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ORGANIZADORES Rafael Frois Khalla Ribeiro Tupinambá Bruno Costa da Fonseca Deuzivania Carlos de Oliveira Lazer, Turismo e Desenvolvimento Regional na Amazônia Legal: DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES Projeto Gráfico: Aron Rodrigo Batista Diagramação: Efeito Sete Bloco de Pesquisadores(as) em Lazer e Turismo do Norte do Tocantins – Buriti Líderes: Prof. Dr. Rafael Frois e Prof. Dra. Kênia Costa Conselho editorial: Prof. Dra. Ana Paula Guimarães Santos de Oliveira Prof. Dr. Cleber Augusto Castro Prof. Dr. Rafael Frois Prof. Dr. Rodrigo Cardoso da Silva Prof. Dra. Sabrina Mesquita do Nascimento Prof. Dra. Kênia Gonçalves Costa Prof. Dra. Poliana Cardoso Oliveira Prof. Dra. Salete Gonçalves LAZER, TURISMO E DESENVOLVIMENTO REGIONAL NA AMAZÔNIA LEGAL: DIÁLOGOS INTERDISCIPLINARES [livro eletrônico] / organizadores Rafael Frois, Khalla Tupinambá Ribeiro, Bruno Costa da Fonseca, Deuzivania Carlos de Oliveira; -- 1. ed. -- Foz do Iguaçu, PR: Efeito Sete, 2021. PDF Bibliografia ISBN 978-65-993617-1-5 1. Lazer, Turismo e Desenvolvimento Regional 2. Amazônia Legal 3. Lazer e Turismo do Norte do Tocantins. CDU: 338.48 379.85 Copyleft 2021 2021 As informações e as imagens são de responsabilidade dos autores. A Editora não se responsabiliza por eventuais danos causados pelo mau uso das informações contidas neste livro. EDITORA EFEITO SETE Rua Francisco Domingos Zardo, 26 85870597 | Foz do Iguaçu, PR Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil) SUMÁRIO PREFÁCIO AIRTON SIEBEN 8 LAZER, TURISMO E DESENVOLVIMENTO REGIONAL NA AMAZÔNIA LEGAL: NOTAS INTRODUTÓRIAS PARA UM DIÁLOGO INTERDISCIPLINAR RAFAEL FROIS KHALLA RIBEIRO TUPINAMBÁ BRUNO COSTA DA FONSECA DEUZIVANIA CARLOS DE OLIVEIRA 12 PATRIMÔNIO CULTURAL, LAZER E ETNOTURISMO 19 FESTEJO DA ABOLIÇÃO E PATRIMÔNIO IMATERIAL NA COMUNIDADE QUILOMBOLA DONA JUSCELINA/MURICILÂNDIA-TO: POTENCIALIDADES PARA O TURISMO CULTURAL KHALLA RIBEIRO TUPINAMBÁ KÊNIA GONÇALVES COSTA ARYSTÓTELES FRANKLYN CHAVES BORGES 20 PRÁTICAS CULTURAIS DO POVO AKWẼ- XERENTE: DESCOLONIZAR O LAZER KHELLEN CRISTINA PIRES CORREIA SOARES JOSÉ ALFREDO DEBORTOLI BELENI SALETÉ GRANDO 39 A EXPERIÊNCIA E OS DESAFIOS DO TURISMO NA COMUNIDADE INDÍGENA “TRÊS UNIDOS” DO POVO OMÁGUA/KAMBEBA THARYN MACHADO TEIXEIRA MARIO DOS SANTOS CRUZ 60 DESENVOLVIMENTO REGIONAL E POLÍTICAS PÚBLICAS 86 SANEAMENTO BÁSICO E AS TEMPORADAS DE PRAIA NA REGIÃO DO BICO DO PAPAGAIO, TOCANTINS: OUVINDO AS VOZES DAS COMUNIDADES RURAIS E RIBEIRINHAS RENATA RAUTA PETARLY WELISON PORTUGAL DE SOUZA ANA ROSA CARVALHO DE OLIVEIRA AURÉLIO PESSÔA PICANÇO 87 “DE LONGE TODA SERRA É AZUL!”: AS TRANSIÇÕES NO CERRADO E A BUSCA PELO DESENVOLVIMENTO REGIONAL SUSTENTÁVEL DO JALAPÃO CLEITON SILVA FERREIRA MILAGRES WALDECY RODRIGUES MARIA DO MAR PEREZ-FRA ANA ISABEL GARCÍA ARIAS 108 AS REGIÕES TURÍSTICAS DO BICO DO PAPAGAIO E DO VALE DOS GRANDES RIOS (TOCANTINS) À LUZ DO MAPA DO TURISMO BRASILEIRO DIANINE CENSON 136 ORGANIZAÇÃO COMUNITÁRIA, MEIO AMBIENTE E TURISMO DE BASE COMUNITÁRIA 157 ORGANIZAÇÃO COMUNITÁRIA E RESISTÊNCIA: REPRESENTAÇÕES DO ASSENTAMENTO ILHA VERDE A PARTIR DA IMPRENSA BRUNO COSTA DA FONSECA FERNANDA RODRIGUES DOS SANTOS DEUZIVANIA CARLOS DE OLIVEIRA 158 PROJETO DE EDUCAÇÃO AMBIENTAL E SUA INTERFACE COM O DESENVOLVIMENTO DE COMUNIDADES NO NORTE DO TOCANTINS E SUL DO MARANHÃO ROSENI APARECIDA DE MOURA CLEITON FERREIRA DA SILVA MILAGRES POLIANA CARDOSO OLIVEIRA ROBERTA SILVA 179 O ECOMUSEU DA AMAZÔNIA E A IMPLANTAÇÃO DE CIRCUITOS INTERATIVOS DE TURISMO COMUNITÁRIO NA REGIÃO INSULAR DE BELÉM: O ROTEIRO PATRIMONIAL DE VISITAÇÃO NA ILHA DE COTIJUBA JOÃO GABRIEL PINHEIRO HUFFNER LETÍCIA LIMA DE FREITAS 199 APA PÉ DO MORRO E A SUSTENTABILIDADE DO TURISMO CULTURAL RELIGIOSO STEPHANNI GABRIELLA SILVA SUDRÉ 219 SOBRE OS ORGANIZADORES E AUTORES DA OBRA 238 PREFÁCIO O Brasil é um país fascinante com diversidade econômica, política, cultural, social e ambiental. Porventura, seja a Amazônia legal ou região Norte (não sendo sinônimas) a mais diversa, mesmo havendo discordâncias. O Brasil e sua diversidade regional têm como grande desafio ser compreendido, decifrado e pesquisado. Atentos a estas questões, os autores dos capítulos escreveram esta obra para atender e apresentar um quadro contemporâneo da Amazônia Legal. A Amazônia, uma área extensa e “despovoada” desperta a atenção não só do Brasil, mas do mundo. A Amazônia é vista como uma fronteira natural que ainda precisa ser conquistada e domada pelo homem. O grande potencial da Amazônia, porventura seja o seu maior problema, e não imagina-se somente as riquezas naturais, mas destacam-se as riquezas humanas, representadas nas populações indígenas, quilombolas caboclas, ribeirinhas e inúmeras outras. Para muitos “desavisados”, na Amazônia somente existem indígenas e não se compreende a diversidade da presença de outras comunidades tradicionais, tampouco a diversidade étnica dos próprios autóctones. Nas inúmeras potencialidades da Amazônia, há recentemente uma preocupação voltada para o turismo, o lazer e desenvolvimento regional. Iniciou-se estímulo para o turismo de caráter ecológico, que pode tornar-se atividade econômica importante, gerando empregos e renda. Este processo, o olhar humanizado de preocupação com o ambiente e as populações tradicionais, necessita de intenso acompanhamento e pesquisa. Desta forma, o Buriti (Bloco de pesquisadores em Lazer e Turismo do Norte do Tocantins) estimula e articula pesquisa 8 PREFÁCIO entre pesquisadores(as) nos campos do lazer, do turismo e do desenvolvimento local, produzindo conhecimento e pesquisas de impacto social na Amazônia Legal. O objetivo da obra “Lazer, turismo e desenvolvimento regional na Amazônia Legal: Diálogos Interdisciplinares” é apresentar e discutir, de forma teórico e prática, diferentes ações e realizações dos pesquisadores(as) do coletivo Buriti e seus convidados. Os autores convidados para esta obra desvendaram e revelaram um território de diversos e inúmeros significados. As pesquisas e os levantamentos feitos por este grupo de observadores fornecem subsídios para desenvolver ações para um turismo, lazer e desenvolvimento regional responsável e comprometido com ações sociais necessárias a estas populações localizadas numa região desprovida de políticas públicas, a fim de enfrentar o avanço econômico cada vez mais intenso em seu território. O livro em forma de e-book, permite que as comunidades locais falem sobre si, muito embora os pesquisadores possam vir de um mundo acadêmico, há esta conexão onde a sensibilidade deste coletivo de investigadores propicia uma visão da região e suas populações a seu respeito, a sua memória e a sua imaterialidade. Isto permite que vozes outrora mal compreendidas, pelos grandes projetos políticos econômicos, possam ser “traduzidas” a fim de compreender esta diversidade social, econômica, política, cultural e ambiental inerente ao Norte do Tocantins e Amazônia. Uma região onde a dinâmica climática influencia os ciclos de vida das comunidades e o local resiste a ordem global, não homogeneizador, mas padronizador. A Amazônia percebe que suas riquezas materiais e imateriais foram e são diminuídas. Assim, torna-se fundamental a presença da pesquisa, da extensão, de pesquisadores 9PREFÁCIO e de extencionistas engajados para compreender, desenvolver e “blindar” este território. Por comentar em parte norte do estado do Tocantins e proximidades, é oportuno destacar o papel da mais nova universidade do Brasil, a Universidade Federal do Norte do Tocantins (UFNT). É salutar que esta universidade em processo de transição pela implantação conte com um coletivo de pesquisadores com o olhar voltado para a temática apresentada. A necessidade decontar com pensamentos crítico-reflexivos e ações operativas, desconstrói representações não sustentáveis a partir do conceito distorcido de sustentabilidade. Desta forma, contribuindo na formação e difusão de outras representações, reconhecendo e valorizando potencialidades nas sociedades e no ambiente locais/ regionais. O respeito a diversidade ecológica, cultural e das ações coletivas horizontais, imaginando bloco de pesquisadores de conhecimentos científicos e tecnológicos apropriadas a diversidade e a particularidade local como se propôs nesta obra. Com a cooperação dos vários especialistas e com a comunidade, pode-se demonstrar as vantagens econômica, sociais, culturais e ambientais que deve respeitar as técnicas dos lugares em vez de se transformar e destruir as especificidades dos lugares com técnicas que visam a maximização do rendimento do capital global, concentrado e verticalizado. O trabalho científico, intelectual, pedagógico, técnico, pesquisa, ensino, extensão e outras atividades devem contribuir para melhorar a vida em sociedade, pelos menos nas escalas regional e local, o foco de atuação do livro. Lazer, cultura, patrimônio, meio ambiente, turismo, desenvolvimento regional, sustentabilidade, interdisciplinaridade, Amazônia e políticas públicas são algumas das palavras chaves neste livro. 