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- 87 - CAPÍTULO 4 – PSICOTERAPIA EM SITUAÇÕES DE ABUSO SEXUAL INFANTIL: UM ESTUDO DESCRITIVO COM ADULTO SOBREVIVENTE Sue Ann Ferreira Sales Paula Tavares Amorim Caroline Martines de Souza Marck de Souza Torres INTRODUÇÃO O Abuso Sexual Infantil (ASI) pode ser definido como conta- to sexual com uma criança que ocorre sob uma de três condições: (1) quando existe diferença maturacional entre os parceiros; (2) quando o parceiro estiver em posição de autoridade no relacionamento de cui- dado com a criança; (3) quando os atos são praticados contra a criança usando violência ou outros artifícios (FINKELHOR, 1984). Tal prática é imposta a crianças ou adolescentes com o objetivo de estimular sexual- mente as vítimas ou utilizá-las para obtenção de satisfação sexual dos agressores, por meio de violência física ou ameaças. Os atos podem ser sem o contato físico (voyeurismo, exibicionismo, produção de fotos), e por contato físico com ou sem penetração (BRASIL, 2002). No Brasil, no final da década de 80 e nos anos 90, houve uma maior visibilidade dos casos de violência infantil. A promulgação da Constituição de 1988 e o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) passaram a obrigar a notificação de casos suspeitos e confirmados de violência infantil. A partir disso, então, as políticas de proteção à criança e ao adolescente começam a se firmar. Um dado importante é que, ape- sar de manter os altos índices de violência sexual infantil, o Brasil é tido, no âmbito internacional, como um dos países que mais luta contra essa problemática, graças à criação de uma legislação de caráter protetivo (LIMA; ALBERTO, 2010). No ano de 2019, o Disque Direitos Humanos (Disque 100) regis- trou 86.837 denúncias de abuso sexual (AS); destas, 17.029 são denún- cias de AS contra crianças e adolescentes. Os dados indicam que 52% das violações acontecem na casa da vítima, reforçando que a violência sexual intrafamiliar é a mais recorrente. Em relação ao sexo, 55% das - 88 - vítimas são do sexo feminino, e 45% são do sexo masculino, com maior prevalência de idade entre 4 e 11 anos (BRASIL, 2019). Um estudo de Costa et al. (2018) analisou 35 protocolos de vítimas de ASI no Distrito Federal e os resultados indicaram semelhanças com as do Sul do país, no que diz respeito à idade da vítima de abuso, menor prevalência de abuso sexual em meninos do que em meninas O período entre abuso sexual e chegada a uma instituição para atendimento costuma ser de 2 a 3 anos. A renda familiar dessa população, vista no órgão público, é de 2 a 3 salários-mínimos. Em sua maioria, os estudos sobre ASI indicam a prevalência de vítimas do sexo feminino (VON HOHENDORFF; HABIGZANG; KOLLER, 2017). No entanto, meninos podem passar por situações de ASI; este evento é um tabu para a sociedade, principalmente se a viti- mização tem como agressores figuras do mesmo sexo, acarretando des- crença e estigmatização (ALAGGIA; MISHNA, 2014). Na dinâmica do AS de meninos, a família desempenha papel de fator de risco ou de proteção, a depender de suas características e estru- tura, pois, em conjunto com a escola, pode ser ambiente de proteção e revelação da situação de violência. Sabe-se que os conflitos familiares podem distrair a percepção dos responsáveis de que as crianças e/ou adolescentes estão sendo violados, prolongando a exposição ao trauma. Outro fator são as crenças e estereótipos de gênero que identificam ho- mens como fortes, corajosos, viris; tais estigmas influenciam que meni- nos se reconheçam como vítimas e tomem a atitude de revelar, pois são continuamente confrontados com o mito de que ASI os tornará homos- sexuais. Por fim, em sua maioria, os agressores são pessoas conhecidas da família, com laços afetivos e de confiança, que foram abruptamen- te transformados, permeados de angústia e agressão (SAID; COSTA, 2019). No caso de meninos que vivenciaram ASI, foram verificadas algumas barreiras para revelação: (1) internalizar os sentimentos de medo, vergonha, constrangimento, culpa, autoculpa, dúvida, aversão a si mesmo e sentimentos de isolamento, implicam falta de linguagem para articular o abuso e/ou seus sentimentos sobre o ASI, e dificulda- de em estabelecer ligações entre problemas comportamentais atuais e a situação de