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ESTUDOS DE LITERATURA – DRAMA Debbie Mello Noble Do teatro grego ao teatro latino Objetivos de aprendizagem Ao final deste texto, você deve apresentar os seguintes aprendizados: Construir um breve panorama do teatro latino. Comparar textos dramáticos latinos e gregos. Analisar matrizes do teatro europeu em textos latinos. Introdução O teatro latino tem sua origem provável nos jogos cênicos vindos dos etruscos. No entanto, desde seu período republicano, e a expansão sob o território grego, Roma teve contato com a dramaturgia grega. Já nessa época, o teatro grego experimentava a complexidade das tragédias gregas analisadas na Poética, de Aristóteles, que reconhecemos até hoje, e uma intensa produção de comédias. Assim, o contato romano com a literatura dramática grega auxiliou na potencialização dramatúrgica latina. Com a expansão do Império Romano, que dominou grande parte da Europa Ocidental na Antiguidade, os romanos entraram em contato com as culturas dos povos conquistados. O Império Romano ficou conhecido pela diversidade cultural e pelos espetáculos grandiosos, encenados nos grandes edifícios teatrais, entre eles os espetáculos de circo, que compu- nham a política panes et circense (pão e circo) de promoção de diversos espetáculos para entreter o povo das questões políticas. O teatro romano, escrito em latim e, por isso, também denominado teatro latino, destacou-se por suas comédias, sendo mais conhecidas aquelas de autoria de Plauto e Terêncio. Alguns autores apontam a co- média latina como precursora da Commedia dell’arte. Neste capítulo, você estudará as origens do teatro latino, bem como comparará textos dramáticos latinos e gregos. Por fim, analisará matrizes do teatro europeu em textos latinos. As origens do teatro latino Pode-se considerar que o despontar da literatura latina se deu por volta de 240 a.C., quando Lívio Andrônico realiza uma tradução da Odisseia do grego para o latim. Consequentemente, a literatura grega, traduzida para o latim, torna-se popular em Roma. Antes desse marco, porém, aconteciam em Roma os primeiros jogos cênicos, os quais eram espetáculos de mimo de trupes etruscas, que incluíam danças, canções e invocações religiosas dos deuses, segundo aponta Berthold (2001). No entanto, essas representações estavam mais ligadas ao improviso, esquetes que, conforme Soeiro (2006), impedem que fossem consideradas drama. Veja o significado de alguns termos utilizados até aqui. Esquete: do inglês sketch, que significa esboço, rascunho. Cena de caráter geral- mente cômico de curta duração. Mimo: do grego mimuos e do latim mimu. No antigo teatro romano, farsa popular entremeada de danças e brincadeiras, na qual se imitavam, por MÍMICA, os tipos e costumes da época. A palavra indica também o ator que representava nessas farsas. Fonte: Vasconcellos (2010, p. 109, 160). Observe que há, portanto, uma dupla influência na origem do teatro latino: de um lado, a influência etrusca, com alguns rituais e esquetes cômicas im- provisadas; de outro, a influência grega, tanto nas características dramáticas quanto arquitetônicas, ou seja, no que diz respeito ao edifício teatral. Segundo Berthold (2001, p. 140), o florescimento da literatura dramática de Roma corresponde aos séculos III e II a.C., “[...] quando prosperaram as peças históricas e as comédias (em palcos temporários de madeira) [...]”, e, somente entre os séculos I e II d.C., ocorre o “[...] período áureo da glorificação arquitetural da idéia de teatro [...]”