10 PREFÁCIO Convido os leitores a saber ler esta obra e saber compreender o norte tocantinense e a Amazônia, por meio do conjunto de capítulos presentes nesta importante abordagem voltada para temas tão caros e necessários. Airton Sieben Reitor Pró-Tempore da Universidade Federal do Norte do Tocantins 11PREFÁCIO LAZER, TURISMO E DESENVOLVIMENTO REGIONAL NA AMAZÔNIA LEGAL: NOTAS INTRODUTÓRIAS PARA UM DIÁLOGO INTERDISCIPLINAR RAFAEL FROIS1 KHALLA R. TUPINAMBÁ 2 BRUNO C. FONSECA3 DEUZIVANIA C. OLIVEIRA4 1Doutor em Estudos do Lazer pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG). Atuou como professor substituto no Curso de Tecnologia em Gestão de Turismo na Universidade Federal do Tocantins (UFT). É líder e co-fundador do Buriti - Bloco de pesquisadores(as) em Lazer e Turismo do Norte do Tocantins. 2Mestre em Cultura e Turismo pela Universidade Estadual de Santa Cruz -UESC, Docente Assistente Classe B, nível 1, Curso Gestão em Turismo, Universidade Federal do Tocantins-UFT, Campus Araguaína, líder da linha de pesquisa patrimônio cultural e etnoturismo no Norte do Tocantins. 3Analista de Monitoramento e Desenvolvimento de Cooperativas (SESCOOP/ RJ). Doutor em Ciências Sociais em Desenvolvimento, Agricultura e Sociedade pela Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ). 4Professora Convidada do curso Tecnólogo em Gestão de Cooperativas na Universidade Federal do Tocantins (UFT) e Secretária Executiva do projeto de extensão da Universidade da Maturidade. Mestranda em Educação, especialista em Educação, graduada em Tecnólogo em Gestão de Cooperativas, ambas pela Universidade Federal do Tocantins (UFT). 13FROIS, R; TUPINAMBÁ, K. R; FONSECA, B. C; OLIVEIRA, D. C. A iniciativa de construir esta obra partiu do Bloco de Pesquisadores(as) em Lazer e Turismo do Norte do Tocantins - Buriti, um coletivo de pesquisadores(as) dos colegiados dos cursos de Gestão de Turismo e Gestão de Cooperativismo da Universidade Federal do Tocantins, Campus Araguaína. O objetivo do grupo é ser um espaço interdisciplinar de formação, estímulo e articulação entre pesquisadores(as), capazes de apoiar o desenvolvimento regional sustentável do turismo na Amazônia Legal. O grupo se organizou em 2019 e 2020 em quatro temáticas/linhas de pesquisa: 1) Lazer, meio ambiente, turismo e novas tecnologias; 2) Patrimônio cultural e etnoturismo no Norte do Tocantins; 3) Organização comunitária, empreendimentos coletivos e turismo de base comunitária; e 4) Desenvolvimento regional e políticas públicas de lazer e turismo. Nesta primeira obra convidamos pesquisadores do Norte do Brasil para discutir, de forma teórico-prática, diferentes ações realizadas na região a fim de somar esforços na disseminação de conhecimento científico que sensibilize especialmente estudantes, ativistas da sociedade e gestores públicos para o desenvolvimento de políticas públicas de lazer, cultura, turismo e meio ambiente. Vale mencionar que este último segue extremamente fragilizado na região norte do país, onde a sociedade vem enfrentando grandes retrocessos, sobretudo no que se refere a políticas de preservação ambiental. A maioria dos textos apresentados são derivados de trabalhos realizados no Tocantins, o mais novo estado brasileiro (Mapa 1), fundado em 1989 a partir do desmembramento do norte do estado de Goiás. O estado se destaca no cenário econômico brasileiro por ter grandes áreas destinadas à prática do agronegócio. 14 LAZER, TURISMO E DESENVOLVIMENTO REGIONAL ... Mapa 1: Amazônia Legal com destaque para o Tocantins e os principais territórios citados no livro Grupo de pesquisa Buriti (2021) Em relação ao lazer e ao turismo, o Jalapão tem sido nos últimos anos o destino mais conhecido. Porém, o estado também tem forte vocação turística para o etnoturismo, com destaque para o patrimônio cultural ancestral brasileiro representado pelos povos indígenas e quilombolas. Em outra vertente, o turismo também atua em áreas naturais com destaque para as práticas de lazer nos dois grandes rios: Tocantins e Araguaia. 5Mapa elaborado e cedido pelo geógrafo Hudson Damásio Alves hudsondamasio18.hda@gmail.com 15FROIS, R; TUPINAMBÁ, K. R; FONSECA, B. C; OLIVEIRA, D. C. Os capítulos do livro foram divididos em três seções: 1) Patrimônio Cultural, Lazer e Etnoturismo; 2) Desenvolvimento Regional e Políticas Públicas; e 3) Organização Comunitária, Meio Ambiente e Turismo de Base Comunitária. Na primeira seção dedicada ao “Patrimônio Cultural, Lazer e Etnoturismo” pesquisadores estabelecem diálogo a partir dos campos da antropologia, do lazer e turismo. No primeiro capítulo “Festejo da abolição e patrimônio imaterial na Comunidade Quilombola Dona Juscelina/Muricilândia – TO: Potencialidades para o turismo cultural”, Khalla Tupinambá, Kênia Costa e Arystóteles Borges, apresentam as representações do patrimônio imaterial da comunidade Dona Juscelina por meio do Festejo da Abolição, tendo como principais informantes os organizadores e mestres das manifestações culturais apresentadas no Festejo, os quais demarcam de modo preponderante a identidade quilombola na comunidade. O texto, além de ser uma oportunidade para pesquisadores interessados nas práticas de lazer e cultura da população quilombola do Tocantins, também tece reflexões sobre as possibilidades de se pensar o turismo cultural em comunidades quilombolas. No segundo capítulo “Práticas culturais do Povo Akwê- Xerente: descolonizar o lazer”, Khellen Cristina, José Alfredo Debortoli e Beleni Saleté Grando apresentam um capítulo que tem como proposta descolonizar os conhecimentos historicamente determinados pela ciência ocidental moderna, realizando um movimento de abertura para os conhecimentos gerados e vividos nas práticas sociais cotidianas de lazer/cultura do povo Akwẽ-Xerente do estado do Tocantins. Na perspectiva etnográfica, Tharyn Teixeira e Mario Cruz apresentam no capítulo “Os desafios do turismo na comunidade 16 LAZER, TURISMO E DESENVOLVIMENTO REGIONAL ... indígena “Três Unidos” do povo Omágua/Kambeba”, como a atividade turística foi a principal incentivadora e vitalizadora das práticas tradicionais da comunidade (língua materna, danças, músicas, grafismo, culinária, medicina tradicional e as memórias coletivas). O texto resgata na oralidade dos anciões da aldeia, os 20 anos da experiência do turismo como principal atividade econômica desta comunidade do Estado do Amazonas. Uma das práticas culturais de lazer mais populares do Estado do Tocantinsacontece quando o leito dos rios baixa e forma bolsões de areais e ilhas, que formando praias, fomentam o deslocamento de residentes e turistas para estes locais. A prática que é incentivada pelo poder público para geração de emprego e renda na alta temporada de julho gera significativos impactos para as comunidades ribeirinhas. O tema é objeto de reflexão e denúncia da ausência de políticas públicas intersetoriais de lazer, meio ambiente e turismo, e abre a segunda seção: “Desenvolvimento Regional e Políticas Públicas”. No quarto capítulo, “Saneamento básico e as temporadas de praia na região do Bico do Papagaio, Tocantins: ouvindo as vozes das comunidades rurais e ribeirinhas” Renata Rauta Petarly, Welison Portugal Souza, Ana Rosa Carvalho Oliveira e Aurélio Pessoa Picanço, ressaltam a voz das comunidades rurais e ribeirinhas, a partir da técnica do Diagnóstico Rural Participativo, onde é denunciada toda ausência de uma política de saneamento básico, que é agravada pela presença dos turistas. Também descreve com riqueza de detalhes que impressiona, como é a prática de ocupação e poluição destes territórios de lazer e turismo na alta temporada tocantinense. No quinto capítulo intitulado “De longe toda Serra é azul!”: as transições do cerrado e a busca pelo desenvolvimento regional sustentável do Jalapão”, Cleiton Silva Ferreira Milagres, Waldecy 17FROIS, R; TUPINAMBÁ, K. R; FONSECA, B. C; OLIVEIRA, D. C. Rodrigues, Maria do Mar Perez-Fra e Ana Isabel García Arías apresentam o histórico da criação das unidades de conservação que deram origem à região do Jalapão-TO. E problematizam a complexidade das contradições que envolvem as comunidades tradicionais quilombolas, que fazem o manejo do Capim Dourado envolvendo as unidades de conservação, atividades turísticas sem fiscalização e a pressão da expansão do agronegócio, uma vez que a região está dentro da fronteira agrícola do MATOPIBA (Maranhão, Tocantins, Piauí e Bahia). No sexto capítulo, “As regiões turísticas do Bico do Papagaio e do Vale dos Grandes Rios (Tocantins) à luz do Mapa do Turismo Brasileiro”, Dianine Censon tece reflexões sobre a materialização da macropolítica de desenvolvimento do turismo brasileiro nos municípios da região Norte do Tocantins. Problematiza a necessidade de criação de uma agenda coordenada para construção de políticas públicas de turismo para a região. A terceira seção “Organização Comunitária, Meio Ambiente e Turismo de Base Comunitária”, é aberta com o capítulo “Organização comunitária e resistência: representações do assentamento Ilha Verde a partir da imprensa”, Bruno Costa Fonseca, Fernanda Santos e Deuzivania Oliveira discorrem sobre o conflito instaurado entre as famílias do Assentamento Ilha Verde, no município de Babaçulândia, com a Usina Hidrelétrica Estreito que impactou comunidades de 12 (doze) municípios às margens do rio Tocantins. A promessa de mitigação dos impactos que reduziu a atividade turística, ainda não é uma realidade 7 anos depois da instalação da hidrelétrica. O histórico de resistência das famílias assentadas é escancarado, ressaltando a disputa em torno dos recursos naturais, especialmente pela ocupação às margens do lago formado. 