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Encontro marcado com a loucura - Ensinando e aprendendo psicopatologia by Tânia Cociuffo (z-lib org)

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Copyright 
Tãni» Coeiuffo 
Copyright desta edição 
LUC Projetos de Comunicação Ltda, 
Preparação do original:
Mara Emilia Lino Silva 
Sonia Regina Coeiuffo 
Revisão:
Maria Emilia Lino Silva 
Mercedes de Paula Ferreira 
Sonia Regina Coeiuffo 
Capa c Projeto Gráfico:
Ricardo de Paula Ferreira 
Art cfinalÍ2 ação:
Rodrigo di BarrOS Taibo Cadorniga 
Fotolicos: PostScript Impressão: Landgraf
----------- ------------
Reservados codoi os direitos de pub lic ise tm língua portuguesa à LUC Projetos dc Comunicação. 
Rua Pincassiígo, 292 . Moema . São Pau!c . SP . Õ4Í}4- 0)1 
Fone ( I I ) 5044-5099.
D £ D i C A T 0 K 1 A
Aos meus alunos,
com quem aprendo diariamente a não desistir.
Aos pacientes, 
razão de :odi) <1 trabalho.
i/ v v í'* a L U D U X A
A G R A D E C I M E N T O S 
---------★--------------
sonhar e realizar.
Ao Prof Dr. Antonios Térzis, orientador que, ao longo de dois anos, me acompanhou, 
passo a passo, na construção deste trabalho, acolhendo o estado de Caos inicial, 
sempre acreditando no meu pocenciai e incentivando rainha escrita. Com ele, tive 
o privilégio de aprender sobre a Grécia e o povo grego, com sensibilidade e sabedoria.
A Prof1. Dra. Maria Emilia Lino Silva, interlocutora atenta e exigente, que sempre 
me recebeu literalmente de braços abertos, permitindo um repouso assistido nas 
minhas angústias e incertezas, o que possibilitou a liberdade de pensamento neces­
sária para escrever e compreender Bion.
A meu pai {in memorian), que me legou a herança da generosidade.
A minha avó Aida. {in mmorian), coro quem tive o prazer de conhecer as primeiras 
letras do alfabeto, pelas histórias de todas as tardes da minha infância.
A meu marido Ruy, pelas leituras incansáveis e pelas vexes em que se transformou 
em príncipe, trazendo soluções inesperadas.
A minha mãe, por comparcilhar comigo o cuidado acenco dos meus filhos e de mim. 
A meu filho Felipe, com quem aprendo todos os dias a força da vida.
À minha filha Bárbara, cuja profundidade do olhar me mos era uma nova maneira 
de ver 0 mundo.
À minha zrmã Soma, grande escritora, com quem aprendi a profundidade das 
palavras, o prazer da leicura e da companhia dos livros, pela primeira digitação 
desse trabalho nas madrugadas de fins-de-semana.
À Taca (Mercedes de Paula Ferreira), pelo longo trabalho de revisão desce trabalho, 
e por rodas as contribuições presentes nas entrelinhas do texto e da minha vida.
A Laura, minha linda sobrinha, pelo sorriso largo e interesse constante no meu trabalho.
Ao Ricardo, meu cunhado, pelo bom humor presente em todas as situações da vida, 
lembrando-nos constantemente que o riso é, quase sempre, excelente solução. Pelo 
brilhantismo com que deu nome ao que ainda não era palavra, no título deste trabalho.
Ao Dr. Alexandre Saadeh, amigo que, com delicadeza e comprometimento, me 
acompanha e incentiva.
A minha cunhada Irene, peias orações sem fim.
A meu analista, Dr. Aíuízío Cerpa Corsí, por todos esses anos de conhecimento.
A amiga e comadre Marííia Pereira Bueno Milían, pela cumplicidade em codas as horas. 
A Lígia Ananias Cardoso,, amiga de tantos anos e por toda a eternidade,
A amiga Silvia Pan-Chacan, por sua capacidade de amar.
A UN ÍP (Universidade Paulista), especialmente à ProfJ. D r ‘. Marííia Ancona 
Lopez e a Pror1. Dr1. Goh&ra Yveece Yheia, que codos esses anos acreditaram na 
proposta de trabalho de nossa equipe.
À PUC-SP especialmente às Prof“. D r11. Juliana Emma Radivany Florez, Maria 
da Graça Marrina Gonçalvcz e Regina Gorodscy pela receptividade ao trabalho.
Aos colegas da cadeira ae Psicopatoíogu da UNIP e PUC-SP pela dedicação ao curso.
E N C O N T R O M i U C a 1) O C. O ' M A L O U C U R A
Í N D I C E 
-----* -----
introdução
O SONHO: um ensino transformador, mesciço 12
Capítulo I 
LOUCURA: de que se trata? 18 
A história de Maria 19 
Concepção mítica e desenvolvimentos posteriores 21 
Concepção científica: a ciência delimita caminhos 24
Capítulo I I 
O LOUCO: como se crata? 29 
Diálogo socrático 30 
Psiquiatria 32 
Psicanálise 35
Capítulo I I I 
PSICOPATOLOGIA: como se ensina? 37 
Carta de um aluno 38 
Psicopatalogia Psicanaltiica 40 
Uma didática 46
Capícuio IV
'O ENCONTRO COM O LOUCO: ances e depois 5 7
A pesquisa: aspectos metodológicas 58 
As expectativas iniciais ou pré-ccncepçõés 62 
A experiência 68
Capícuio V 
O CONHECIMENTO QUE FICOU 8 L 
j. Pensar a experiência 82
Conheci meyito 91 
Conclusão 96
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS 1Ô0
E N C O N r R O M rt R C rt O O C 0 W A J. O U C U K a
P R E F Á C I O 
-------★-------
'— .see é um livro que transpira amor, embora emoldurado peios cânones acadê­
micos. Amor pelos mestres, pelos íjíunos, pelos pacientes, pelos leitores e peia 
Psicopatologia, encendida como um instrumento para ouvir o outro, exilado em 
sua doença, e escutar a semelhante. A teoria não é aqui um fim, porém um meio de 
permitir essa capacidade, essa sensibilidade que supera a visão ingênua ou 
preconceituosa e abre a oportunidade para o entendimento.
Sob essa ótica, fica fácil perceber a escolha da teoria da relação continente-conrido,- 
formulada por Bion, para iluminar o material de pesquisa, porque este remete a 
um encontro feito de emoção, em que os sinais para continente e contido são os 
mesmos que a Biologia consagrou para fêmea e macho, respectivamente, embora a 
base empírica se apóie nas descobertas de Melanie Klein sobre o corpo da mãe cal 
como fantasiado pela criança muito pequena. Ou seja, duas formas fundamentais 
de amor.
A mente e seus conceúdos. Fêmea e macho. O pensar e os pensamentos. <5?. Alunos 
de Psicologia e suas experiências com pacientes psiquiátricos. Todos estes e muitos 
outros são exemplos de uma relação cm que há algo contendo e afetando algo e sendo 
afetado também, em uma troca apaixonada de amor, ódio ou conhecimento — as três
08
formas básicas de vínculo, segundo a concepção biomana. Por isso, não nos surpreen­
demos quando uma aluna ao fim cio curso descobre, surpresa, que a experiência não 
fora tãc unilateral quanto a princípio supusera.
£ assim vamos acompanhando, quase com intimidade, quase dentro dc texto, a 
delicada relação entre a teoria e a prática se desenvolvendo na formação daqueles 
alunos. Primeiro a bagagem, cheia de suposições e expectativas - as pré-concep- 
ções. Depois, o registro meneai, subjetivamence transformado, da experiência — a 
realização, Finalmenre, o resultado das fruscrações e das satisfações vividas no pro­
cesso - a teoria (concepções ou pensamentos) a respeito do que seja um hospital 
psiquiátrico, seus pacientes e funcionários, e sobre a vida mental que ali se alberga.
Contudo, não se trata de uma teoria apenas racional, que rotula os acontecimentos 
na medida em que vão acontecendo, e permanece incólume nos livros à espera de 
novos aprendizes. Trata-se, ao invés, de uma teoria mulata, que vai sendo gerada 
nos encontros com o íouco, com os colegas, com a supervisora e com os autores. É 
a força da experiência questionando a teoria e sendo moldada por esta, num a 
mestiçagem que colore indelevelmente o aluno no momento mesmo do romper 
das sementes da identidade profissional.
Mas poderíamos também utilizar uma outra imagem, uma outra perspectiva ou 
um outro conceito bíoniano e falar da loucura como um pensamento à procura de 
..quem a pense, e destes alunos como pensadores que aceitam o convice e partem 
para a aventura desce desbravarnenco conceituai e emociona! em que vão se 
descobrindo ma is jmpJicados do que gostariam. £ emão, ao seguir 0 caminho 
proposto por Freud de tornar consciente o que teima em permanecer desconhecido, 
especialmente a continuidade entre a lucidez e a loucura, os alunos percebem como, 
neste partit-uiar tipo de pedagogia, que Tânia - inspirada pelo Dr, Vilson dos Anjos
- chama de mestiça, a aprendizagem se revela bem menos um acúmulo de 
habiiidades, para se constituir num alargamentode continência, tanto intelectual 
quanto emocional, e que, portanto, mais do que uma aprendizagem, se conscinu 
num crescimento.
A essa teoria, assim molhada com o suor do trabalho, uma aluna chama de "nossa 
psicopatoiogia", mostrando bem que não se trata simplesmente dc diagnósticos a 
serem aplicados com mais ou menos perícia, mas do desenvolvimento de uma 
habilidade profissional muito delicada e preciosa, que nós chamamos de “escuta'’. 