. Ou seja, o modelo de edifício teatral romano, Do teatro grego ao teatro latino2 como você verá a seguir, só surgirá após um certo período de consolidação do teatro romano, enquanto arte. Os mais antigos festivais de teatro romano eram denominados Ludi Romani. Tais festivais ocorriam como celebrações oficiais em honra a diversos deuses ou por ocasião de uma data cívica importante. Eram realizados em setembro, em honra a Júpiter, a partir do século VI a.C. A introdução de atividades teatrais ocorreu em 364 a.C., embora a representação da comédia e da tragédia só tenha iniciado em 240 a.C. Fonte: Vasconcellos (2010). Ao longo dos séculos III e II a.C., há o surgimento da chamada Comé- dia Nova romana. Segundo Gonçalves (2009), a Comédia Nova também era denominada comoedia palliata, ou seja, uma comédia “apresentada com o pálio”, que era uma vestimenta tipicamente grega, mas não somente a veste era da tradição grega, como também algumas personagens mantinham os nomes gregos, os costumes e o ambiente gregos. Assim, geralmente, os textos do teatro latino estavam apoiados na cultura grega e, até mesmo, em textos teatrais da gregos, como você verá posteriormente. Outros tipos de comédia eram as chamadas fabula togata, cujas vestes eram diferentes daquelas da palliata, pois se utilizavam togas, marcando a ambientação dessas comédias em Roma, provavelmente surgida da necessidade do público de assistir temas que abrangessem as situações locais. Assim, os temas abordados giravam “[...] em torno das classes menos favorecidas, tanto urbanas quanto rurais [...]” (VASCONCELLOS, 2010, p. 114), focando na realização de sátiras sociais. As peças possuíam linguagem geralmente indecente para os parâmetros da época. Segundo Vasconcellos (2010), após o advento do Império, o teatro que prevaleceu foi o das formas não literárias, como as fabula atellana, que eram uma forma popular de farsa, cantadas e dançadas. Acredita-se que foi criada na cidade de Atella, próximo à Napoles, o que explicaria a origem de seu nome. Uma personagem-tipo era o ponto de partida do enredo, como bucco, maccus, pappus e docenus, ou seja, tipos grosseiros, glutões e que se utilizavam de “[...] palavreado chulo e indecente, uma das possíveis razoes do sucesso popular [...]” (VASCONCELLOS, 2010, p. 113). O tipo de ação desencadeada 3Do teatro grego ao teatro latino por essas personagens proporcionava os disfarces, portanto, eram utilizadas máscaras para a caracterização das personagens. Além disso, é na fabula atellana que se dá a origem das intrigas em cena, do latim tricae atellanae, ou seja, os conflitos entre as personagens com o intuito de proporcionar o riso do público. Acredita-se que essas foram as origens da commedia dell`arte, como você verá adiante. O edifício teatral romano Segundo Santos (2016), o legado da cultura clássica (grega e latina) pode ser conhecido, hoje, por duas vias: a literatura e a arquitetura. Tendo isso em vista, fi ca mais clara a importância de compreender a estrutura do edifício teatral romano como parte essencial do seu teatro. Nesse sentido, os princípios da arquitetura romana eram: utilitas, uenustas, firmitas (utilidade, beleza e solidez). Seguindo-se esses princípios, o teatro romano poderia ser construído acompanhando o declive de uma colina ou a partir do chão, porém o principal aspecto que determinava a forma de sua construção era a acústica. Veja a seguir as principais partes do edifício teatral romano, apontadas por Santos (2016). Scaena: parede do cenário (com colunas e estátuas). Valvae: três portas (direita, centro, esquerda). Pulpitum: palco. Orchestra: orquestra (entre o pulpitum e a cavea). Cavea (ima, media, summa): bancadas. O edifício do teatro romano (Figura 1), segundo Santos (2016), era constru- ído à imagem e semelhança dos teatros gregos, porém as principais diferenças entre eles estava na configuração e na função da orchestra e do pulpitum: na Grécia, a orchestra representava o espaço destinado ao coro, formando um círculo; como o teatro romano extinguiu o coro, esse espaço passou a ser o local Do teatro grego ao teatro latino4 reservado às autoridades (governantes, cavaleiros, magistrados, senadores); e o pulpitum “[...] tornou-se mais largo no teatro romano, a fim de ‘dar mais espaço à movimentação dos atores em palco [...]’” (SANTOS, 2016, p. 2). Figura 1. Teatro romano. Fonte: RnDmS/Shutterstock.com.Magaldi (1985) aborda mais detalhadamente o edifício teatral romano, afirmando que, como as autoridades da cidade se sentavam na parte mais baixa da cavea (plateia), o palco não podia ser muito alto, a fim de que eles tivessem boa visibilidade (Figura 2). Ainda segundo Magaldi (1985, p. 23), “O palco e a cavea ligavam-se por uma passagem coberta, denominada vomitória [...]”, a qual dava unidade arquitetônica ao edifício. O palco era coberto por um teto e, [...] mais tarde, passou-se a usar também a cortina. Sobre a cavea, estendia- -se o velário, para proteger o público do sol e da chuva. Havia recintos, no próprio edifício, para os espectadores passarem ou se abrigarem, verdadeiros embriões dos foyers atuais. A ornamentação, sobretudo com certos impera- dores, tornou-se riquíssima, desde o mármore de várias cores ao ouro [...] (MAGALDI, 1985, p. 23). 5Do teatro grego ao teatro latino Figura 2. Palco do teatro romano localizado em Mérida/ES. Fonte: FCG/Shutterstock.com. O primeiro edifício teatral em alvenaria de Roma foi o de Pompeu, cons- truído entre 55 e 52 a.C. Apesar da imponência e da relevância do edifício teatral romano para a história do teatro, os edifícios teatrais, antes, eram construídos em madeira, para não serem lugares fixos, já que eram demolidos após os espetáculos. Berthold (2001) ressalta, ainda, que as construções não eram lugares somente dedicados à arte: lá ocorriam duelos de gladiadores, extermínios e derramamento de sangue no período de perseguição aos cristãos. Dessa forma, fica evidente que o teatro romano era não só um espaço de artes, mas “[...] um instrumento de poder do Estado, dirigido pelas autoridades [...]” (BERTHOLD, 2001, p. 140). Panorama do teatro latino Como você viu anteriormente, o gênero que mais se destacou no teatro latino foi a comédia, com as diversas fabulas, e textos cujos registros mais comple- tos que chegaram aos nossos dias são das obras de Plauto e Terêncio, dois comediógrafos romanos. No entanto, muitas tragédias foram adaptadas por Sêneca do grego, como Medeia, de Eurípedes, Édipo rei, de Sófocles, Fedra, de Racine, entre outras, que adquiriram importância por terem exercido forte infl uência na formação do teatro renascentista (VASCONCELLOS, 2010). Do teatro grego ao teatro latino6 Principais autores e obras Titus Maccius Plautus, ou Plauto, nasceu em torno dos anos de 250 a.C., em uma cidade ao norte de Roma, e, apesar de não haver certeza sobre este fato, estima-se que viveu em torno de 65 anos. Acredita-se que ele começou no teatro como ator, representando a personagem Maccus, na fábula atelana, o que poderia ser confi rmado pelo seu segundo nome, Maccius, conforme afi rma Berthold (2001, p. 144): Seu segundo nome, Maccius, parece confirmar essa experiência, pois ‘Maccus’ era um dos tipos fixados da farsa atelana – o guloso e ao mesmo tempo finório pateta, que sempre dá um jeito para que seus comparsas de jogo tenham no fim de ficar com o ônus tanto dos prejuízos quanto do escárnio [...]. Algumas de suas peças que chegaram aos nossos dias são: A comédia da marmita, ou A aululária, Anfitrião, As bacantes, O cesto, A corda, Os cativos, O fantasma, O gorgulho, O mercador, Menecmos, O prodígio, Pseudolo, O persa, O rústico, O soldado fanfarrão e Stico. Dessas, A aululária e Anfitrião estão entre as peças mais conhecidas de Plauto. Leia um resumo da peça A aululária ou A comédia da marmita: O protagonista dessa peça é um velho sovina, Euclião. Ele esconde uma marmita cheia de ouro em casa, mas finge que é pobre. Megadouro é um homem rico que deseja casar com a filha de Euclião, o qual aceita, impondo como condição que Megadouro abra mão do dote, o que é aceito pelo pretendente. Na preparação da festa, começam as intrigas, pois Euclião