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ESTUDOS DE LITERATURA – DRAMA Debbie Mello Noble Análise de textos dramáticos contemporâneos Objetivos de aprendizagem Ao final deste texto, você deve apresentar os seguintes aprendizados: Descrever os procedimentos narrativos no drama contemporâneo. Identificar a dimensão performática da literatura atual. Avaliar os desafios e as possibilidades da produção dramática recente. Introdução Neste capítulo, você conhecerá mais sobre a produção dramatúrgica da contemporaneidade e avaliará as potencialidades atuais desse campo artístico, bem como perceberá que o texto teatral e seu autor, que até meados dos anos 60 eram a base dos espetáculos teatrais, abrirão espaço à figura do encenador e a outras formas de criação mais coletivas. Estes, entre outros desenvolvimentos da dramaturgia recente, fazem a escrita do drama também se transformar, inclusive no que diz respeito aos seus procedimentos narrativos. Além disso, o teatro, assim como diversas outras formas de arte, in- cluindo a literatura, passam por mudanças de paradigma, que rompem com conceitos e definições mais tradicionais, ou as questionam constan- temente. Nessa esteira, a essência da literatura não está, necessariamente, na palavra escrita, pois também se reconhece o poder da oralidade, do corpo e dos diferentes processos e atos de criação que envolvem esse fazer artístico. Assim, os artistas passam a explorar, cada vez mais, todos os potenciais significativos – sejam sonoros, performáticos, verbais ou visuais – das palavras. Procedimentos narrativos do teatro contemporâneo Ryngaert (1998), em seu livro Ler o teatro contemporâneo, afi rma que o teatro, na contemporaneidade, narra histórias de forma cada vez menos “prescritiva e adesista”, ou seja, as narrativas contemporâneas não se preo- cupam mais em ser narrativas exemplares (i.e., que prescrevam e sirvam de modelos para as demais). Essa característica é inseparável da mudança da sociedade, que não mais se preocupa com tradição e herança de um passado grandioso. Para o autor, os anos 1980 trazem a dissolução das ideologias e uma perda de referências na sociedade. Passado o auge do teatro político dos anos 1950 e 1960, os textos passam a explorar os “territórios íntimos” do ser, ou seja, possuem um caráter mais psicológico e menos político. Você perceberá que, na narrativa dos dramaturgos contemporâneos, em geral, está em cena o momento em que escrevem, o presente. Isso fica marcado na escrita por meio de alguns recursos que quebram com as características clássicas do texto teatral. Ou seja, a narrativa, concebida aristotelicamente como uma sequência de acontecimentos encadeados em determinado tempo (geralmente 24h) e espaço, que deve apresentar uma certa estrutura (introdução, clímax, desfecho), já vem se transformando há algum tempo, porém, no drama contemporâneo, você verá que há diversas outras rupturas com esse modelo. Com frequência, evitam-se explanações ou exposições detalhadas, por exemplo, que levem o espectador/leitor a entender como um acontecimento passado se desenrola, agora, no “presente” da cena. Percebe-se a trama, atualmente, muito mais por indícios posicionados estrategicamente no diálogo ou nas indicações do dramaturgo no texto. Joga-se, então, com as lacunas da memória, com as sensações das personagens, e mistura-se presente, passado, futuro e imaginário. Segundo Ryngaert (1998, p. 106), algumas das características básicas dos textos teatrais clássicos a partir das quais é possível observar essa ruptura praticada pelos textos contemporâneos são o espaço e o tempo, elementos “[...] historicamente fundadores da representação teatral [...]”