abuso sexual vivenciada; (2) os aspectos sociais são a inter- nalização do estigma social, que inclui mitos, desinformação e estereóti- pos, que reforçam a homofobia internalizada, mantendo-os em silêncio; - 89 - (3) as respostas negativas, adversas ou inadequadas a revelações ante- riores de familiares, amigos ou outros dissuadem revelações futuras e têm consequências para a saúde mental; (4) homens têm medo de sofrer perda ou julgamento de outras pessoas, experimentam grande medo de serem julgados como fracos, vulneráveis ou sem esperança, e de perder credibilidade social; e, por último, (5) os homens abusados sexualmente quando crianças vivenciam dissonância em sua identidade masculina, decorrente de internalização de noções construídas de masculinidade, que podem dificultar a revelação (GRUENFELD; WILLIS; EASTON, 2017). Portanto, a psicoterapia é uma alternativa para o enfrentamen- to das barreiras que impedem a revelação, associada à redução dos efeitos sintomatológicos negativos da experiência abusiva (pesadelos, sentimentos depressivos e comportamentos agressivos), fortalecendo o desenvolvimento de capacidades pessoais e implicando maior inde- pendência, autonomia e individualidade. A intervenção psicológica possibilita para as vítimas a elaboração das experiências de ASI como parte de suas vidas, ao dar sentido à experiência – uma habilidade que permite aos indivíduos criar novos significados e histórias que incor- poram a experiência em sua história, sem permitir que ela os defina ou determine o presente ou futuro (CAPELLA et al., 2016). O presente estudo tem como objetivo descrever uma intervenção em situação de abuso sexual, para discutir os desdobramentos da psi- coterapia em casos de AS que ocorreram na infância, mas que só foram revelados na fase adulta. DADOS CLÍNICOS PRELIMINARES Fabiano (nome fictício), 25 anos, apresentou queixa inicial de não conseguir se relacionar afetivamente com outras pessoas. Relatou vivência de abuso sexual infantil (ASI) quando tinha 8 anos de idade. Este evento adverso suscitou sentimentos de ódio, acarretando dificul- dades de sentir prazer/desejo sexual nos relacionamentos afetivos ao longo de seu desenvolvimento. A revelação ocorreu somente na vida adulta, particularmente durante o atendimento psicológico. Com o desenvolvimento do processo psicoterapêutico, perce- beu-se que as tentativas frustradas de relacionamentos amorosos eram consequências da ASI na sua vida. Fabiano compreendia que o AS, vi- - 90 - venciado aos 8 anos de idade, implicou em não conseguir se relacionar com outras pessoas, e que, devido a esse acontecimento, apresentou di- ficuldades de experimentar sua vida satisfatoriamente. O manejo clínico teve como objetivo ajudar na elaboração do ASI e, assim, experimentar relações sociais e amorosas sem bloqueio. MANEJO CLÍNICO O processo terapêutico teve a duração de 15 sessões, com encon- tro semanal de cinquenta minutos. Inicialmente, começou a terapia com profissional da abordagem Terapia Cognitivo Comportamental (TCC). Entretanto, a pedido do paciente, foi encaminhado para psicoterapia de orientação psicanalítica. REVELAÇÃO DA VIOLÊNCIA SEXUAL Fabiano relatou, durante o atendimento psicológico, que, em sua infância, nos finais de semana, frequentava a fazenda de um tio no inte- rior da cidade que morava e, durante uma destas visitas, o paciente, ain- da criança, foi abusado por um caseiro do local. Foi levado pelo agressor para um local afastado da casa onde estavam seus familiares. O paciente relatou que não entendia muito bem o que de fato estava acontecendo, só sentia muita dor e vontade de sair correndo do local. Fabiano revelou que só conseguiu fazera primeira revelação aos 21 anos para uma pessoa próxima, e logo depois na psicoterapia, quan- do tinha 24 anos. Relatou por diversas vezes no processo terapêutico sobre sua dificuldade em ter relações sexuais com outros companhei- ros, no momento do ato não sentia prazer, amor, somente dor e ódio, pois a lembrança da violência sofrida na infância era frequente. Por esse motivo, teve pouquíssimos relacionamentos, os quais nunca conseguiu desenvolver sentimentos bons por seus parceiros. EXCERTOS CLÍNICOS Nas primeiras semanas de atendimento, foi realizada entrevista livre para coleta de informações, onde o paciente