18 LAZER, TURISMO E DESENVOLVIMENTO REGIONAL ... No oitavo capítulo, “Projeto de educação ambiental e sua interface com o desenvolvimento de comunidades no Norte do Tocantins e Sul do Maranhão”, Roseni Aparecida de Moura, Poliana Cardoso Oliveira, Roberta Silva e Cleiton Silva Ferreira Milagres apresentam os resultados do projeto de extensão multidisciplinar formado por professores da Universidade Federal do Tocantins das áreas de ciências humanas, agrárias, biológicas e da saúde, com ações que impactaram 20.247 pessoas, de diferentes categorias de atores sociais, tais como: turistas, barraqueiros, famílias rurais e urbanas, estudantes, pescadores, poder público local, reassentados e famílias lindeiras. No nono capítulo, “O Ecomuseu da Amazônia e a implantação de circuitos interativos de turismo comunitário na Região Insular de Belém: O roteiro patrimonial de visitação na Ilha de Cotijuba”, João Gabriel Pinheiro Huffner e Letícia Lima de Freitas apresentam uma iniciativa museológica junto ao turismo de base comunitária, na Ilha de Cotijuba em Belém do Pará, que dinamiza o patrimônio cultural material e imaterial de duas comunidades locais. No décimo capítulo, “APA Pé do Morro e a sustentabilidade do turismo cultural religioso”, Stephanie Sudré apresenta o potencial do turismo cultural e religioso, e os aspectos que compõem a atratividade turística da área de proteção ambiental Pé do Morro localizado na cidade de Aragominas - Tocantins. De modo geral, agradecemos a disponibilidade e o envolvimento das 35 pessoas de 18 instituições que se dedicaram para materializar esta obra. Esperamos que ela seja o início de uma conversa capaz de criar uma rede de cooperação entre pesquisadores(as) que pensam o lazer, o turismo e o desenvolvimento regional de forma interdisciplinar, no intuito de somar esforços para o desenvolvimento sustentável da Amazônia brasileira. PATRIMÔNIO CULTURAL, LAZER E ETNOTURISMO FESTEJO DA ABOLIÇÃO E PATRIMÔNIO IMATERIAL NA COMUNIDADE QUILOMBOLA DONA JUSCELINA/ MURICILÂNDIA-TO: POTENCIALIDADES PARA O TURISMO CULTURAL FESTIVAL OF ABOLITION AND IMMATERIAL HERITAGE IN THE QUILOMBOLA COMMUNITY DONA JUSCELINA / MURICILÂNDIA-TO: POTENTIALITIES FOR CULTURAL TOURISM KHALLA RIBEIRO TUPINAMBÁ1 KÊNIA GONÇALVES COSTA2 ARYSTÓTELES FRANKLYN CHAVES BORGES3 1Doutoranda em Antropologia pela Universidade Federal da Bahia-UFBA .Mestre em Cultura e Turismo pela Universidade Estadual de Santa Cruz -UESC, Docente Efetiva do curso de Gestão em Turismo UFT- Araguaína. E-mail khallatupi@uft.edu.br 2Doutora em Geografia pela Universidade Federal de Goiás-UFG. Professora Adjunta da Universidade Federal do Tocantins-UFT. Coordenadora do Programa de Pós-Graduação em Estudos de Cultura e Território (PPGCult/ UFT). E-mail: keniacost@uft.edu.br 3Graduado no curso de Gestão de Turismo UFT-Araguaína, e membro da Comunidade Quilombola Dona Juscelina. Bolsista/Proex: Jul 2018/ Dez 2019 E-mail: arystotelesfranklyn69@gmail.com 21 RESUMO Este artigo buscou conhecer e apresentar ao leitor as representações do patrimônio imaterial da comunidade Dona Juscelina, por meio do Festejo da Abolição, tendo como principais informantes os organizadores e Mestres das manifestações culturais apresentadas no Festejo, as quais demarcam de modo preponderante a identidade quilombola na comunidade. Na metodologia, foi utilizada uma pesquisa qualitativa e de observação participante, tendo como instrumentos de introspecção o inventário de “Educação patrimonial: Inventários participativos” (IPHAN, 2016), e ainda roteiros de entrevistas semiestruturadas. Como principais resultados, constatou-se que no Festejo da Abolição há um fluxo turístico latente motivado pela identidade cultural quilombola, e ainda se percebeu a oportunidade de se iniciar uma discussão sobre uma proposta futura de turismo cultural sustentável, fora da temporada do Festejo. Palavras chaves: Patrimônio Imaterial; Festejo da Abolição; Turismo Cultural. ABSTRACT This article sought to understand and present to the reader the representations of the intangible heritage of the Dona Juscelina community through the Feast of Abolition, having as main informants the organizers and Masters of the cultural manifestations presented in the Festejo, which demarcate the quilombola identity in a predominant way in community. In the methodology, a qualitative research and participant observation was used, having as instruments of introspection the inventory of “Heritage education: Participatory inventories (IPHAN, 2016)”, as well as scripts of semi-structured interviews. As main results, it was found that inthe Abolição Feast there is a latent tourist flow motivated by the quilombola cultural identity, and the opportunity to start a discussion about a future proposal for sustainable cultural tourism, outside the Festejo season was also perceived. Key words: Intangible Heritage; Festejo da Abolição; Cultural Tourism. 22 FESTEJO DA ABOLIÇÃO E PATRIMÔNIO IMATERIAL ... 1. INTRODUÇÃO A Comunidade Quilombola Dona Juscelina é formada por duzentas e trinta e seis famílias, totalizando uma média de novecentos quilombolas. A comunidade embora tenha sido reconhecida como urbana, para os quilombolas que estão no ambiente urbano e suas ligações são diretas com o mundo rural, pois foram expropriados de seu território ancestral. Neste sentido, a comunidade luta para reconquistar seu território ancestral, no qual “[...] seu passado histórico os ancestrais dos quilombolas foram obrigados a saírem ou expulsos das terras que ocupavam” (OLIVEIRA, 2018, p. 44). Outro fator perceptível desta ligação é que a maioria dos quilombolas exercem atividades agrícolas em seus pequenos lotes urbanos4, como meio de subsistência. Nesse contexto, em 2007, a Portaria Interna da FCP nº 98, de 26 de novembro, institui o Cadastro Geral de Remanescentes das Comunidades dos Quilombos. É por meio desse cadastro que a Comunidade Dona Juscelina é reconhecida como comunidade remanescente quilombola pela Fundação Cultural Palmares. Em 14 de outubro de 2009, é expedida a certidão de autodefinição de identidade étnica. O processo de demarcação e reconhecimento do território foi aberto em 2010 no INCRA, em Palmas, com o número 54400.000823/2010-31, está em andamento, embora tenha sido concluída a primeira etapa do RTID (Relatório Técnico de Identificação e Delimitação). De modo geral, este estudo visa realizar a análise do patrimônio imaterial da Comunidade Quilombola Dona Juscelina, por meio do Festejo da Abolição, sendo que essa investigação é feita sob a percepção dos organizadores e Mestres (Griô) das manifestações culturais do Festejo. Na sequência será apresentada a metodologia qualitativa utilizada para a elaboração do trabalho, expondo os dados coletados por meio de 4Informações cedidas com base na observação empírica de um dos autores enquanto residente da Comunidade Quilombola Dona Juscelina. 23TUPINAMBÁ, K. R; GONÇALVES, K. C; CHAVES, A. B um inventário participativo e entrevistas semiestruturadas. Assim, os dados obtidos por estes instrumentos de introspecção serão analisados qualitativamente. Portanto, almeja-se por meio das reflexões sobre o acervo do patrimônio imaterial, que se revela a partir do Festejo da Abolição, sensibilizar a comunidade sobre sua riqueza sociocultural. Além de fomentar a discussão sobre a possibilidade do turismo cultural sustentável em comunidades quilombolas. 2. CONSTRUINDO SABERES A CAMINHO DO PATRIMÔNIO IMATERIAL A metodologia utilizada foi norteada pela pesquisa qualitativa, isto é, para Chizzotti (2003, p. 221): O termo qualitativo implica uma partilha densa com pessoas, fatos e locais que constituem objetos de pesquisa, para extrair desse convívio os significados visíveis e latentes que somente são perceptíveis a uma atenção sensível. Nesta perspectiva, a pesquisa qualitativa tem como principal ferramenta o próprio pesquisador, ao ser ele quem analisa os dados coletados buscando os conceitos, os princípios, as relações e os significados das coisas. Nesta acepção, método qualitativo, exige a compreensão de determinada coletividade a partir da interpretação e contextualização por meio da observação, analise documental e entrevistas, em que esta última é mobilizada não como método, mas como ferramenta oral, vindo ao encontro dos objetivos da pesquisa (MINAYO, 2001). É importante enfatizar que a metodologia qualitativa neste trabalho foi abordada em parceria com a observação participante, em que vários anos consecutivos de participação no Festejo da Abolição, 24 FESTEJO DA ABOLIÇÃO E PATRIMÔNIO IMATERIAL ... por um dos autores residentes da comunidade, são analisados comparativamente. Assim, conforme Marujo (2012, p. 5-6) “[...] a observação participante é um mecanismo possível na vida daqueles que estão a ser estudados para compartilhar suas experiências, pois o pesquisador participa enquanto, ao mesmo tempo, observa e desenvolve relações com os informantes”. É relevante frisar, que o trabalho utiliza como