. Para o teórico: Alguns autores se arriscam a misturar o espaço e o tempo em combinações inéditas que se distanciam das tradições. Desse modo, eles forjam uma fer- Análise de textos dramáticos contemporâneos2 ramenta complexa para falar de um mundo em que as percepções do espaço e do tempo evoluíram radicalmente. Hoje tudo já foi dito sobre a rapidez e a fragmentação das informações (RYNGAERT, 1998, p. 106). Um exemplo de texto contemporâneo analisado por Ryngaert é Na solidão dos campos de algodão, escrita em 1985 por Bernard-Marie Koltès. Na solidão dos campos de algodão é uma peça teatral do dramaturgo francês Ber- nard-Marie Koltès que mostra o encontro entre duas personagens – o traficante e o cliente – em um espaço indefinido, que poderia ser qualquer cidade grande. A peça é composta por diálogos entre as duas personagens, cujas falas são, na verdade, monólogos extensos. Segundo Coelho, as peças de Koltès começam em um impasse – não um conflito – e acabam sem concluir nada, “possibilitando apenas que na angústia do vácuo os personagens se enredem em longos monólogos”. Fonte: Coelho (2003, documento on-line). Nesta peça, Ryngaert (1998) observa que o texto, composto de longas répli- cas entre os dois personagens, não apresenta informações detalhadas do espaço e do tempo, até porque contém apenas uma rubrica, porém, paradoxalmente, possui uma descrição minuciosa dos gestos, dos atos e das intenções de cada um dos personagens por meio da saturação de suas falas. Veja um trecho dessa peça e, em seguida, verifique as características do texto con- temporâneo por meio da análise realizada por Ryngaert (1998). Na solidão dos campos de algodão Cena 1 O traficante: Se você está andando, a esta hora e neste lugar, é porque deseja alguma coisa que não tem, e eu posso fornecê-la para 3Análise de textos dramáticos contemporâneos Segundo Ryngaert (1998), os textos contemporâneos não constroem análises explícitas da sociedade do momento, nem a colocam como contexto. No entanto, suas construções sutis levam o leitor a construir um sentido amplo do texto. No trecho de Koltès que você leu anteriormente, por meio de algumas palavras e das construções das frases, é possível entender o espaço e o tempo em que a história se desenvolve: as janelas iluminadas no alto indicam a presença de prédios; a hora “das relações selvagens entre homens e animais” indica a noite. Ainda para o autor, a análise dos textos contemporâneos não deve hierarquizar demais a narrativa, nem tentar encaixotar o texto em uma rede temática, mas sim valorizar “[...] estruturas propriamente teatrais (o diálogo e o que ele revela das relações entre os personagens, o sistema espaço-temporal [...]” (RYNGAERT, 1998, p. 29). Nesse sentido, o autor avalia que, em Na solidão nos campos de algodão, os diálogos revelam que as personagens estão em um jogo de movi- mentos, revelando também certas informações relacionadas à espacialidade, que têm por objetivo, para o traficante, ir em direção ao cliente, e para o cliente, “[...] negar qualquer intenção de compra, no final das contas, normal, na presença do traficante. As alusões à caça e aos animais selvagens, ao crepúsculo, remetem também à noção de território [...]” (RYNGAERT, 1998, p. 29). você; pois se estou neste lugar há muito mais tempo que você e por muito mais tempo que você e se mesmo esta hora, que é a hora das relações selvagens entre os homens e os animais, não me expulsa daqui, é porque tenho o que é necessário para satisfazer o desejo que passa diante de mim, e é como um peso do qual preciso me livrar em cima de qualquer um, homem ou animal, que passe diante de mim. [...] O cliente: Não estou andando em determinado lugar em deter- minada hora; estou somente andando, indo de um lugar a outro, para negócios privados dos quais se trata nestes lugares e não no meio do caminho; não conheço nenhum crepúsculo nem nenhum tipo de desejo e quero ignorar meus acidentes de percurso. Eu ia desta janela iluminada atrás de mim, lá em cima, a esta outra janela iluminada, lá embaixo, na minha frente, segundo uma linha bem reta que passa por você porque você se colocou aí deliberadamente. [...] Fonte: Ryngaert (1998). Análise de textos dramáticos contemporâneos4 Apesar dos pertinentes apontamentos de Ryngaert(1998), o próprio teórico apontava a impossibilidade de delimitar precisamente as características do texto teatral contemporâneo. Isso porque o teatro contemporâneo utiliza-se de uma