no relacionamento de cui-
dado com a criança; (3) quando os atos são praticados contra a criança 
usando violência ou outros artifícios (FINKELHOR, 1984). Tal prática é 
imposta a crianças ou adolescentes com o objetivo de estimular sexual-
mente as vítimas ou utilizá-las para obtenção de satisfação sexual dos 
agressores, por meio de violência física ou ameaças. Os atos podem ser 
sem o contato físico (voyeurismo, exibicionismo, produção de fotos), e 
por contato físico com ou sem penetração (BRASIL, 2002).
 No Brasil, no final da década de 80 e nos anos 90, houve uma 
maior visibilidade dos casos de violência infantil. A promulgação da 
Constituição de 1988 e o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) 
passaram a obrigar a notificação de casos suspeitos e confirmados de 
violência infantil. A partir disso, então, as políticas de proteção à criança 
e ao adolescente começam a se firmar. Um dado importante é que, ape-
sar de manter os altos índices de violência sexual infantil, o Brasil é tido, 
no âmbito internacional, como um dos países que mais luta contra essa 
problemática, graças à criação de uma legislação de caráter protetivo 
(LIMA; ALBERTO, 2010).
No ano de 2019, o Disque Direitos Humanos (Disque 100) regis-
trou 86.837 denúncias de abuso sexual (AS); destas, 17.029 são denún-
cias de AS contra crianças e adolescentes. Os dados indicam que 52% 
das violações acontecem na casa da vítima, reforçando que a violência 
sexual intrafamiliar é a mais recorrente. Em relação ao sexo, 55% das 
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vítimas são do sexo feminino, e 45% são do sexo masculino, com maior 
prevalência de idade entre 4 e 11 anos (BRASIL, 2019). Um estudo de 
Costa et al. (2018) analisou 35 protocolos de vítimas de ASI no Distrito 
Federal e os resultados indicaram semelhanças com as do Sul do país, 
no que diz respeito à idade da vítima de abuso, menor prevalência de 
abuso sexual em meninos do que em meninas O período entre abuso 
sexual e chegada a uma instituição para atendimento costuma ser de 2 
a 3 anos. A renda familiar dessa população, vista no órgão público, é de 
2 a 3 salários-mínimos.
 Em sua maioria, os estudos sobre ASI indicam a prevalência 
de vítimas do sexo feminino (VON HOHENDORFF; HABIGZANG; 
KOLLER, 2017). No entanto, meninos podem passar por situações de 
ASI; este evento é um tabu para a sociedade, principalmente se a viti-
mização tem como agressores figuras do mesmo sexo, acarretando des-
crença e estigmatização (ALAGGIA; MISHNA, 2014).
Na dinâmica do AS de meninos, a família desempenha papel de 
fator de risco ou de proteção, a depender de suas características e estru-
tura, pois, em conjunto com a escola, pode ser ambiente de proteção e 
revelação da situação de violência. Sabe-se que os conflitos familiares 
podem distrair a percepção dos responsáveis de que as crianças e/ou 
adolescentes estão sendo violados, prolongando a exposição ao trauma. 
Outro fator são as crenças e estereótipos de gênero que identificam ho-
mens como fortes, corajosos, viris; tais estigmas influenciam que meni-
nos se reconheçam como vítimas e tomem a atitude de revelar, pois são 
continuamente confrontados com o mito de que ASI os tornará homos-
sexuais. Por fim, em sua maioria, os agressores são pessoas conhecidas 
da família, com laços afetivos e de confiança, que foram abruptamen-
te transformados, permeados de angústia e agressão (SAID; COSTA, 
2019).
No caso de meninos que vivenciaram ASI, foram verificadas 
algumas barreiras para revelação: (1) internalizar os sentimentos de 
medo, vergonha, constrangimento, culpa, autoculpa, dúvida, aversão 
a si mesmo e sentimentos de isolamento, implicam falta de linguagem 
para articular o abuso e/ou seus sentimentos sobre o ASI, e dificulda-
de em estabelecer ligações entre problemas comportamentais atuais e a 
situação de abuso sexual vivenciada; (2) os aspectos sociais são a inter-
nalização do estigma social, que inclui mitos, desinformação e estereóti-
pos, que reforçam a homofobia internalizada, mantendo-os em silêncio; 
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(3) as respostas negativas, adversas ou inadequadas a revelações ante-
riores de familiares, amigos ou outros dissuadem revelações futuras e 
têm consequências para a saúde mental; (4) homens têm medo de sofrer 
perda ou julgamento de outras pessoas, experimentam grande medo de 
serem julgados como fracos, vulneráveis ou sem esperança, e de perder 
credibilidade social; e, por último, (5) os homens abusados sexualmente 
quando crianças vivenciam dissonância em sua identidade masculina, 
decorrente de internalização de noções construídas de masculinidade, 
que podem dificultar a revelação (GRUENFELD; WILLIS; EASTON, 
2017).
