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PONTIFÍCIA UNIVERSIDADE CATÓLICA DE MINAS GERAIS Programa de Pós-Graduação em Ciências da Religião Ana Carolina Gomes A CASA DE TODOS OS SANTOS Estudo da Umbanda no Lar Espírita Filhos de Ogum e Oxóssi- Itabira/MG Belo Horizonte 2018 Ana Carolina Gomes A CASA DE TODOS OS SANTOS Estudo da Umbanda no Lar Espírita Filhos de Ogum e Oxóssi- Itabira/MG Dissertação apresentada ao Programa de Pós- graduação em Ciências da Religião da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, como requisito parcial para a obtenção do título de Mestre em Ciências da Religião. Orientador: Prof. Dr. Wellington Teodoro da Silva Área de concentração: Religião, política e espaço público Belo Horizonte 2018 FICHA CATALOGRÁFICA Elaborada pela Biblioteca da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais Gomes, Ana Carolina G633c A casa de todos os santos estudo da Umbanda no Lar Espírita Filhos de Ogum e Oxóssi- Itabira/MG / Ana Carolina Gomes. Belo Horizonte, 2018. 142 f. : il. Orientador: Wellington Teodoro da Silva Dissertação (Mestrado) – Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Programa de Pós-Graduação em Ciências da Religião 1. Umbanda - Brasil. 2. Sincretismo (Religião). 3. Universalismo (Teologia). 4. Religião e cultura. 5. Cultos afro-brasileiros. I. Silva, Wellington Teodoro da. II. Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais. Programa de Pós-Graduação em Ciências da Religião. III. Título. CDU: 299.6 Ficha catalográfica elaborada por Rosane Alves Martins da Silva – CRB 6/2971 Ana Carolina Gomes A CASA DE TODOS OS SANTOS Estudo da Umbanda no Lar Espírita Filhos de Ogum e Oxóssi- Itabira/MG Dissertação apresentada ao Programa de Pós- graduação em Ciências da Religião da Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, como requisito parcial para a obtenção do título de Mestre em Ciências da Religião. Orientador: Prof. Dr. Wellington Teodoro da Silva Linha de pesquisa: Religião, política e espaço público _________________________________________________________________ Prof. Dr. Wellington Teodoro da Silva- PUC-Minas (Orientador) ____________________________________________________________ Prof. Dr. Emerson José Sena da Silveira- UFJF (Banca Examinadora) ____________________________________________________________ Prof. Dr. Carlos Ribeiro Caldas Filho- PUC-Minas (Banca Examinadora) Belo Horizonte, 25 de abril de 2018. Dedico este trabalho aos filhos e filhas de fé. Aos que, por sua fé, são mal compreendidos, hostilizados, desrespeitados e demonizados. Dedico este trabalho aos que buscam amparo nos braços dos pretos-velhos, que buscam forças nos caboclos, persistência nos baianos, pureza nos erês, proteção nos exus, amor próprio nas pombogiras, equilíbrio nos marinheiros, cura nos povos do oriente, altivez nos boiadeiros e alegria nos malandros. Dedico aos que buscam o sentido da vida, aos que encontram o sagrado em suas diversas manifestações, aos que o encontram dentro de si. AGRADECIMENTOS Nessas próximas palavras venho demonstrar minha gratidão, demonstrar meu reconhecimento por todos aqueles e aquelas, pessoas e instituições, que acreditaram nesse trabalho, em mim e na sua relevância para a sociedade brasileira. Nessa caminhada, entre livros, artigos, imagens e trocas de experiências, muitos sentimentos afloraram. A cada passo nesse trajeto percorrido, novos aprendizados e novas dúvidas surgiram, assim como novas convicções e novas formas de se ver e perceber o mundo, as religiões e as religiosidades. Venho agradecer à Pontifícia Universidade Católica de Minas Gerais, em especial aos professores e demais funcionários; venho agradecer à FAPEMIG (Fundação de Amparo à Pesquisa de Minas Gerais), instituição de fomento dessa pesquisa; agradeço aos colegas de curso que compartilharam suas angústias, descobertas e novos olhares. Agradeço aos membros do Lar Espírita Filhos de Ogum e Oxóssi pelo acolhimento, pelas palavras, pela experiência e por terem deixado abertas as portas para o universo umbandista. Agradeço ao Babalaô Gilman e o Yaô Chinayd. Agradeço as entidades pelo ensinamento, por mostrarem que este mundo é de dor, mas, também de amor e compreensão aos que buscam conforto, acolhimento e aceitação. Agradeço ao meu orientador pela paciência, perseverança e por me guiar nessa seara até então desconhecida. Agradeço aos amigos que compreenderam as ausências e que se mantiveram firmes no cultivo e fortalecimento das amizades! Agradeço a todos e todas que, apesar das atribulações, intolerâncias, falta de compreensão e injúrias, se mantém firmes na fé, nas energias, na humanidade e em si mesmos. Agradeço aos percursores, aqueles e aquelas que se embrenharam na busca por desvendar e compreender a Umbanda, deixando trilhas abertas para aqueles que, assim como eu, peregrinam-se nos mistérios dessa religião. Agradeço aos orixás, aos anjos, santos e entidades por todo axé recebido! Por fim, agradeço ao meu Babaji, à Sete Coroas e à Satã. RESUMO A presente dissertação tem como objetivo compreender o processo de universalidade espiritual e cultural da Umbanda e identificar, no Lar Espírita Filhos de Ogum e Oxóssi, elementos de caráter universalista e acolhedor umbandista. Partindo da análise da formação do povo brasileiro, períodos de violências, exploração, imposições, mas, também de encontros, empréstimos, trocas culturais e religiosas foram evidenciados. Ao longo desses séculos, um povo foi tomando forma biológica e culturalmente e novos tipos sociais e biológicos marcam essa multiplicidade nacional. Assim como, novas formas de se ligar ao sagrado também foram surgindo. Entre benzeções, chás e banhos de ervas, velas, mesas, igrejas, choupanas e tendas, aqui se cultivava e cultiva a religiosidade. A Umbanda se mostra presente no cenário religioso brasileiro com seus ritos, liturgias e fundamentos que estampam a face desse povo. Desta forma, a diversidade na prática umbandista sinaliza para a própria diversidade do povo brasileiro e suas configurações. Essa diversidade apresenta-se como uma característica dessa religião que abriga e acolhe a todos, tanto no plano espiritual, quanto entre os encarnados. Assim, buscamos compreender essa abertura, essa diversidade, enfim, essa universalidade na e da Umbanda. Para tanto, além de uma pesquisa bibliográfica, adentramos no cosmos da casa umbandista Lar Espírita Filhos de Ogum e Oxóssi, na cidade de Itabira- MG. A busca por um entendimento sobre a Umbanda nos levou a uma melhor compreensão do próprio povo brasileiro e da plasticidade de se cultuar e consagrar e de se conjugar o sagrado e o profano. Palavras-chave: Umbanda; Brasil, Sincretismo; Universalidade; Lar Espírita Filhos de Ogum e Oxóssi ABSTRACT The aim of this study is to understand Umbanda's process of spiritual and cultural universality and to identify elements of a universalistic and welcoming umbandist character in the Spiritist Center of Ogum and Oxóssi, in Itabira/MG. Starting from the analysis of the formation of the Brazilian people, periods of violence, exploration, impositions, but also encounters,cultural and religious exchanges were evidenced. All over these centuries, people has taken biologically and culturally form. And now, new social and biological types express this national multiplicity. As well as, new forms of bound to the sacred also arose. Among the blessings, herbal teas and baths, candles, tables, churches, huts and tents, they cultivated and nurtured the religiosity. Umbanda is present in the Brazilian religious scene with its rites, liturgies and foundations that portray the face of this people. In this way, diversity in the Umbandist practice points to the center of Brazilian diversity and their configurations. This diversity presents itself as a characteristic of this religion that shelters and welcomes all, both spiritually and incarnate. Thus, we seek to understand this openness, this diversity, in other words, this universality in and of Umbanda. For that reason, in addition to a bibliographical research, we arrive to the cosmos of the umbandist home called Spiritist Home Children of Ogum and Oxóssi, in the city of Itabira-MG. The search for an understanding about Umbanda has led us to a better thought of the Brazilian people themselves and the importance of rituals and consecrating plasticity, even of conjugating the sacred and the profane. Keywords: Umbanda; Brazil, Syncretism; Universality; Spiritist Children of Ogum and Oxóssi Home. LISTA DE FIGURAS FOTO 1 - Bandeira do Lar Espírita Filhos de Ogum e Oxóssi .............................................. 135 FOTO 2 - Frente do Lar Espírita Filhos de Ogum e Oxóssi. ................................................. 135 FOTO 3 - Zé Pelintra .............................................................................................................. 136 FOTO 4 - Lar Espírita Filhos de Ogum e Oxóssi. .................................................................. 136 FOTO 5 - Cantinho de Iemanjá. ............................................................................................. 137 FOTO 6 - Cruz das Almas ...................................................................................................... 137 FOTO 7 - Orixá Xangô ........................................................................................................... 138 FOTO 8 - Imagens cobertas na quaresma .............................................................................. 138 FOTO 9 - Oferenda para Cosme e Damião e a Linha de Ibeji na abertura do ano. ............... 