Escutar sim o sintoma e o quadro clínico, mas também o ser humano que está em 
nossa presença à espera de uma ajuda profissional especifica.
0 9!
Uma ajuda profissional específica: eis a quescão. Não basca simpatizar, é preciso 
saber como agir com eficiência. Metas e ações românticas soçobram aos primeiros 
arroubos, enrão é preciso conhecer teoria do funcionamento mental t teoria da 
técnica. E como os livros e conceitos não dão conta das experiências cancas vezes 
inusitadas com os íoucos, as sessões de supervisão se apresentam como o laboratório 
em que a continência e a escuta e a personalidade profissional vão se forjando nos / 
atritos recíprocos. E assim a loucura, antes temida como algo impensável, vai aos 
poucos podendo ser contida pelo aparelho psíquico que se vai desenvolvendo 
especialmente para pensá-la.
E, na continuidade entre a loucura e a normalidade, importantes diferenciais vão 
surgindo, como a capacidade de não saber, a tolerância à ambigüidade e à 
sensibilidade, a humildade de nos aceitarmos humanos, não super-homens e nem 
robôs, e mesmo assim persistirmos conscenciosamente em nosso trabalho, em nos­
sa "profissão impossível", como já foi chamada. E nessa caminhada, árdua porém 
assistida, não é de se admirar que Tânia seja tantas vezes escolhida paraninfa, 
acompanhando seus alunos inclusive no rito de passagem que é a formatura, esse 
momento de chegada e de partida.
Creio que este livro — resultante de seu mestrado — possa ser um instrumento 
precioso no ensino de Psicopatologia, canto para o aluno como para o professor. 
Diante das agruras do ensino e da aprendizagem da arte de se encontrar com o 
insano, está aqui um espelho reconfortante para ambos, que podem se mirar na 
experiência e na sensibilidade desta professora engajada em um ensino transformador, 
mesmo que'sofra as intempéries decorrentes de unia didática menos acadêmica e 
mais mestiça do que o estabelecido. Pois este é um livro que transpira amor.
Maria Emilia Lino Silva 
Campinas, outubro ck 2001
10
J
A meta do arqueiro não é aptnas atingir 
o alvh; a espada não é empunhada 
para denotar o adversário: 0 dançarino não 
dança unicamente com a finalidade de 
èxtatlar movimentos harmoniosos.
0 que eks pretendem antes de íudo 
ê harmonizar o consciente com ó inconsciente, 
Para ser um autêntico arqueiro, o domínio 
técnico è insuficiente. B necessário 
transcendê-la, de ia l maneira cjite ele 
se conversa mana arte sem arte. eirtanada 
do inconsciente.
E. Herrigel 
--- -----
£ K C O X' T R O M A K C A 0 O C O M t \ L O t C 'J 5. A
I N T R O D U Ç Ã O
------------------------------------------------
O S O N H O : u m e n s i n o t r a n s f o r m a d o r , m e s t i ç o .
Sonda<k é a pmer.ça do a/m i/:t. 
Olavo Bilac
( y á catorze anos, fui convidada a dar aulas de Ps ico patologia pelo Dr. 
José Viison dos Anjos. Sua proposta era criar uma nova metodologia de ensino, 
capaz de conferir identidade própria aos estudantes de Psicologia na prática hos­
pitalar. O método de aula utilizado acé então estava fortemente enraizado no 
modelo médico de atuação e exame do paciente. Um modelo branco.
Hm linhas gerais, VjJson propunha um método de ensino que levasse em conca a 
principal caracceríscica do povo brasileiro: a mesciçagem.
Descobri que os cursos eram ministrados por brancos para brancos. Para escudar 
sobre negros, tinha de fazer cursos exócicos, em horários exóticos e, para saber sobre 
índios, rinha de me virar. Esse era o brilho do meu curso, ús alunos acesso a
todas essas informações em um único curso, quer dizer, o branco, o ne^ro, o índio e 
o amareio deixavam de ser etnia para ser cultura. E as culturas precisam ser ressaca- 
das c respeitadas. Sabemos, em nosso país, o quanto a cuícura branca influenciou a 
língua, os hábitos, o vestir e o comer, o pensamento, a lógica, as negociações, o 
casamento e cancas outras coisas. A influência negra cambem foi marcance no nosso 
corpo, na alcivc^ e na submissão, rui tolerância, na sensualidade-, na cior, no drible,
nas cr«n^as, na comida e no anseio de liberdade. Mas... e o índio? Onde ele sobrevi­
ve5 Arado dentro de nós, nas profundezas (no subterrâneo) cio nosso ser, no nosso 
sangue Porém, não é necessário muito para que eíe apareça no nosso cotidiano. Ele 
é o nosso fio de esperança que faz com que o povo brasileiro, apesar de tudo, sobre­
viva no cochicho, na risada, na capacidade, no humor diante das adversidades, na. 
solidariedade dos pobres e no nosso inimedsmo cultural.'
Assim, para ele, a interpretação histórica das nossas raízes deveria escat vinculada, 
ao ensino não só de Psicopatologia, mas a todo processo de conhecimento. O 
lugar da exclusão em que se localiza o paciente psiquiátrico cambem deve ser 
pensado no nosso cotidiano, a partir da negativa, implícita em muitas práticas, 
de nos reconhecermos como herdeiros não apenas dos colonizadores europeus, 
mss também de outras ecnias e culturas, como se esse faco histórico não estivesse 
impregnado em nós como fator determinante de nossa maneira de existir.
(...) A elite cultural brasileira, cerra de sua origem européia (...) fabricou médicos para 
estrangeiros (...) médicos competentes, mas meapazes de conhecer a dor brasileira em 
suas formas (...) fabricou psicólogos que tratam de psicólogos, que tratam de psicólo­
gos,.. pois, sendo um conhecimento de elice, não há espaço para o povo. Então só lhes 
testa tratar dos próprios colegas, para manterem a profissão e o status."
O "método mestiço" inclui o branco, o negro e o índio presentes na nossa culmra e 
é, do meu ponto de vista, uma metáfora belíssima para trabalharmos com a aceita­
ção das diferenças e com as peculiaridades inerentes à nossa brasilidade. Teríamos 
que descobrir, com os alunos, uma linguagem que oferecesse espaço para a concep­
ção do “diferente", das múltiplas possibilidades de existência, do movimento de 
inclusão e compreensão do sofrimento humano, intrínseco ao existir c, no caso da 
psicose, um sofrimento de tamanha potência, que deixa em quem a eíe assiste a 
marca da perplexidade. A conscientização dos alunos, quanto 2 importância e à 
urgência de uma formação que não privilegiasse apenas o atendimento em consul­
tório particular voltado para a classe média, seria, assim, ampliada.
A implicação deste olhar na Psicopatologia resgata a importância da origem e da 
cultura, na saúde mental. Em sua trajetória na Psiquiatria, Vilson desenvolveu 
em 1973, no Complexo Hospitalar do Juqueri, em São Paulo, um trabalho de
L Júsc Vi[son «los A i^os. A alsna bra^ lc ira . Súô V«iu!o, Saraiv.t, 19 ^4 , j>. 15
2, m ic n «do.» A o ;jí, Qp. a i . . j>.22.
E N C O N T R O M A R Ç ( Y D O c o m a l o u c u r a
ressociaiização dos pacientes crônicos, na tentaciva de devolver o paciente dücocíco 
à sua família, contando com a contribuição do Serviço Socíai do hospicaí.O traba­
lho rinha como objetivo restaurar a dignidade das mulheres internadas, conside­
rando a sua cultura e o seu saber.
Era uxn trabalho mminvo e cheio de amor. (...) Quando fui trabalhar no Juqued, 
me senti desolado com tanta pobreza, tanca sujeira, cantas coisas para fazer, aqueles 
pacientes crônicos abandonados, parecia o Expresso da Meia-Noite. (...) As grades 
que eu via no Juqueri, de fato, eram grades. A prisão da mente correspondia à 
prisão arquitetônica externa. Eram noventa e nove mulheres amedrontadas, dopadas, 
sem perspectivas. Gente que estava presa há maisde vinte anos por ter dito um 
nome feio na feira, babás que envenenaram crianças, mães que mataram as filhas 
nos fornos. Ia por aí afora. Uma desgraça só. Bem, como tra2er a Bahia com a 
bênção da negritude para aquele lugar inóspito, cheio de mulheres mai-amadas?3
Viison conseguia crazer essa bênção só com seu olhar não contaminado, que ou­
sava pensar no Juqueri como um cenário possível para a felicidade, só por ser um 
lugar dc abrigo para seres humanos:
Meu primeiro trabalho foi com a equipe de enfermagem. Precisava convencer as 
enfermeiras e ajudantes de que ali era o lugar daquelas pessoas, elas precisavam ser 
felizes lá. Porém, ser feliz em quatro paredes era muito difícil, pensavam, (...) O 
assunto sexo era tabu, mas havia sexo e muito. A enfermagem se horrorizava com o 
lesbianismo. (...) Então a primeira providência foi legalizar as relações. Saber quem 
dormia com quem. Quem era casada com quem? Quem queria am2r quem? Dessa 
forma, podíamos ficar sabendo das rivalidades e minimizar z agressividade.^
O amor não era ingênuo nem displicente. Apenas não se acomodava aos fatos como 
estabelecidos e se empenhava em buscar novas e melhores soluções. Humanas.
O meu trabalho era escutá-las sempre que precisassem, naturalmente com 
disciplina, baseado no meu próprio limite. Com essa forma de agir, consegui 
deixá-las sem medicamentos coercitivos e medicá-las só quando realmente preci­
sassem. Se anres o médico, para entrar lá, precisava de segurança, agora elas 
fasiam coxinha de galinha para mim... Pasmem... sem veneno! E aquilo virou
3, José ViliOn <íoí Aajcí. Op. e u ., p.6?.