Portanto, a psicoterapia é uma alternativa para o enfrentamen-
to das barreiras que impedem a revelação, associada à redução dos 
efeitos sintomatológicos negativos da experiência abusiva (pesadelos, 
sentimentos depressivos e comportamentos agressivos), fortalecendo 
o desenvolvimento de capacidades pessoais e implicando maior inde-
pendência, autonomia e individualidade. A intervenção psicológica 
possibilita para as vítimas a elaboração das experiências de ASI como 
parte de suas vidas, ao dar sentido à experiência – uma habilidade que 
permite aos indivíduos criar novos significados e histórias que incor-
poram a experiência em sua história, sem permitir que ela os defina ou 
determine o presente ou futuro (CAPELLA et al., 2016).
O presente estudo tem como objetivo descrever uma intervenção 
em situação de abuso sexual, para discutir os desdobramentos da psi-
coterapia em casos de AS que ocorreram na infância, mas que só foram 
revelados na fase adulta.
DADOS CLÍNICOS PRELIMINARES
 Fabiano (nome fictício), 25 anos, apresentou queixa inicial de 
não conseguir se relacionar afetivamente com outras pessoas. Relatou 
vivência de abuso sexual infantil (ASI) quando tinha 8 anos de idade. 
Este evento adverso suscitou sentimentos de ódio, acarretando dificul-
dades de sentir prazer/desejo sexual nos relacionamentos afetivos ao 
longo de seu desenvolvimento. A revelação ocorreu somente na vida 
adulta, particularmente durante o atendimento psicológico. 
Com o desenvolvimento do processo psicoterapêutico, perce-
beu-se que as tentativas frustradas de relacionamentos amorosos eram 
consequências da ASI na sua vida. Fabiano compreendia que o AS, vi-
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venciado aos 8 anos de idade, implicou em não conseguir se relacionar 
com outras pessoas, e que, devido a esse acontecimento, apresentou di-
ficuldades de experimentar sua vida satisfatoriamente. O manejo clínico 
teve como objetivo ajudar na elaboração do ASI e, assim, experimentar 
relações sociais e amorosas sem bloqueio.
MANEJO CLÍNICO
O processo terapêutico teve a duração de 15 sessões, com encon-
tro semanal de cinquenta minutos. Inicialmente, começou a terapia com 
profissional da abordagem Terapia Cognitivo Comportamental (TCC). 
Entretanto, a pedido do paciente, foi encaminhado para psicoterapia de 
orientação psicanalítica.
REVELAÇÃO DA VIOLÊNCIA SEXUAL
Fabiano relatou, durante o atendimento psicológico, que, em sua 
infância, nos finais de semana, frequentava a fazenda de um tio no inte-
rior da cidade que morava e, durante uma destas visitas, o paciente, ain-
da criança, foi abusado por um caseiro do local. Foi levado pelo agressor 
para um local afastado da casa onde estavam seus familiares. O paciente 
relatou que não entendia muito bem o que de fato estava acontecendo, 
só sentia muita dor e vontade de sair correndo do local. 
Fabiano revelou que só conseguiu fazera primeira revelação aos 
21 anos para uma pessoa próxima, e logo depois na psicoterapia, quan-
do tinha 24 anos. Relatou por diversas vezes no processo terapêutico 
sobre sua dificuldade em ter relações sexuais com outros companhei-
ros, no momento do ato não sentia prazer, amor, somente dor e ódio, 
pois a lembrança da violência sofrida na infância era frequente. Por esse 
motivo, teve pouquíssimos relacionamentos, os quais nunca conseguiu 
desenvolver sentimentos bons por seus parceiros. 
EXCERTOS CLÍNICOS
Nas primeiras semanas de atendimento, foi realizada entrevista 
livre para coleta de informações, onde o paciente pudesse “descarregar” 
todo aquele sofrimento carregado durante mais de 19 anos de sua vida. 
Durante a entrevista, o paciente se emocionou ao relembrar de sua vi-
vência do ASI. 