desconfia de todos o tempo todo, temendo que lhe roubem a marmita. O que Euclião não sabe, no entanto, é que sua filha, Fedra, está grávida de Licónodes, sobrinho de Magadouro. Acredita-se que Plauto tenha se inspirado em algum texto da Comédia Nova grega, provavelmente de autoria de Menandro, para o tema e a personagem principal. Segundo Berthold (2001, p. 147), as vinte peças de Plauto que chegaram aos nossos dias refletem “[...] não apenas o repertório de enredos e persona- gens da Comédia Nova ática, mas, em seu eficiente engrossamento teatral, a 7Do teatro grego ao teatro latino mentalidade de seu autor e do público para o qual escrevia [...]”. Além disso, a autora aponta que as comédias de Plauto se tornaram uma fonte para a comédia europeia, como você verá em mais detalhes a seguir. Outro autor cujos textos chegam aos nossos dias é Terêncio. Acredita-se que Publius Terentius Afer era bárbaro de nascimento, e teria sido levado para Roma como escravo, porém teve seu talento reconhecido e foi liberto. Segundo Berthold (2001, p. 147), seus textos demonstram, já pelos títulos, “[...] aquilo que Terêncio buscava – o estudo de caráter: o de um auto-atormentador em Aquele que Castiga a Si Próprio, o de um parasita em o Formião e o de um eunuco em Eunuchus [...]”. Para a autora, Terêncio buscava imitar o discurso da nobreza romana. São seis as peças de Terêncio que chegaram aos nossos dias, tendo sido escritas entre 166 a.C. e 159 a.C., ano em que se considera que ele morreu, aos 26 anos. O autor seguia meticulosamente os modelos gregos em suas peças, buscando deixá-las o mais plausíveis possível, porém, por vezes, chegava a misturar personagens de duas ou três peças distintas gregas. As seis peças de Terêncio que chegaram aos nossos dias são as seguintes. Andria (A moça de Andros). Hecyra (A sogra). Heaautontimorumenos (Aquele que castiga a si mesmo). Eunuchus (O eunuco). Phormio (Formião). Adelphoe (Os dois irmãos). Segundo Santos (2012), Terêncio tentava cultivar um refinamento próximo ao das obras gregas nas quais se inspirava, levando a maioria das suas comédias a não possuírem vigor e ação. Para Santos (2012, p. 179), “Ele priorizava a per- feição em detrimento de um prazer, de um riso momentâneo. Prefere, portanto, a ironia ao ridículo e não há traços evidentes de fala coloquial no seu texto [...]”. O que Terêncio busca realizar, na comédia, é basicamente o contrário do que fazia Plauto: revelar a alma humana, com o cuidado de não colocar em cena situações que proporcionem gargalhada fácil. Por isso, pode-se afirmar que seu humor era mais sutil e gracioso do que aquele proposto por Plauto, e, por esses motivos, Terêncio é muito menos popular do que Plauto. Do teatro grego ao teatro latino8 Leia um breve resumo sobre o enredo e a temática da peça A sogra, de Terêncio: A sogra (Hecyra) é uma comédia de Terêncio que trata dos desencontros entre personagens que constituem dois grupos familiares: a família de Laques, constituída de seu filho, Pânfilo, a nora, Filumena, e a esposa, Sóstrata; e a família de Filumena, cujo pai é Fidipo, e sua esposa, Mírrina. A trama gira em torno de desencontros, conven- ções sociais que sobrepujam os sentimentos entre os parentes e a presença de uma prostituta de nome Báquis. Trata-se de uma peça com base em dramas burgueses que atravessam todas as sociedades no tempo e no espaço. Fonte: Godoy (2011, documento on-line). Do texto teatral grego ao latino É na produção da chamada Comédia Nova romana, ou seja, na também chamada fabulae pallitae, que se encaixam os textos de Plauto e Terêncio. Essas comédias, como você viu anteriormente, eram baseadas nas comédias novas gregas, e os maiores nomes são Menandro e Filêmon, cujos textos não chegaram integralmente aos nossos dias. Os textos gregos de comédia a que temos acesso atualmente são, em sua maioria, de Aristófones, representante da Comédia Antiga