4. José V jU on dos A njos. O p . cú ., p.7Q.
O S O N H O : U M E N S I N O T R A N S f O S M A D O » , H H 5 T I Ç O
teatro, virou festa, virou grupo operativo e aí o « Id o começou a engrossar. Elas 
queriam a liberdade e sabiam que rir.ham esse direito 5
Tendo sido sua aluna, e tendo-o acompanhado por muitos anos, devo dizer que o 
que mais me impressionava, e que marcou definicivamente meu trabalho, foi a 
linguagem amorosa que dedicava aos pacientes. A aceitação, a continência, o 
esforço de mostrar a loucura drada do reino do absurdo. A doença mental deixa­
va de ser um mico e passava a ser uma expressão passível de compreensão.
Com essa concepção do que fosse ensinar Psicopatologia, lançamo-nos à experi­
ência. A disciplina faz parce do curriculum obrigatório dos graduandos do 4° ano 
do curso de Psicologia da Universidade Paulisca (UNÍP) e do 3o ano da Pontifícia 
Universidade Católica de São Paulo (PUC/SP). Compõe-se de aulas teóricas e 
práticas, estas ministradas em hospitais psiquiátricos. O recorte para este traba­
lho é o das aulas práticas, que, ao longo desses anos, têm me suscitado inúmeros 
questionamentos e reflexões.
Nosso grupo de docentes era formado por psicólogos c psiquiatras, e tínhamos 
em comum o sonho de um ensino transformador. Éramos uma equipe que já 
reconhecia a própría mestiçagem. Hoje, olhando esse percurso, percebo que toda 
a experiência vivida não me fez perder o "apaixonamento". Cada encontro iança- 
nos, a m im e aos alunos, no inusitado da experiência, na criação de um espaço 
grupai de continência e numa reflexão sempre nova do que é essa relação com O 
paciente, com o outro igual, com o outro diferente.
Em 1999, perdemos o grande idealizador desse trabalho, Dr. José Vilson dos 
Anjos, que por anos manteve viva a chama do "apaixonamento" por ensinar. Sua 
morte prematura deixa um siicncio nos espaços lúdjeos do ensino e no exercício 
conscante do aprender a pensar com a experiência. Perdemos o "Pai" e esse traba­
lho tem o sentido também, dencre outros, de continuidade, de homenagem a um 
homem que nos mostrou a força do vínculo. A força de uma linguagem amorosa.
A sustentação teórica desse trabaiho de ensmo, por sua vez, foi construída no 
enconcro das obras psicanalíticas de Freud, Melanie Klein, Bion e de alguns au­
tores da escola francesa como Fédida, Kaes, Anzieu, Pontalis: O momento de 
encontro dos pares, na teoria, nos tra2 o prazer de outras vozes ecoando aquiJo
i J u jc V ilso n d o s A n jo s . O j> . c it . , p .7Q .
E N C O N T R O M A R C A O O C O M A L O U C U K A
que, na prática, vem sendo realizado.
Nossa forma de ensinar propõe que o aluno comece a pensar a partir da experiên­
cia. Nesse sentido, as aulas são sempre inéditas. Nosso objetivo é ir construindo 
a compreensão da doença mental e, posteriormente, o conhecimento dos diag­
nósticos psicopatológicos. Os capítulos de uma teoria de conhecimento de inspi­
ração psicanalícica são: conhecer, pensar, «dizer, saber e fazer. O desenvolvimento 
do curso baseia-se nessa proposta.
A integração entre teoria e prática, que implica a inclusão das experiências emo­
cionais presentes nas relações padente-proflssional, caracteriza um aprendizado 
formativo e não simplesmente informativo. O estudo ressalta a questão do en­
contro com o objeto da invescigação - seres humanos em sofrimento psíquico 
intenso - que provoca angústia ao remeterá natureza humana em sua diversida­
de e fragilidade, despertando a percepção da impordncia do processo terapêutico 
como um dos pilares da formação do psicólogo.
E assim o objetivo desce livro é compartilhar reflexões sobre o ensino de Psicopatologia 
para graduandos do curso de Psicologia nas aulas práticas realizadas em instituições 
de Saúde Mental, transformando a experiência em uma comunicação científica capaz 
de provocar reflexões, visando ampliar a discussão de como a metodologia de aula 
adotada pode contribuir para o ensino/aprendizado de Psicopacologia Psicanalícka.
Gostaria de encerrar esta Introdução com mais uma lembrança do pensamento 
do D r. José Vilson dos Anjos, em relação à importância da formalização escrita de 
nosso trabalho, reproduzindo uma hiscória de aucor desconhecido, eirada no seu 
livro A Alma Brasileira.
Era uma vez um índio que trabalhava para um português. Um dia, o fazendeiro 
pediu para o índio levar cento e cinqüenta laranjas para um outro fazendeiro. O 
índio foi, contente, ievar, No meio do caminho, senciu sede e chupou duas laranjas. 
Certo de que ninguém tinha visco, foi embora e encregou as laranjas junto com a 
carca. O fazendeiro a leu e disse para o índio: "Diga para seu patrão que ele errou 
na conta. Aqui só tem cento e quarenta t oito laranjas". O índio ficou aflito c 
falou para o fazendeiro que cie as tinha chupado, mas gostaria de saber quem lhe 
havia contado, pois ele escava cerro de que ninguém vira. O fazendeiro, sorrindo, 
lhe apontou a carta. O índio saiu de lá intrigado: como um papel era capaz de tal 
proeza? E sc preparou para a próxima vez. Dc oucra feita, o porruguGs pediu que
Q S O N H O : U M E N S I N O T R A N S F O R M A P O R , M E S T I Ç O
levasse aquelas íatanjas junto com outra carta, Esrava escrito que eram duzentas 
iarar.jas. O índio sasu para a entrega, parou no meio co caminho e, antes de 
chupar duas laranjas, sentou em cima da carta para qae esta não visse. Qual não 
foi sua surpresa quando o outro fazendeiro lhe afirmou estarem faltando duas 
laranjas. Dessa ves o índio ficou sabendo do significado da escrita. Por isso, quan­
do a gente escreve, a gente já pode se ausentar.4
6. Jçsé Vuíoci dos Anjos. Op. cic.. ICtá
£ N C O N T R O M A R C i\ D O C O M A L O U C U R A
Psicopatologia é, por natureza 
e destino histórico, um campo de 
conhecimento que requer o 
debati constante e aprofundado. Aqui 
o conflito de idéias não é uma 
debilidade, £ uma necessidade.
Não se avança m Psicopatologia 
negando e anulando diferenças 
conceituais e teóricas; avança-se, sim, 
por meio do esforço de esclarecimento 
e aprofundamento de tais 
diferenças, em um debate 
aberto, clesmistificante e honesto.
P. D alg ai ar rondo 
------ ^ ---------------------------------
—__----------- „ --if----------
L O U C U R A : d e q u e se t r a t a ?
Ora atèque mftm..., perfeitamente,,.
Cá está cia!
Tenho a loucura ácataminie na cabeça.
Meu coração estourou como ama bomba, de pataco,
E a minha cabeça teve o sobressalto pela. apinha acima,.. 
Fernando Pessoa
A história de Maria
aria tem trinca anos, é natural da Bahia, pertence a uma família de 
mais oko irmãos, cem pai e mãe vivos. Toda a família mora no Nordesce e ela, aos 
dezenove anos, migrou para São Paulo com o objetivo de "melhorar de vida . 
Trabalhou como empregada doméstica e costureira. Atualmente, está desempre­
gada. Aos vinte e quatro anos, casou-se com um rapaz que conheceu em São 
Paulo e com quem ceve uma filha, hoje com seis anos.' H á dois anos ficou viúva. 
O marido, que trabalhava em uma transportadora, saiu peia raanhã para o traba­
lho, e morreu de enfarte a poucos metros de casa, no ponto de ônibus.
A história de Maria c a de muitas Marias e Joões desse Brasil; não interessa a 
ninguém especialmente e é faco corriqueiro ao nosso cocidijmo. Sua hiscória psi­
quiátrica tivera início há quatro meses, sem nenhum antecedente ancerior digno 
de registro: começou a ficar triste, sem apetite, com insônia, não teve mais vor.-
E N C O N T R O MA R C A DO COM A LOUCURA
cade de sair da cama e começou a ouvir, freqüentemente, vozes dizcndc-lhe que 
deveria se matar. Tentou suicídio duas vezes, na semana que antecedeu sua 
internação. N a primeira, tomou veneno de rato, “mas era ruim e não consegui 
tomar tudo". Socorrida por uma vizinha, e levada a um pronto-socorro, conse­
guiu sobreviver. Está confusa com a idéia de se cornar um rato, porque ingeriu 0 
veneno e “a lavagem não foi bem feita".
N a segunda tentativa, quis jogar-se no poço de sua casa e, mais uma vez, foi 
impedida, agora peia cunhada (irmã do marido falecido) e único familiar que tem 
em São Paulo. Essa cunhada, desconfiada do seu estado, procurava estar sempre 
poc perto. A filha de seis anos, quando a via aproximar-se do poço dizia: "Mãe, 
vocc não vai se matar, né?‘\ Nesse momento do relato, Maria emociona-se mui­
to, diz que não é louca, sente saudades da fiiha e pretende voltar para o Nordes­
te. H á três semanas internada, não ouve mais as vozes, mas tem medo de vokar 
para casa e "começar tudo de novo”.