pluralidade de recursos narrativos, diferenciando-se dos textos clássicos justamente: [...] tudo o que aparecia até o final do século XIX como marca inconfundível do dramático, como o conflito e a situação, o diálogo e a noção de personagem, torna-se condição prescindível quando os artistas passam a usar todo tipo de escritura para eventual encenação, na tentativa de responder às exigências de tema e forma deste final de século [...] (FERNANDES, 2001, p. 69). Nos anos 1970 e 1980, Ryngaert (1998) indica um predomínio das peças curtas, escritas com poucas personagens, o que talvez se dê por razões eco- nômicas, e vários monólogos, traçando uma característica intimista para as produções dramatúrgicas desse momento. Nos anos 1990, o texto dramático transforma-se em uma miscelânea: os en- cenadores elegem alguns textos de outros gêneros literários, como textos líricos e romances, para colocar em cena, fragmentando-os e articulando-os com outros elementos, como a música, a dança e um maior apelo visual, por meio da ilumi- nação e de outros elementos cênicos que você verá mais adiante neste capítulo. O teatro brasileiro contemporâneo No Brasil, Magaldi (1996) aponta o fi m do AI-5, censura e linha dura da ditadura militar, como o evento que possibilitou a abertura política e, consequentemente, artística. Assim, o período em que surge o que se considera teatro contemporâneo é relativo à redemocratização do Brasil. Dessa forma, “No palco só se passou a respirar de novo com a abertura política iniciada no governo Geisel e prosseguida no governo Figueiredo [...]” (MAGALDI, 1996, p. 277). Esses acontecimentos funcionaram como um marco histórico da contem- poraneidade, ao passo que a montagem de Macunaíma, adaptação do texto de Mario de Andrade, dirigida por Antunes Filho, é considerada um marco artístico desse novo momento do teatro nacional, em que as montagens dos textos passam a ser mais valorizadas, o que levou a algumas mudanças nos procedimentos narrativos do texto teatral. Você verá, mais adiante neste capítulo, que essa característica dá uma dimensão mais performática ao teatro contemporâneo. 5Análise de textos dramáticos contemporâneos Em 1978, foi encenada pela primeira vez, no teatro São Pedro, em São Paulo, a peça Macunaíma, adaptação da obra de Mário de Andrade, dirigida por Antunes Filho. A peça surge de uma oficina teatral em torno da obra de Mário de Andrade e abre caminhos para um novo processo de criação: a dramaturgia passa a ser construída coletivamente, por meio de improvisos, a partir de um texto literário. Fonte: Antunes Filho (2019) e Folha Online (2008). A abertura democrática, no entanto, trouxe uma espécie de “vazio criativo” (ABAURRE; PONTARA, 2005, p. 655) e o retorno da encenação de autores estrangeiros. Além disso, as chamadas comédias de costume, que tinham sido abafadas pelo teatro político dos anos 60, voltam aos palcos. Ainda que o marco da contemporaneidade seja a obra de 1978 de Antunes Filho, não é possível deixar de pontuar, na cena teatral contemporânea, autores e grupos que já vinham despontando no cenário teatral um pouco antes desse marco. Um exemplo disso é o grupo Asdrúbal trouxe o trombone, que realiza um teatro experimental de criação coletiva. A peça Trate-me leão foi escrita coletivamente pelo grupo, em 1977, e trazia inovações para os palcos brasileiros: passagens da peça eram improvisadas e os atores apresentavam-se em um palco vazio, sem elementos cênicos. A peça foi montada partindo da experiência dos atores para falar do cotidiano, dos problemas e do comportamento dos jovens da zona sul do Rio de Janeiro. Dois atores que se destacam neste grupo são Luiz Fernando Guimarães e Regina Casé, que se sobressaem por sua irreverência e alta capacidade de improvisação. A direção do espetáculo foi de Hamilton Vaz Pereira. Trate-me Leão traz uma narrativa não linear. Com vários elementos inventados pelos criadores, o espetáculo justapõe duas ou mais situações com desenvolvimento e desfecho diferentes. O figurino, com cerca de 60 trajes, é inteiramente realista. A