pudesse “descarregar” todo aquele sofrimento carregado durante mais de 19 anos de sua vida. Durante a entrevista, o paciente se emocionou ao relembrar de sua vi- vência do ASI. - 91 - No decorrer da primeira sessão, foram realizadas perguntas para o paciente sobre qual o motivo do desenvolvimento da psicotera- pia. Fabiano indicou que a principal queixa seria a sua dificuldade em relacionar-se com as pessoas de modo geral (parentes, amigos e, princi- palmente, em relacionamentos amorosos). Nunca consegue demonstrar amor, e por ser gay, na hora do ato sexual, sempre vem à mente o que viveu na infância, tendo sentimentos de falta de prazer. Conforme literatura especializada, o abuso sexual infantil atin- ge todas as áreas do desenvolvimento e impacta a saúde física e mental da família e o rendimento escolar, com óbvias consequências na vida adulta. Os impactos causados são difíceis de mensurar, devido à an- gústia familiar nas situações de conflito e no desempenho social inade- quado na infância, mas estudos retrospectivos sinalizam esses eventos como marcadores precoces de transtornos mentais no adulto (FLISHER et al., 1997; HUANG et al., 2005). Sobre o abuso, o paciente contou que o ato foi rápido, recorda ter sentido muita dor e não conseguir correr. É perguntado se tudo que sente hoje, essa dificuldade de se relacionar, não conseguir sentir amor pelas pessoas, como ele colocou, não seria reflexo desse fato ocorrido em sua vida. Ele responde que sim, e é isso que a princípio lhe causa dor, sofrimento e desencadeia outras coisas. Questionado quais seriam essas coisas, responde que sua autoestima é muito baixa, possui problemas em sua aparência, por se achar muito gordo e sua cabeça ser maior e desproporcional com o corpo. Se considera impulsivo, muito ansioso. Perguntado em quais momentos se sente assim, responde que sempre que tem algo a resolver, sofre muito até solucionar o problema. Não tem controle em compras, acaba se endividando, sem controle do cartão. A complexidade das situações de violência e a especificidade de cada forma de agressão dificultam a identificação de sintomas ou transtornos específicos decorrentes da violência. Observa-se que as ações de agressão produzem um impacto negativo na qualidade de vida e desenvolvimento da vítima, o qual pode ser reconhecido em diver- sos sintomas. Pessoas expostas à violência podem apresentar alterações cognitivas (e.g., prejuízos na memória, atenção e funções executivas), desregulação emocional (e.g., irritabilidade aumentada, medo intenso), sentimentos de vergonha, dificuldades escolares e laborais, dificuldades nos relacionamentos interpessoais (e.g., isolamento social, comporta- mento agressivo), autoimagem negativa (e.g., baixa autoestima, baixa - 92 - percepção de autoeficácia), mudanças nos padrões de sono e alimenta- ção, comportamentos de risco para revitimização e abandono de ativi- dades prazerosas (BRASIL, 2002). MOMENTO SINGULAR A técnica “cadeira vazia” é uma das técnicas mais conhecidas da Gestalt. Foi criada pelo psicólogo Fritz Perls, com o objetivo de desen- volver um método que permita que fenômenos ou questões não resolvi- das sejam reintegradas à vida dos pacientes. A técnica em questão tenta reproduzir um encontro com uma situação ou pessoa, a fim de dia- logar com ela e entrar em contato emocional com o evento, podendo aceitá-la e dar-lhe uma conclusão (MARTIN, 2013). Aplicou-se, então, a técnica da cadeira vazia; foi solicitado ao paciente que, na cadeira à sua frente, imaginasse ele aos 8 anos de idade, após o ato sofrido. Como es- perado, o paciente, muito emocionado, disse palavras positivas à “crian- ça”. Falou de sua força, de sua superação e que tudo futuramente iria ficar bem. Notou-se que tudo que foi dito era um desejo atual da fase adulta de que tudo se resolvesse. Era uma forma que Fabiano encontrou de consolá-lo, mesmo que imaginariamente, pois não teve isso quando criança. Fabiano revela que era uma pessoa extremamente ansiosa com relação a todos os fatos de sua vida, estudos, trabalhos, amizades, fa- mília, sintoma esse que o perturbava bastante, tendo dificuldades para realizar suas atividades diárias e, principalmente, dormir. Outro ponto descrito era a agressividade, sentimento que o incomodava muito, mas era algo incontrolável até aquele momento. Nas sessões seguintes, trabalhou-se freneticamente o amadureci- mento do ego do paciente, apontando o quanto ele era forte, por tudo que havia superado em sua vida, para modificar o ocorrido, estava em suas mãos o que fazer desse passado. Então, foi questionado ao paciente pela terapeuta em formação: “Será que se não tivesse ocorrido o ASI na sua infância, você seria quem é hoje? Teria toda essa força? Teria conquistado tudo que venceu em sua vida? De onde vem toda essa força de vontade de vencer na vida?”