139 FOTO 10 - Oferenda a Iemanjá na abertura do ano. .............................................................. 139 SUMÁRIO 1 INTRODUÇÃO ................................................................................................................... 11 2 A FORMAÇÃO DE UM POVO E DE UMA RELIGIOSIDADE .................................15 2.1 Brasil: a formação de um povo ........................................................................................ 15 2.1.1 Brasileiros- dos donos da terra Brasil ao atual mestiço ................................................. 15 2.1.2 A Umbanda entre sincretismo(s) e/ou síntese ................................................................. 27 2.1.3 A “casa” Brasil ............................................................................................................... 30 2.2 Umbanda: a aurora de uma religião ............................................................................... 32 2.2.1 Uma visão histórico-mítica: Zélio de Moraes: o “mito fundador” ................................ 33 2.2.2 Uma visão ancestral: a formação da Umbanda a partir dos cultos afro-brasileiros ..... 32 2.2.3 Uma visão político-histórica: a fundação e legitimação da Umbanda na Era Vargas .. 30 2.3 Campo religioso e a Umbanda no cenário religioso brasileiro atual ........................... 44 2.3.1 O campo religioso e algumas considerações sobre o caso brasileiro ............................ 44 2.3.2 A Umbanda no cenário religioso brasileiro atual .......................................................... 48 3 “UMBANDA DE TODOS NÓS”: A UMBANDA E SEU UNIVERSO .......................... 50 3.1- O uno e o diverso na Umbanda ...................................................................................... 50 3.1.1 Gerando sentidos: a referência de uma matriz religiosa brasileira ............................... 51 3.1.2 Germinando em solo sagrado: a Umbanda enquanto espaço de sincretismos ............... 57 3.1.3 Florescendo em ramificações: as tradições na Umbanda .............................................. 61 3.2- “A Umbanda tem fundamento, é preciso preparar”: as diversas formas de se ligar ao sagrado na Umbanda ........................................................................................................ 66 3.2.1 Em busca de uma estrutura: fundamentos de Umbanda ................................................. 67 3.2.2 O espaço e o sagrado: as giras de Umbanda .................................................................. 71 3.3- Entre imagens e vibrações: do orum ao aiyê ................................................................. 75 3.3.1 Os Orixás e as Sete Linhas de Umbanda ....................................................................... 75 3.3.1.1 As senhoras do Orum- Oxum, Iemanjá, Nanã e Iansã ................................................. 77 3.3.1.2 Os irmãos: Ogum, Oxóssi e Exu ................................................................................... 79 3.3.1.3 Os senhores da criação, do reino e da cura: Oxalá, Xangô e Obaluaê ....................... 80 3.3.2- Guias, entidades e protetores- os trabalhadores do astral ........................................... 82 3.3.2.1 Caboclos, pretos-velhos e erês ..................................................................................... 83 3.3.2.2 Baianos, marinheiros e boiadeiros ............................................................................... 85 3.3.2.3 O povo da rua: o “cumpadre” Exu, a “moça/senhora” Pombogira e o Malandro .... 86 3.3.2.4 Optchá- a irradiação da Linha do Oriente ................................................................. 88 3.3.3 Anjo da guarda e santos na Umbanda ........................................................................... 91 4 A UMBANDA DE TODOS OS SANTOS NO LAR ESPÍRITA FILHOS DE OGUM E OXÓSSI ................................................................................................................................... 94 4.1- A casa de Umbanda- o sagrado e o espaço: a Umbanda no Lar Espírito Filhos de Ogum e Oxóssi ........................................................................................................................ 95 4.2- A universalidade umbandista na prática mágico-religiosa do Lar Espírita Filhos de Ogum e Oxóssi ........................................................................................................................ 98 4.2.1 A corrente de médiuns ..................................................................................................... 99 4.2.2 Pedimos licença para trabalhar- entidades a serviço do plano superior ..................... 102 4.2.3 As giras de sexta-feira ................................................................................................... 105 4.3 O corpo mediúnico em algumas atribuições ................................................................ 109 4.3.1 Ao som do atabaque- o ogã ........................................................................................... 110 4.3.2- O Yaô Pai Pequeno ...................................................................................................... 111 4.3.3 A cambona Maria e Camila, a zeladora de santo ........................................................113 4.3.4 João: um filho desta casa .............................................................................................. 115 5 CONCLUSÃO .................................................................................................................... 120 6 REFERÊNCIAS ................................................................................................................ 125 ANEXO A- IMAGENS DO LAR ESPÍRITA FILHOS DE OGUM E OXÓSSI ............ 135 ANEXO B - ORAÇÕES E HINOS RECITADOS PELOS MEMBROS EM REUNIÕES E SESSÕES ........................................................................................................................... 140 11 1 INTRODUÇÃO Esse trabalho teve como ponto inicial uma inquietação: se a Umbanda acolhe a todos, tanto no plano espiritual, quanto no plano material; ela é universal, ou seja, ela apresenta em sua essência, a universalidade, sendo de todos e para todos! Essa problematização passou a ser, então, uma hipótese a ser verificada. Buscando elementos que comprovassem ou não essa hipótese, um caminho foi trilhado entre trânsitos religiosos, desde a tenra idade, sempre em busca de explicações que dessem sentido às relações humanas e com esse desconhecido, esse sobrenatural, o além de nós, o sagrado. “Tomando passe” com preto-velho, comendo doces nas festas de Cosme e Damião, assistindo a sessões de “mesa branca”, conversando com entidades em centros espíritas, participando de encontro de jovens de um centro kardecista e também de uma igreja católica, dentre outras, e, também, por vezes, vivendo momentos de incredulidade, as experiências religiosas foram diversas, assim como foram diversas as religiosidades nas quais mantivemos contato. Frequentando uma casa umbandista há anos, as observações e questionamentos se pautavam, quase sempre, sob um olhar sociológico e epistemológico. O aprender a sentir, a deixar as energias atuarem, vieram com o tempo. Desta forma, a Umbanda, não mais totalmente desconhecida, mas essa a ser buscada e sentida, tornou-se, também, nosso objeto de investigação. A compreensão de uma religião perpassa o seu cosmos, pois, entendida como uma instituição social, está presente em uma sociedade e encontra-se sob o julgo de uma cultura. A religião é passível de ser investigada enquanto comunidade, ou seja, enquanto um grupo de pessoas que professam a mesma fé; é passível de ser estudada a partir do seu conjunto de doutrinas e, também, como acumulação de experiências. Alguns desses pontos são de acesso ao pesquisador, porém, uma dificuldade se apresenta ao cientista da religião: a experiência religiosa. Considerada como uma força vital que anima as religiões, alimentando seus ensinamentos e os ritos transmitidos, apresenta-se, desta forma, como uma medidora de força de uma religião. Assim, quanto mais fieis encontramos vivenciando uma determinada crença, mais forte ela se torna, e, também ao contrário, quanto menos fieis a vivenciam, menos força ela apresenta no cenário religioso. 12 Inserida em uma cultura, a religião, também apresenta esse dinamismo, esse equilíbrio entre passado e presente. Desta forma, concilia a tradição com a reatualização, buscando sua manutenção no cenário religioso. Pensando no empreendimento de investigação que levasse à compreensão de alguns aspectos da religião, sem perder a noção do seu todo, iniciamos o estudo sobre a Umbanda. Buscando compreender o “início” da Umbanda, seus ritos, doutrina e algumas das experiências dos fieis, a partir de uma comunidade de fé, demos início aos estudos delineando a metodologia a ser abordada. Neste sentido, dividimos essa pesquisa em duas etapas: na primeira foi desenvolvida uma pesquisa bibliográfica, que norteou a seguinte, pois, é a partir desta que se encontram os pressupostos teóricos e as atuais informações referentes ao problema que fundamentarão o referencial. A pesquisa bibliográfica foi direcionada para a análise de trabalhos relacionados às temáticas: o povo brasileiro, sincretismo cultural e religioso, a universalidade e sobre a constituição e trajetória da Umbanda, assim como, a sua cosmovisão, práticas ritualísticas e demais elementos religiosos. A segunda etapa consiste na pesquisa de campo. Nesta etapa, foram observadas e descritas as práticas e ensinamentos religiosos do Lar Espírita Filhos de Ogum e Oxóssi, na cidade de Itabira/MG. Foram, também, utilizadas as técnicas de observação sistemática não participativa e entrevistas pré-estruturadas com alguns membros que compõe a direção da referida instituição, sendo eles: um sacerdote e/ou líder religioso, a cambona, o ogã, a zeladora de santo e o filho de santo com mais tempo na casa. As observações foram realizadas em dias de reuniões fechadas e sessões abertas à comunidade e as entrevistas foram agendadas1. As observações foram direcionadas tanto para os membros incorporados, quanto para os não incorporados, buscando a compreensão do universo religioso umbandista e sua singularidade, bem como a diversidade dos trabalhadores do astral (entidades). Expostas as formas de obtenção de informações, passemos para a estrutura deste trabalho. Esta pesquisa está dividida em três capítulos. No primeiro, buscamos a compreensão da formação do povo brasileiro; da legitimação da Umbanda enquanto religião e sua presença no campo religioso brasileiro. Ao que se refere à formação do povo brasileiro, destacamos o processo de colonização pelos portugueses que desencadeou uma série de outros processos firmando o protagonismo desse povo europeu e sua visão de mundo nesta terra. 