linguagem propõe a teatralização do cotidiano, sobre um palco inteiramente nu, sem móveis nem objetos, e é definida principalmente pelo jogo dos atores. Fonte: Trate-me Leão (2019). Análise de textos dramáticos contemporâneos6 Outros autores que se destacam neste momento são Juca de Oliveira, Walcyr Carrasco, Maria Adelaide Amaral e Millor Fernandes. Dentre os encenadores, destacamos o trabalho de Possi Neto (2019), que possui ainda hoje uma sólida carreira, tendo atuado como diretor, cenógrafo, iluminador, coreógrafo e figurinista. Um de seus espetáculos que se destaca é De braços abertos, a partir do texto de Maria Adelaide Amaral, encenado em 1984, o qual foi muito premiado. Nesse espetáculo, segundo Magaldi (1996, p. 281), o diretor soube criar uma atmosfera mágica no palco, “[...] em que a luz dirigia a flexibilidade dos movimentos, evitando os prosaicos pormenores realistas, para instaurar a fluência do sonho [...]”. Além de diversos outros espetáculos em que o diretor inova na montagem de textos clássicos, ele se destaca também pela produção de espetáculos musicais e de dança-teatro, alguns com Marilena Ansaldi, atriz e coreógrafa pioneira na criação desse tipo de espetáculo no País. Para assistir a um vídeo sobre a pioneira do teatro-dança no Brasil, Marilena Ansaldi, acesse o link a seguir: https://goo.gl/JKQ4Dn Outros encenadores que se destacaram nesta época e continuaram com uma sólida carreira no teatro foram José Celso Martinez Corrêa, Celso Nunes e Marcio Aurélio, e os já falecidos Antônio Abujamra (falecido em 2015) e Fauzi Arap (falecido em 2013). A dimensão performática do fazer literário Como você pôde ver até então, a mudança de foco dos dramaturgos para os encenadores gera uma mudança no teatro, surgindo o que Magaldi (1996) denominará “encenadores-criadores”. Não é o fim do texto teatral, mas o início da valorização da montagem dos textos no palco, passando-se, então, a admitir que, “[...] se o dramaturgo é o autor 7Análise de textos dramáticos contemporâneos do texto, o encenador é o autor do espetáculo [...]” (MAGALDI, 1996, p. 278). Ryngaert (1998), por sua vez, aponta para a passagem de um teatro em que o texto faz sentido para uma prática teatral em que tudo faz sentido. Você deve estar se perguntando: o que muda ao se valorizar o papel do encenador? Alguns exemplos são possíveis a partir de um olhar atento para as montagens realizadas por Antunes Filho: em Romeu e Julieta, o encenador coloca a música dos Beatles em lugar das composições de época; em Paraíso Zona Norte, enxuga os textos A falecida e Os sete gatinhos, de Nelson Rodrigues, e os caracteriza de maneira diferente em relação à ambientação e às vestimentas; em A hora e vez de Augusto Matagra, dramatiza a narrativa de Guimarães Rosa; em Nova velha história, adapta o conto Chapeuzinho vermelho sem utilizar palavras. Para Magaldi (1996, p. 280), Antunes Filho “[...] preferiu sempre apoiar-se em obras literárias alheias que permitem maior segurança ao seu vôo criador [...]”. A supremacia do encenador Como você já viu, não é só no Brasil que ocorre este movimento, pelo contrário: o Brasil acompanha, sempre um pouco mais tarde, um movimento mundial. O teatro contemporâneo que se faz de modo mais performático e bem menos textual está a pleno vapor ao redor do mundo. O teórico francês Patrice Pavis, por exemplo, afi rma que “[...] atualmente, [anos 80] texto de teatro é tudo aquilo que se fala em cena [...]” (PAVIS, 1982 apud FERNANDES, 2001, p. 69), demons- trando uma supremacia do espetáculo em si sobre o texto e, consequentemente, sobre seu autor. A figura do encenador está ligada a um realizador do teatro, que se preocupatanto com a encenação dos atores quanto com os outros elementos: figurino, iluminação, adaptação do texto dramático, ou seja, com a totalidade dos elementos cênicos. O encenador se encarrega de materializar a ideia no palco, portanto, é o mesmo que o diretor. Com ele, a ideia de supremacia do texto é derrubada. Análise de textos dramáticos contemporâneos8 Magaldi (1996) cita alguns encenadores que