grega. No entanto, a comédia antiga grega tinha como tema principal a crítica política e social, o que não podia ser imitado pelos romanos por dois motivos: 1. a impossibilidade de representar a realidade especificamente ateniense em Roma; 2. a censuraromana, rigorosa com esse tipo de tema. Dessa forma, é a enredos e temas convencionais, comuns à realidade ateniense e romana, que a Comédia Nova romana recorrerá: [...] as situações são as de pessoas “comuns”, ou seja, embora estilizadas, mais próximas às encontradas na sociedade grega e romana contemporâneas às peças [...] e os problemas retratados são, geralmente, de ordem amorosa, como casamentos não permitidos pela sociedade, por envolverem, por exemplo, escravas que não podem se casar com o jovem aristocrata pelo qual estão apaixonadas, mas que depois são reveladas livres por alguma reviravolta (GONÇALVES, 2009, p. 118). 9Do teatro grego ao teatro latino É importante ressaltar que os textos gregos que servem de base para as comédias de Plauto e Terêncio, geralmente de Menandro, não são apenas traduzidos do grego para o latim, mas exigem um esforço criativo de criação e reescrita. Gonçalves (2009, p. 131) ressalta que: No caso das obras de Plauto e Terêncio, é bastante interessante [...] o modo como se fazia a escolha dos originais, as restrições ideológicas que se impu- nham sobre os procedimentos composicionais dos dois autores, e o ambiente de constituição de poder e de instituição da própria tradição literária romana a partir do ambiente culturalmente efervescente do período republicano dos séculos III e II a.C. As escolhas e os esforços de adaptação de Plauto e Terêncio passam, então, inevitavelmente por uma aproximação do mundo grego com o romano, a fim de que os textos fizessem sentido no contexto em que seriam encenados. Veja uma breve análise comparativa proposta por Gonçalves (2009) entre um fragmento de texto de Menandro (grego) e a reescrita, realizada por Plauto, da peça As bacanas. Texto de Menandro Texto de Plauto Se Siro estivesse ao pé de mim agora e dissesse que / o sol está brilhando, eu pensaria que está / escuro e que já é noite. Mentiroso descontrolado! Mnesíloco: Ele disse que se você dissesse que aquele sol é sol para você, ele acreditaria que é a lua e que é noite, mesmo sendo dia. A partir desse trecho, Gonçalves (2009) acredita ser possível perceber que Plauto se utiliza de procedimentos mais livres de reescrita do texto original, utilizando-se dos recursos que imagina serem necessários para construir o seu texto de acordo com as características do novo gênero no qual escreve. Gonçalves (2009) defende que, nos trechos de Menandro a que se tem acesso, é possível perceber que os trechos correspondentes em Plauto são mais ricos poeticamente, ou seja, mais bem elaborados. Fonte: Gonçalves (2009). Além disso, é possível perceber uma aproximação temática na peça As bacanas, de Plauto, com os fragmentos de Menandro encontrados. Os dois autores tendem a tratar de situações que se desenvolvem no seio da família e, Do teatro grego ao teatro latino10 além disso, retratam a sociedade patriarcal da época, centrada principalmente na relação pai e filho. Alguns outros exemplos de adaptação do texto grego para o latino são apontados no texto de Costa (2010), que analisa a peça Anfitrião, de Plauto. Anfitrião é uma peça que deriva da mitologia grega. Anfitrião é o comandante do exército tebano, esposo de Alcmena, e seu escravo chama-se Sósia. Outras personagens dessa comédia são os deuses Júpiter e Mercúrio, além de Blefarão, general tebano e amigo do protagonista, e a serva Brômia. A peça se passa na cidade de Tebas, quando o deus Júpiter se apaixona por Alcmena e, para poder desfrutar da companhia da amada, se transforma, assumindo a aparência do marido desta, Anfitrião, enquanto este está na guerra. Mercúrio auxilia Júpiter, tomando a forma do escravo, Sósia. Quando