. Com questionamentos como esses, as intervenções seguiram, no sentido de propor ao paciente a reflexão do evento traumático, respeitando as condições do crescimento pós-trau- mático, que indica que, mesmo diante de situações extremamente ad- versas, é possível encontrar resiliência e bem-estar. - 93 - Uma das primeiras etapas para o trabalho clínico da aborda- gem psicanalítica foi retomar a VS vivenciada, na perspectiva da reme- moração da situação e, assim, elaborar a situação. Percebeu-se que um dos efeitos negativos do ASI com a manutenção de um modelo afetivo repetitivo e desregulado, que tinha por objetivo elaborar e, por conse- guinte, romper com a situação traumática. A elaboração aconteceu na 8ª sessão, após sessões cujo foco era “superar” o abuso sexual sofrido aos 8 anos de idade, compreender a situação vivenciada e reposicionar-se enquanto memória no passado, se percebendo com mais força, determinação, e a preservação do amor pelos seus avós, o empenho nos seus estudos e no trabalho. Ou seja, demonstrar ao paciente que o abuso sofrido de fato faz parte do seu passado, porém, é apenas lá que deve permanecer sempre. Tirar do ato ocorrido os pontos “positivos” como o quão forte o paciente se tornou durante toda sua vida. Suas relações atuais não têm culpa de algo que ocorreu na sua infância e, desde que seu parceiro lhe ofereça amor, o paciente precisa receber isso como algo bom. Viver o hoje, se permitir amar e ser amado. Durante várias sessões, o foco nesse ponto foi de grande importância, mostrando ao paciente a magia de possuir uma vida saudável, sem correntes do passado, uma vida leve. De quanto uma relação amorosa e sexual é fundamental para os seres humanos, isso é algo natural, desde que seja recíproco e lhe traga felicidade. Deve-se viver hoje, no presente, jamais em um passado, muito menos no futuro. Nota-se que os sintomas variam de forma trágica na vida da vítima, tanto no período em que ocorre o abuso sexual, seja na infância ou na adolescência, quando na vida adulta, onde destacamos, então, as consequências da ASI no indivíduo. As consequências da vida adulta da vítima de VS podem ser de- vastadoras, marcando, de forma dolorosa, toda uma vida do ser humano violentado. Os sintomas consequentes variam entre sintomas centrais de TEPT (revivescência do trauma, esquiva/entorpecimento emocional, hiperexcitabilidade autonômica), sintomas afetivos e interpessoais asso- ciados, ou aumento da ocorrência de outras psicopatologias(depressão maior, transtorno de ansiedade generalizada, transtorno do pânico, uso de substâncias), e sintomas de pacientes expostos a uma contínua carga de negligências (sintomas somáticos – dor de cabeça, distúrbios gastrin- testinais, dores abdominais, lombares e pélvicas, tremores, sensações de choques e náuseas, dissociativos – alteração da realidade, alteração de - 94 - personalidade, alucinações, confusão temporal entre presente e pas- sado, afetivos – sintomas depressivos, insônia, apatia, desamparo, cul- pa, dificuldade de concentração, comportamento suicida, alteração na visão de si e dos outros, hipervigilância e agitação e ansiedade extrema, em recordação do trauma) (VIOLA et al., 2014). Logo depois desses dois traumas superados e compreendidos pelo paciente, fomos trabalhar a sua autoestima e o amadurecimento do ego. Ao visualizar seus pontos positivos, que são muito maiores, com- parados aos pontos a serem melhorados no mesmo, passou a cuidar de si, de sua saúde, enxergou o quão forte e resiliente era. A agressivida- de, relatada nas conversas como sempre alguém que perdia a razão por reagir dessa forma, passou a treinar e usar a assertividade, assim tendo mais calma, pensando mais e falando menos, melhorando, dessa forma, sua relação com as outras pessoas. E conseguiu