se destacam nacional e inter- nacionalmente e que ajudam a compreender a cena teatral contemporânea. Gerald Thomas, por exemplo, é um encenador que privilegia o aspecto visual, articulando imagens poderosas no todo da montagem. Outros encenadores que inovaram a cena teatral, como o americano Bob Wilson, e seus painéis eletrônicos no palco, e a alemã Pina Bausch, e suas obras coreográficas, também contribuíram para os questionamentos relativos à importância do texto dramático, uma vez que esses artistas trazem para o palco suas formações e origens nas artes visuais ou na dança, mesclando esses elementos com textos que, não necessariamente, foram escritos para teatro. Ao mesmo tempo, todos os elementos artísticos (dança, música, imagem, movimento) que passam a ser usados pelos encenadores no palco em suas montagens cênicas também contribuem para que os escritores de teatro se sintam mais livres, com menos limites do que pode ou não ter caráter cênico. Experimentação e performance Todavia, para além de uma “supremacia”, o que marca o teatro contem- porâneo é a experimentação, a vontade de grupos e coletivos de fazerem teatro, sem tanto apego a regras. Nesse sentido, em 1971, por exemplo, surge o Théâtre Ouvert, na França, como um local de experimentação, pesquisa e divulgação, que se transformou em um espaço de criação tea- tral, buscando uma outra relação com os textos dramáticos. Isso era feito, segundo Ryngaert (1998, p. 74), por meio de: [...] leitura a uma ou mais vozes, espacializações depois de doze dias de ensaios; ‘células de criação’ reunindo atores e autores em torno de uma peça saída do forno ou que está sendo escrita. [...] O Théâtre Ouvert institucionalizou as práticas da experimentação e da descoberta retomando, desenvolvendo ou inventando formas adaptadas para isso, ao lado das tarefas de edição e criação. A experiência do Theatre Ouvert e aquelas que se seguiram a ele de- monstram uma inversão das etapas de uma montagem teatral: passa-se a experimentar em cena, com os atores, primeiro, e depois buscar o texto como registro do que se realizou. Isso dá ao texto um caráter performático. 9Análise de textos dramáticos contemporâneos O termo performance é amplo, e abrange outras áreas da vida além do fazer artístico, podendo designar o desempenho e a possibilidade de medir o desempenho na execução de alguma atividade. Segundo Fernandes (2001, p. 72), o texto performático é uma nova forma de texto dramático, que não pode separar-se da encenação, ou seja, ele só existe na “[...] materializaç ã o cê nica relacionada a outros componentes da escritura teatral [...]”, e é só assim que ele faz sentido. O texto performático é, segundo a autora, “[...] fragmentado, heterogêneo, múltiplo [...]”, ele serve como partitura daquilo que será representado. Como você viu anteriormente, não é somente o teatro que possui uma di- mensão performática, a arte em geral pode ter essa dimensão. O pesquisador Schechner (2006) possui um importante estudo sobre a performance. No sentindo artístico, o pesquisador olha para a arte entrelaçando-a a um viés antropológico, ou seja, considerando o sujeito tanto como artista e quanto como um homem no mundo, com todas as questões culturais que o atravessam. Nesse sentido, Schechner acredita que a questão cultural influencia diretamente no que se considera artístico ou não, uma vez que “Objetos e performances chamados de ‘arte’ em algumas culturas, são aqueles que são feitos ou fabricados em outras culturas sem assim ser designados [...]” (SCHECHNER, 2006, p. 32). Além disso, o autor traz dos estudos da linguagem a ideia de que a linguagem não apenas exprime sensações, estados, coisas, ela também produz sensações, estados, coisas, etc. Dessa forma, você pode perceber que, uma vez que o conceito de arte não tem limites bem definidos, misturando-se cultura, história, vida cotidiana e fazer artístico, também a literatura não se limita à palavra escrita. Uma imagem pode ser lida e possuir um caráter poético, assim como você viu anteriormente que a dança (p. ex., na obra de Pina