Anfitrião e Sósia retornam da guerra, deparam-se com suas réplicas, gerando uma série de confusões. A autora chama a atenção para os nomes gregos das personagens da tragicomédia de Plauto, como Blefarão, que possui origem na palavra grega para olho, e que, justamente, traduz a personagem, que estaria enxergando a situação “dobrada”, ou seja, se refere ao momento em que essa personagem enxerga dois personagens Anfitrião. Outro ponto importante é o próprio local onde a ação se passa, ou seja, na cidade grega de Tebas. Conforme destaca Costa (2010), as peças de Plauto se encaixam nas cha- madas fabullae pallitae; como você viu anteriormente, esse tipo de fábula é identificado pelo uso da vestimenta grega, o pálio. Na peça de Plauto, há inclusive uma fala da personagem Sósia que o menciona: “Aquele homem ali quer destecer meu pálio de novo hoje”, o que significa “ele quer acabar comigo”. O teatro romano e as matrizes do teatro europeu Como você viu anteriormente, a fábula atelana é apontada como uma das possíveis origens da Commedia Dell Àrte. Ao mesmo tempo, é possível visualizar que alguns textos da Comédia Nova romana, principalmente os 11Do teatro grego ao teatro latino de Plauto, são pontos de partida para peças famosas, como O avarento, de Molière; e A comédia dos erros, de William Shakespeare. A fábula atelana e a Commedia Dell`Arte A fábula atelana apresentava-se em forma de sátiras e em personagens-tipo, as quais seriam a origem dos tipos da Commedia Dell`arte, uma vez que a tradição popular teria mantido essas fontes da antiguidade. A estrutura da Commedia Dell`arte estava ligada ao improviso, com roteiros simples e personagens-tipo definidos previamente, o que permitia aos atores improvisar, conforme a reação do público. Um ponto em comum com a fábula atelana era a intriga, sempre presente, e a partir da qual se davam diversos jogos cênicos, como “[...] duelos, algazarra, acessos de loucura, perseguições, aparições misteriosas e disfarces [...]” (SILVA, 2005, p. 6). As personagens da Commedia Dell Àrte representavam tipos característicos fixos, para que o público os identificasse rapidamente nas apresentações. Silva (2005) aponta que os nomes, as vestimentas e as particularidades de caráter ou comportamentos podiam variar em cada região da Itália, mas é possível apontar, como personagens mais populares, Pulcinella, de Nápoles; Arlequino, Brighella e Mezzetin, de Bérgamo; Colombina e Pietrolino (Pierrot, na França), de Veneza; Mezzopataca e Marco-Pepe, de Roma; e outros cuja origem não é identificada, como o Pantaleone (o rico tolo) e o Dottore (Doutor). Numa tentativa de aproximação, afirma-se que Pappus, a personagem da fábula atelana que representa um velho estúpido, avarento e libidinoso, poderia ser a origem da personagem Panteleone, da Commedia; ao passo que Maccus, o gozador, tolo, brigão, se aproximaria de Brighella, aquele que sempre inicia as intrigas; o Dossennus, um corcunda malicioso, poderia ser a origem de Pulcinella, personagem fisicamente deformada, com personalidade que varia de tolo a enganador. Além desses, há também, na fábula atelana, o Bucco, personagem representada com uma boca enorme, provavelmente por ser comilão, ou, ainda, tagarela. Assim como os atores utilizavam máscaras na fábula atelana, na Commedia Dell Àrte também era dessa forma que representavam as características das personagens fixas, o que pode ser mais um indício da origem dessa forma de representação. Do teatro grego ao teatro latino12 Plauto e a comédia europeia Alguns autores europeus se inspiraram declaradamente em Plauto: Molière é um deles, o qual traz de textos como Anfi trião e A comédia da marmita elementos de enredo e características de personagens, mesclando-os com a França do século XVII. Além de Molière, é possível apontar que Shakespeare também bebeu dessa fonte em sua A comédia dos erros, que seria relativa à obra Os