1 O período destinado às observações e entrevistas foi de maio de 2017 a janeiro de 2018. 13 Por séculos os povos indígenas, africanos e portugueses conviveram e se misturaram, biológica e culturalmente nesta terra. Atravessando matas e sertões, foram povoando esta terra “sem fim”. Desta forma, novas configurações e transfigurações foram surgindo em cada canto desta terra, a partir dos trânsitos, desenraizamentos, destribalizações e desagregações. Este povo brasileiro, representado aqui pelas figuras do mameluco, do caboclo, do sertanejo, do caipira, do crioulo, o paulista e do gaúcho, filhos desta terra, sem identidade, vivendo, como diria Ribeiro (2013), sua ninguentude, foram sobrevivendo selva e sertão adentro. Ora perdendo alguns elementos culturais de uma de suas matrizes, ora se agarrando aos saberes das mesmas, esses filhos da terra, vivendo em trânsito, em busca de um lugar em que pudessem fincar suas raízes, fundiram-se entre religiosidades, técnicas, línguas, biotipos múltiplos e fundiram-se entre cores. Este espaço de miscigenação, vem agregando novos povos ao longo da sua colonização e posterior à constituição republicana. Igualmente desenraizados, alemães, italianos, espanhóis, poloneses, japoneses e árabes vem compondo esta trama brasileira. A partir da segunda metade do século XIX, estes povos iniciaram sua jornada nesta terra, principalmente nas regiões Sul e Sudeste. Vem se abrasileirando, misturando-se a um povo já mestiço, plural, múltiplo, universal e único. Estes povos foram se fixando, arando a terra, plantando, produzindo artesanatos, se adaptando à língua, ao clima, a um novo modo de vida, a um novo povo. Quando estes novos habitantes chegaram, encontraram um povo arquitetado, mas, que não estava vedado constitutivamente. Aliás, esta é uma característica do brasileiro, estar aberto ao outro, por isso ele abriu suas portas para os que aqui desejavam adentrar, para os que desejavam uma nova casa. A trajetória deste povo novo, o brasileiro, marcada por longas caminhadas, entre encontros e desencontros, proporcionou ao mesmo tempo um crescimento desigual. Para além das adversidades da natureza, encontrou-seas adversidades estruturais. Assim, Ribeiro (1972) aponta, ao direcionar seu olhar sobre os aspectos culturais deste povo, que é nas camadas subalternas e como cultura vulgar, recheada de elementos indígenas e africanos, que se exerce a criatividade que viria a atender aos requisitos necessários à sobrevivência material; à convivência humana e ao atendimento de necessidades espirituais, para esta última, correspondente à criação de cultos sincréticos e explicações míticas e lendárias sobre a natureza e a sociedade. Essa lógica cultural, em interface à religiosa fez emergir uma diversidade de formas de se ligar ao sagrado. Dentre essas formas, sinalizamos a umbandista. Entre trocas, simbioses e 14 empréstimos, sincretismos e sínteses constituíram-se formas pelas quais novos elementos e novas ressignificações dos antigos foram surgindo. Assim, ao nos direcionarmos para o entendimento que marca um possível início da Umbanda, encontramos algumas perspectivas de origem ligadas entre a sua “fundação” a partir do “mito” da incorporação do médium Zélio de Morares pelo Caboclo das Sete Encruzilhadas e entre a ressignificação a partir da herança da antiga macumba, prática religiosa de forte herança africana e entre sua legitimação nas décadas de 1920 e 1940, em um Brasil em processos de urbanização e industrialização. Entre essas perspectivas, que serão analisadas ao longo do primeiro capítulo, a Umbanda vem se firmando no cenário religioso brasileiro. Ora se ascendendo e confirmando sua força enquanto religião brasileira, ora, como nos últimos dados do IBGE, perdendo fieis declarados. No segundo capítulo adentraremos no universo religioso brasileiro em busca de uma melhor compreensão da formação de uma matriz religiosa brasileira. Assim, chegaremos à Umbanda enquanto espaço de sincretismos e sínteses, características que se destacam nessa religião. Entre o sagrado e o profano, divagamos entre energias superiores, tipos sociais, ritos e fundamentos, buscando um ponto em comum nesta diversidade umbandista. Diversidade esta que também se destaca na busca por uma melhor compreensão dessa religião brasileira. Conheceremos a representatividade e a atuação dos orixás, anjos, santos e entidades, na vida e no imaginário umbandista, dentro do espaço sagrado que é o abaçá. No terceiro capítulo analisaremos uma casa umbandista: o Lar Espírita Filhos de Ogum e Oxóssi, na cidade de Itabira/MG. Ao sairmos das páginas dos livros e artigos e da tela do computador nas visitas a sites institucionais que continham produções acadêmicas e, também, os discursos dos fieis, iremos em direção a uma análise do fato em si, adentrando o espaço sagrado. Observamos as giras, a estrutura física, os atendimentos, a doutrinação, enfim, percebemos uma gama de linguagens usadas para a expressão religiosa desta comunidade de fé e ouvimos, também, as vozes desses filhos de fé. Vozes estas que ecoam nessas páginas. Por fim, acreditando que qualquer conclusão é a delineação de um novo começo, chegamos a um desfecho originado por uma inquietação. Após as pesquisas, alguns pontos se mostraram mais seguros para se caminhar. Ressaltando que qualquer tentativa de se enformar a Umbanda se torna uma tentativa de enformar tradições culturais e ressignificações, buscamos mostrar os laços que unem essa diversidade peculiar. Essa essência que se ramifica 15 no solo e no imaginário brasileiros, vai desembocar nas mais multifacetadas manifestações, interpretações, mas sem perder seu foco de irradiação. Apresentamos, também, em anexo, algumas fotos dessa casa umbandista e algumas orações proferidas por seus fieis. Apresentamos a casa de todos os santos, a casa onde não somente “Deus fez sua morada”, mas, onde todos os seres encontram morada. 2 A FORMAÇÃO DE UM POVO E DE UMA RELIGIOSIDADE Neste primeiro capítulo, nos atentamos para a compreensão da formação do povo brasileiro e para as perspectivas relacionadas ao surgimento da Umbanda. Para tanto, dividimos o texto em três partes. Na primeira parte, analisamos os processos de formação do povo brasileiro, bem como, alguns aspectos das religiosidades que emergiram nesta terra. Nas segunda e terceira partes, nos direcionamos para a Umbanda. Desta forma, apresentaremos algumas perspectivas relacionadas ao seu surgimento e os processos de legitimação social e estatal, da mesma forma, situaremos essa religião no cenário religioso brasileiro atual. 2.1 Brasil: a formação de um povo O Brasil é um país que apresenta, também, como característica em destaque, a miscigenação. Nestas terras vastas, vários povos mantiveram e mantêm contatos. Em processos que se iniciaram há mais de cinco séculos e que, pela própria dinâmica que mantêm, não se cessarão, diversos elementos culturais são inseridos e ressignificados, assim como, biotipos vão tomando forma. Os encontros e contatos vão dando contornos às mais variadas formas de percepção de mundo, de interação com o meio ambiente, da utilização de técnicas para a sobrevivência e da compreensão do outro. Enfim, o povo brasileiro vem se firmando nesse solo, semeando sua cultura e religiosidade. Desta forma, iniciaremos este trabalho a partir da compreensão da formação do povo que habita este solo e da compreensão dos processos sincréticos e sintéticos que aqui sucederam. 