O diagnóstico de Maria é depressão com sintomas psicóticos. Uma parce de seu 
cratamento está sendo bem sucedida, já não tem mais alucinações e a idéia de morrer, 
que não lhe saía da cabeça, já não está presence com a mesma intensidade. Mas será 
que tratar de Maria significa apenas medicá-la? Quais são as suas perspectivas e de 
sua filha? Em determinado momento de nossa conversa, ela diz que até hoje não 
entende como o marido morreu. “Ele estava bom, disse rthau e não voltou"’.
O impacto da não continuidade deixou Maria até hoje perplexa. Maria não é mais do 
Nordeste, nem de São Paulo. O que vai ser de sua vida? Pensar na filha remete-nos ao 
óbvio da necessidade de um trabaiho preventivo com uma criança que perdeu o pai e 
vive, aos seis anos, a angústia diária de perder a mãe em uma morte anunciada.
Lino Siíva, em comunicação pessoal, apontou que, na linguagem de Bion, poderí­
amos dizer que o continente mental de Maria foi explodido pelo contido impensável 
da morte súbica, do abandono ilógico. Isso a remeteu a questões fatais: acé quando 
terá a filha? Ela mesma quando morrerá? O que fazer com a vida cão frágil e 
imponderável? Maria precisa de alguém que a ajude a pensar essas questões. Re­
médios não o fazem, não bascam, embora ajudem de outra forma.
L O U C U R A : D 5 Q U E S E r S A T A 1
Concepção mítica e desenvolvimentos posteriores
.— --- ----------------* ------------ — - — .
Quando iniciamos o estudo de PsicopatoJogia, depaism0-/i0s com concepções 
teóricas distintas, às vezes diametralmente oposus, de compreensão do fenóme­
no psicopatoiógico. A questão do que é considerado normal ou anormal numa. 
determinada época - a quem é designado o poder para tratar do indivíduo men­
talmente enfermo - é complexa e cem sido objeto de eítudo de vários ramos da 
ciência, como a Antropologia, a Sociologia, a Psiquiatria, a Psicologia, etc.
Para entender a origem de cais concepções, é necessário um breve resgate histó­
rico, considerando o momento cultural que representam e seus vínculos com o 
processo de interpretação do fenômeno psicopacológico. Essas concepções coe­
xistem nos dias de hoje no imaginário popular e nos meios científicos, fazendo 
parte de nosso arcabouço cultural - mesmo inconscientemente - e emergindo 
sempre que temos de lidar com a questão.
Pessotti sustenta: “Se entendermos a loucura como a perda das capacidades raci­
onais ou a falência do controle voluntário sobre as paixões, uma história da lou­
cura deveria começar, praticamente, com a história da espécie humana”. '
Na verdade, os registros históricos sobre a loucura remontam à Grécia Antiga. 
Homero (700 a.C.), considerado o prim eiro e O maior poeta épico da Grécia, 
autor de Ilíada e Odisséia, apresenta em sua obra um enfoque mitológico-religio- 
so da loucura: codo aro insensato é determinado pela ação dos deuses, ou porque 
seus caprichos determinam o rumo dos acontecimentos ou porque deliberadamente 
roubam do homem a razão.
Um exemplo de como a loucura é atribuída à ação dos deuses encontra-se na 
lliada (19, 86 e seguintes), na faia de Agamemnon tentando desculpar-se por ter 
roubado a amante de Aquiles:
Não fui eu que causei essa ação e sim Zeus, o destino s as Eríneas que caminham 
nas trevas: foram d es que colocaram uma ale selvagem no meu entendimento, 
naquele dia em que roubei, de minha iniciativa, o p íêm io de honra de Aquiles. 
Mas que podia, eu fazer? É a divindade que leva a ceraio codas as coisas. Sim, é a 
veneranda ate, que ofusca a todos, aquela maldica! Eia não se arrnsca pelo chão,
*. Isaias Pmoccj. A Eoucu;a c as tpôcis Rio uc Janeiro, Editors 3 1̂, 1995, p. I 4
E N C O N T K O M A R C A O O C O M A 1. O U C U R A
mas sobe à cabeça dos homens para obscurecer-íhes a mente... e conseguiu, uraa 
vez, enevoar a mente do próprio Zeus, como deveis saber.2
A obra de Homero caracteriza, dessa forma, o primeiro modelo teórico da loucu­
ra: o modelo mitológico-religioso. Essa concepção persiste nos dias de hoje, tanto 
na compreensão que alguns doentes meneais têm da própria doença - quando 
atribuem sua etiologia a perturbações causadas por espiriros como, por vezes, 
na concepção dos alunos, que professam diferences religiões.
Dois séculos depois de Homero, encontramos nos textos trágicos de Esquilo (525- 
456a.C.), Sófocles (496-406 a.C.) e Euripides (485-407 a.C.) descrições de dife­
rentes formas de loucura, bem como o uso de termos como delírio, desvario, 
mania, etc. Euripides compôs duas peças sobre a paixão de Fedra por seu enteado 
Hipólito em que a loucura deixa de ser concebida como originária dos caprichos 
e determinações dos deuses, para se desenvolver a parnr do interior do homem, 
com suas paixões irresistíveis, sede de conflitos entre o desejo e a regra social. Os 
versos descritos remetem claramente para esse novo enfoque:
"Minha alma foi solapada demais pelo amor e, mesmo que enfeites a vergonha com 
palavras bonitas, deixo-me levar por certos sentimentos dos quais devo ter horror".5
A partir deles, confirma-se a mudança de perspectiva, expressa por Pessottí da 
seguinte forma:
Assim, parece legítimo falar-se de uma concepção de loucura, segundo Euripides, 
ou Sófocles ou Ésquilo, mesmo admicindo-se que nenhum deles pretendeu expli­
car a psicopatologia humana, mas, sim, retratar a vida humana com seus dramas 
c aberrações. 4
O enfoque deixa de ser mítico-reügioso passando, agora, a uma concepção psico­
lógica da loucura: o produto de conflitos passionais do homem. E esse segundo 
modelo da loucura, que pode ser chamado de psicológico, encontrará, posterior­
mente, na obra de Freud, iniciada com os estudos "sobre a histeria, e dos pós- 
freudianos ecos que estarãopresentes na noção de conflito, tão central na teoria
2. Homcfo ctpud Petsotci. Op c ú . , p .O .
3. isaicii Pcsaout. O p. , p. 28.
4 . Jsaias Pcssoco. O p . cif. , p . 23.
L O U C U R A : D E Q U E $ E T R A T A
psícanalínca; na importância das paixões na constituição humana, como descre­
verá Meianiè Klein ao faiar de amor, ódicí e reparação, e em outros autores da 
teoria psicanalícica, como Bion, Fédida, etc.
A história da histeria, inclusive, remonta à Grécia Antiga. Na língua grega, histera 
significa matriz, útero, e por muito tempo foi considerada uma doença dc origem 
orgânica, especificamente feminina, que afetava 0 corpo todo por supostas 
sufocações da "matriz”.
Platão (427-32? a.C.}, com sua concepção duaJíscica, afirmava que mence e maté­
ria eram fenômenos separados. A alma racional seria imortal e estaria localizada no 
cérebro. A alma irracional estaria localizada no tórax. Para ele a Psicopacologia 
apresentava várias formas - melancolia, mania... - e acontecia quando a alma irra­
cional estava de alguma forma separada de sua parte racional, isso ocorreria por 
uma má distribuição dos "humores”, que alcançavam os órgãos da alma irracional.
Na seqüência histórica, a partir de Hipocrates (460 a.C. - 330 a.C.), vemos surgir 
gradualmente uma concepção organicista da loucura. Para ele, a loucura era doença 
resultante da crise no sistema de humores. Defendeu a importância do cérebro como 
sede das emoções e pensamentos,Concebeu a hisceria como uma doença em que o 
útero se desprendia da cavidade pélvica e propunha como tratamento o casamenro 
precoce, insinuando uma ligação entre frustração sexual e histeria, concepção que 
persistiu até a época de Pinei, que também defendia o casamenco precoce como cura.
Para Galeno (131-200 d.C.), considerado generalises e eclético, a ioucura era, em 
essência, uma disfunção encefálica. Foi o responsável pela localização de sete pares de 
nervos cranianos, a demonstração da existência de sangue nas artérias e a diferencia­
ção dos nervos sensoriais e motores.
O modelo organicista, considerado aqui como a terceira forma de concepção da lou­
cura, persiste, evidentemente, na Psiquiatria biológica, que busca a causa da doença 
mental em alterações orgânicas.
Esses modelos persistem sob as teorias mais diversas, talvez porque reflitam atitudes 
básicas inarredáveis no processo dc conhecimenco e explicação de um objeto extre­
mam ente importante, que coloca em jogo a identidade ind iv idual do hom em .5
5. ísaía$ F ç s íjlí í . O p . c\c., p.9.
E NC ON TR O M AR CADO COM A í O U CURA
Concepção científica: a ciência delimita caminhos.
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N a concepção medieva!, a loucura é associada à possessão diabólica, reeditando o 
modelo mkico-reiigioso encontrado na obra de Homero, acrescido agora dos 
valores do Cristianismo. Com o Renascimento (séculos X V e XV I) e a Reforma 
(século XV), instala-se gradacivamente uma concepção cientifica da loucura. A 
Psiquiatria, como especialidade médica apta a tratar da loucura, tem como mar­
co inaugura] o Tratado de Pinei (1745-1826), publicado em 1801. N o prefácio 
de sua obra, encontramos o seguinte texto:
Não se poderia compreender o conceito mesmo de alienação, se não se enfoca a 
causa que mais freqüentemente a provoca, quero dizer, as paixões violentas ou 
exasperadas pelas contradições.6
Pinei, que teve como seguidor Esquirol (1772-1840), priorizou a importância 
dos'aspectos comportamentais da loucura. Essa posição contrariava a tendência 
da época, que enfatizava a importância das alterações anatomo-fisiológicas como 
determinantes das psicopatologias.