menecmos, de Plauto. O classicismo francês foi um período em que, durante o século XVII, o teatro estava voltado aos princípios aristotélicos presentes na Poética, sobretudo no que diz respeito à regra das três unidades. Os gregos lançaram não só as primeiras grandes peças teatrais, mas também os princípios da crítica dramática, a partir do estudotécnico, estético e filosófico das obras. A regra das três unidades, presente na Poética, de Aristóteles, sistematiza os elementos básicos da estrutura dramática, afirmando que as peças deveriam apresentar: uma unidade de tempo (a ação deveria se concentrar em um único dia); uma unidade de espaço (os acontecimentos ocorrem em um único espaço); uma unidade de ação (os acontecimentos são apresentados em uma série enca- deada, como causa e efeito, possuindo um começo, um meio e um fim). Fonte: Silva (2005, p. 12). O teatro desse período, na França, valorizava, portanto, os modelos clás- sicos, buscando inclusive imitar a disposição espacial greco-romana. Assim, o palco francês ficava fechado por três lados, só podendo ser visto pelos es- pectadores pelo lado frontal. Com isso, a movimentação dos atores deveria ser reduzida, não sendo possível a realização de certos espetáculos. Dessa forma, o texto teatral teve de se adaptar também a esses princípios. Assim, os textos passaram a centrar-se em conflitos e intrigas e na interioridade do homem. Nesse contexto, Jean-Baptiste Poquelin, mais conhecido como Molière, após alguns fracassos na escrita de tragédias, passa a escrever as comédias que o tornaram popular. Segundo Silva (2005, p. 20), o autor viveu durante algum tempo em Lyon, onde teve contato com trupes italianas que apresen- taram a Commedia Dell Àrte ao dramaturgo. Molière teria se encantado com as personagens-tipo mascaradas, passando a associar “[...] os truques 13Do teatro grego ao teatro latino e características daqueles comediantes com a sua percepção crítica da vida francesa [...]”. Por ser um protegido do rei Luís XVI, frequentava os salões da aris- tocracia, onde teve contato com intrigas sociais e pessoais, exibições e preciosismos, os quais eram retratados em suas comédias e divertiam o rei. Todavia, após o lançamento de sua peça Tartufo, que criticava o clero, o rei proibiu a representação desta em todo o território francês. Molière passou a realizar, então, uma comédia de caráter, desaparecendo o “aspecto de crônica do cotidiano social”, passando a retratar os vícios e os ridículos comportamentos humanos da época. A peça O avarento, muito conhecida e inúmeras vezes representada, foi escrita em 1668 por Molière e tem como base o texto de Plauto, intitulado Aululária ou A comédia da marmita, o qual teria sido inspirado, tanto no que concerne ao tema quanto à personagem, em algum texto grego, provavelmente de autoria de Manandro. A peça O avarento, de Molière, tem como personagem principal Harpagão, um velho pão-duro e mesquinho. Sua mesquinhez não tem limites, nem mesmo com os filhos: ele não só se recusa a emprestar dinheiro para o próprio filho, Cleanto, sem cobrar altos juros, como também chega ao ponto de querer casar os filhos apenas para aumentar sua fortuna, aceitando negociar o casamento de sua filha, Elisa, com qualquer um que não exija o dote. Além disso, o velho diz estar apaixonado por Mariana, porém, só casará se ela possuir algum dote. Para Santos (2017, p. 107), em comparação ao texto de Plauto, na peça de Molière, o caráter avarento de Harpagão se mantém, porém, a avareza da personagem “[...] está associada a uma espécie de antagonismo que não havia em Aulularia [...]”, uma vez que Harpagão é retratado por Molière “como aquele cujas atitudes impedem a felicidade dos próprios filhos, por impedir suas relações amorosas, que, por sua vez, assumem certo protagonismo e compartilham o espaço da cena com a avareza”. Essa característica pode ser observada no seguinte