Bausch) pode apresentar uma narrativa e contar uma história. A poesia não precisa necessariamente do registro escrito para acontecer (há séculos ela é também oral), podendo ser criada a partir da visualidade ou da musicalidade da palavra. Por isso, o teatro, a literatura e a arte em geral adquirem caráter performático também quando exibem operações envolvidas nesses atos de criação, ou seja, quando se mostram como ações, processos, frente a um público, ou mesmo quando o próprio artista se exibe – se inventa – em sua obra. Análise de textos dramáticos contemporâneos10 A fotógrafa e escritora francesa Sophie Calle articula, em suas obras, escrita e imagem, partindo de um projeto fotográfico que se transforma em instalações e, posteriormente, é transposto para o formato de livro. Contudo, não é somente no formato ou no suporte que se dá essa articulação, ou seja, não é estritamente formal. Sophie utiliza-se de “jogos performáticos”, partindo do que as imagens da fotografia trazem para a história que quer contar. Paul Auster é um dos escritores com os quais ela colabora e cujo texto serve de base para um de seus projetos. Assim, a performer traz, na imagem e na palavra, sua própria imagem e seu próprio olhar para falar de experiências pessoais, de cotidiano, e traçar narrativas. Fonte: Fabris (2009, documento on-line). Um dos efeitos do caráter performático na arte é possibilitar a abertura dos conceitos e das definições. Assim, a literatura e a dramaturgia, por exemplo, não dependem mais de regras específicas para acontecer. Elas acontecem inclusive no questionamento, externo e interno à própria arte, ao gerar provocações sobre se aquilo é arte. Esse questionamento é provocativo no sentido de dar movimento ao fazer artístico. 11Análise de textos dramáticos contemporâneos Outro exemplo possível é de uma performance de Marina Abramović, con- siderada a pioneira da arte performática. A performance, de 1974, chamava-se Rythim 0: a artista se colocou imóvel em uma sala em Nápoles, na Itália, e disponibilizou 72 objetos em cima de uma mesa, juntamente com “instruções” para o público, que diziam: “Há 72 objetos na mesa, que podem ser usados em mim como desejado. Performance. Eu sou o objeto. Durante esse período, eu assumo total responsabilidade. Duração: 6 horas (20h-2h)”. Entre os objetos, havia batom, vinho, tesoura, garfo, faca, chicote e até mesmo uma arma car- regada com uma bala. O público estava autorizado a utilizar aqueles objetos para interagir com a artista. A performance chocou por revelar o lado mais tirano e vil do ser humano: se, no início, o público interagiu de forma branda, beijando a artista, passado algum tempo, começou a agir de maneira violenta, rasgando as roupas da artista, cortando-a, e, ao final, chegando até mesmo a apontar a arma carregada para ela. Esse trabalho de Abromovic nos coloca diante de uma das características essenciais da arte contemporânea, na qual palavra, performance e experi- mentação estão entrelaçados: a arte expressa sentimentos e emoções, coloca o sujeito diante de questionamentos sobre seu próprio ser e se constitui como um espaço de reflexão das mais diversas maneiras. A performance, além disso, coloca o próprio artista em contato direto com o público, os membros do público em contato consigo mesmos e uns com os outros e e em contato com a própria experiência da vida e da arte. Na literatura, conforme Rodrigues (2010), a performance pode ser con- sideradanas experimentações, nas novas formas de escrever, até mesmo no fluxo de consciência, por exemplo, em que o autor deixa vir à tona todos os seus sentimentos e emoções através das personagens, sem se preocupar apenas com as questões formais da narrativa. Nesse sentido, Clarice Lispector e James Joyce são exemplos fundamentais. Segundo o autor, “Performam-se assim os jeitos, os formatos, o inventado, e então se reinventa, se mistura, se alterna e, consequentemente, se estabelece novos meios de expressão [...]” (RODRIGUES, 2010, p. 35). O autor apresenta o teatro de Hilda Hilst como um exemplo da escrita