2.1.1 Brasileiros- dos donos da terra Brasil ao atual mestiço 16 A história do Brasil inicia-se para além-mar, para terras longínquas, na Península Ibérica, precisamente, para Portugal e Espanha. Portugal, país central desta trama que se transfigurará no Brasil, também apresenta uma história de tecitura cultural. Durante séculos, Portugal foi ocupada pela civilização árabe, que, mesmo permanecendo em território ibérico por séculos, não se propôs à conversão do povo português (RIBEIRO, 2013, p. 64-65). A convivência em terras ibéricas, entre o cristianismo, o judaísmo e o islamismo, enquanto representavam forças relativamente equivalentes, apresentava um espírito de certa tolerância. Porém, a partir da hegemonia do cristianismo, esta coexistência pacífica deixou de existir e mouros e judeus acabaram sendo expulsos (WACHHOLZ, 2011, p. 784). Este mesmo povo ibérico, liberto da ocupação moura, se constitui, neste contexto, como os primeiros Estados nacionais do mundo moderno (RIBEIRO, 2013, p. 65- 67). Esta libertação, caracterizou-se, inclusive, com o estabelecimento de uma legislação discriminatória contra judeus, mouros e negros, como aponta DaMatta (1986, p. 46). Assim, a partir das transformações ocorridas em solo europeu, e, em especial, neste território, evidencia-se a emergência do feudalismo e sua posterior queda, a partir do mercantilismo; distingue-se uma precoce unificação nacional de Portugal e Espanha, incitada por uma revolução tecnológica e mercantil, surtidas nos mundos árabe e oriental, que permitiu, em destaque, o acesso ao mundo, através das técnicas navais (RIBEIRO, 2013). Os ibéricos lançam-se ao mar em busca de conquistas, apropriações e evangelização, em uma visão mercantilista e missionária salvacionista, aos continentes africano, asiático e americano, dando luz às novas configurações sociais, econômicas, históricas, culturais, geográficas e étnicas. Deste modo, esse povo português que chega à terra, posteriormente intitulada Brasil, para além-mar da sua terra europeia, apresenta, em sua formação étnica, uma heterogeneidade de povos e costumes, proporcionada por uma convivência multi secular entre diferenças também religiosas, que, porém, os permitiu manter sua identidade católica. Em relação a esta identidade católica, Sanchis, aponta que o catolicismo foi inserido em Portugal, entre as religiões pré-celtas, celta e romana, predisposto a “haurir das sedimentações que abrigam sua raiz os elementos culturais – e religiosos – com osquais vai nutrir sua identidade”, e esta identidade é recapitulativa, no sentido em que, mesmo consciente e unificadamente “católica”, é portadora das virtualidades das camadas religiosas que preparam sua germinação (SANCHIS, 2001, p. 24). 17 Desta forma, ainda com o ímpeto das recentes batalhas contra os mouros, esse povo português chega, na América, agora, contra os povos nativos (RIBEIRO, 2013, p. 70-73). Assim, este primeiro contato entre estes povos com diferenças biológicas e culturais acentuadas, acontece por duas visões distintas: por um lado, os índios litorâneos, espantados, não podiam prever que aqueles homens fétidos, cobertos, feios e barbudos não seriam generosos e enviados do seu deus criador. Por outro lado, esses homens de além-mar, “civilizados”, práticos, sofridos, que traziam em sua bagagem, além de instrumentos da vida moderna e a sua concepção cristã do mundo, viam, aquela gente despida. Porém, viam-nos também, como fúteis. A partir deste primeiro contato pacífico, as intenções dos novos habitantes ficaram mais evidentes e as relações de gentileza e submissão indígenas, deram lugar às lutas por sobrevivência (RIBEIRO, 2013, p. 42-44). Neste sentido, DaMatta ressalta o interesse mercantilista do português, que, visando um enriquecimento fácil, inicia o extrativismo imediatista e predatório (1994, p. 103). Assim, esta terra fértil, rica, passiva e inexplorada, na lógica mercantil, será vista como uma terra boa para devastar, para sugar e explorar. A serviço dos portugueses estavam os braços dos índios para a derrubada de paus-de- tinta, como diria Riberio (2013), como produto de comercialização em sua terra natal, estavam, também, a força de trabalho da índia para a plantação e colheita, para o cativeiro doméstico e gestação de crianças (2013, p. 100). Posteriormente, o próprio índio, além de escravizado, se torna peça comercial, desencadeando, assim, um processo no qual os próprios índios, em troca de instrumentos e utensílios portugueses e da própria imposição escravista, auxiliaram na captura de mais índios na promoção de intensas e contínuas batalhas. Ao indígena, coube sobreviver às mais diversas doenças trazidas pelo português, sobreviver às batalhas contra os próprios “irmãos” e adentrar selva e sertão, fugindo de um destino certo: a morte (RIBEIRO, 2013, p. 47). A respeito deste povo dono da terra, o autor expõe as multiplicidades dos grupos étnicos indígenas, cuja sabedoria milenar os possibilitou um vasto e intenso conhecimento da terra, das plantas, dos animais e dos próprios povos, amigos e inimigos. Dentre as diversidades e especificidades destes grupos, Ribeiro aponta os Guaikuru, chamados também de cavaleiros, que travaram inúmeras batalhas contra os invasores. Considera-se que estavam em via evolutiva, pois, fisicamente, se destoavam dos demais, eram altos, utilizavam peles para proteção contra o frio e conquistavam outros povos submetendo-os a um sistema análogo à servidão. Mantiveram alianças tanto com os espanhóis, quanto com os portugueses, na captura de índios de outras tribos (p. 35-36). Já os 18 povos Tupi mantinham o ritual antropofágico que consistia em comer os honrados prisioneiros de guerra (RIBEIRO, 2013, p. 34). Este contato entre povos tão diferentes em sua cosmovisão e avanço técnico e bélico, foi se desenvolvendo por séculos, trazendo, como consequências, a assimilação, pelos portugueses, das técnicas de sobrevivência na nova terra e, aos índios, uma perda quase total da sua identidade étnica. Neste sentido, Ribeiro, aponta-nos a língua nheengatu, que surge no século XVI, como a língua geral e, sua substituição, pela língua portuguesa, como língua materna dos brasileiros, no século XVIII (2013, p. 122-123). O contato, a assimilação, a inculturação e a dominação cultural e religiosa foram decisivos no processo de formação desse novo povo: o brasileiro, assim como os seus diversos biotipos. Ribeiro já havia mencionado o nascimento desse novo habitante: o brasileiro, o filho da índia com o português. Esclarece que o sistema conhecido por cunhadismo contribuiu para o surgimento e multiplicação deste filho da terra. Foi somente a partir deste sistema que o Brasil começou a ser povoado. Em sua prática, o índio oferecia ao estranho uma moça índia como esposa, então, a partir desses laços de parentesco, os índios estariam a seu serviço. Essa prática fez emergir, a partir dessa massa de mestiços, à qual Ribeiro se refere como mameluco ou brasilíndio, grandes núcleos de povoação e, não atendendo à demanda, essa mão-de-obra mestiça deu lugar à captura de escravos (RIBEIRO, 2013, p. 81- 83). Esse mameluco, rejeitado pelo pai português, que o via impuro, e pela mãe índia, já que na visão indígena, o filho é do pai e não da mãe (p. 108); esse primeiro fruto da terra, ao não se identificar com seus ancestrais, se constrói nesta terra que não é sua e com este povo que não é o seu. Este novo gênero, o mameluco, que é a mão de obra mestiça, não atendia às necessidades dos interesses do português que, a partir do reconhecimento do potencial econômico desta terra Brasil, desenvolveu novas formas e produtos de comercialização e, viu- se com uma nova carência de mão de obra. Neste sentido, iniciou-se o processo de escravização africana com a função de suprir essa demanda na lavoura açucareira no Nordeste. Assim como os indígenas, os africanos viviam em sistema tribal e em diversos grupos étnicos, apresentando, inclusive, certo conflito entre alguns (RIBEIRO, 2013, p. 96- 98). Desenraizados, desqualificados, arrancados de sua terra, os africanos chegam aos canaviais nordestinos, e, posteriormente às minas, se adaptando, para a própria sobrevivência, a um sistema econômico, a uma língua, alimentação, cosmovisão, enfim, a um mundo novo. 19 Os africanos chegam de múltiplas tribos, línguas e costumes, e, esta diversidade, será um elemento essencial para a não união dos mesmos na composição de um corpo contestador eficiente para ameaçar os senhores de engenho. Assim, este africano vai se adaptando ecológica e culturalmente à nova terra. Ribeiro apresenta os processos de deculturação e aculturação exemplificando o que aconteceu com o africano e com o indígena, no Brasil. Desta forma, afirma que a deculturação tem como elementos básicos, seu caráter compulsório, expresso no esforço por inviabilizar sua transmissão; e a sua natureza de procedimento deliberado de incorporação de pessoas já integradas numa tradição em um novo corpo de compreensões comuns, tendente a cristalizar-se como uma nova cultura (RIBEIRO, 1972, p. 101). Neste processo, o africano perdeu sua condição humana ao ser tratado como coisa, posteriormente, foi “reumanizado”, a partir do aprendizado da língua, da apropriação das técnicas de trabalho e integração à nova cultura (RIBEIRO, 1972, p. 102). Assim, o negro foi compelido a se desmemoriar do seu universo simbólico e a interiorizar um novo. Essa nova matriz, o negro, foi se multiplicando com os mestiços e com os portugueses e, somando à diversidade das atividades de rentabilidade e de subsistência, formaram núcleos de base econômica, mas que, se tornariam, também, núcleos culturais. Ribeiro destaca a área cultural crioula: [...] à configuração histórico-cultural resultante da implantação da economia açucareira e de seus complementos e anexos na faixa litorânea do Nordeste brasileiro, que vai do Rio Grande do Norte à Bahia. [...] A polaridade social básica da economia açucareira- o senhor de engenho e o escravo – uma vez plasmada como uma forma viável de coexistências, constituiria uma matriz estrutural que, adaptada a diferentes setores produtivos, possibilitaria a edificação da sociedade brasileira tradicional (RIBEIRO, 2013, p. 277). Neste sentido, tanto o senhor de engenho, quanto o escravo, interiorizadosem estrutura hierarquizante, compartilham a mesma língua, se abrasileirando, se enraizando nas relações de codependência. Para além da visão de desenraizamento que se reconhece no escravo, e que, aqui, se traduz na figura deste africano, Ortiz, assim como Ribeiro, aponta para a situação de submissão racial que o levará a não se reconhecer como humano, se vendo, assim, por meio do olhar do colonizador (ORTIZ, 