No Renascimento, acirrou-se a disputa entre médicos e teólogos pelas histéricas. 
Os médicos tentavam demolir a concepção demoníaca, como nos mostram as 
idéias do médico alemão Jean Wier (1515-1588): as histéricas não seriam res­
ponsáveis por seus atos, devendo ser consideradas como doences mentais e não 
como “bruxas’' a serem caçadas.
N a metade do século X V III, com a teoria de Franz Anton Mesmer (1734-1815), 
médico alemão, deu-se gradualmente a passagem de uma concepção diabólica da 
histeria para a concepção científica. Como apontou ítoudinesco (199S), Mesmer sus­
tentou que as doenças nervosas tinham como origem algum desequilíbrio na distri­
buição de um fluido universal. Seu nome, inclusive, permanece ligado à teoria do 
"Magnetismo Animal", uma espécie de fluido que permitiria a comunicação entre os 
indivíduos, independentemente dos órgãos sensoriais, como descreve Mueller:
Eram espetaculares as sessões organizadas por Mesmer. Aiguns pacientes eram 
por ele colocados em ligação direta (por meio dc hastes de ferro) com uma. cuba 
com limalha de ferro magnetizada e ligados aos demais pelas mãos, c ao solo por
6. apgd Ptsaotu. Op. cit. . p. 145
L O U C U R A : D E Q U E S E T R A T A
meia de cordas úmidas. Tudo isso num local mergulhado em penumbra, ao som 
da música dolente, enquanto Mesrnet passeava ao redor de varinha na mão ... 
Não é de estranhar, pois, que muitos doentes nervosos experimentassem real bem- 
escar com semelhante tratamento e, até, que Mesmec contasse, em seu ativo, 
curas de pacientes histéricas.7
A terapêutica de Mesmer propunha que o médico se transformasse num 
magneuzador, restabelecendo a distribuição de fluido peio corpo e obrendo, des­
sa maneira, a cura. Foi contestado e taxado de charlatão, principalmente pela 
Academia Francesa de Ciências. Estava-se ainda muito longe da compreensão 
cientificados fenómenos da sugestão e da hipnose, que aconteceriam mais tarde, 
com Charcot, em Pairis, e Bernheim, em Nancy.
Para opor-se à tese de possessão diabólica apregoada pela Igreja, a comunidade cien­
tífica sustentava que a histeria era uma doença do cérebro, atingindo igualmence os 
dois sexos. O médico francês Charles Lepois (1563-1033) foi o primeiro a diagnosti­
car a histeria masculina, tese corroborada pelo francês Pierre Briquec (1796*1831), 
que também agregou à sua manifestação fatores de ordem social e material, tais 
como condições de vida no trabalho, os ciclos da natureza e o movimento dos astros.
Quando o predomínio da concepção diabólica da hisceria se esvanece, graças à 
revolução de Píne l na Psiquiatria, vemos o confronto de duas tendências científi­
cas opostas; os organícistas, para quem a hisceria era uma doença cerebral, de 
natureza fisiológica ou de substrato hereditário, e os defensores da psícogênese, 
que a concebiam como uma afecção psíquica, ou seja, uma "neurose".
O teemo "neurose" foi introduzido, em L7Ó9, peio médico escocês Wiiiian Cullen 
(1710-1790) e designava as afecções meneais sem alterações orgânicas e denomi­
nadas "funcionais” , ou seja, sem inflamação ou lesão do órgão doente sendo, 
porcanco, uma doença nervosa.
Em 1S43, o médico escocês James Braid (1795-1860) introduziu o termo hipno­
tismo (do grego bipnos = sono) para demonstrar a ineficácia das intervenções do 
tipo magnético propostas por Mesmer. Ele substituiu a antiga teoria fluídica pela 
noção de estimulação físico-químicc-psicológica e a cécnicade Mesmer pela fixa­
ção do olhar do paciente em um objero brilhante, com o objetivo de provocar um
Mudler. Híscorá iln Psicologia. São P-uEo, N'acionul, (963 j
IP"'
E N C O N T R O M A R C A D O C O M L O U C U R A
"estado de sono" desperto no paciente, o que ressaltava a natureza psicológica e 
não fluídica da relação.
(...) Progressivamente libertos do fluido, Os magnerizadores da primeira metade 
do século XIX. começaram a pradcar um hipnotismo espontâneo, provocando 
estados sonambúlicos nos doentes nervosos. Esse método de exploração favorecia 
a revelação de segredos patogênicos nocivos, enterrados no inconsciente e respon­
sáveis pelo mau escado psíquico dos sujeitos.3
Em 1884, Auguste Líébeault (1823-1904) e H ippolyte Bemheim (1840-1919) 
fundaram a Escola de Nancy, retomando o hipnotismo como formade cnuameato 
dos pacientes nervosos. Ambos sustentavam que a hipnose era “uma mera questão 
de sugestão; portanto, quase todos deviam ser suscetíveis a ela”9 . A Escoia de 
Nancy, por sua vez, cornou-se grande rival d a Escola da SaJpetrière, que rinha como 
grande expoente Jean Martin Charcot (1825-1893), que definia o estado hipnótico 
como uma doença artificialmente produzida, embora com inequívocos componen­
tes orgânicos, de modo que só podia ser provocada em histéricos.
O que vemos aconcecer no século X IX é uma force tendência de explicar as 
desordens do comportamento, as desordens afetivas, como produtos de modifi­
cações cerebrais. A esse respeito escreveu Foucault (1999):
"O ideal do saber visa encâo a fazer coincidir o mapa das doenças mentais com o 
das perturbações e problemas orgânicos".10
Emíl Kraepelin (1S56-1926) surgiu, nesse período, como o maior representante 
da concepção organicista da doença mental. Responsável pela classificação e des­
crição sistemática dos sintomas, fundou a nosografia psiquiátrica, que foi por 
muito tempo a base da Psiquiatria, além de criar os termos "demência precoce" e 
“psicose maníaco-depressiva”. Mas, se a contribuição de Kraepelin para a Psiqui­
atria foi importante, o olhar que rinha em relação ao doente constituiu um entra­
ve para a compreensão do sencido dos sintomas.
Kraepelin era, como aponca Roudinesco (199S), herdeiro de uma clínica do olhar,
S. Eluaòetli Roudinesco & Michcí Plon. ín Dicionário à t PsicanáJisc Rio de Janeiro, Jo tg * Zahar 1993, p-353.
9. Pctcr G iy. Frcud: uma vida para nosso tempo. Sâa Pauio, CotnpanJm dus Letras, 1991. p i 5 .
20. ívl»tO>cJ Foucuuit. H jsróm d* loucura. S ío Paulo. Pcfspccciva. 1^99. P 502.
I O i j C c 8 * D E Q U E S E I R A ] A ?
fundada na prevalência do corpo, na ausência do doence. Os sintomas eram con­
siderados apenas entidades mórbidas. A fala do doente r.ão tinha importância e, 
nesse contexto, as condições de observação do paciente seriam mais adequadas, 
ignorando-se sua fala.
Jáo psiquiacra suíço Eugen Bleuler{1857-1939), contemporâneo de Kraepelin e 
Freud (IS 5 6-19 39), sem renunciar à etiologia orgânica e hereditária da loucura, 
apontou para a importância de uma clínica baseada na escuta do paciente. Na 
introdução de seu livro Tratado de Psiquiatria disse:
Quando um médico se defrorua corn a grande tarefa de ajudar uuta pessoa psiqui­
camente enferma, vê a sua frente dois caminhos: ele pode registrar o que é mórbi­
do, irá, então, a partir dos sintonias da doença, concluir pela existência de um dos 
quadros mórbidos impessoais que foram descritos (...) ou pode trilhar outro cami­
nho: pode escutar o doente como se fosse um amigo de confiança e, neste caso, 
dirigirá sua atenção menos para constatar o que é mórbido, para anotar sintomas 
ps :c opa to lógicos e a partir disso chegar a um diagnóstico impessoal, e mais para 
tentar compreender uma pessoa humana na sua singularidade e co-vivenciar suas 
aflições, temores, desejos e expectativas pessoais.11
Bleuier, a pardas divergências teóricas coin Freud, em relação à etiologia das doen­
ças mentais, contribuiu para retirar a loucura do período de silêncio que lhe foi 
imposto quando se tornou objeto da Ciência. “A loucura, que durante tanco tempo 
foi evidente e indiscreta, só sairá do silêncio com a descoberta da Psicanálise'". ‘2
£ a Psicanálise de Freud surgiu no final do século X IX , Localizando a morada dos 
deuses e demônios no interior dos homens, trazendo à cena o sujeito do inconsci­
ente, o sujeito habitado por forças que desconhece, um sujeito que precisa ser 
olhado e compreendido à luz de sua subjetividade;
Freud descobriu qae os sintomas psiquiátricos possuíam um sencido a set desco­
berto. Recolocou o doencç como participante de sua doença e ressaltou a impor- 
cância da fala e da escuta para o tratamento. Considerava os sincomas como men- 
sageas a serem interpretadas, de um indivíduo qae não tem Outra forma de ex­
pressão a não ser a que se apresenta.Freud associa a loucura ao destino mesmo do
i l . Blcuícr aput! Oalv.iUrrondo. PíLCopatojij^ia c Semiologia Jos transtornos mencius. Porto Aic^cc. 