melhorar, principal- mente sua queixa inicial, a questão do relacionamento, onde Fabiano, a partir do momento em que se cobrou menos, resolveu viver sua vida, entendeu que viver, amar seus avós e respeitá-los não seria questão de rebeldia, mas de amor-próprio e realmente “viver a vida”; se permitiu, conseguiu se relacionar com outra pessoa, e o primordial, amar outro indivíduo, fato que em toda sua vida ainda não tinha conseguido, até então, já que, nos relacionamentos passados, o ASI sofrido sempre vi- nha à memória em suas relações sexuais. A partir do momento em que o paciente superou esse momento traumático, compreendeu a questão do Complexo de Édipo, a triangulação, passou a ver seus pais e os avós de outra forma e tudo fluiu. Uma vez que faz parte da função do ego dominar os estímulos recebidos, tanto quanto descarregá-los de forma eficaz, seria de esperar que ocorressem situações traumáticas mais frequentemente nos primei- ros meses e anos de vida, quando o ego é ainda relativamente débil e pouco desenvolvido. Freud, de fato, era da opinião de que o protótipo da situação traumática é a experiência do nascimento, tal como ela afeta o bebê que emerge. Nesse momento, o bebê é submetido a uma poderosa afluência de estímulos sensoriais, viscerais e externos aos quais reage, com o que Freud considerava manifestações de ansiedade (FREUD, 1926). Nesse instante, quando deu início ao seu relacionamento, Fa- biano se sentia transformado, renovado, estava vivendo algo novo. Po- rém, o rapaz com que se relacionava ainda estava preso em um passado - 95 - e, por isso, passou a humilhar e desprezar o paciente. Diante de mais uma situação traumática, começamos a trabalhar, mais uma vez e de forma intensa, a questão do amadurecimento do ego do paciente, a sua autoestima, as metas de sua vida, para que o paciente não regredisse no processo terapêutico. E assim foi feito, passamos a mostrar a Fabiano sua resiliência, o quão positivo seu relacionamento foi, onde ele passou a ver que realmente pode amar alguém, ao contrário de seu pensamento no início do processo. Colocamos o quanto ele se entregou em uma re- lação não recíproca e, por dar seu máximo, merece também o máximo de alguém, não o mínimo. Após algumas sessões trabalhando em cima disso, teve uma grande melhora, mais uma vez manifestando sua resi- liência. Para Winnicott (2006), a teoria do amadurecimento pessoal foi considerada como a “espinha dorsal”. Ele expõe as necessidades básicas humanas e os modos como o ambiente pode favorecer a aquisição de identidade unitária, que deverá ser atingida em um processo normal de desenvolvimento emocional. Descreve também as tarefas, característi- cas e dificuldades presentes nos vários estágios ao longo do processo de amadurecimento. Essa teoria pode servir como um “guia prático” para a com- preensão da saúde, bem como dos distúrbios psíquicos, relacionados às etapas do amadurecimento. É o quadro teórico a partir do qual é possível explicitar conceitos relativos aos distúrbios e, ainda, pode ser- vir de referência para a detecção precoce das dificuldades emocionais (DIAS, 2003). Observa-se o papel fundamental do processo terapêutico na vida de uma pessoa, especificamente a psicanálise, em pacientes que trazem traumas desde a infância. A psicanálise se apresenta como uma aborda- gem capaz de mobilizar a fundo, para desenraizar questões conflitantes do sujeito. A psicoterapia auxilia no processo de elaboração das vivên- cias traumáticas, possibilitando ao indivíduo ser capaz de ter uma vida equilibrada e com resiliência, sabendo, dessa forma, conduzir a mesma com metas, e resolvendo os obstáculos que aparecerem. A psicoterapia com foco no abuso sexual inicialmente é um pe- ríodo particularmente difícil, as vítimas costumam relutar em ir ao tra- tamento, têm medo ou não se sentem à vontade para falarem sobre a experiência abusiva. No entanto, o apoio da família é um fator positivo chave, enquanto a falta de apoio dificultava o processo de recuperação. - 96 - Surgiu uma espécie de continuum: de um lado, a confiança, o apoio e o apoio da família favoreciam o processo de superação do abuso e, do outro lado, a falta de credibilidade dos familiares e a falta de apoio das figuras parentais impediam o processo (CAPELLA et al., 2016). ACOLHIMENTO Os