performática. Em As aves da noite, Hilda traz a estratégia de ficcionalizar ou teatralizar um fato histórico. Análise de textos dramáticos contemporâneos12 Veja a epígrafe da peça As aves da noite, de Hilda Hilst: AUSCHWITZ, 1941 Do campo de concentração fugiu um prisioneiro. Em represália os SS, por sorteio, condenaram alguns homens a morrer no Porão da Fome. Figurava entre os sorteados o prisioneiro nº 5.659, que começou a chorar. O padre católico franciscano, Maximilian Kolbe, prisioneiro de nº 16.670, se ofereceu para ocupar o lugar do nº 5.659. Foi aceito. Os prisioneiros foram jogados numa cela de concreto onde ficaram até a morte. O que se passou no chamado Porão da Fome ninguém jamais soube. A cela é hoje um monumento. Em 24 de maio de 1948, teve início em Roma, o processo de beatificação do Padre Maximilian Kolbe. Nesse trecho, a autora traz para a peça um texto informativo que não aparece como uma indicação cênica, nem como uma fala. Para Rodrigues (2010, p. 70), este é apenas um trecho dessa peça que possui um caráter performático, uma vez que poderia ser lido “[...] performaticamente nos arquivos do corpo, como lápide presentativa do genocídio da Segunda Guerra e até como fragmento do silêncio intermitente que tenta sepultar o crime histórico.”. A partir desse trecho, a autora indicaria um contato da personagem com o histórico e, mais do que isso, do público com a história, indicando no texto, também, a disposição da cena em relação à plateia, reconstruindo uma cela na- zista e projetando, pelas rubricas, que o público deve estar em contato ao mesmo tempo íntimo e distante do que ocorre neste espaço. No meio do sofrimento, da cela, da tortura, Hilda traz à cena um poeta, criando no texto uma leitura de sensações e percepções daquilo que se registra (p. ex., historicamente) e do que é possível de ser poetizado, ainda que nessa esfera desumana de guerra. Assim, esta se caracterizaria como uma obra performática por possuir vestígios autorais (i.e., traços autobiográficos), por exemplo, por usar o fragmento histórico em um texto ficcional, rompendo com as fronteiras entre esses termos, e por fazer 13Análise de textos dramáticos contemporâneos uma mediação entre diferentes identidades, como as que se vê nas personagens. A palavra, na peça, é também incorpórea, segundo Rodrigues (2010) – a escrita delira, interroga, perece, assim como os corpos degradados em Auschwitz. É performática, então, porque “mantém vivo”, na repetição de ações, o tempo heterogêneo evocado pela própria performance. Mostra como o passado não passou totalmente, mas pode ser evocado e percebido no presente. Desafios e caminhos do teatro contemporâneo Em 1996, quando Magaldi publicou o texto Tendências contemporâneas do teatro brasileiro, o autor apontava como um dos desafi os do teatro do século que estava por vir o equilíbrio do espetáculo: não mais a supremacia de texto ou de encenação sobre os outros elementos, indicando ainda que “[...] os diretores mais conscientes estão preocupados em aprimorar métodos de interpretação, já que a última palavra no diálogo com o público é dada mesmo pelo ator [...]” (MAGALDI, 1996, p. 286). Ao mesmo tempo, o crítico indicava que os dramaturgos da nova geração deveriam tomar consciência de uma escrita voltada para o palco, para o que seria contemplado em cena. Não por acaso, o Brasil assistiu a um retorno forte das rubricas, as indicações cênicas constantes no texto teatral. No entanto, Magaldi (1996) levanta uma questão que ainda hoje é atual: as dificuldades de produção de teatro em nosso País, sobretudo no que se refere ao financiamento da cultura. Veja a seguir como o autor expõe essa questão. O mais grave refere-se às dificuldades para a produção. Mesmo no tempo da ditadura, o Estado subsidiava o teatro. Não importa recorrer a raciocínio de ordem moral, ha- vendo os que pensam existir, nas subvenções, tentativa de compra das consciências. Tenho para mim que essa era uma prática já consolidada, que ninguém pensava em alterar. Lembre-se que na França, na Alemanha, na Itália e na