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 No decorrer da primeira sessão, foram realizadas perguntas 
para o paciente sobre qual o motivo do desenvolvimento da psicotera-
pia. Fabiano indicou que a principal queixa seria a sua dificuldade em 
relacionar-se com as pessoas de modo geral (parentes, amigos e, princi-
palmente, em relacionamentos amorosos). Nunca consegue demonstrar 
amor, e por ser gay, na hora do ato sexual, sempre vem à mente o que 
viveu na infância, tendo sentimentos de falta de prazer. 
 Conforme literatura especializada, o abuso sexual infantil atin-
ge todas as áreas do desenvolvimento e impacta a saúde física e mental 
da família e o rendimento escolar, com óbvias consequências na vida 
adulta. Os impactos causados são difíceis de mensurar, devido à an-
gústia familiar nas situações de conflito e no desempenho social inade-
quado na infância, mas estudos retrospectivos sinalizam esses eventos 
como marcadores precoces de transtornos mentais no adulto (FLISHER 
et al., 1997; HUANG et al., 2005).
Sobre o abuso, o paciente contou que o ato foi rápido, recorda 
ter sentido muita dor e não conseguir correr. É perguntado se tudo que 
sente hoje, essa dificuldade de se relacionar, não conseguir sentir amor 
pelas pessoas, como ele colocou, não seria reflexo desse fato ocorrido 
em sua vida. Ele responde que sim, e é isso que a princípio lhe causa dor, 
sofrimento e desencadeia outras coisas. Questionado quais seriam essas 
coisas, responde que sua autoestima é muito baixa, possui problemas 
em sua aparência, por se achar muito gordo e sua cabeça ser maior e 
desproporcional com o corpo. Se considera impulsivo, muito ansioso. 
Perguntado em quais momentos se sente assim, responde que sempre 
que tem algo a resolver, sofre muito até solucionar o problema. Não tem 
controle em compras, acaba se endividando, sem controle do cartão. 
A complexidade das situações de violência e a especificidade 
de cada forma de agressão dificultam a identificação de sintomas ou 
transtornos específicos decorrentes da violência. Observa-se que as 
ações de agressão produzem um impacto negativo na qualidade de vida 
e desenvolvimento da vítima, o qual pode ser reconhecido em diver-
sos sintomas. Pessoas expostas à violência podem apresentar alterações 
cognitivas (e.g., prejuízos na memória, atenção e funções executivas), 
desregulação emocional (e.g., irritabilidade aumentada, medo intenso), 
sentimentos de vergonha, dificuldades escolares e laborais, dificuldades 
nos relacionamentos interpessoais (e.g., isolamento social, comporta-
mento agressivo), autoimagem negativa (e.g., baixa autoestima, baixa 
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percepção de autoeficácia), mudanças nos padrões de sono e alimenta-
ção, comportamentos de risco para revitimização e abandono de ativi-
dades prazerosas (BRASIL, 2002).
MOMENTO SINGULAR
A técnica “cadeira vazia” é uma das técnicas mais conhecidas da 
Gestalt. Foi criada pelo psicólogo Fritz Perls, com o objetivo de desen-
volver um método que permita que fenômenos ou questões não resolvi-
das sejam reintegradas à vida dos pacientes. A técnica em questão tenta 
reproduzir um encontro com uma situação ou pessoa, a fim de dia-
logar com ela e entrar em contato emocional com o evento, podendo 
aceitá-la e dar-lhe uma conclusão (MARTIN, 2013). Aplicou-se, então, 
a técnica da cadeira vazia; foi solicitado ao paciente que, na cadeira à sua 
frente, imaginasse ele aos 8 anos de idade, após o ato sofrido. Como es-
perado, o paciente, muito emocionado, disse palavras positivas à “crian-
ça”. Falou de sua força, de sua superação e que tudo futuramente iria 
ficar bem. Notou-se que tudo que foi dito era um desejo atual da fase 
adulta de que tudo se resolvesse. Era uma forma que Fabiano encontrou 
de consolá-lo, mesmo que imaginariamente, pois não teve isso quando 
criança.
Fabiano revela que era uma pessoa extremamente ansiosa com 
relação a todos os fatos de sua vida, estudos, trabalhos, amizades, fa-
mília, sintoma esse que o perturbava bastante, tendo dificuldades para 
realizar suas atividades diárias e, principalmente, dormir. Outro ponto 
descrito era a agressividade, sentimento que o incomodava muito, mas 
era algo incontrolável até aquele momento. 