sobreviventes adultos de ASI apresentam estilo de apego adul- to inseguro, relacionado a um prejuízo no estilo romântico assertivo. Essas influências sugerem que o trauma, tanto de ASI e de revitimiza- ção durante a idade adulta, pode ter implicações profundas para a ca- pacidade dos sobreviventes adultos de ASI em identificar e expressar suas necessidades em relacionamentos românticos. Este padrão pode, potencialmente, se desdobrar nos relacionamentos românticos e outros relacionamentos próximos dos sobreviventes, e talvez desempenhe um papel na revitimização. Os sobreviventes devem, portanto, ser ajudados por família, amigos e terapeutas, para serem assertivos e comunicarem seus relacionamentos para outras pessoas significativas (BRENNER et al., 2019). O acolhimento por parte da família é peça fundamental para o êxito na superação do trauma, tendo em vista que a família é a primeira instituição na qual o indivíduo busca refúgio, na expectativa de encon- trar respostas, significados e modelo moral para encarar seus conflitos a partir do AS. Segundo Lima e Alberto (2010), “o apoio familiar torna-se fator imprescindível para o encaminhamento da situação de violência vivida pela criança e pelo adolescente” (p.130). Esses tipos de violência podem ocorrer em dois contextos: no âmbito familiar, onde o agressor se encontra em um lugar de confiança, cuidado e poder em relação à criança; e no âmbito extrafamiliar, quando o agressor não faz parte di- retamente das relações familiares, como, por exemplo, vizinhos ou des- conhecidos (HABIGZANG; RAMOS; KOLLER, 2011). O fato de a maioria dos casos de ASI serem praticados por mem- bros da família ou pessoas próximas ao seio familiar, por muitas vezes, dificulta esse acolhimento, pelo estigma de culpabilização da vítima que, desacreditada por aqueles que deveriam lhe acolher, acaba, por mui- tas vezes, desencorajada a denunciar e prosseguir na busca por ajuda, e simplesmente reprime as emoções, tendo, assim, diversos prejuízos psicológicos e emocionais futuros. - 97 - O elemento mais importante do acolhimento é a empatia, que consiste em “compreender uma pessoa a partir do quadro de referência dela e não do próprio, experimentando de modo vicário os sentimentos, percepções e pensamentos dela. A empatia não envolve em si mesma a motivação paraajudar, embora possa transformar em consideração pelo outro ou sofrimento pessoal, o que pode resultar em ação”. (AMERI- CAN PSYCHOLOGICAL ASSOCIATION, 2010) O profissional deve ser gentil, ficar atento, dizer que acredita no relato, não fazer perguntas desnecessárias, agradecer a confiança, não prometer sigilo, ressignificar o sentimento de culpa da vítima, esclarecer dúvidas, explicar os procedimentos/encaminhamento, verificar como o paciente se sente, abordar tópico neutro (HABIGZANG, 2018). CONSIDERAÇÕES FINAIS Este estudo teve como objetivo oferecer informações sobre o conceito de ASI contra crianças e adolescentes, sobre a dinâmica en- volvida nessa forma de violência, sobre a legislação nacional aplicada aos casos e sobre o manejo profissional diante da revelação e dos casos de suspeita, informando os índices de notificações mais atuais. Embora subnotificada, a ASI atinge muitas crianças e adolescentes; geralmente, os agressores são pessoas com as quais as crianças e adolescentes convi- vem. Ao observar o processo terapêutico com esse paciente, é pos- sível notar os efeitos da ASI na vida das vítimas, que comprometem as áreas psíquica, física e social, podendo desenvolver depressão, trans- torno do pânico, estresse pós-traumático (TEPT), entre outros trans- tornos, havendo possibilidades de levar ao suicídio (HOHENDORFF; HABIGZANG; KOLLER, 2014). Diante dos resultados, é possível observar a melhora significativa na vida das vítimas através do processo terapêutico e sua importância, assim conseguindo dominar esse trauma e seguir sua vida da melhor forma, equilibrada, sabendo manusear os fatos ocorridos. REFERÊNCIAS ALAGGIA, Ramona; MISHNA, Faye. Self psychology and male child sexual abuse: Healing relational betrayal. Clinical Social Work Journal, v. 42, n. 1, p. 41-48, 2014. - 98 - AMERICAN PSYCHOLOGICAL ASSOCIATION. Dicionário de psi- cologia. Porto Alegre: Artmed, 2010. BRASIL. Ministério da Saúde. 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