Artes M íáicüs. 2000. p 2S.
Roland jaecarcí. A loucim. fuo d c Afiro, Jo:£c 2^1ur. t ')ei j>. 2í .
homem c sustenta que existe um contínuo, r.o qual não se sabe exatamente onde 
começa e onde acaba a sanidade mencal (...) encontramo-nos agora na presença 
de uma psiquiatria fluida, com seus semi-ioucos e semi-responsáveis.55
Sob escas teorias, chegamos ao século X X . O breve apanhado histórico permite 
perceber que as causas da loucura e a maneira como se deve tratá-la nunca cons­
tituíram fonte de unanimidade. N a atualidade, também não é diferente. Confli­
tos e confrontos persistem. E não poderia ser de outra forma.
13. K-úíidú javcard. Op. £ic. , 5 S.
verdadeiro “sadio" não í simplesmente 
alguém que se declare como tal. nem 
sobretudo um doente que se ignora, mas um 
sujeito que conserve em si tantas fixações 
conflituais como tantas outras pessoas, e que 
não tenha encontrado em seu caminho 
dificuUlades internas ou externas superiores 
a sen equipamento afetivo bersditário ou 
adquirido, às suas faculdades pessoais ou 
adaptativas, e que se permita urn jogo 
suficientemente flexível de suas necessidades 
pulsionats, de seu processo primário e secun­
dário nos planas tanto pessoal, quanto soci­
al, tendo em justa conta a realidade, e reser- 
vando-se o direito de comportar-se de ?>sodo 
aparentemente aberrante em circunstâncias 
excepcionalmente “anormais
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C A P Í T U L O 2 
-------------- -Ar--------------
O LOUCO: como se t r a t a ?
Pousa tm momento, 
Um s i momento sm mim, 
N ão tá (i olhar, 
tambênt o pensamento. 
Fernando Pessoa
-------------------Diálogo socrático'------------------- -
■ Car mid es: Tio, morro de dot de cabeça. Há alguém nesta cidade que possa me ajudar-1 
II Querofonce: Sim, te levarei a ele.
■ Querofonce: Sócraccs, rrouxe-ce meu sobrinho que padece de uma dor de cabeça 
teirível, que está a lhe tirar até o juízo. Podes ajudá-loJ Carmides, aproxima-te:
■ Sócrates: Sabes quem sou?
■ Carmides: Não te conhecer seria unia ofensa.
1, D iá lo g o adaptado a parçir d í Jorge Saufí, Tc/torde in pi*)©* a ig n o j j o i ^ jo a ^ u u n de Olive*™ , Vancss*
dc Mociws Grabect « M m !« ôccnudc ic Fcrretra Tciwrifi. un U N L ^C am p i/v u-
tf Sócrates: E o que desejas?
g Carmides: Estou com muita dor de cabeça. Sequer consigo raciocinar mais; cens ura 
remédio que possa me aliviar?
■ Sócrates: Vens a mim e pedes ajuda. Não me conheces realmente, só de nome, e 
ainda assim me procuras. Sofres, pois, de um mal-estar esperançoso, já que, apesar de 
doente, acreditas que posso ajudar-te. Mais do que isso, es;ás a arriscar-te ao acreditar 
em mim, e somente ao arriscar-te possibilitas que o processo terapêutico aconteça, pois 
a terapêutica sempre implica correr riscos. Então cemos aqui três condições para que 
possamos trabalhan-terts um mal-estar esperançoso, uma demanda e uma pecição a qual 
aceitei. Então somente agora começamos uma carefa serviçal compartilhada.
M Carmides: Sim, faz-me bem esse novo vínculo. Mas, diz-mc o -que fazer, tens um 
remédio para mim?
■ Sócrates: Tenho um remédio para ti, mas é um cemédio que tem características
especiais, é composco de uma planca, que sozinha não é efetiva, faz-se necessário que 
venha acompanhada de um ensalmo. Sabes, sem dúvida, que os bons médicos, quando 
um enfermo vem a eles com um mal nos olhos, dizem que não podem tratar os olhos 
isoladamente, é necessário cuidar primeiro da cabeça paia curar os olhos, e que preten­
der curar a cabeça independentemente do corpo é absutdo; mais ainda, se os olhos não se 
podem curar independentemente da cabeça, nem a cabeça do corpo, então o corpo não 
pode fazê-lo, sem se curar a alma (psique), cujo remédio é o ensalmo.Então, o remédio 
que te ofeteço compõe-se de ensalmo a pharmacon. . w
M Querofonce; Sócrates averígua quem é seu paciente, qual a sua. capacidade e trata dü 
achar um modo de decifrar e decodificar O ordenamento do dizer do mal-estar esperan­
çoso onde transpareça o não manifesto, pois, atrás do dizer imediato dos sintomas, sem­
pre existe um mais dizer, capcável peia escuta e, quando se o descobre, inic12.se um 
caminho que, penetrado, condiiz à troca;
O ensalmo evoca a proteção amorosa que não atua no somático e sim no nível incetpessoal 
aferado pelo dano. O pharmacon abarca, pelo menos, quatro significados: droga, tintu- 
ta, escritura e objeto numinoso. Como droga, podemos notar suas virtudes ambivalentes: 
se, por um lado, pode lutac contra o mal a favor da vida, por outro, pode também - 
provocar a morte, Como tintura, modifica a aparência fazendo com que uma coisa pare­
ça oucra. Como escritura, favorece a recordação, porém incita o esquecimento. Como 
objeto numinoso, fármaco desempenha um papel expiatório. Porém, o ensalmo e a pres­
crição de um fármaco não são suficientes, para que a terapêutica seja eficaz é necessário 
que exisca o acompanhamento. São estes, pois, os eixos cm corno dos quais estrutura-se 
a terapêutica, transformando-a, mais que um serviço destinado à cura, cm um caminho 
acompanhado de aprofundamento da exiscência.
E N C O N T RO M A R C A D O C O M A L O U C U R A
Psiquiatria 
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Reconhecida como Ciência no sécuío X IX , a Psiquiatria trouxe contribuições 
científicas que atravessariam décadas. Roudinesco nos conta essa origem:
Surgido em 1802, o termo psiquiatria generalizou-se no mício do século X IX , em 
substituição à antiga medicina alienista, da qual Philippe Pinei (1745-1826), 
fundador francês do manicômio moderno, fora um dos grandes representanres da 
era clássica, ao lodo de Willian Take (1752-1822), na’Inglaterra, e Benjamin 
Rush (1746-1S13), nos Estados Unidos. Como ramo da Medicina, a Psiquiatria 
tornou-se, no correr dos^nos e em todos os países do mundo nos quais foi implan­
tada, em lugar da demonologia, da feitiçaria e das diversas técnicas xamanísticas, 
uma disciplina específica que tem por objeto o estudo, o diagnóstico e o trata­
mento do conjunto das doenças mentais."
U m século depois, o surgimento da Psicofarmacoiogia, em 1950, marcaria nova 
etapa no tratamento das doenças meneais. A descoberta dos psicofármacos deu- 
se de forma casual, realizada por químicos em busca de respostas para outras 
quescÕes não relacionadas à Psiquiatria, como aconteceu em vários ramos de pes­
quisa, não podendo ser atribuídas as novas descobertas a u m protagonista. Os 
registros históricos apontam para a importância dos trabalhos desenvolvidos por 
Jean Delay na frança, junramente com seus colaboradores Deniker e Piehot.
Em 1952, Delay £ Deniker publicaram dois ensaios descrevendo respostas favo­
ráveis a Clorpromazina em 3S pacientes psicóticos, Anteriormence, no mesmo 
ano, Laborit, Huguenaxd e Aliuaume, cirurgiões franceses que procuravam por 
um melhor sedativo pré-anescésico, tinham escrito sobre o efeico dessa droga, um 
dos quais era tornar um paciente indiferente ao seu ambiente. Delay e Deniker 
tentaram, então, usar a droga com pacientes psiquiátricos e observaram (...) um 
aumento na eficácia com que os barbitúricos sedavam pacientes maníacos e ou­
tros pacientes psicóticos, sc Clorpromazina fosse acrescentada,5
Em 1954, a Clorpromazina passa a ser usada nos Estados Unidos, dando início 
ao processamento de um grande número de compostos semelhances (fenoda2Ínas).
2. Ehiabech Roudinesco & Michel Plon. Op. <it., p.627.
$. B.ildcsínrim aputi Stone. A Cura da ĵ ente. Porra Alegre. Amcí Míífiicai Sui, 1999. p- ifcí).
O L O U C O ; C O M Q S £ T R . A T A
Esses foram divididos, de acordo com suas estruturas químicas, em crês sub-gtu- 
pos (aqui especificados pelo nome químico, seguido peio nome comercial): ah'fálicos 
(incluindo clorpromazina/ampjiaril), piperidioas (tioridazina/Mclíeril) epiperazinas 
(cri fluo perazina/Sceíazine). Outras drogas antipsicócicas logo se cornaram dispo­
níveis: tiorixeno/Na va n e (do grupo dos doxantenos), haloperidol/Haldol (do gru­
po das butirofenonas) e pimoztde/Orap (um composto difenil-butilpiperidma). 
i' Coletivamente, esses agentes são conhecidos como neurolépricos, e são agora ge­
ralmente reservados para uso em pacientes esquizofrênicos, embora também se­
jam prescritos, em pequenas doses, para pacientes altamente ansiosos, indepen­
dente do diagnóstico.