instrumentos de pesquisa o “Inventário de Educação Patrimonial: Inventários Participativos” (IPHAN, 2016), o qual foi selecionado devido ser uma ferramenta de pesquisa participativa com objetivo de fazer o inventário em conjunto com o olhar da população local sobre si mesma. No entanto, esse material foi utilizado parcialmente, ou seja, somente os seus questionários voltados para “Celebrações” e “Expressões Corporais”, que são as referências culturais presentes no Festejo da Abolição. Desta feita, segundo o IPHAN (2016), o inventário imaterial participativo, é antes de tudo uma ferramenta de educação patrimonial, que considera a comunidade como protagonista no processo, visto que a mesma descreve e define quais referências culturais possuem valor. Essa limitação em relação a abordagem do inventário do IPHAN (2016) ocorreu primeiramente devido à escassez de tempo, além da ausência da disponibilidade de voluntários para compor uma equipe, que pudesse fazer o inventário do todas referências culturais da comunidade. Por conseguinte, tendo em vista essas nuances do trabalho, que o escopo da metodologia teve como foco principal somente os Festejo da Abolição. Outro instrumento de pesquisa utilizado foi a aplicação de entrevistas semiestruturadas, uma técnica em que [...] o informante tem a possibilidade de discorrer sobre suas experiências, a partir do foco principal proposto pelo pesquisador; ao mesmo tempo que permite respostas livres e espontâneas do informante [...] (SILVA LIMA; ALMEIDA; LIMA 1999, p.133). 25TUPINAMBÁ, K. R; GONÇALVES, K. C; CHAVES, A. B Neste trabalho, foram utilizados dois roteiros de entrevistas, o primeiro voltado aos organizadores do Festejo da Abolição, e outro voltado aos Mestres (Griô) das representações culturais apresentadas no Festejo. É interessante ponderar o desafio que representou o trabalho de campo, a medida em que o autor observador do Festejo é membro da comunidade quilombola. Todavia, houve a busca da imparcialidade exigida, tendo o foco em posicionar-se como um auxiliador do processo para não interferir nos resultados da observação. Portanto, para Velho (1987, p.127) “o pesquisador membro da sociedade, deve colocar em questão o lugar de suas possibilidades e relativizá- las ou transcendê-las, a fim da coleta de informações ser imparcial, seguindo os critérios de uma boa pesquisa”. Neste contexto essa pesquisa vem propiciar novas possibilidades de leituras e articulações para a comunidade e os participantes do Festejo, ao olhar sobre a ótica do patrimônio permite novos horizontes. 3.PATRIMÔNIO IMATERIAL & COMUNIDADES QUILOMBOLAS As representações culturais de uma comunidade ou nação são traduzidas pelos seus hábitos e costumes. Neste sentido, compreende-se que a cultura imaterial faz parte da identidade dos grupos sociais sendo transmitida entre gerações, logo para valorizar o patrimônio intangível se faz premente conhecer a história dos povos, suas relações com a natureza e formas de produzir a vida. (ELITA, 2013) Neste paradigma, a partir da Constituição Federal de 1988 (BRASIL, 1988), torna-se reconhecida a relevância de se resguardar os bens de natureza material e imaterial, ficando ambos reconhecidos como “patrimônio cultural” pelo artigo 216: 26 FESTEJO DA ABOLIÇÃOE PATRIMÔNIO IMATERIAL ... art. 216. Constituem patrimônio cultural brasileiro os bens de natureza material e imaterial, tomados individualmente ou em conjunto, portadores de referência à identidade, à ação, à memória dos diferentes grupos formadores da sociedade brasileira (BRASIL, 1988, p. 126). Desse modo, a partir da criação do decreto regularizador do artigo 216 (BRASIL, 1988) se tornou possível o processo de registro e proteção do patrimônio imaterial brasileiro, visto que apesar da Constituição Federal reconhecer a relevância de preservar os bens de natureza material e imaterial, o processo é lento e moroso e para as comunidades acessarem estes direitos precisa de várias intervenções externas. Porém, o aparato mais específico de proteção e registro do patrimônio imaterial, veio somente com o decreto nº 3.551/00 (BRASIL, 2000, p.1), o qual “Institui o Registro de Bens Culturais de Natureza Imaterial que constituem patrimônio cultural brasileiro, cria o Programa Nacional do Patrimônio Imaterial (PNPI) e dá outras providências.” Essa contextualização, fez-se premente para corroborar na reflexão do patrimônio imaterial em remanescentes de quilombos, norteada pela seguinte inquietação. “Mas o que vem a ser o patrimônio imaterial quilombola”? Para responder essa pergunta alguns autores conceituam o patrimônio imaterial como sendo as práticas e conhecimentos, suas crenças, e tradições os quais despertam um valor simbólico para a comunidade a qual esse patrimônio pertence (FUNARI E PEREGRINI 2006; ELITA, 2013; FONSECA 2017). Assim, o patrimônio cultural imaterial quilombola se localiza nas heranças culturais que remetem aos conhecimentos, o modo de produzir, suas manifestações através da dança, das histórias contadas e que são transmitidas oralmente. Para Silva Pereira (2012) o reconhecimento e proteção do patrimônio imaterial, está relacionada a garantia do sistema que assegure que os portadores do patrimônio possam continuar sua 27TUPINAMBÁ, K. R; GONÇALVES, K. C; CHAVES, A. B produção e transmissão. Neste sentido, em 2002, é registrado o primeiro bem imaterial, isto é, a fabricação das panelas de barro produzidas artesanalmente pelas paneleiras do bairro das Goiabeiras no Espírito Santo, e se estendeu a demais minorias étnicas abrangendo inclusive populações do Tocantins, ao registrar a boneca Ritxòko de origem Karajá em 2012. Nesse sentido, para discutir o potencial do turismo cultural em comunidades remanescentes quilombolas, e levantarmos o acervo cultural dos descendentes dos negros escravizados no período do Brasil colonial. Neste contexto, há relatos de que o início da atividade turística de caráter étnico-afro se iniciou nos Estados Unidos, visitando as comunidades de origem negras, com roteiros que retratavam experiências étnico-culturais (VANTIN 2008, apud RIBEIRO e SANTOS, 2018). No Brasil, segundo Ribeiro e Santos (2018, p. 80) “[...] os roteiros quilombolas são formados como elementos do cotidiano ligados à história, cultura, religiosidade e modo de vida”. Observa-se, portanto, que os remanescentes de quilombo tem muito a nos mostrar, pois seus hábitos como seu modo de cultivar a terra, suas histórias contadas pelos Griôs5, sua culinária, religiosidade e manifestações que demarcam a identidade cultural afro, e, concomitantemente representam atrativos para o turista que procura vivenciar uma experiência real de encontro com o “outro”. 4. O FESTEJO DA ABOLIÇÃO: PATRIMÔNIO E TURISMO CULTURAL Para compreender o Festejo da Abolição, é necessário 5O termo Griô é um termo utilizado para se referir aos anciões da cultura Afro- brasileira na comunidade, são os conhecedores da cultura negra ancestral. 6“Juscelina” na verdade é um apelido por se assemelhar a pronuncia entre Lucelina, seu verdadeiro nome, e o presidente Juscelino Kubitschek. Este apelido demonstra a força dela enquanto personalidade cultural para comunidade. 28 FESTEJO DA ABOLIÇÃO E PATRIMÔNIO IMATERIAL ... rememorar a própria história de Dona Juscelina6 como ficou conhecida na comunidade, pois sua chegada em Muricilândia e sua atuação na organização do Festejo da Abolição, foram fatores basilares para o auto reconhecimento da identidade quilombola na comunidade através da revalorização de manifestações culturais afro- brasileiras e do catolicismo popular no Festejo. Dona Juscelina relata sua trajetória, relembrando que em sua cidade natal, Nova York, no estado do Maranhão, era envolvida com o Festejo da Abolição que tinha tradição lá. Logo no ano de 1962, seis anos após a sua chegada em Muricilândia, ela iniciou a organização do Festejo da Abolição ou Festa do Treze de Maio, como o cumprimento de uma promessa, pois como neta de escravos trouxe consigo essa herança deixada por seu tio. Fotografia 1 - A Matriarca Dona Juscelina e Manoel Filho junto ao seu altar. Fonte: COSTA, 2019 (Acervo da pesquisadora). 29TUPINAMBÁ, K. R; GONÇALVES, K. C; CHAVES, A. B Neste contexto, com o passar do tempo, o Festejo acaba perdendo força e acaba deixando de ser realizada em meados dos anos 1980. Porém, em 2001 o festejo é retomado, pois Dona Juscelina com mais idade e debilitada ganha o auxílio do quilombola Manoel Filho (Fotografia 1), que ajuda a organizar e mobilizar a comunidade novamente e nos anos posteriores o Festejo se torna mais rico culturalmente, pois são inseridos novos elementos culturais, além de um seminário para discussão política e cultural da identidade e luta quilombola. Neste sentido, Manoel Filho descreve a trajetória do Festejo ao longo do tempo: A festa era feita mais ou menos assim: às quatro da manhã era feita a alvorada7, depois da alvorada às três horas da tarde era feita a celebração religiosa8 e depois vai para o Teatro da Abolição9 às quatro da tarde, depois da apresentação do Teatro começava o cortejo afro com os negros cantando e tocando tambores nas principais avenidas da cidade. Esse formato da Festa aconteceu em 1968 com um grupinho pequeno, com algumas dezenas de pessoas, dona Lucelina fez a festa mais vezes, mas no 7O A alvorada é o momento em que os negros da comunidade saem cantando, tocando tambor e dançando pelas ruas da cidade, ela retrata o tempo que os negros tinham para se divertir quando ainda eram escravos. 