Inglaterra, entre outros países adiantados, nunca se pôs em dúvida o apoio maciço à cultura. Na Alemanha dividida, a parte ocidental reservava para a bilheteria a função de cobrir apenas 20% do orçamento dos teatros oficiais, responsabilizando-se o Estado pelos 80% restantes. Os Estados Unidos, paradigma da livre iniciativa, compreenderam a necessidade de Análise de textos dramáticos contemporâneos14 Atualmente, o Brasil avançou um pouco em relação às críticas de Magaldi (1996), tendo diversos editais de financiamento e incentivo à cultura e às artes cênicas no País. No entanto, muitos fatores ainda contribuem para que o povo brasileiro não seja tão assíduo no teatro, como o advento das tecnologias digitais e as redes sociais, que trazem um entretenimento rápido e acessível, além da perda da referência do teatro como entretenimento, cujas causas podem ser relacionadas à educação e à pouca divulgação dos espetáculos. ABAURRE, M. L. M.; PONTARA, M. Literatura brasileira: tempos, leitores e leituras. Porto Alegre: Moderna, 2005. ANTUNES FILHO. In: ENCICLOPÉDIA Itaú Cultural de Arte e Cultura Brasileiras. São Paulo: Itaú Cultural, 2019. Disponível em: http://enciclopedia.itaucultural.org.br/pessoa18335/ antunes-filho. Acesso em: 16 mar. 2019. COELHO, S. S. Montagem empresta maturidade a Koltès. 2003. Disponível em: https:// www1.folha.uol.com.br/fsp/acontece/ac1510200301.htm. Acesso em: 16 mar. 2019. FABRIS, A. Sophie Calle: entre imagens e palavras. ARS, São Paulo, v. 7, n. 14, p. 68- 85, 2009. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pi d=S1678-53202009000200006. Acesso em: 22 mar. 2019. FERNANDES, S. Apontamentos sobre o texto teatral contemporâneo. Revista Sala Preta, São Paulo, v.1, 2001. Disponível em: http://www.revistas.usp.br/salapreta/article/ view/57007. Acesso em: 16 mar. 2019. amparar a cultura: o National Endowment for the Arts e as fundações colocaram sob as suas asas as iniciativas sérias, excluindo somente as de caráter abertamente comercial. O advento da abertura pôs em circulação no Brasil uma filosofia perversa, como se a proteção à cultura nascesse de um lobby corporativista. O protecionismo campeava nas atividades econômicas que poderiam dispensá-la, ao passo que o Ministério da Cultura ficou reduzido à ridícula verba de 0,04% do orçamento da União. Evidentemente, com numerário que mal dava para o seu próprio custeio, o Ministério teve de abdicar de uma política de cultura, no que foi acompanhado pelos governos estaduais. Fonte: Magaldi (1996, documento on-line). 15Análise de textos dramáticos contemporâneos FOLHA ONLINE. Há 30 anos, Antunes Filho encenava "Macunaíma" pela primeira vez. 2008. Disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/folha/publifolha/371630-ha-30-anos- -antunes-filho-encenava-macunaima-pela-primeira-vez.shtml. Acesso em: 16 mar. 2019. MAGALDI, S. Tendências contemporâneas do teatro brasileiro. Estudos Avançados, São Paulo, v. 10, n. 28, p. 277-289, 1996. Disponível em: http://www.scielo.br/scielo. php?script=sci_arttext&pid=S0103-40141996000300012. Acesso em: 16 mar. 2019. POSSI NETO, J. In: ENCICLOPÉDIA Itaú Cultural de Arte e Cultura Brasileiras. São Paulo: Itaú Cultural, 2019. Disponível em: http://enciclopedia.itaucultural.org.br/pessoa109215/jose-possi-neto. Acesso em: 16 mar. 2019. RODRIGUES, E. O teatro performático de Hilda Hilst. 2010. Dissertação (Mestrado em Letras) – Programa de Pós-Graduação em Estudos Literários, Faculdade de Letras, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2010. Disponível em: http:// www.bibliotecadigital.ufmg.br/dspace/bitstream/handle/1843/ECAP-84VLJ2/disser- tacaoderradeirapraentregar.pdf?sequence=1. Acesso em: 16 mar. 2019. RYNGAERT, J.-P. Ler o teatro contemporâneo. São Paulo: Martins Fontes, 1998. SCHECHNER, R. What is performance? In: SCHECHNER, R. Performance studies: an intro- duccion. 2nd ed. New York: Routledge, 2006. p. 28-51. TRATE-ME LEÃO. In: ENCICLOPÉDIA Itaú Cultural de Arte e Cultura Brasileiras. São Paulo: Itaú Cultural, 2019. 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