; Os antidepressivos cambem foram descobertos de maneira acidental, durante a 
SegunHa" Guerra Mundial (1939 - 1945). A isaniazida, um derivado do ácido
i nicotínico, revelara-se útil como antibiótico no cracamenco de tuberculose e, no 
j início da década de 50, observou-se que uma substância química semelhante, a 
■ iproniazida, induzia à euforia. Em 1952, Selikoff, em conjunto corn outros cien- 
; ciscas, relatou a utilidade da iproniazida no tratamento de depressão. Nessa mes-
i ma época, também idencíhcaram-se as propriedades antidepressivas dos tridclicos.
f . Mogens Schou, em 1958, na Dinamarca, analisou as propriedades ancimaníacas do 
: lírio, que passou a ser o medicamento eleito para o tratamento da manía-bipolar.
Pode ser que os efeitos do lido afetem a distribuição iónica intracelular versus 
extracelular nas células nervosas; ele também parece inibir a liberação de 
.norepinefrina no cérebro. Nesse caso, o lítio^ teria um efeito oposto ao dos 
amídepressivos. Isso pode responder pelas propriedades antimaníacas do lícío (cm- 
: bora deixe sem explicação sua propriedade geral de estabilização do humor, mes­
mo em pacientes muito deprimidos). A despeito do uso extensivo de lítio na 
Europa, durante a década de 50, eíe continuou sendo uma droga experimental 
nos Estados Unidos até sua aprovação, para uso clínico, em 19Ó9- Grande parte 
do trabalho experimental para estabelecer a eficácia terapêutica do lício foi reali­
zado nos E.U.A. por Ronaid Fieve e seus colegas em Nova York.3
Agrega-se a essas descobertas uma outra: a dos ansiolíticos, termo geralmente 
reservado para compostos ber.zodiazepínicos.
H. Scorit. Op dc. , p. ISO. 
5-Michel H. Stone. Op. clt . p .IS !.
.viSSSS*:.
c N C O N T R O M A R C A D O COW a LOU' C UR A
O clordiazepóxido/psicossedin foi a primeira, droga ansiolíuca a sec usada em ex­
periências clínicas (Sternbach, I960), após seus efeitos calmamos «• 
anciconvuisívantes terem sido demonstrados em experiências cora animais, du­
rante a década de 195 O.6
Como podemos observar, a década de 50 foi fértil no campo da Psiquiatria biológi-; 
ca. Fertilidade que, com o passar dos anos, tornou-se, ousaríamos dizer, perigosa. ‘
f í
A princípio, a psicofarmacoíogia deu ao homem uma recuperação da Uberdade."; 
(...) os.neurolépticos devolveram a faia ao louco.Permiciram sua reintegração nai 
cidade. Graças a eles, os tratamentos bárbaros e ineficazes forajn abandonados,; 
Quanto aos aosioiícicos e aos ancidepressivos, trouxeram aos neuróticos e aos de- j 
primidos uma tranqüilidade maior.7
Todos que trabalham com pacientes psicóticos, com quadros de depressão pro* j 
funda, ou com momentos de vida cricicos, sabem o benefício proporcionado peio ■ 
uso adequado da medicação. Como prescindir desse recurso nas manias graves,; 
que deixam as pessoas à mercê de sua inscintividade, causando dilacerações psí-1 
quicas e materiais? E nos quadros de paciences extremamente deprimidos, em ;■ 
que o psiquismo se mostra tão inatingível que só vemos diante de nós a negativa ■; 
da vída, ou os quadros de psicoses que assoiam um indivíduo deixanao-o à mercê; 
de suas produções delirantes? Negar a pertinência de tal recurso seria obtuso. No ' 
encanco, a medicalização da vida de maneira indiscriminada - como temos assis- 
tido - craz em seu bojo a concepção reducionisca de que psiquismo é equivalence ' 
a cérebro, como assinalaRoudinesco:
longe dc questionar a utilidade dessas substâncias e de desprezar o conforto que . 
elas trazem, pretendi mostrar que elas não podem curar o homem de seus sofri- ' 
mentos psíquicos, sejam estes normais ou patológicos. A morte, as paixões, a . 
sexualidade, a loucura, o inconsciente e a relação com o oucro moldam a subjeti-. 
vidade de cada um, e nenhuma ciência digna desse nome jamais conseguirá pôr 
termo a isso, felizmente. s
?. Eluaberlt ftoudii\c*co{2). Porque * Psicanálise.' R-.o cb pneifú, jor£* ZaIw. 2000, p. 22
S. Êiisabcch £ou<iirvcíco. O p . cic.. p V'
6. Michtfl H . Sionc*. O p. cic., p. 1S2.
O L O U C O . C O M O S E T R A T A
A remissão ao sintoma peio uso dos psicofármacos promove benefícios. Mas, 
como um recurso isolado, não traz mudança de perspectiva. Volcando à história 
de Maria. Se ela não puder ser"acompanhada, poderá tornar-se uma paciente 
crônica, freqüentadora assídua dos hospitais psiquiátricos ou, talvez, a próxima 
cencaciva de suicídio seja bem sucedida. Para ela, como pata tantos outros, ter 
acesso só à medicação, sem que seja assistida na necessidade de pensar sua per­
plexidade, sua ausência de projetos de vida, a falta de trabalho, não ttará os 
resultados terapêuticos em princípio desejados. Uma proposta terapêutica não 
pode estar limitada a psicocerapia e a medicação.
Psicanálise 
--- ★---
A Psicanálise surgiu no cenário científico com o trabalho de Freud e Breuer Estu­
dos sobre a Histeria (1893 [18953) - doença recorrente na burguesia vienense, no 
final do século X IX - relatando o tratamento de uma série de pacientes histéricas 
com sintomas conversívos, tratadas pelo mécodo catártico de Breuer, um avanço 
em relação ao método hipnótico de Charcot. E canto o ÇQ.nçeico de repressão, 
considerado por Sigmund Freud como a pedra angular da teoria psicanaiítica, 
como codo o arcabouço teórico da Psicanálise es cão intimamente vinculados a 
essa tentativa de compreensão dos fenômenos histéricos.
O tratamento psicanalítico começou fazendo a histérica reproduzir acontecimen­
tos traumáticos, primeiro pela hipnose, depois pelo método catártico, entenden­
do que os sintomas resultam da coavecsãp de excirações intensas em processos 
corporais. Com o tempo, as divergências entre Breuer e Freud, quanto ao meca­
nismo psíquico da histeria e a etiologia sexual das neuroses, levaram-nos ao rom­
pimento. Breuer queria explicar a dissociação mental dos histéricos pela falta de 
comunicação dos diversos estados psíquicos numa teoria que poderia ser qualifi­
cada de fisiológica, a teoria dos estados hipnóídes, cujos resultados ficavam 
enquistados, como corpos estranhos não assimilados, na conscíôncía desperta. 
Freud concebia a dissociação psíquica como o resultado de um processo de recu- 
sa, a que dgu 0 nome de "defesa" e, logo depois, o de "repressão”.
Quanto à divergência específica em relação à enologia sexual, depõe Freud:
(...) Breuer dispunha, parâ o restabelecimento dos doentes, áe um intenso rappor:
E N C O N T R O M A R C A D O C O M A L O U C U R A
sugestivo, no quai podemos ver precisamente o protótipo daquilo que denomina­
mos '‘transferência". (...) a transferência, carinhosa ou hostil, de franco caráter 
sexual, emergente em rodo tratamento neurótico, apesar de não ser desejada nèrif' 
provocada por nenhuma das partes, pareceu-me sempre a prova mais incontestá­
vel de que as forças impulsoras da neurose têm sua origem na vsda sexual.5
Freud referia-se, nesse texto, ao famoso caso de Anna O. (Berta Pappenbeim, 1S60- 
1936). Ana, após ser tratada por Breuer durante dois anos, peio método cacártico, 
desenvolvera pelo médico uma forte “ligação", que culminou numa fanrasia de 
gravidez. Ele, encão, por não querer colocar seu próprio casamento em risco, aban­
donou o caso, indicando-a para Freud, para a continuidade do tratamento, Não 
percebeu que os sentimentos de Anna correspondiam a uma forma de descarga 
psicológica, com motivação sexual, que Freud batizou de transferência.
Muitas descobertas se seguiram ao abandono do método catámco por Freud: a 
ceoria da repressão e da resistência, o descobrimento da sexualidade infantil, a inter­
pretação dos sonhos, sua aplicação na investigação do inconsciente e a criação da 
técnica da associação livre. Temos aqui os elementos fundamentais da Psicanálise, 
que produzem mudanças significativas na compreensão da normalidade,
Todos os desdobramencos que se sucederam na teorização de Freud sobre o psiquismo 
humano foram frutos de um trabalho rigoroso de observação e reflexão clínica que 
trouxeram a possibilidade de “cura" peia fala livre dos pacientes, sem artifícios 
senão aqueles utilizados por todos nós, quando despertos ou sonhando, e que fa- 1 
zem parte do psiquismo "normal" e "anormal". H á variações, apenas, na intensida- ; 
de com que fatores constitucionais (séries complementares) e ambientais vão se ; 
reunir para possibilitar a formação de indivíduos mais ou menos neuróticos ou 
psicóticos. Nesse sentido, a tentativa de definição de normalidade feita por Bergeret, 
na epígrafe deste capítulo, parece-nos refletir perfeitamente o pensamento freudiano,
$). SigmuiHÍ freud. O br« Compíctaj, Histwia Dei Miivimicnfo PítíactaltctíC' 0914). Madiid. 
Biblioteca Nucva, 1973, p. ÍS^S.