2003, p. 57). Ocupar esta vastidão territorial, demarcando não somente seu chão, mas, principalmente, tomando posse de tudo o que nela vivia, foi um empreendimento que levou séculos para se concretizar. Cada passo desses desbravadores mercantilistas foi marcado pela multiplicidade climática, geográfica, étnica e da biodiversidade. Diante desta longa 20 caminhada que buscou a ocupação e a dominação desta terra, destacamos alguns desses passos. Ao que se refere ao que hoje conhecemos por região amazônica, tem-se o que Ribeiro chama de Brasil Caboclo. A ocupação portuguesa deste território se iniciou com o objetivo de expulsar holandeses, franceses e ingleses; ocupação esta que desencadeou inúmeras batalhas para quais se chantageou e escravizou os nativos, compondo, assim, o corpo bélico necessário para a derradeira vitória (2013, p. 311). A partir deste contato entre os índios da região amazônica e o português, alinhado à prática do cunhadismo, forma-se um povo mestiço, um “tipo racial” mais indígena, o caboclo da Amazônia. Inserido em uma nova forma de sociedade, este caboclo, que não possui uma identidade indígena e nem europeia, torna-se mão de obra para o extrativismo português e, também, caçador de índio (RIBEIRO, 2013, p. 316-320). Para além da Amazônia e das terras férteis e frescas, adentrando na terra Brasil, encontra-se um território agreste, terras semiáridas, encontra-se a caatinga e o cerrado. Não havendo especiarias e drogas da floresta amazônica para extrair e as lavouras açucareiras com seus tipos societários específicos, desenvolveu-se, no sertão, uma economia pastoril que foi introduzida objetivando o fornecimento de carne, couros e bois de serviço à produção açucareira. Esse novo povo, o sertanejo, não era escravo, seu pagamento consistia em fornecimento de gêneros de manutenção, como sal e crias de rebanho (RIBEIRO, 2013, p. 342). Assim, essa subcultura sertaneja, caracterizava-se pela formação de núcleos, chamados currais, que se organizavam em torno do proprietário, que era autoridade indiscutida, assim como, por uma vestimenta específica e uma vida pobre, dispersa nos núcleos pelo sertão. Estampado em sua face, a face da vaqueirada e do povo nordestino, em geral, originários deste sertanejo, está o fenótipo típico dos povos indígenas originais deste território, que encontrava momentos de convívios entre famílias nos cultos aos santos padroeiros e nas festividades do calendário regido pela religião católica (RIBEIRO, 2013, p. 340-344). Desta forma, vivendo esta vida minguada e árida, quase estéril, este povo encontrou formas de luta contra esta penúria e miséria através do cangaço e da vivência de uma religiosidade messiânica. Exemplos dessas expressões vivenciadas são Lampião e o seu banditismo sertanejo e Antônio Conselheiro e Padre Cícero (RIBEIRO, 2013, p. 356). A respeito da vida religiosa, DaMatta aponta os ritos da religião, assim como os ritos cívicos ou do Estado e os orgiásticos ou carnavalescos, como um dos três modos de ritualização vigentes na sociedade brasileira. O autor destaca a reza como um modo 21 privilegiado de comunicação, que impulsiona homens e deuses, que aproxima o sagrado e o profano (DAMATTA, 1994, p. 75). Neste sentido, essas atividades religiosas, predominantemente católicas, proporcionavam, não somente um elo, mesmo que temporário, social, mas, também, uma conexão desses homens de vida escassa aos santos e a Deus. O sertão foi sendo cortado e ocupado por este povo, que introduziu, além da criação de bode, atividades extrativistas, e, em terras mais prósperas, uma lavoura comercial. A natureza dura e seca conduzia a vida parca e miserável deste sertanejo e o moldou como uma mão de obra barata e adaptativa, que contribuiu para diversas atividades econômicas, tais como a mineração e o extrativismo nos seringais da região amazônica (RIBEIRO, 2013, p. 340-344). Assim, vivendo em constante trânsito, vivendo em terras que não são suas, se agregando e, contraditoriamente, se desgarrando, em busca de uma vida menos miserável, o sertanejo se mescla e se mistura Brasil adentro. Já na região sudeste, os paulistas, considerados os deserdados do Brasil, pois, com a economia voltada para a lavoura açucareira e os currais de gado, a eles coube se especializarem como homens de guerra, caçadores para a escravização e saqueadores. Esses bandeirantes cortavam sertões em busca de índios, mas, também, formavam núcleos familiares, mesclando-se, originando, também, os mamelucos. Esse povo novo, fruto de gente desgarrada das tribos, tinha, como grande esperança, encontrar minas de ouro, prata ou pedras preciosas (RIBEIRO, 2013, p. 368-372). A partir da descoberta do ouro em Minas Gerais, Mato Grosso e, posteriormente, em Goiás, o fluxo migratório se intensificou, desencadeando inúmeros conflitos entre seus descobridores e baianos, pernambucanos e demais brasileiros e a gente vinda da corte, seduzida pelas minas (RIBEIRO, 2013, p. 374). A mineração desencadeou um processo de intensa urbanização nas regiões e estimulou a expansão do pastoreio nordestino pelos campos são-franciscanos e Centro-Oeste; possibilitou a ocupação da região sulina, além, é claro, de contar com uma massa de escravos africanos e indígenas e novos contingentes de brasileiros de outras regiões e europeus. Assim, esta atividade de maior lucro para a colônia, possibilitou, a esta sociedade colonial, uma integração dessa gente semeada na imensidão desta terra (RIBEIRO, 2013, p. 376-377). Referindo-se a este deslocamento para a região do centro do Brasil, Bastide apontará, que, de certo modo, deu, a este Brasil colonial, seu centro de gravidade, para onde se convergiram os interesses e atividades econômicas, políticas, sociais e artísticas (1978, p. 29). Esta nova sociedade apresentava uma estratificação social diferenciada das anteriores, pois contava com uma ampla camada intermediária, assim como, 22 com uma diversidade nas atividades econômicas e sociais, sendo, estas últimas, também regidas pelas atividades religiosas (RIBEIRO, 2013, p. 378). Esta vida barroca à brasileira, de luxo e ostentação, entrou em decadência e a vida pobre e rústica retorna a esta terra; as cidades se esvaziam, antigos mineradores e negociantes se transformam em fazendeiros; a busca, agora, é por terras para a subsistência, sendo para lavoura e/ou a criação. A esta área cultural rusticamente cristalizada, Ribeiro chama de caipira. Esta, antes rica em ouro, transforma-se em uma área ocupada por uma população extremamente dispersa e desarticulada (RIBEIRO, 2013, p. 383). Porém, esta mesma gente caipira foi se estruturando em unidades solidárias, apresentando participação em formas coletivas de trabalho e de lazer, assim, a ideia da primazia do núcleo familiar permanece, agora, associada às formas de auxílio e convívio mútuos, que se estenderá, em algumas ocasiões, às atividades religiosas, como os cultos aos santos e missas. Aos rituais religiosos, DaMatta esclarece um importante ponto: a ordenação do mundo de acordo com os valores da Igreja Católica e estes espaços religiosos demarcaram uma área onde a possibilidade de convivência entre os diferentes extratos sociais fazia-se presente (DAMATTA, 1986, p. 83). Constatando, neste sentido, que, este era um espaço onde se mantinha uma identidade religiosa e uma identificação com o santo padroeiro, em suma, mantinha-se uma relação de proteçãoe pessoalidade com o mesmo. Assim, este posseiro caipira que, após a decadência da atividade mineradora, se reorganizou e desenvolveu novas formas de subsistência e estrutura social, passa, agora, a ser mais um desenraizado, por promoção do Estado oligárquico, que remonopolizou a terra e o surgimento de novos cultivos comerciais como o algodão, o tabaco e, posteriormente, o café. Este último, de grande importância para a economia brasileira, possibilitou uma reordenação social e uma nova configuração econômica, social, cultural e biológica (RIBEIRO, 2013, p. 394-396). Esse novo produto exportador, recrutou a mão de obra escrava até a proibição do tráfico de escravos e a abolição; posteriormente, o caipira conseguiu se inserir como força de trabalho na lavoura cafeeira, assim como, imigrantes europeus, porém, em regime de trabalho de colonato. Este europeu que aqui se estabeleceu, veio de um processo de desenraizamento dos campos para as cidades, proporcionado pelo capitalismo industrial (RIBEIRO, 2013, p. 399). Essa multidão de alemães, espanhóis, italianos e poloneses, enquanto mão de obra mais especializada e enquanto um povo cuja mentalidade foi moldada a partir do advento das Revoluções Francesa e Industriais, familiares ao trabalho assalariado, aos direitos às liberdades religiosa e política, assim como, experiências com os ideais comunistas e 23 anarquistas e com o sindicalismo foi, progressivamente, se inserido na nova terra, num processo em que o ex escravo e o caipira foram sendo, cada vez mais, impelidos à marginalidade social pela oligarquia cafeeira (RIBEIRO, 2013, p. 400). Os bandeirantes paulistas também chegaram à região sulina. Esta, que carrega em sua história uma prévia dominação espanhola, a partir da catequização e estruturação social jesuíta, que destribalizou e uniformizou culturalmente o índio, teve os núcleos das missões devastados pelos paulistas, que escravizaram os nativos e se apropriaram das terras (RIBEIRO, 2013, p. 410). Este povo gaúcho também apresenta o início da sua configuração étnica a partir da mestiçagem da índia com o português, porém, com um diferencial: o espanhol, cuja presença e tentativa de permanência desencadearam conflitos por séculos (RIBEIRO, 2013, p. 414). Este