8Na comunidade existe a religião de matriz africana, a religião protestante e suas ramificações e a religião católica, logo essa celebração religiosa é ecumênica. 9O teatro é uma representação simbólica onde representa a assinatura da Lei Áurea pela Princesa Isabel em 13 de maio de 1888. 10Manoel Filho Borges e Lucelina Gomes dos Santos, atual que auxilia Dona Juscelina na organização do Festejo da Abolição desde 1980, quando ela por motivos de saúde ficou como principal mantenedora da tradição e seu Manoel com a direção logística. Entrevistas cedidas a equipe do Inventário Patrimonial, em novembro, 2020. 30 FESTEJO DA ABOLIÇÃO E PATRIMÔNIO IMATERIAL ... início da década de 80 ela parou de celebrar a Festa, por que ela afirmava que ninguém ajudava a organizar, aí eu e ela conversamos e fizemos um acordo de ela trazer a festa de volta e eu ajudar. Então em 2001, ela vem ainda no mesmo formato de antes, mas nos anos posteriores são inseridas novas aquisições como os grupos de dança, os seminários, o Conselho de Griôs, as oficinas de artesanato de palha, o ritual feito pelos jovens quilombolas em petição de bênçãos aos Griôs e aos seus antepassados e os espaços de discussões (informação verbal).10 Fotografia 2 - Família real no Teatro da Abolição no quilombo Fonte: CHAVES, 2018 (Acervo do pesquisador). 31TUPINAMBÁ, K. R; GONÇALVES, K. C; CHAVES, A. B Fotografia 3 - Apresentação do lindô no Festejo da Abolição ]Fonte: CHAVES, 2018 (Acervo do pesquisador). Conforme a descrição do Festejo, é importantefrisar que o Teatro da Abolição (Fotografia 2), representa um momento ápice da celebração, em que há uma encenação dos maus tratos que os negros sofriam e após um pequeno enredo a princesa Izabel assina a Lei Áurea, e os escravos ficam eufóricos e inicia o cortejo afro com várias manifestações culturais que representam a identidade quilombola. 11Simon (2000, p.16) afirma que em comunidades tradicionais assim como em locais isolados da África, América do Sul, entre outros; ainda encontram-se as “sociedades da memória” nas quais o quantitativo de informação é muito mais restrito, a memória é organizada pelo conjunto de seus membros, os quais também a transmitem às novas gerações, sendo destinado aos mais velhos, o relevante papel de guardiões da memória. 12Maria Zilma Cruz Moura de Sousa, entrevista cedida ao autor da pesquisa Arystóteles Franklyn Chaves Borges na data de 01 de novembro de 2018. 32 FESTEJO DA ABOLIÇÃO E PATRIMÔNIO IMATERIAL ... Fotografia 4 - Grupo Negras Mariamas apresentando no Festejo da Abolição Fonte: CHAVES, 2018 (Acervo do pesquisador). O cortejo afro é aberto com a dança “o rebolado”, uma manifestação cultural espontânea com movimentos “descoreografados”, onde todos podem participar e que ocorre logo após o Teatro da Abolição para simbolizar a comemoração dos negros. Em seguida, ocorre o “lindô”, que segundo os mais velhos originou-se dos escravos, onde após a abolição saíram dançando em comemoração, em uma dança de roda com canções em forma de versos, em que todos dançam de branco e durante os passos na dança de roda ocorre a troca de pares, que envolve canções em forma de versos (que narram a história da comunidade) e trocas de pares, conforme pode ser observado na (Fotografia 3). 33TUPINAMBÁ, K. R; GONÇALVES, K. C; CHAVES, A. B Observou-se que o grupo afro “Negras Mariamas”, (Fotografia 4) abaixo, ao se apresentarem exercem um papel de protagonismo, pois as pessoas mais velhas na comunidade são respeitadas como guardiãs da memória11, além disso as senhoras que compõem o grupo participam ativamente no auxílio da organização do Festejo, sentindo orgulho em participar e ser membro da comunidade quilombola. Esses aspectos observados, foram confirmados no relato da Mestre Griô, responsável em manter a tradição deste grupo dona Nena “[...] são os quatro dias de festas, onde tem várias apresentações, tem o seminário, mas quando apresentamos a nossa, aí que nós se sente mais ainda forte né, sendo quilombola [...]” (informação verbal).12 A gastronomia no Festejo estava interligada ao modo de viver na comunidade, em cultivar a mandioca e outras iguarias em seus quintais, os quais originam os pratos típicos: cuscuz de arroz e o de milho, o mané pelado, o beiju, a feijoada, o bolo cacete, o munguzá, o baião de dois e o mangulão, os quais são consumidos diariamente pelos locais. Entretanto, a pedido de Dona Juscelina a oferta de comidas típicas no Festejo foi cancelada, segundo Manoel Filho Borges relata que: Nos anos anteriores, nós fazíamos a barraca da culinária afro-brasileira quilombola, e vendíamos a comida típica, como por exemplo, o baião de dois, o munguzá, a feijoada, e o pessoal se alimentavam dessas comidas, então tinha essas barracas e a intenção era com elas a comunidade angariar recursos através da venda dos pratos típicos. Mas com o passar do tempo, essa comida deixou de ser ofertada até mesmo por um pedido da 13Matriarca dona Lucelina (conhecida popularmente por Juscelina), precursora do festejo na comunidade. 14Manoel Filho Borges, entrevista cedida ao autor da pesquisa Arystóteles Franklyn Chaves Borges na data de 27 de outubro de 2018. 15Maria Zilma Cruz Moura de Sousa, entrevista cedida ao autor da pesquisa Arystóteles Franklyn Chaves Borges na data de 01 de novembro de 2018. 34 FESTEJO DA ABOLIÇÃO E PATRIMÔNIO IMATERIAL ... matriarca13 [...] então passou a ser oferecido um jantar gratuitamente para todos que estavam ai assistindo o festejo (informação verbal).14 É ressaltado, que de acordo com a observação empírica, detectou-se o crescimento da dimensão da Festa com o passar dos anos. Observação consubstanciada pela matriarca da comunidade que relata que nas primeiras celebrações se reuniam em média 100 pessoas, ou seja, os primeiros visitantes caracterizavam em um fluxo turístico tímido. Nos dias de hoje, embora não se tenha dados estatísticos precisos, de acordo com a observação empírica de organizadores e colaboradores, pode-se estimar que o Festejo reúne por volta de “quatro a cinco mil” pessoas para assistir as apresentações culturais. Assim, dona Nena confirma essa realidade, “[...] nóis comecemos com cem pessoa, depois foi pra mil, pra dois mil, pra três mil, pra quatro mil e as vezes até cinco mil [...]” (informação verbal)15. Ao ter em vista esse aumento do fluxo turístico no Festejo, e os relatos que demonstram que esses visitantes teriam como maior motivação assistir as manifestações culturais. Portanto, conclui-se, que há um potencial para o turismo cultural na comunidade que não necessariamente deve estar atrelado ao Festejo da Abolição, ainda que ele seja fundamental para aguçar o olhar dos visitantes para a riqueza do acervo cultural local. Portanto, tendo em vista essa demanda de turistas considerável motivada em visitar a comunidade para presenciar principalmente as manifestações culturais que demarcam a identidade quilombola, percebe-se uma situação favorável para futuramente se estruturar uma proposta de um roteiro turístico cultural. A estruturação dessa proposta se daria dentro das premissas da sustentabilidade, ou seja, se iniciaria com a aplicação de um inventário patrimonial e consecutiva análise para um planejamento turístico, com base na interpretação 35TUPINAMBÁ, K. R; GONÇALVES, K. C; CHAVES, A. B da comunidade do seu próprio acervo cultural, atentando para que, “[...] é tempo de consolidar entre nós a prática da interpretação do patrimônio para propiciar o desenvolvimento cultural das comunidades e fortalecer o turismo sustentável [...]” (MURTA; ALBANO, 2002, p. 11). Neste contexto o Festejo da Abolição constitui-se de muitos elementos que são fundamentais para uma proposta a ser dialogada com a comunidade para se estabelecer o levantamento, o registro e a salvaguarda deste patrimônio imaterial da Comunidade Quilombola Dona Juscelina em Muricilândia (TO). 