Nas sessões seguintes, trabalhou-se freneticamente o amadureci-
mento do ego do paciente, apontando o quanto ele era forte, por tudo 
que havia superado em sua vida, para modificar o ocorrido, estava em 
suas mãos o que fazer desse passado. Então, foi questionado ao paciente 
pela terapeuta em formação: “Será que se não tivesse ocorrido o ASI 
na sua infância, você seria quem é hoje? Teria toda essa força? Teria 
conquistado tudo que venceu em sua vida? De onde vem toda essa força 
de vontade de vencer na vida?”. Com questionamentos como esses, as 
intervenções seguiram, no sentido de propor ao paciente a reflexão do 
evento traumático, respeitando as condições do crescimento pós-trau-
mático, que indica que, mesmo diante de situações extremamente ad-
versas, é possível encontrar resiliência e bem-estar.
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 Uma das primeiras etapas para o trabalho clínico da aborda-
gem psicanalítica foi retomar a VS vivenciada, na perspectiva da reme-
moração da situação e, assim, elaborar a situação. Percebeu-se que um 
dos efeitos negativos do ASI com a manutenção de um modelo afetivo 
repetitivo e desregulado, que tinha por objetivo elaborar e, por conse-
guinte, romper com a situação traumática. 
 A elaboração aconteceu na 8ª sessão, após sessões cujo foco era 
“superar” o abuso sexual sofrido aos 8 anos de idade, compreender a 
situação vivenciada e reposicionar-se enquanto memória no passado, 
se percebendo com mais força, determinação, e a preservação do amor 
pelos seus avós, o empenho nos seus estudos e no trabalho. Ou seja, 
demonstrar ao paciente que o abuso sofrido de fato faz parte do seu 
passado, porém, é apenas lá que deve permanecer sempre. Tirar do ato 
ocorrido os pontos “positivos” como o quão forte o paciente se tornou 
durante toda sua vida. Suas relações atuais não têm culpa de algo que 
ocorreu na sua infância e, desde que seu parceiro lhe ofereça amor, o 
paciente precisa receber isso como algo bom. Viver o hoje, se permitir 
amar e ser amado. Durante várias sessões, o foco nesse ponto foi de 
grande importância, mostrando ao paciente a magia de possuir uma 
vida saudável, sem correntes do passado, uma vida leve. De quanto uma 
relação amorosa e sexual é fundamental para os seres humanos, isso 
é algo natural, desde que seja recíproco e lhe traga felicidade. Deve-se 
viver hoje, no presente, jamais em um passado, muito menos no futuro.
 Nota-se que os sintomas variam de forma trágica na vida da 
vítima, tanto no período em que ocorre o abuso sexual, seja na infância 
ou na adolescência, quando na vida adulta, onde destacamos, então, as 
consequências da ASI no indivíduo. 
 As consequências da vida adulta da vítima de VS podem ser de-
vastadoras, marcando, de forma dolorosa, toda uma vida do ser humano 
violentado. Os sintomas consequentes variam entre sintomas centrais 
de TEPT (revivescência do trauma, esquiva/entorpecimento emocional, 
hiperexcitabilidade autonômica), sintomas afetivos e interpessoais asso-
ciados, ou aumento da ocorrência de outras psicopatologias(depressão 
maior, transtorno de ansiedade generalizada, transtorno do pânico, uso 
de substâncias), e sintomas de pacientes expostos a uma contínua carga 
de negligências (sintomas somáticos – dor de cabeça, distúrbios gastrin-
testinais, dores abdominais, lombares e pélvicas, tremores, sensações de 
choques e náuseas, dissociativos – alteração da realidade, alteração de 
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personalidade, alucinações, confusão temporal entre presente e pas-
sado, afetivos – sintomas depressivos, insônia, apatia, desamparo, cul-
pa, dificuldade de concentração, comportamento suicida, alteração na 
visão de si e dos outros, hipervigilância e agitação e ansiedade extrema, 
em recordação do trauma) (VIOLA et al., 2014). 