gaúcho, assim como os demais povos brasileiros acima citados, é desenraizado, não é índio, cuja matriz é guarani, nem espanhol, nem português; este gaúcho desenvolve atividades pastoris e possui sua vestimenta peculiar. Assim como nas demais regiões do Brasil, também no Sul, foi-se utilizada, primeiro, a mão de obra escrava indígena e, posteriormente, a africana. Ao se analisar a concepção que Ribeiro desfia acerca do caipira, vê-se, no gaúcho-a- pé, este mesmo trabalhador de terras e criação alheias; desgarrado, finca suas hastes em terras de ninguém, quando encontra, visando sua subsistência, até que um agente do poder estatal rompa com sua miserabilidade, condicionando-o a mais um desenraizamento (RIBEIRO, 2013, p. 424). Tal qual se deu no Nordeste, também no Sul, houve um movimento messiânico; assim, também no Sul, uma massa de gente pobre, miserável, degredada, sem lugar, buscou expressar sua miserabilidade e sua contestação da marginalidade na qual viviam. Em comunhão, esses marginalizados passaram a enfrentar a ordem social que os conduzia à mazela. Desamparados socialmente, se agarraram à visão de um novo mundo, ocupavam terras do governo, fincando seus ideais de uma vida comunitária, próspera e justa. Em movimentos messiânicos, fortaleciam as lideranças dos “monges” caminheiros, tidos como curandeiros, milagreiros e conselheiros (RIBEIRO, 2013, p. 431-433). Desta forma, não mais como colônia ou império, mas, enquanto república, entre os anos de 1910 e 1916, principalmente, na Guerra do Contestado, esses movimentos, a partir da busca por justiça social e de uma vida digna, eclodiram, tornando-se preocupantes para o governo, assim como ocorreu em Canudos. Tal como em Canudos, a força bélica estatal silenciou milhares de vozes brasileiras que gritavam por justiça, que bravejavam por dignidade, enfim, que clamavam pela vida (RIBEIRO, 2013, p. 433-434). 24 A composição do povo gaúcho vai se diferenciar das demais regiões do Brasil devido a uma maior imigração de europeus, da imigração de japoneses e açorianos. Assim Darcy Ribeiro arremata este longo processo: Efetivamente, o Brasil não nasceu como etnia e se estruturou como nação em consequência de um desígnio de seus criadores. Surgiu, ao contrário, como uma espécie de subproduto indesejado de um empreendimento colonial, resultante da Revolução Mercantil, cujo propósito era produzir açúcar, ouro ou café e, sobretudo, gerar lucros exportáveis. Desse empreendimento resultou ocasionalmente um povo e, mais tarde, uma nação. Esta emergiu da condição de feitoria colonial à de nação aspirante ao comando de seu destino, por força de um outro processo civilizatório de âmbito mundial – a Revolução Industrial – que a afetou reflexamente (RIBEIRO, 1972, p. 3-4). Esta lógica portuguesa de exploração da natureza farta, pronta a ser domesticada, permeou e se consolidou nas relações entre os povos, aonde o escravo se torna a figura mais emblemática, pronto também a ser explorado. O povoamento, a ocupação e o desenvolvimento dessa nova gente se estruturam em uma hierarquia em que, assim como a natureza, o escravo foi visto com igual domabilidade. Esta relação hierárquica é facilmente reconhecida nas relações acima citadas e entre os tipos sociais que são, caracteristicamente, a prole dessa configuração brasileira, sendo eles: os senhores de engenho, os bandeirantes paulistas, os senhores das minas e os senhores dos gados e dos currais, como aponta DaMatta (1994, p. 113). Esta história, que se iniciou além-mar, se caracteriza por trânsitos, desenraizamentos, destribalizações, desagregações, configurações e transfigurações. Na terra, povos nativos e múltiplos; vindos do mar, o português, também mestiço, que trouxe os africanos, também em sua pluralidade cultural. Esses povos vêm se formando, gerando, assim, o que Ribeiro chama de Povos-Novos, pois “originaram-se da conjunção de matrizes étnicas mais diferenciadas, impostas por empreendimentos coloniais-escravistas, seguida da deculturação destas matrizes, do caldeamento racial de seus contingentes e de sua aculturação no corpo de novas etnias” (RIBEIRO, 1972, p. 31). Assim, cada uma dessas matrizes étnicas deste “novo povo”, contribuiu para a formação deste novo ser: o brasileiro. Desta forma, o indígena contribuiu como matriz genética e agente cultural, através da experiência para a adaptação ecológica; o negro, na qualidade de força de trabalho e, o branco, como promotor desta miscigenação forçadamente instituída (RIBEIRO, 1972, p. 35-36). O mameluco, o caboclo, o sertanejo, o caipira, o crioulo, o paulista e o gaúcho, filhos desta terra, sem identidade, vivendo, como diria Ribeiro, sua ninguentude, foram sobrevivendo selva e sertão adentro; desgarrados, se mesclaram à natureza, se configurando e se moldando frente às diversidades encontradas neste ambiente por vezes hostil e nas relações 25 de poderio. Ora perdendo alguns elementos culturais de uma de suas matrizes, ora se agarrando aos seus saberes, esses filhos da terra, vivendo em trânsito, em busca de um lugar em que pudessem fincar suas raízes, fundiram-se entre religiosidades, técnicas, línguas, biotipos múltiplos, fundiram-se entre cores, formando, assim, o Brasil mestiço. Este espaço de miscigenação destacado por Ortiz (2003, p. 19), que experimentou conflitos contra franceses, holandeses, ingleses e espanhóis, para a defesa de uma terra ainda em formação, vem agregando, ao longo da sua colonização e posterior constituição republicana, novos povos. Igualmente desenraizados, alemães, italianos, espanhóis,poloneses, japoneses e árabes vem compondo esta trama brasileira. Vem se abrasileirando, misturando-se a um povo já mestiço, plural, múltiplo, universal e único. A respeito desses outros povos igualmente desenraizados que aqui chegaram, Bastide apresenta algumas das condições que os impeliram à nova vida em terra além-mar, dentre elas: a fuga da miséria e das perseguições políticas e a busca pela sobrevivência e a segurança de um futuro (1978, p. 184). Assim, italianos, espanhóis, japoneses, alemães, poloneses, portugueses, romenos, russos e sírio-libaneses, iniciam sua chegada a partir da segunda metade do século XIX, se fixando, principalmente, nas regiões Sul e Sudeste. Em busca de refazer suas vidas, estes novos habitantes, mantiveram este ideal, seja na lavoura cafeeira, seja na formação de pequenas colônias em regiões pouco povoadas. Assim, italianos, os mais numerosos, juntamente com os portugueses, apresentaram uma ligação maior à terra, trouxeram suas danças, músicas, seu modo festivo e o cultivo da uva, embora tivessem vindo para substituir a mão de obra escrava nas fazendas (BASTIDE, 1978, p. 202). Já os alemães, muito diversos em seus dialetos, regionalismos, em suas atividades laborais e religiões, vieram tanto católicos, quanto protestantes; primeiro, processaram o sincretismo inter-regional, na formação de uma comunidade teuto-brasileira, para, posteriormente, passarem ao sincretismo com a civilização brasileira. Mesmo com esta heterogeneidade, alguns traços culturais mais gerais podem ser destacados, tais como: a criação de porcos, o gosto pela cerveja e as festas de natal (BASTIDE, 1978, p. 203). Aos poloneses, Bastide atribui as características de conservação da vida rural, o catolicismo, o cultivo do trigo, centeio, cevada e linho e a manutenção da língua natal (1978, p. 204). Os russos, também rurais e conservadores, assim como os poloneses, buscavam a vida na aldeia (p. 205). Continuando a análise que Bastide apresenta desses novos moradores, os japoneses foram os que mais se destoaram. Assim, a sociedade japonesa, na visão de Bastide, foi reconhecida como um verdadeiro quisto, o que, o mesmo explica como: “um 26 núcleo de população que permanece não assimilado e que não se mistura com a população nacional” (p. 191). Desembarcando em 1908, os primeiros japoneses não se dispersaram na população, mantiveram o bilinguismo, a religião, em destaque o xintoísmo e o budismo, e, os que apresentaram melhores condições financeiras, o estilo arquitetônico de suas casas (BASTIDE, 1978, p. 192-193). Os sírio-libaneses, embora apresentassem uma semelhança com a estrutura familiar brasileira, que era a patriarcal, apresentavam, também, como característica desta estrutura, a vida secreta e submissão da mulher, uma disposição para o casamento endógeno e a religião, que Bastide também considerava um obstáculo, a maometana ou maronita (BASTIDE, 1978, p. 197). Por fim, Bastide chamará atenção para as influências dos ingleses, principalmente, com a introdução do maquinário nas fábricas, indústrias e ferrovias e dos missionários estadunidenses, principalmente com a abertura de escolas. A internalização e difusão da influência francesa partiu dos próprios brasileiros, compondo, inclusive, elementos culturais da elite, destacando-se no vestuário, na chapelaria, perfumes, nos salões, tornando-se a segunda língua desta elite (1978, p. 207- 208). Desta forma, estes povos foram se fixando, arando a terra, plantando, produzindo artesanatos, se adaptando à língua, ao clima, a um novo modo de vida, a um novo povo, povo este, que já encontrava formado, após séculos de convivência forçada. Quando estes novos habitantes chegaram, encontraram um povo arquitetado, mas, que não estava vedado constitutivamente. Aliás, esta é uma característica do brasileiro, estar aberto ao outro, por isso ele abriu suas portas para os que aqui desejavam adentrar, para os que desejavam uma nova casa. Este povo brasileiro não fala mais nheengatu, não vive mais sua ninguendade (RIBEIRO, 2013, p. 453), não é mais órfão em busca de um pai ou uma mãe, este povo brasileiro sabe quem é, ele traz, estampada em seu corpo, sua marca genética e, em sua identidade, sua memória coletiva, vinculada a esta totalidade dos seus povos formadores, que vem sendo vivenciadas cotidianamente por seus filhos e pelos filhos dos seus filhos. Os brasileiros, agora, são os agentes da sua própria história, sobreviventes das brutalidades seculares, são um povo, uma pátria, guardam sua memória nacional, memória esta, produto desta história social, que transcende aos seus agentes (ORTIZ, 2003, p. 135). Este povo tem rosto, tem história, é múltiplo, é plural, é universal, é tradicional e é moderno e, como diria DaMatta (1994, p. 34): “no Brasil a morte mata, mas os mortos, pela força dos elos que temos com todos eles, não morrem”, e não morreram, pois estão vivos em 27 sua memória, estão vivos em cada batucada, em cada canto de agradecimento à chuva, em cada capela, vivem em cada filho desta terra Brasil. 