5. APRESENTANDO ALGUMAS CONSIDERAÇÕES Com base nas informações coletadas em pesquisa de campo, conclui-se que em torno do Festejo da Abolição se desenvolveu um fluxo turístico crescente motivado principalmente em presenciar as manifestações culturais que demarcam a identidade desse povo quilombola. Em decorrência desta característica do Festejo da Abolição, que se evidenciou o potencial da comunidade para o desenvolvimento do turismo cultural desatrelado a sazonalidade do Festejo, e concomitantemente se cogitou a possibilidade de se iniciar uma discussão em torno de um turismo sustentável e participativo in loco. Todavia, o maior obstáculo para o desenvolvimento desta premissa de ampliação turística, está em disseminar a consciência de cooperação em torno de construção coletiva na comunidade, pois embora os Mestres (Griôs) e organizadores do Festejo da Abolição, afirmem que a maior parte da comunidade se sente quilombola, na observação empírica detectou-se que existe uma parte da comunidade que se auto intitula quilombola apenas para obter benefícios. Desta feita, para que o turismo cultural tivesse chance de ser ampliado além 36 FESTEJO DA ABOLIÇÃO E PATRIMÔNIO IMATERIAL ... do Festejo, de modo sustentável e participativo, seria necessário que a comunidade sofresse um processo de sensibilização voltado para valores como: economia solidária, educação patrimonial, cooperativismo, sustentabilidade,entre outros. Outro fator que consolidaria esse turismo de base sustentável é a comunidade ter acesso e direito novamente ao território ancestral da comunidade, assim elementos culturais e sociais que se estabelecem no rural e se consiste na matriz deste grupo seria impulsionada. Reacendendo os conhecimentos e fazeres coletivos oriundos das comunidades tradicionais e étnicas. Portanto, esse trabalho buscou contribuir para aprofundar os estudos sobre patrimônio imaterial em comunidades quilombolas em torno do turismo cultural. E demonstrar a Comunidade Quilombola Dona Juscelina a dimensão do seu patrimônio cultural por meio do Festejo da Abolição, além de discutir a possibilidade do desenvolvimento de um roteiro turístico cultural veiculado ao planejamento cultural sustentável. REFERÊNCIAS BRASIL, Constituição. Art 216. Constitui patrimônio Cultural. 05 de outubro. Brasília. 1988. Disponível em: <https://www.senado. leg.br/atividade/const/con1988/CON1988_05.10.1988/art_216_. asp>. 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Doutora em Educação (2004) e Pós-Doutora em Antropologia Social (2011) pela Universidade Federal de Santa Catarina 40 RESUMO Ao apresentar este texto, assumimos o compromisso e o sentido, tão político quanto acadêmico, de compartilhar processos de descolonizar histórias e conhecimentos. Buscamos, também, descolonizar nossos olhares e percepções, abrindo-nos a outros modos/mundos possíveis de ser(mos) e viver(mos). Movemo-nos em diálogo com outras pessoas, contextos e grupos sociais, ainda que constituídos em uma mentalidade moderna-ocidental, desafiando- nos o objetivo de aprender com os modos de vida do povo Akwẽ- Xerente. Por meio de pesquisa bibliográfica e de campo, com uma inspiração etnográfica, indagamos a maneira de habitar o mundo do povo Akwẽ-Xerente, suas relações com o místico, com a natureza, com a família e a comunidade; compreendendo o “bem viver” que emerge de suas práticas, e que se revela como jogo, como brincar. Desta forma encontramos na caça às tanajuras, no banho no rio, nas rodas do artesanato, na corrida de tora, no arco e flecha, nas corridas de resistência, no cabo de força e no futebol, transitam entre a liberdade e a obrigação, compartilham saberes que sustentam sua resistência e lutas cotidianas. Concluímos que, na centralidade das práticas culturais do povo Akwẽ-Xerente, podemos aprender com seus processos de organização e percepção do social e, com isso, interpelar outras possibilidades e sentidos possíveis para o que nomeamos e experimentamos como Lazer.. Palavras chaves: Povo Akwẽ-Xerente, Descolonização, Educação, Lazer. 41 ABSTRACT In presenting this text, we assume the commitment and the sense, both political and academic, of sharing processes to decolonize stories and knowledge. We also seek to decolonize our looks and perceptions, opening ourselves to other possible ways / worlds of being and living. We move in dialogue with other people, contexts and social groups, even though constituted in a modern-western mentality, challenging us to learn from the Akwẽ-Xerente people’s ways of life. We inquire about their ways of inhabiting the world, their relations with the mystic, with nature, with the family and the community; understanding the “good life” that emerges from their practices, and that reveals itself as a game, as playing. In hunting for tanajuras, bathing in the river, on the wheels of handicrafts, in the log race, in the bow and arrow, in resistance races, in the power line and in football, they move between freedom and obligation, share knowledge that sustains their resistance and daily struggles. Thus, we hope, in the centrality of the cultural practices of the Akwẽ-Xerente people, to learn from their processes of organization and perception of the social and, with this, to question other possibilities and possible meanings for what we name and experienc as Leisure. Key words: Akwẽ-Xerente People, Decolonization, Education, Leisure. 42 PRÁTICAS CULTURAIS DO POVO AKWẼ-XERENTE ... PARA INÍCIO DE CONVERSA: Se as pessoas não tiveremvínculos profundos com sua memória ancestral, com as referências que dão sustentação a uma identidade, vão ficar loucas neste mundo maluco que compartilhamos. [..]) Tem uma montanha rochosa na região onde o rio Doce foi atingido pela lama da mineração. A aldeia Krenak fica na margem esquerda do rio, na direita tem uma serra. Aprendi que aquela serra tem nome, Takukrak, e personalidade. De manhã cedo, de lá do terreiro da aldeia, as pessoas olham para ela e sabem se o dia vai ser bom ou se é melhor ficar quieto. Quando ela está com uma cara do tipo “não estou para conversa hoje”, as pessoas já ficam atentas. Quando ela amanhece esplêndida, bonita, com nuvens claras sobrevoando a sua cabeça, toda enfeitada, o pessoal fala: “Pode fazer festa, dançar, pescar, pode fazer o que quiser”. Assim como aquela senhora hopi que conversava com a pedra, sua irmã, tem um monte de gente que fala com montanhas. (KRENAK, 2019, p. 9) A passagem acima nos remete a unidade entre humanidade e natureza, para além das relações extrativistas construídas a partir das relações impostas pelo colonialismo e pelo capitalismo. Pensando em outra construção epistemológica, é necessário reconhecer que desde tempos remotos, os povos originários têm uma relação sagrada com a natureza. Nas palavras de Gomes e KOPENAWA (2015, p.146): é uma terra, o branco chama de “mundo”, outros falam a palavra “universo” [...]. Para nós, povo indígena aqui do Brasil, outros povos indígenas, cada um chama diferente: alguns chamam Hutukara, outros chamam Tupã [...]. E nós estamos aqui sentados na barriga da nossa terra mãe. A Hutukara fica junto com a pedra, com a areia, 43SOARES, K. C. P. C; DEBORTOLI, J. A; GRANDO, B. S. com o rio, o mar, o sol, a chuva e o vento. Hutukara é um corpo, um corpo que é unido, ela não pode ficar separada (GOMES; KOPENAWA, 2015, p. 146). Na civilização grega, os pré-socráticos questionaram a relação com a natureza e no renascimento estes pensamentos gregos são retomados com a ideia da natureza como máquina, com tentativas de entendê-la para dominá-la, criando uma noção de superioridade antropocêntrica homem-natureza e uma relação de exploração desenfreada e sem consciência. Este processo acarretou uma perda da noção de que fazemos parte da natureza. Mas, se somos parte desta equação, é necessário, ou inevitável, estabelecermos diálogos com outros modos de vidas, que configuram lutas sociais e políticas, ainda que, sistematicamente, invisibilizados por uma experiência social estruturada em uma perspectiva colonialista. Talvez seja o caso de acolhermos o desafio de Stengers (2018, p. 444), ao trazer o personagem conceitual, o idiota de Deleuze, tomado de empréstimo de Dostoïevski, constrangendo-nos a desacelerar e resistir: “à maneira como a situação é apresentada, cujas urgências mobilizam o pensamento ou a ação. [...] Não porque a apresentação seja falsa, não porque as urgências sejam mentirosas”, mas porque há algo de mais importante. Conhecer as práticas culturais do povo Akwẽ-Xerente, e afirmá- la como patrimônio cultural, pode ter grande relevância e trazer contribuições para diferentes áreas de estudo, provocando, mais do que um olhar interdisciplinar acerca do conhecimento, uma crítica a posturas extrativistas dos nossos estudos e metodologias. Damos centralidade à noção de Patrimônio Cultural, na perspectiva apontada por Machado e Dias (2009, p. 2), que concebem esta noção como: [...] resultado de uma dialética entre o homem e seu meio, entre a comunidade e seu território. Ele não é apenas constituído pelos objetos do passado oficialmente 44 PRÁTICAS CULTURAIS DO POVO AKWẼ-XERENTE ... reconhecidos, mas também por tudo que liga o homem ao seu passado, ou seja, tudo que os seres humanos atribuem ao legado material e imaterial de sua nação. O fortalecimento da identidade cultural permeia a construção de uma nação, e o patrimônio cultural se reconhece como a memória e o modo de vida da sociedade, compreendendo tanto elementos materiais como imateriais. Constitui-se como patrimônio cultural, o conjunto dos elementos para os quais se reconhecem valores que identificam e perpetuam a memória e referências do modo de vida e identidade social. (MACHADO; DIAS, 2009, p.2). Com este sentido, Grando e Passos (2010) trazem significativas contribuições para o campo de estudos das culturas indígenas ao analisar a história e cultura dos povos indígenas. Afirmam que um compromisso com relação à construção do eu e do outro se faz por meio da compreensão da cultura e do território como espaço de troca. Ao refletirem sobre a cultura enquanto coisa nômade, em que um pouco permanece e todo o resto é cambiante, Passos (2010, p. 25) destaca que: Cultura não é, jamais, uma coisa exterior a nós, mas aquilo que queremos para nós, e que negociamos com o grupo humano com o qual convivemos e que nos deu origem. É o nosso lugar e