 Logo depois desses dois traumas superados e compreendidos 
pelo paciente, fomos trabalhar a sua autoestima e o amadurecimento do 
ego. Ao visualizar seus pontos positivos, que são muito maiores, com-
parados aos pontos a serem melhorados no mesmo, passou a cuidar de 
si, de sua saúde, enxergou o quão forte e resiliente era. A agressivida-
de, relatada nas conversas como sempre alguém que perdia a razão por 
reagir dessa forma, passou a treinar e usar a assertividade, assim tendo 
mais calma, pensando mais e falando menos, melhorando, dessa forma, 
sua relação com as outras pessoas. E conseguiu melhorar, principal-
mente sua queixa inicial, a questão do relacionamento, onde Fabiano, 
a partir do momento em que se cobrou menos, resolveu viver sua vida, 
entendeu que viver, amar seus avós e respeitá-los não seria questão de 
rebeldia, mas de amor-próprio e realmente “viver a vida”; se permitiu, 
conseguiu se relacionar com outra pessoa, e o primordial, amar outro 
indivíduo, fato que em toda sua vida ainda não tinha conseguido, até 
então, já que, nos relacionamentos passados, o ASI sofrido sempre vi-
nha à memória em suas relações sexuais. A partir do momento em que 
o paciente superou esse momento traumático, compreendeu a questão 
do Complexo de Édipo, a triangulação, passou a ver seus pais e os avós 
de outra forma e tudo fluiu. 
 Uma vez que faz parte da função do ego dominar os estímulos 
recebidos, tanto quanto descarregá-los de forma eficaz, seria de esperar 
que ocorressem situações traumáticas mais frequentemente nos primei-
ros meses e anos de vida, quando o ego é ainda relativamente débil e 
pouco desenvolvido. Freud, de fato, era da opinião de que o protótipo da 
situação traumática é a experiência do nascimento, tal como ela afeta o 
bebê que emerge. Nesse momento, o bebê é submetido a uma poderosa 
afluência de estímulos sensoriais, viscerais e externos aos quais reage, 
com o que Freud considerava manifestações de ansiedade (FREUD, 
1926).
 Nesse instante, quando deu início ao seu relacionamento, Fa-
biano se sentia transformado, renovado, estava vivendo algo novo. Po-
rém, o rapaz com que se relacionava ainda estava preso em um passado 
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e, por isso, passou a humilhar e desprezar o paciente. Diante de mais 
uma situação traumática, começamos a trabalhar, mais uma vez e de 
forma intensa, a questão do amadurecimento do ego do paciente, a sua 
autoestima, as metas de sua vida, para que o paciente não regredisse no 
processo terapêutico. E assim foi feito, passamos a mostrar a Fabiano 
sua resiliência, o quão positivo seu relacionamento foi, onde ele passou 
a ver que realmente pode amar alguém, ao contrário de seu pensamento 
no início do processo. Colocamos o quanto ele se entregou em uma re-
lação não recíproca e, por dar seu máximo, merece também o máximo 
de alguém, não o mínimo. Após algumas sessões trabalhando em cima 
disso, teve uma grande melhora, mais uma vez manifestando sua resi-
liência. 
 Para Winnicott (2006), a teoria do amadurecimento pessoal foi 
considerada como a “espinha dorsal”. Ele expõe as necessidades básicas 
humanas e os modos como o ambiente pode favorecer a aquisição de 
identidade unitária, que deverá ser atingida em um processo normal de 
desenvolvimento emocional. Descreve também as tarefas, característi-
cas e dificuldades presentes nos vários estágios ao longo do processo de 
amadurecimento.
 Essa teoria pode servir como um “guia prático” para a com-
preensão da saúde, bem como dos distúrbios psíquicos, relacionados 
às etapas do amadurecimento. É o quadro teórico a partir do qual é 
possível explicitar conceitos relativos aos distúrbios e, ainda, pode ser-
vir de referência para a detecção precoce das dificuldades emocionais 
(DIAS, 2003).
Observa-se o papel fundamental do processo terapêutico na vida 
de uma pessoa, especificamente a psicanálise, em pacientes que trazem 
traumas desde a infância. A psicanálise se apresenta como uma aborda-
gem capaz de mobilizar a fundo, para desenraizar questões conflitantes 
do sujeito. A psicoterapia auxilia no processo de elaboração das vivên-
cias traumáticas, possibilitando ao indivíduo ser capaz de ter uma vida 
equilibrada e com resiliência, sabendo, dessa forma, conduzir a mesma 
com metas, e resolvendo os obstáculos que aparecerem.
A psicoterapia com foco no abuso sexual inicialmente é um pe-
ríodo particularmente difícil, as vítimas costumam relutar em ir ao tra-
tamento, têm medo ou não se sentem à vontade para falarem sobre a 
experiência abusiva. No entanto, o apoio da família é um fator positivo 
chave, enquanto a falta de apoio dificultava o processo de recuperação. 