2.1.2 A Umbanda entre sincretismo(s) e/ou síntese2 A trajetória deste povo novo, marcada por longas caminhadas, entre encontros e desencontros, desencadeou um crescimento desigual. Para além das adversidades da natureza, este povo encontrou as adversidades estruturais. Assim, Ribeiro aponta, ao direcionar seu olhar sobre os aspectos culturais deste povo brasileiro, que é nas camadas subalternas e como cultura vulgar, recheada de elementos indígenas e africanos, que se exerce a criatividade que viria a atender aos requisitos necessários à sobrevivência material; à convivência humana e ao atendimento de necessidades espirituais, para esta última, correspondente à criação de cultos sincréticos e explicações míticas e lendárias sobre a natureza e a sociedade (RIBEIRO, 1972, p. 107-108). Ao analisar este sincretismo brasileiro, Sanchis destaca vários pontos. Sua análise se inicia a partir do destaque em relação à porosidade do catolicismo: se constitui em um sincretismo entre duas dimensões, com uma consequência concreta muito imediata: se é uma religião, no momento em que vai se implantar em um campo social já ocupado por outras religiões, entra em jogo esse processo estrutural do sincretismo: essa aproximação e essa transformação de si em função da detecção (ou da criação) de homologias com o outro (2012, p. 31). Assim, esse catolicismo, ao acessar outras religiosidades, não se mistura, mas, entra em processo de simbiose e empréstimos, possibilitando sua transformação e, mesmo, dominação sincronicamente. Ao considerar este catolicismo do povo português, este povo de além-mar, que chega à terra Brasil e inicia o processo de formação de um novo povo, este apontará um sincretismo diacrônico e uma identidade recapitulativa deste (SANCHIS, 2012, p. 31). Sanchis explica que esta identidade católica, específica deste povo, abriga elementos culturais e religiosos diversos. Ou seja, esse catolicismo que aqui adentra mata e selva pelo português, já é constitutivamente sincrético. No que, posteriormente, se chamará Brasil, este português católico aqui, desenraizado, entrará em contato com os outros dois povos, o 2 Este tópico contém título similar e excertos da comunicação apresentada no VI Congresso da Associação Nacional de Pós-Graduação e Pesquisa em Teologia e Ciências da Religião: Religião, migração e mobilidade da religião- Set. 2018. Ver mais em: https://drive.google.com/file/d/1vggr8lpcngthwmbxgsbekqex0niatoge/view (página 79). https://drive.google.com/file/d/1VggR8LpCNGTHWMbXGsbEKQEx0NiatogE/view 28 indígena e o negro, destribalizados, com os seus respectivos universos simbólicos. Esta pluralidade de universos simbólicos manifesta-se por porosidades e contaminaçõesmútuas (SANCHIS, 2001, p. 24-25). No curso de sua análise, Sanchis aponta que a articulação entre a porosidade das identidades e a permanência de uma multiplicidade de processos de construção de um sujeito plural, para além do campo individual, e, ao perpassar para o campo institucional, mesmo com suas diferenças e oposições simbólicas, inicia, em torno das componentes “sincréticas”, uma verdadeira dialética (2001, p. 27). Acerca do catolicismo que aqui chega pelos portugueses, Sanchis destaca sua estrutura virtualmente sincrética. Desta forma, esta predisposição estrutural para os cruzamentos e as porosidades das experiências religiosas de seus fieis, poderá ser inscrita, de diferentes maneiras na história (SANCHIS, 2001, p. 23-24). Ao esmiuçar o que se entende por sincretismo, o autor indica a existência de uma variedade, e, sendo um processo, este sincretismo, nem sempre está relacionado a uma estratégia política. Mesmo tendo o português católico como principal matriz política, econômica, social e cultural, este Brasil plural e múltiplo, é sincrético, poroso e fluido, não é uma simples fusão e mistura. Este sincretismo brasileiro, diferente do português, envolve diferentes formas e transformações sem buscar uma unidade sistemática. Neste sentido, o autor aponta a Umbanda, a religião brasileira, como uma construção “sincrética” até mesmo na forma lógica de sua montagem institucional (SANCHIS, 2012, p. 40). Já Ortiz (1980), ao se referir ao sincretismo, iniciará sua trajetória de construção desta concepção, a partir das análises de Roger Bastide, fundamentadas na memória coletiva do negro em solo brasileiro. Assim, essa memória coletiva africana, encarnada neste solo, vem, desde a escravidão, a abolição da escravatura, a urbanização e demais transformações socioeconômicas, se transfigurando, produzindo, assim, a desagregação da mesma (1980, p. 93). Para o autor, o que define o sincretismo não é uma mistura incoerente de elementos culturais, pois, há o fator similitude que regulamentará a disposição das significações destes elementos (p. 97). Assim, este sincretismo despontará a partir do contato de duas tradições, no qual a tradição dominante fornece o sistema de significação, escolhe e ordena os elementos da tradição subdominante. Contando, este novo esquema sincrético poderá sofrer modificações, desencadeando o que o referido autor chamará de ““corte epistemológico” que separa o novo sistema da antiga tradição dominante” (ORTIZ, 1980, p. 105-106). Para exemplificar o que nos diz Ortiz, tomemos a análise realizada por Guerra (2010) sobre a memória e a identidade cultural da cidade de Itabira, Minas Gerais. Guerra, ao 29 dissertar sobre a diversidade das expressões culturais e folclóricas dessa cidade, destaca, dentre os múltiplos elementos materiais e imateriais da cultura Itabira, substâncias culturais como Marujadas, Congados e Guardas. Definindo os Congados como “autos populares brasileiros de motivação africana”, o autor, nos explica que é uma forma de culto aos ancestrais de hierarquia superior realizado por nações diversas de escravos africanos. Somados aos cultos, há percussões africanizadas de cantoria, que eram venerativas somente ao Rei do Congo. Porém, essa manifestação foi, posteriormente, cristianizada por influência jesuíta (GUERRA, 2010, p. 69). Guerra indica a existência, na cidade de Itabira, de mais de dez Guardas filiadas e um grupo de Folia de Reis. Destaca a antiguidade da Guarda de Marujos de Nossa Senhora do Rosário, do Distrito de Senhora do Carmo, tendo mais de cem anos (2010, p. 60). Assim como Sanchis, Ortiz, ao analisar a Umbanda e os elementos e significações de diversas religiosidades como a africana, a católica, espírita e oriental, que a estruturam, aponta o sincretismo desta, não como espontâneo, mas, refletido. Deste modo, nesta tentativa de uma síntese coerente dessas diversas religiões, reconhece, assim, o caráter de síntese e de brasilidade na mesma. Bastide, ao analisar os processos de assimilação, sincretismo e simbiose na terra Brasil ressalta que a religião é sempre o centro de resistência mais importante nas mudanças culturais. Muda-se mais facilmente de língua, de maneiras de viver, de concepções amorosas. A religião forma o último baluarte, e em torno dela cristalizam-se todos os valores que não querem morrer. O sagrado constitui, nas batalhas das civilizações, a última trincheira que recusa entregar-se (1978, p. 193). Ao analisar a trajetória dos povos matrizes e destes novos povos que compõem o povo brasileiro, esta afirmação de Bastide, nos impele a pensar nas permanências de algumas religiosidades, em processo adaptativo e sincrético. Este processo de sincretismo, decorrente dos históricos e constantes contatos entre os diferentes povos que, agregados aos povos matrizes da terra Brasil, vem formando, configurando e sintetizando um novo povo: o brasileiro. Para além das elucidações acima acerca do sincretismo, ainda temos, em Sérgio Ferretti (2013), um estudo mais recente sobre este prisma. Ferretti, em Repensando o Sincretismo, apresenta uma revisão e discussão da literatura sobre o sincretismo afro- brasileiro, sintetizando e identificando as principais tendências e usos deste termo, ainda tão debatido, apresentando-se ambíguo e contraditório (2013, p. 19, 25-26). Assim, ao examinar estas tendências ou fases do referido debate, destaca: 1- a primeira, a teoria evolucionista com 30 Nina Rodrigues; 2- a segunda, a teoria culturalista, com Arthur Ramos e seguidores; 3- a terceira, a de Roger Bastide e seguidores, a partir de explicações mais sociológicas; 4- a quarta fase, que se desenvolveu nas décadas de 1970 e 1980 e que continua até hoje, analisando o mito da pureza africana e, 5- a quinta fase ou tendência, inclui os pesquisadores atuais e se iniciou na década de 1980, criticam a ideia de sincretismo como estratégia de resistência e justaposição (FERRETTI, 2013, p. 96- 97). Em síntese da sua análise, Ferretti irá agrupar os principais significados relacionados ao sincretismo: i- mistura, junção ou fusão; ii- paralelismo ou justaposição e, iii- convergência ou adaptação. O autor afirma que o sincretismo existe em todas as religiões, que está presente na sociedade brasileira e chama a atenção para a explicação do sentido a ser utilizado, evitando, assim, mal entendidos e confusões (FERRETTI, 2013, p. 99-100). Deste modo, seguindo as orientações de Ferretti, se segue o entendimento de sincretismo não como uma justaposição ou mistura, mas como reformulação e redefinição identitária, a partir do contato com o outro, a partir do confronto com outros sistemas simbólicos, num processo contínuo e fluídico (SANCHIS, 2012, p. 17). 