jeito de ser no mundo com os outros e outras. É morada, é abrigo. É o que nos expõe, tira nossa intimidade para fora de nós, para um território público. A cultura é como um espelho, projeta para nós mesmos nossa imagem do exterior de nós para nós, e para os outros. Nela, estamos envolvidos nas formas de tempo e espaço que nos faz acessíveis ao mundo [...] Da mesma forma, é a expressão no ser humano, dado que toda nossa imagem é sempre negociada do modo como ela poderá nos fazer presentes ao mundo, lugar 45SOARES, K. C. P. C; DEBORTOLI, J. A; GRANDO, B. S. da objetividade e subjetividade, do signo e do sentido (PASSOS, 2010, p.25). Os estudos étnicos têm se ampliado de forma crescente na sociedade brasileira, auxiliando a compreensão de cultura. Estes estudos abrangem desde as práticas culturais da vida cotidiana aos embates e ações políticas das relações interétnicas, revelando as relações de poder que fazem parte do processo de desenvolvimento alteritário dos povos indígenas. Desta maneira buscamos investigar o modo de habitar do indígena Akwẽ-Xerente, na tentativa de contribuir com a garantia da preservação dos saberes e práticas culturais que compõem a vida cotidiana indígena, por meio de processos de envolvimento, territorialização e alteridade. Estamos assim, exercitando a busca por pensamentos alternativos, para questionar a construção epistemológica do pensamento crítico eurocêntrico, sem deixar de reconhecer suas contribuições, porém abrindo espaço para o re-conhecimento de outros saberes elaborados em contextos de resistência, por povos e comunidades que foram, ao longo de séculos, silenciados e marginalizados. A percepção do processo de alteridade, no estudo do povo Akwẽ-Xerente, revelou aproximações com os estudos do lazer, por meio das atividades que este povo realiza, legitimadas socialmente como práticas e patrimônio culturais. Podemos observar a fala do cacique da aldeia Salto Assim formou, surgiu a origem do nosso povo, mas antes disso os próprios homens já tinham umas práticas culturais, como a caça e o jeito de ser akwẽ, já tinha o jeito, então quando foi formada a mulher só complementou, e aí o casal foi adaptando e aperfeiçoando, já falavam a língua deles próprios, eu estou falando deles, mas eu também faço parte, desse povo. Tenho orgulho de dizer que é um povo guerreiro, muito resistente, até chegar nesse século XXI, já tem mais de 250 anos de contato, 46 PRÁTICAS CULTURAIS DO POVO AKWẼ-XERENTE ... mantendo a linguagem e algumas coisas da cultura, isso me deixa muito orgulhoso. E assim é a origem do nosso povo akwẽ, uso muito akwẽ, a gente se autodenomina assim, povo akwẽ. Xerente é um nome que os antropólogos e estudiosos deram para diferenciar um povo de outro, que nem xavante, xacriabá enfim. – Fala do Cacique Valci Siña sobre a origem do povo e as práticas culturais (SOARES, 2017, p.45). Aprofundar a compreensão das práticas culturais indígenas nos impõe,por isso, descolonizar o lazer, interpelando relações históricas e culturais, atentos aos processos de organização social. Apresenta- se, assim, como um desafio para enfrentarmos a urgência das relações interétnicas, sobretudo, quando isto envolve e tensiona o território e o cotidiano dos povos indígenas. O território indígena e sua temporalidade se diferenciam dos demais territórios e temporalidades dos sujeitos que compõem a sociedade envolvente, cada realidade vem sendo construída a partir das experiências, vivências, sentidos e significados elaborados na vida cotidiana individual e coletiva. Neste universo brasileiro de povos indígenas, situo o Estado do Tocantins, que possui uma população em número aproximado de 14.118 índios, conforme dados do censo de 2010; divididos segundo a língua em três povos: Akwẽ (Xerente), Timbira (Apinajé, Krahô e Krahô-Kanela) e Yny (Karajá, Javaé e Xambioá), sendo estes distribuídos em sete etnias. Assim, esta escrita é realizada a três mãos, buscando nos achados bibliográficos epistemes que possam amparar nossa intenção de provocar um olhar descolonizador para o campo de estudos do lazer. Trazemos para compor este trabalho um recorte da tese de Soares (2017), um estudo com inspiração etnográfica, que traz o cotidiano da aldeia Salto, do povo Akwẽ-Xerente e seus processos de ecologias de saberes e práticas. 47SOARES, K. C. P. C; DEBORTOLI, J. A; GRANDO, B. S. O MODO SER E VIVER AKWẼ-XERENTE Pensar epistemologias alternativas que permitam ser possível lançar indagações acerca do entendimento de que o lazer se manifesta em diferentes contextos, de acordo com sentidos e significados produzidos/reproduzidos pelas pessoas nas suas relações com o mundo. E sobre essas relações, Ingold (1988) pondera que os seres humanos são tão únicos quanto outra espécie, também única em sua maneira particular de ser e, assim, sugere que natureza e cultura sejam uma coisa só e não haja dicotomias. Para dizer das práticas culturais e /ou lazer é necessário situá-los, por meio de organismos em ambientes, formando uma totalidade indivisível. As indagações e reflexões teóricas realizadas por Tim Ingold (2000) auxiliam-nos a pensar o habitar indígena através da compreensão das relações entre ambiente, cultura e percepção, como um processo social. Este antropólogo britânico traz a ideia da aprendizagem como um processo essencialmente social – não somente por uma perspectiva cerebral, mas pela relação entre diversos agentes (humanos e não humanos)4. Busca, de forma ousada, estabelecer o rompimento do dualismo natureza/cultura, criando a antropologia ecológica. Ingold (2000) propõe um estudo das diferentes formas de viver no mundo em que habitamos, fazendo uma análise da importância das condições materiais da existência, verificando como 4Tim Ingold critica essas visões e interpretações que supervalorizam o pensamento nos seres humanos em oposição às outras características de todos os outros seres vivos, colocando esses últimos em posição inferior se comparados com os primeiros. Ele afirma que os seres humanos são tão únicos quanto é qualquer outra espécie, também única em sua maneira particular de ser. “Assuredly, if you are a human being, there is a certain adaptive advantage in being able to think, just as there is in being about to construct dams or webs if you are a beaver or a spider” (INGOLD, 1988, p. 97). 48 PRÁTICAS CULTURAIS DO POVO AKWẼ-XERENTE ... os modos de produção e relações com o meio podem se relacionar com as noções sobre natureza, cultura, cognição e percepção. Este olhar e aproximação das práticas culturais Akwẽ-Xerente nos permite dizer das relações que este povo estabelece entre natureza, cultura, cognição e percepção. Esta forma de habitar o mundo, que é revelada pela cultura, traz aproximações com o campo de estudos interdisciplinares, em especial o campo de estudos do lazer e da educação intercultural. A vida cotidiana indígena Akwẽ-Xerente, ou ainda, o modo de habitar no mundo do povo Akwẽ-Xerente possibilita-nos observar as diferentes relações estabelecidas entre o indivíduo e o cosmos, ou a valorização da natureza no processo de constituição do ser índio, ou seja, da capacidade desta para gerar valor a modos de habitar no mundo do povo Akwẽ-Xerente. O território deste povo se constitui na medida em que desenvolvem suas vidas neste lugar, neste ambiente. Pensar a vida social do povo Akwẽ-Xerente e seus atravessamentos com a natureza, o ambiente e as práticas culturais projeta-nos para o reconhecimento de toda a história de luta pela terra e permanência nela. Esse território, que representa mais que um lugar em que se é possível viver, é o ambiente que poderá fornecer indicadores relevantes para identificar as práticas culturais de resistência, ou não, deste povo. Por isso, o processo de aproximação e envolvimento, com base nas reflexões de Ingold, (2012), amplificou nossa aproximação da vida cotidiana Akwẽ-Xerente, tendo como referência que a produção do conhecimento e sua transmissão são indissociáveis dos sujeitos no mundo e da sua ação criativa no presente; é imprescindível observar a vida e seus fluxos e linhas, que ganham forma nos materiais que nos constituem a todos que fazemos parte do ambiente-mundo. Esta perspectiva possibilita-nos verificar que há uma visão cosmológica 49SOARES, K. C. P. C; DEBORTOLI, J. A; GRANDO, B. S. que envolve o habitar Akwẽ-Xerente, sua relação com o místico, com a natureza, com a família e a comunidade. Santos (1978) contribui para a compreensão da relação entre territorialidade e alteridade, quando reflete acerca do espaço como produção do homem, da relação da natureza com a totalidade e a mediação da técnica. O espaço social do povo Akwẽ-Xerente corresponde ao espaço humano, lugar de vida, de morada, de trabalho, sobrevivência, ritos e tantas outras experiências. O espaço geográfico – Território Indígena Xerente – vem sendo historicamente organizado pelo seu povo, que o produz como lugar de luta e de sua própria reprodução. Os territórios dos povos tradicionais se fundamentam em décadas, em alguns casos, séculos de ocupação efetiva. (LITLLE, 2002). Ao escolher viver neste território, valorizando todos os seres que nele existem e são fundamentais para a existência da vida, esse povo reconhece as circunstâncias naturais que formam a estrutura material da existência do grupo. Os fluxos do modo de vida Akwẽ- Xerente materializam a relação entre territorialidade e alteridade, ou seja, o habitar deste povo é um esforço coletivo para ocupar, usar, controlar e se identificar com uma parcela específica de seu ambiente biofísico, do seu “território”, com suas particularidades socioculturais. Para mim é muito importante, por causa da aldeia, nossa terra demarcada. É só uma área Xerente no Tocantins, você vê muito verde, é bem preservada, o que você precisa está ali, pra fazer artesanato, arco e flecha, cortar tora de buriti. E você tem água pra beber no brejo, hoje as águas tão secando porque ao redor da reserva tão desmatando tudinho. Atinge até nossa área indígena e fica complicado pra gente, porque nosso território é a 5Grupo de pessoas não indígenas que, de alguma forma, estabelecem um processo de aproximação ou convivência com os povos indígenas. 