trecho da peça: Do teatro grego ao teatro latino14 CLEANTO – Sim, minha irmã, amo. Mas antes de mais, sei que dependo de um pai e que a minha condição de filho me submete à sua vontade. Essa mesma condição proíbe-nos de dar largas aos nossos sentimentos, sem a aprovação de quem nos deu o ser, pois que o céu os fez senhores dos nossos anseios, o que é justo, visto que – se estão em seu perfeito juízo! – estão mais aptos do que nós a ver o que nos convém, com as luzes da sua experiência e longe da cegueira da nossa paixão. Cegueira essa a que se junta a leviandade natural da juventude, que, por vezes, nos lança em perigosos abismos (MO- LIÈRE, 2009, p. 13 apud SANTOS, 2017, p. 108). Ainda conforme Santos (2017, p. 108), esse trecho permite visualizar a influência negativa da avareza do pai sobre seus filhos, o qual “aparenta não estar em seu perfeito juízo”. Neste fato, reside a possibilidade de Molière “[...] dispor de personagens que mantêm a tradição da comédia grega e da romana, qual seja, a oposição entre jovens e velhos, sem por outro lado desautorizar a tradição, fortalecida pela concepção religiosa, da obediência aos pais [...]”. Segundo Freitas Filho (2012, documento on-line), Molière [...] imprime teor de crítica social à sovinice da personagem quando [...] trans- forma Harpagão em mais do que um simples avarento, apresentando-o como usurário capaz de emprestar dinheiro a juros absurdos, ao mesmo tempo que oferece contrapartidas irrisórias [...]. Dessa forma, é possível perceber como diferença essencial entre O ava- rento, de Molière, e A comédia da marmita, de Plauto, a construção da comi- cidade, uma vez que, em Plauto, desde a abertura do texto há um apelo para a comicidade da personagem de Euclião. Já em Harpagão, a avareza pende para a crueldade, chegando-se aos elementos cômicos em momentos mais avançados do texto. No entanto, o que fica marcado é o mote de ambas as peças, que trabalham a denúncia “[...] dos valores vãos ligados ao dinheiro e, especialmente, à preocupação doentia com a sua posse [...]” (FREITAS FILHO, 2012, documento on-line). É importante ressaltar, por fim, que os textos de Plauto tiveram grande representação nas literaturas europeias e, segundo Santos (2016, p. 5), [...] contam-se, pelo menos, 39 diferentes imitações na Europa, em diversas línguas. Em língua portuguesa, encontramos 4 destas: O Auto dos Enfatriões de Camões (séc. XVI); O Anfitrião e Alcmena de António José da Silva (séc. XVIII); O Anfitrião outra vez, de Augusto Abelaira (séc. XX); Um deus dormiu lá em casa, de Guilherme de Oliveira Figueiredo (séc. XX) [...]. 15Do teatro grego ao teatro latino Acesse o link a seguir para assistir a uma encenação brasileira de O avarento, com Paulo Autran, Claudia Missura e Luciano Schwab. https://qrgo.page.link/hKwo BERTHOLD, M. História mundial do teatro. São Paulo: Perspectiva, 2001. COSTA, L. N. Mesclas genéricas na tragicomédia anfitrião de Plauto. 2010. Dissertação (Mestrado em Linguística) – Instituto de Estudos da Linguagem, Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2010. FREITAS FILHO, J. F. M. De avareza e avarentos: o tema da sovinice em Plauto, Molière e Suassuna. Revista Moringa: Artes do espetáculo, João Pessoa, v. 3, n. 2, 2012. Disponível em: http://www.periodicos.ufpb.br/ojs/index.php/moringa/article/view/15342/8715. Acesso em: 29 abr. 2019. GODOI, M. A. A. B. A Sogra: a comédia dos erros de Terêncio. Revista Principia, Rio de Janeiro, n. 22, p. 81-87, 2011. Disponível em: https://www.e-publicacoes.uerj.br/index. php/principia/article/view/6482/4610. Acesso em: 29 abr. 2019. GONÇALVES, R. T. Comédia Latina: a tradução como reescrita do gênero. Revista Phaos, Campinas, n. 9, p. 117-147, 2009. MAGALDI, S. Iniciação ao teatro. São Paulo: Ática, 1985. SANTOS, M. N. Particularidades da avareza em O Avarento, de Molière. 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