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Surgiu uma espécie de continuum: de um lado, a confiança, o apoio e 
o apoio da família favoreciam o processo de superação do abuso e, do 
outro lado, a falta de credibilidade dos familiares e a falta de apoio das 
figuras parentais impediam o processo (CAPELLA et al., 2016).
ACOLHIMENTO
Os sobreviventes adultos de ASI apresentam estilo de apego adul-
to inseguro, relacionado a um prejuízo no estilo romântico assertivo. 
Essas influências sugerem que o trauma, tanto de ASI e de revitimiza-
ção durante a idade adulta, pode ter implicações profundas para a ca-
pacidade dos sobreviventes adultos de ASI em identificar e expressar 
suas necessidades em relacionamentos românticos. Este padrão pode, 
potencialmente, se desdobrar nos relacionamentos românticos e outros 
relacionamentos próximos dos sobreviventes, e talvez desempenhe um 
papel na revitimização. Os sobreviventes devem, portanto, ser ajudados 
por família, amigos e terapeutas, para serem assertivos e comunicarem 
seus relacionamentos para outras pessoas significativas (BRENNER et 
al., 2019). 
O acolhimento por parte da família é peça fundamental para o 
êxito na superação do trauma, tendo em vista que a família é a primeira 
instituição na qual o indivíduo busca refúgio, na expectativa de encon-
trar respostas, significados e modelo moral para encarar seus conflitos a 
partir do AS. Segundo Lima e Alberto (2010), “o apoio familiar torna-se 
fator imprescindível para o encaminhamento da situação de violência 
vivida pela criança e pelo adolescente” (p.130). Esses tipos de violência 
podem ocorrer em dois contextos: no âmbito familiar, onde o agressor 
se encontra em um lugar de confiança, cuidado e poder em relação à 
criança; e no âmbito extrafamiliar, quando o agressor não faz parte di-
retamente das relações familiares, como, por exemplo, vizinhos ou des-
conhecidos (HABIGZANG; RAMOS; KOLLER, 2011). 
O fato de a maioria dos casos de ASI serem praticados por mem-
bros da família ou pessoas próximas ao seio familiar, por muitas vezes, 
dificulta esse acolhimento, pelo estigma de culpabilização da vítima que, 
desacreditada por aqueles que deveriam lhe acolher, acaba, por mui-
tas vezes, desencorajada a denunciar e prosseguir na busca por ajuda, 
e simplesmente reprime as emoções, tendo, assim, diversos prejuízos 
psicológicos e emocionais futuros. 
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O elemento mais importante do acolhimento é a empatia, que 
consiste em “compreender uma pessoa a partir do quadro de referência 
dela e não do próprio, experimentando de modo vicário os sentimentos, 
percepções e pensamentos dela. A empatia não envolve em si mesma a 
motivação paraajudar, embora possa transformar em consideração pelo 
outro ou sofrimento pessoal, o que pode resultar em ação”. (AMERI-
CAN PSYCHOLOGICAL ASSOCIATION, 2010)
O profissional deve ser gentil, ficar atento, dizer que acredita no 
relato, não fazer perguntas desnecessárias, agradecer a confiança, não 
prometer sigilo, ressignificar o sentimento de culpa da vítima, esclarecer 
dúvidas, explicar os procedimentos/encaminhamento, verificar como o 
paciente se sente, abordar tópico neutro (HABIGZANG, 2018).
CONSIDERAÇÕES FINAIS
 Este estudo teve como objetivo oferecer informações sobre o 
conceito de ASI contra crianças e adolescentes, sobre a dinâmica en-
volvida nessa forma de violência, sobre a legislação nacional aplicada 
aos casos e sobre o manejo profissional diante da revelação e dos casos 
de suspeita, informando os índices de notificações mais atuais. Embora 
subnotificada, a ASI atinge muitas crianças e adolescentes; geralmente, 
os agressores são pessoas com as quais as crianças e adolescentes convi-
vem.
 Ao observar o processo terapêutico com esse paciente, é pos-
sível notar os efeitos da ASI na vida das vítimas, que comprometem as 
áreas psíquica, física e social, podendo desenvolver depressão, trans-
torno do pânico, estresse pós-traumático (TEPT), entre outros trans-
tornos, havendo possibilidades de levar ao suicídio (HOHENDORFF; 
HABIGZANG; KOLLER, 2014).
Diante dos resultados, é possível observar a melhora significativa 
na vida das vítimas através do processo terapêutico e sua importância, 
assim conseguindo dominar esse trauma e seguir sua vida da melhor 
forma, equilibrada, sabendo manusear os fatos ocorridos. 
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