50 PRÁTICAS CULTURAIS DO POVO AKWẼ-XERENTE ... terra mãe que a gente fala. Por isso a gente tem o nosso bem maior, tem assim maior probabilidade do povo Xerente viver (SOARES, 2017, p. 106). Neste modo de viver há uma carga histórica de relação e comprometimento com o meio em que vivem, o lugar onde residem e de onde tentam retirar recursos naturais de forma inteligente para a manutenção das futuras gerações. Conclui-se que a territorialidade se constitui na forma como este povo se comunica com as formas de vida quelhe rodeiam e estas relações consolidam a consciência de pertencimento a este lugar, ao Território Indígena Xerente. AS PRÁTICAS CULTURAIS DO POVO AKWẼ-XERENTE O povo Akwẽ-Xerente está há aproximadamente trezentos anos em contato com a sociedade envolvente5, em um processo contínuo de estímulos e resistências, prova disso é que, de acordo com o IBGE (2012), é a maior população indígena do Estado do Tocantins. De acordo com Artiaga (1947), os Xerente são conhecidos por - akuem, que significa o mais notável, o que está acima, ou ainda, gente importante. Este povo firmou suas raízes na sua terra, mesmo com escravidão, conflitos e lutas para defendê-la, pois é de onde retiram o alimento e a vida. O povo Akwẽ-Xerente é citado por viajantes como o povo mais habituado ao convívio com os brancos (RIBEIRO, 1993). A etnia Akwẽ-Xerente iniciou o processo de educação formal há mais de quarenta anos, com as Missões Batista, que começaram o 6A autodenominação Xerente aparece na literatura de viajantes e etnólogos com diferentes grafias (Acuen e Akwen por exemplo). Atualmente os próprios Xerente, grafam suas autodenominação como Akwê.elecem um processo de aproximação ou convivência com os povos indígenas. 51SOARES, K. C. P. C; DEBORTOLI, J. A; GRANDO, B. S. trabalho de conhecer e tornar escrita a língua Akwẽ. Os missionários perceberam a importância de se compreender a língua para o processo de evangelização. Traduziram a bíblia, criaram um dicionário e confeccionaram cartilhas. A vida do povo Xerente, autodenominados Akwẽ6, é contada a partir dos estudiosos que se embrenharam no universo indígena, trazendo informações e dados do modo de vida, língua, organização política e territorial deste povo. A pintura corporal, com traços e círculos, marca a divisão dos clãs, e somente é realizada em momentos festivos ou ocasiões especiais e de rituais, quando, por exemplo, a aldeia recebe um grupo de visitantes. A pintura corporal marca a divisão dos grupos para a corrida de tora e o futebol, distingue os pertencentes aos clãs, sendo que os círculos pequenos, médios e grandes designam, respectivamente, os membros da metade doi e os traços representam a metade wahirê. A organização clânica, a pintura corporal e a língua Akwẽ são práticas culturais que se revelam no habitar deste povo. Por meio das memórias da professora feminista e indigenista, a baiana Daltro (1920), que passou 5 anos, entre os anos de 1896 a 1901, em uma excursão às aldeias indígenas das margens do Araguaia e Tocantins, sertões de Goiás e Mato Grosso, e trouxe histórias vividas de pesquisa, estudo e doutrinação, nas tribos dos índios Xerente, Xavante, Krahô, Kaiapó, Timbira, Xambioá, Karajá, Puris, Gaviões e Tapirapés, encontro referências acerca da forma de habitar do povo Akwẽ-Xerente. O Akwẽ-Xerente da atualidade vive entre o moderno e o tradicional, tentando decifrar as armadilhas do mundo ocidental, onde as relações de poder marcam e tencionam a vida cotidiana indígena. De acordo com os dados do IBGE (2010), a população Akwẽ-Xerente tem aumentado de forma significativa nos últimos dez 7Oliveira-Reis (2001) esteve na aldeia Salto entre junho de 1998 e julho de 1999, o que o permitiu relatar aspectos importantes desta aldeia, em específico. 52 PRÁTICAS CULTURAIS DO POVO AKWẼ-XERENTE ... anos, tendo, inclusive, conseguido garantir a vaga de duas lideranças Akwẽ-Xerente na Câmara Municipal do município de Tocantínia. O que se pode observar é que população Akwẽ-Xerente tem aumentado de forma significativa nos últimos dez anos. A despeito dos conflitos com fazendeiros e dos problemas socioambientais vivenciados pelos Akwẽ-Xerente, esse povo tem resistido bravamente e conseguido manter seu território. Considera-se que as políticas de assistência social, desenvolvidas no âmbito dos últimos governos no Brasil, possam ter sido elementos que contribuíram para o aumento da população Akwẽ-Xerente. (LIMA, 2016, p.115). A aldeia Salto, território específico deste estudo, revela as realidades apresentadas até o momento. Trata-se de uma aldeia singular, pois mantém a disposição das casas de alvenaria seguindo o modelo antigo de aldeia arqueada7. Os mais de 350 indígenas que vivem neste lugar falam a língua Akwẽ-Xerente, organizam-se socialmente e politicamente por meio dos clãs e representam essa divisão por meio da pintura corporal. Neste contexto de aldeia que tem uma escola (que emprega diretor, professores e assistentes) e um posto de saúde (que emprega um agente de saúde), os indígenas encontram na confecção de artesanato de palha de buriti e capim dourado sua atividade cotidiana, fazem cestarias, esteiras e adereços; trabalham na roça com a plantação de mandioca, abóbora, batata doce e fazem farinha. Gostam muito de futebol e mantém suas práticas culturais tradicionais preservadas por meio do Dasipê, a festa cultural indígena Akwẽ, que geralmente ocorre no verão, entre os meses de abril e julho. A cosmologia indígena estabelece olhares diversos para o tempo e o espaço, assim como o valor e a forma como se relacionam com a natureza, com a terra, sendo que estes se configuram como 53SOARES, K. C. P. C; DEBORTOLI, J. A; GRANDO, B. S. elemento de identidade de cada povo. Cada etnia traz consigo os significados do seu território e as configurações próprias das práticas culturais lúdicas que compõem sua identidade. Entre as práticas da cultura que compõem espaços-tempos de educação do corpo e produção de identidades coletivas (aqui traz as referências que depois poderá discutir). Com isso, nos tempos e espaços da vida se descrevem as relações com a natureza e os conhecimentos tradicionais que dialogam com os estudos do lazer, com devido cuidado para compreensão complexa das diferentes concepções entre o uso do tempo na aldeia e o uso deste na sociedade ocidental moderna. Assumimos o compromisso e o sentido, tão político quanto acadêmico, de compartilhar processos de descolonizar histórias e conhecimentos. Buscamos, também, descolonizar nossos olhares e percepções, abrindo-nos a outros modos/mundos possíveis de ser(mos) e viver(mos). Movemo-nos em diálogo com outras pessoas, contextos e grupos sociais, ainda que constituídos em uma mentalidade moderna-ocidental, desafiando-nos aprender com os modos de vida do povo Akwẽ-Xerente. Indagamos suas maneiras de habitar o mundo, suas relações com o místico, com a natureza, com a família e a comunidade; compreendendo o “bem viver” que emerge de suas práticas, e que se revela como jogo, como brincar. ALGUMAS CONSIDERAÇÕES A sociedade não indígena, por conta das demandas estabelecidas por sua forma de viver, de produzir e consumir estabelece um modo de habitar diferente dos povos indígenas, enquanto para a primeira há uma necessidade humana de dominação da natureza e dos recursos naturais; para a segunda, é necessária uma possibilidade de comunhão 8BRASIL. Constituição. Constituição federal. Brasília: Senado Federal, 1988. 54 PRÁTICAS CULTURAIS DO POVO AKWẼ-XERENTE ... e unidade entre homem, natureza e recursos naturais. Numa sociedade em que o pensamento científico muitas vezes se sobrepõe aos saberes tradicionais e alguns fenômenos e/ ou conceitos são determinados a partir de uma única realidade é, no mínimo, interessante trazer experiências de habitar o mundo que não necessariamente necessitam de todo um aparato científico para respirar e sobreviver. Alguns poderiam questionar, mas como trazer os Estudos do Lazer para o território indígena? Como pensar o fenômeno Lazer para além dos muros delimitados da sociedade urbana e industrial? Indígenas têm Lazer? Ou ainda, outros interpelariam: sendo o lazer um direito garantido na Constituição de 19888, por que não pensar nos indígenas? Os modos de habitar o mundo
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