2.1.3 A “casa” Brasil Ainda sobre este novo povo, o brasileiro, em sua trajetória, enquanto agente histórico, vem se definindo, construindo, se formando e transformando, se relacionando com representações, estruturas e simbologias diversas. Sua face, estampada no espelho, ora turva, ora translúcida; ora contornada, ora disforme. Neste processo sociocultural e religioso, este povo brasileiro vai se conhecendo, reconhecendo e se firmando. Estes povos geradores deste novo povo, abarcados nas antigas selvas, matas e sertões, agora, encontram-se na casa Brasil. Essa casa, antes de se tornar a casa Brasil, era um grande ponto de terra emerso em águas longínquas da Península Ibérica. Essa terra foi, por séculos, morada de inúmeros grupos étnicos indígenas. Esses nativos, com a chegada dos portugueses, perderam sua condição de anfitriões, para se tornarem personas úteis para a sobrevivência e exploração desta terra. Somados a estes, chegaram os desterrados africanos, desgarrados forçadamente do seu chão e da sua identidade, pelo “patriarca” português, formando assim, inicialmente, um barracãosustentado por uma armação comercial. A partir dos contatos, esses povos começaram a se estruturar, a se fincarem em solo e em construção identitária. Foram recebendo visitas, 31 convidados, mais desterrados, agregados que também habitariam esta casa. Assim, este celeiro se estruturou, fez-se barracão e, hoje, é uma casa, a casa Brasil. Nesta lógica da “casa”, DaMatta apresenta, assim, a “casa” e a “rua” como categorias sociológicas para os brasileiros, por isso, são consideradas “entidades morais, esferas de ação social, províncias éticas dotadas de positividade, domínios culturais institucionalizados, e, por causa disso, capazes de despertar emoções, reações, leis, orações, músicas e imagens” (1997, p. 14). Desta maneira, para o autor, esta entidade moral, a casa, é o espaço íntimo e privativo da pessoa, com seus códigos, fundada na família, por laços afetivos e “de sangue”, na amizade e lealdade. Este espaço, de intensa pessoalidade, possui uma ordem, cômodos estrategicamente dispostos, espaços funcionais e papeis e funções a serem exercidos por seus moradores. É um espaço marcado pela familiaridade e hospitalidade perpétuas, espaço para expressão de sentimentos e afetividades e, principalmente, pelo sentimento de pertença. E, esta lógica da casa, ao se transpor para a sociedade brasileira, DaMatta utiliza o conceito de “englobamento”, de Louis Dumont. Definido como “uma operação lógica em que um elemento é capaz de totalizar o outro em certas situações específicas”, este “englobamento”, no caso brasileiro, apresenta a dinâmica familiar. Assim, nas relações e problemas brasileiros, há a preferência por englobar a rua, este espaço externo, impessoal, na casa. Desta maneira, a sociedade brasileira é tratada como uma “grande família” (DAMATTA, 1997, p. 16). Desta forma, o que nos direciona para o espaço destinado à rua, neste contexto de formação desta casa Brasil, são as leituras pelo ângulo da rua, que, segundo DaMatta, “são discursos muito mais rígidos e instauradores de novos processos sociais. É o idioma do decreto, da letra dura da lei [...] permite a exclusão, a cassação, o banimento, a condenação (1997, p. 18). Assim, o Estado português, detentor da tutela desta terra, era a lei que emoldurava as fundações desta casa, é o espaço de fora, é a rua que enformava esta casa. Ao se definir esta “casa”, pelo prisma damattiano, somada à visão de Ortiz de que a Umbanda apresenta um caráter sintético e de brasilidade e à visão de Sanchis de que essa é uma construção sincrética, A casa de todos os santos, o título deste trabalho, reflete a essência desta religião, que, assim como a terra Brasil, é um espaço aberto, sem muros, que agrega, acomoda, partilha, acolhe, abriga e ampara. Esta casa Umbanda é a morada e residência de todos aqueles que a ela adentram e desejam permanecer, pessoas e entidades de todos os povos e lugares, tempos e espaços. Na Umbanda, o povo da rua e o povo do “outro mundo” são convidados a conhecer e a ficar, a trazer e a levar, a trabalhar e a visitar, na Umbanda, todos são “de casa”. 32 2.2 Umbanda: a aurora de uma religião A Umbanda, religião brasileira que integra, sincrética e sinteticamente, em sua estrutura, elementos advindos das religiosidades destes povos constituintes do povo brasileiro, será tratada, neste tópico, de forma mais circunstanciada. Assim, busca-se nestas próximas laudas, elucidar os processos, pelos quais a Umbanda foi gerada. Busca-se a germinação desta unidade de formulação religiosa e cultural, enfim, a sua aurora. Neste sentido, dirigiremos nosso olhar para a contextualização do “surgimento” e legitimação desta religião. Este “surgimento” encontra-se em destaque por indiciar uma compreensão que, apesar de não ser atual, apresenta algumas reflexões advindas de pesquisadores contemporâneos, como Rivas (2008), Jorge (2012), Carneiro (2014), Silva (2005), Giumbelli (2002), Isaia (1999, 2009, 2012) e Oliveira (2007, 2008, 2013) e clássicos, como Birman (1985), Brown (1985), Negrão (1985) e Ortiz (1978, 1980), dentre outros que serão citados. Assim, constata-se, inicialmente, que a fundação da Umbanda não apresenta uma unanimidade, não apresenta uma visão única que explique a sua origem, aliás, apresenta algumas controvérsias. Para tanto, Jorge e Rivas (2012, p. 122-123) apresentam três correntes para esta fundação: a primeira relaciona-se à incorporação do médium Zélio de Moraes, pelo Caboclo das Sete Encruzilhadas, no ano de 1908. A segunda está concebida na ideia que a Umbanda foi manifestada em diversos lugares do Brasil, em especial na região sudeste, através das práticas religiosas conhecidas por macumba. Já a terceira, compreende que a Umbanda surge como uma religião nova, entre as décadas de 1920 e 1930, frente aos processos de urbanização e industrialização brasileiros, buscando afirmar sua identidade, esta, mais aceita entre os acadêmicos (CARNEIRO, 2014, p. 65). Brown (1985, p. 10), questiona a explicação da fundação da Umbanda por parte do médium Zélio de Moraes, e, também, que esta tenha tido um único fundador e, Carneiro, considera que este mito fundante é mais conhecido nas regiões Sul e Sudeste do país (2014, p. 66). Relacionada à segunda corrente, da Umbanda ter sido manifestada em diversos lugares do país, em movimentos coletivos, Rivas (2008) destaca Juca Rosa e João de Camargo como exemplos, já no final do século XIX e início do século XX, como propagadores das práticas, posteriormente conhecidas como umbandistas. Já a terceira, a da fundação da Umbanda nas décadas de 1920 e 1930, num contexto de transformações sociais, econômicas, políticas e culturais brasileiras, se apresenta como a mais trabalhada entre diversos autores, tais como Ortiz (1978), Silva (2005) e Brown (1985). 33 2.2.1 Uma visão histórico-mítica: Zélio de Moraes: o “mito fundador” Ao nos depararmos com este cenário de possibilidades de compreensão e identificação sobre esta gênese umbandista, iniciaremos esta análise a partir da perspectiva do mito fundante ou mito fundador. Acima citados, Carneiro (2014), Rivas (2008), Oliveira (2013) e Birman (1985) não confirmam esta teoria em estudos acadêmicos, porém, essa ainda permanece produzindo sentido para membros desta comunidade de fé. Neste sentido, há que se citar os livros Umbanda- Religião Brasileira- guia para leigos e iniciantes (2014, p. 26- 27), de Flávia Pinto, sacerdotisa umbandista e socióloga, que reconhece a importância da manifestação do Caboclo das Sete Encruzilhadas para esta religião. Da mesma forma, Flávio de Oxóssi, médium umbandista, em seu livro Umbanda- sem medo e sem preconceito, identifica o nascimento da Umbanda a partir da incorporação do Caboclo das Sete Encruzilhadas (2014, p. 43). Ainda para citar referências desta comunidade de fé e a afirmação deste “mito”, em Os Orixás na Umbanda e no Candomblé, Trindade, Linares e Costa (2013, p. 31-41) reservam algumas páginas sobre o “mito fundador”, explicitando a manifestação do Caboclo das Sete Encruzilhadas e a importância deste fato para a anunciação da Umbanda. O sacerdote umbandista e cientista da religião, Alexandre Cumino, cita, em seu livro História da Umbanda uma religião brasileira, o período entre 1908 a 1928, como a “primeira onda”, que compreende o nascimento e expansão inicial, no Rio de Janeiro, da Umbanda. Embora não utilize o termo “mito fundador”, o autor considera o nascimento da Umbanda a partir da manifestação do Caboclo das Sete Encruzilhadas (2015, p. 136-137) e reconhece, também, a partir de Ronaldo Linares, que o conhecimento acerca da pessoa de Zélio de Moraes se deu tardiamente. Assim, Linares afirma que, na década de 1970, em São Paulo, ninguém conhecia Zélio (LINARES apud CUMINO, 2015, p. 123). Neste mesmo caminho, Giumbelli, após a análise de textos acadêmicos e umbandistas, observa, sem
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