'sicopatologia literalmente 
quer dizer um sofrimento que porta 
em si mesmo a possibilidade de um 
ensinamento interno. Como paixão, 
torna-se uma prova e, como tal, sob 
a condição de que seja ouvida por 
alguém, traz em si mesma o poder 
de cura. Uso coloca, imediatamente 
a posição do terapeuta. Uma pai­
xão não pode ensinar nada, pzlo 
contrário, conduz à morte se não 
for ouvida por aquele que está fora, 
por aquek que í estrangeiro, por 
aquele que pode cuidar dela. ■
E N C O N T R O M A S C A P O C O M L O U C U H A
C A P Í T U L O }
------------ ------------------- i t — -------- ;-------------------- 
P S I C O P A T O I O G I A: como se e n s i n a ?
H á pessoas a q u m o a r ra n h a r das paredes impretsiqfta 
£ outras que it não impressionam 
M a s o erran h av das paredes í sempre ig u a l 
E a diferença vem das pessoal, Meti s i ha diferença entre esse sentii 
H averá diferença pessoal no sentir das outras coisas 
E quando todos pensnn tgu a i dum a coisa í porque d a i diferente p a r a cada um. 
Fernando Pessoa
% 
\
Carta de um aluno 1
------ —★— ------
Psiquiátrico: cheiro característico, olhares vagos, dementes, 
insanos... desnacureza humana, depósito que preserva os “de fora" do desconfor­
to de ver canta exposição do sofrimento interno.
1 J o s í Joaqu im d « Oliveira. 4". a n iso d í P s.co lagà d.i U M P/CAM P.
Che^o ao Cândido, alguns pacientes facilmente reconhecíveis, oucros nem canto, 
outros então, só alguém dizendo ...
£)r Willians" faia da valorização do ser humano independence de qualquer fator 
e co n ca da sua visita à Bahia e ao Ilê de Mae Stelia onde é acompanhado por uma 
pessoa que o contexcuaüza de cada local, significados ricuais, etc. (Os terreiros, 
segundo historiadores, serviam de base para o resgate da cultura, identidade dos 
negros fugitivos, o que deu origem às prárícas de cada nação africana). Ele diz 
que, às vezes, precisamos de um estágio no Ilê Mãe Stella, com o sentido de 
"caminhar com" o paciente, exercendo a função de resgate de identidade...
Naquele momento senti um profundo respeito por aquele profissional, homem 
comprometido com o ser humano em sua totalidade.
Segui para &$ oficinas sentindo um distanciamento do trabalho em relação ao 
ideal; medo desta loucura em ruim, disfarçada num esforço para me diferenciar; 
rail pensamentos de como atuar, que escratégia estabelecer...
Nos dias que se sucederam, mais pensamentos, sennmencos e... "o pathos traz 
algo da experiência que desde que seja faiado...” (Professora Tânia), compreendi 
que em maior ou menor grau temos "deslizes”, pachos e que a comunicaçãoé 
fundamental em qualquer processo c deixei cair as resistências propondo-me 
estar presente mobilizado peias ideais que tanto me entusiasmaram.
- O objetivo de desmisciticar o conceito de doença mental, indo a lém d a análise- 
clínica, do diagnóstico.
- Ver a-pessoa ali, o ser humano que está numa situação patológica.
- Resgatar a identidade através da relação social, relação esta livre de preconceitos 
e reservas para com o indivíduo,
A partir daí, mergulhei no projeto. Vamos trazer papel, revistas, tesouras, cola, convidar 
0s pacientes a participar, E então encontro Odete, que não quer participar, está agressi­
va, cuidado!, diz a enfermeira. Caminho com Odete de um lado para o outro, daqui pra 
té, de iá para cá; ela me faia do medo, xinga, me manda embora, dá as costas, sempre de 
Cabeça baixa. Mas de repence se apruma, me olha e diz: - Não gosto disso (cortar, colar). 
Como que justificando sua atitude e aceitando minha companhia,
Valcruim. Sujxnnteflíítfrtçc do Sccviço de Sjüdt Dr. Guidido Fcítclcíl.
391
Esse movimento de ir e vir como a buscar algo, aígo de si, que ficou em algum 
lugar ou em algum tempo...
Penso nas inúmeras vezes que andei procurando coisa semelhante e me lembro 
do filme Garoca Interrompida em que a protagonista, ao explicar o que sentia 
durante seu episódio de transtorno, diz que a loucura é você amplificado. "Como 
ver as coisas através de uma lente, tudo fica muito aumentado”.
Volco ao Cândido e Odete continua andando de um íado para outro, faiando, 
xingando, mas aceita minha presença e penso o quanto posso colaborar estando 
a l i ... Consigo falar, perguntar, ouvir - comento com a Ângela3 (supervisora) que 
dá coques do cipo ‘‘observem as alterações de memória, de humor, sem nunca 
deixar de ver a pessoa.”
Bem, falar de resulcados terapêuticos é muito cedo, mas faiar da atuação tera­
pêutica que isso promove em m im , puxa, como é gratificante ver restaurada a 
visão de que o paciente psiquiátrico é ura indivíduo que sofre dentro de um 
quadro psicopatoiógico, mas não é um código no "catálogo psicopatoiógico"* é 
alguém que necessita ser conduzido a enconcrar o significado de si mesmo num 
mundo de incongruências... e aí eu me icmbro do episódio de Mãe Stella.
Psicopatologia Psicanaiídca
---------- ★----------
Descrevemos, em linhas gerais, o surgimento da Psicanálise com o intuito de 
destacar a ruptura produzida por Freud na concepção de normalidade e patolo­
gia. A partir de Freud, vemos ressurgir o conceito de pathos como já esteve pre­
sente na tragédia grega de Sófocles, Ésquilo e Euripides.
N a tradição grega, o poera Ésquilo empregou a expressãopatei-imtos para designar 
O que é pátieo, o que é vivido. Aquilo que pode se tornar experiência. Alem de 
sofrimento, de Pathos derivam-se também as palavras paixão e passividade. O que 
figura na tragédia grega épaibos, sofrimento, paixão, passividade que, no sentido 
clássico, quer dizer tudo o que se faz, ou acontece de novo, do pomo de vista daque­
le ao qual acontece. Nesse sentido, quando pathos acontece, algo da ordem do exces-
3. Àn^rJti M artm ci Mirandu. Professora d* PsicoparoJo^ÍA da UN’IP /O m p .
so, da desmesura põe-se em marcha, sem que o eu possa assenhorear-se desse acon­
tecimento, a «ao ser como paaente, conio ator, como ser passivo. 4
Nossas aulas práticas de Psicopatologia estão estruturadas -exatamente a partir dessa 
compreensão de pathos, como aparece em Esquilo e Freud e que levou à criação da 
expressão "Psicopacologia Fundamental" pelopsicanalista francês Pierre Fedida (19 88), 
com o objetivo de marcar uma posjçâo destacada da ‘‘Psicopacologia Geral”, c 
reproduzida na página iniciai deste capítulo. As implicações dessa postura se farão 
sentir desde o primeiro encontro com os alunos que iniciam o estágio. Quando reco­
nhecemos o pathos como facor de aprendizagem, como algo novo do ponto de vista 
daquele ao quai acontece, temos colocada nossa escuta diante dos alunos.
Sem fazer uma transposição simplista do encontro terapêutico, singular na sua 
natureza, entendemos que o pensamento psicanalícico propicia um olhar, um a es­
cuta, uma compreensão do sofrimento psíquico não limitado à dupla terapêutica, 
mas que também pode ser ampliado à compreensão de fenômenos extensivos a 
várias esferas da produção humana. Dentre eles, os fenômenos psíquicos grupais, o 
ensino, a compreensão da arte, da literatura, entre outras possibilidades.
O fenômeno psicopacológico adquire, sob esse enfoque, mobilidade suficiente para 
ser compreendido a partir da experiência de "normalidade". Essa mobilidade é o 
primeiro aspecto que pretendemos desenvolver nos alunos para a compreensão da 
Psicopacoiogia. Ao invés do ensino de categorias descritivas com critérios de sufici­
ência para preencher determinado diagnóstico - como os que encontramos no D.S.M. 
IV (Manual Diagnóstico e Estatístico dos Transtornos Mentais) e no C .l.D . 10 
(Classificação de Transtornos Mentais e de Comportamento), que reservam sua 
utilidade "ateórica" para fins estatísticos <; epidemiológicos envolvemos os alu­
nos, desde o início do curso, na discussão e reflexão sobre a normalidade, convidan­
do-os a revisitar lugares previamente estabelecidos em relação a esses conceitos.
A parcir do trabalho com as resistências e pré-concepções, vamos abrindo caminhos 
para o contato com o paciente. Quando, em 1911, Freud publicou o livro A 
Psicopatologici da Vida Cotidiana, fez-nos ver a inexistência de uma diferença funda­
mental entre o homem neurótico c o homem normal.
Através dos paraíeíisinos entre os mecanismos em ação nos atos ralhos, de um
^ Manuel To^cíl 3cf[intk. O í[JC c Piitropatoioi;).! íundr.i-.cncKl. Putoí/yi/i r Ptrfti,:a. p.i7.
41
lado, e nos sonhos, de outro, Freud é levado a declarar que "todos somos mais ou : 
menos neuróticos", sublinhando a proximidade, apontada peüo próprio título do ■ 
livro, cncre o patológico e o cotidiano.5 j
A Psicanálise desenvolveu-se a partir dos estudos sobre a histeria, quando sê . 
revelou a importânciada história do paciente na sua patologia, o papel patogênico ■ 
das recordações reprimidas, a importância do conflito psíquico, bem como da:| 
sexualidade infantil. No artigo de 1923/24, inriruiado Neurose- e Psicose, diz Frcuc: :•
(...) chegamos a uma fórmula simples, que íntegra talvez a diferença genética mais | 
imporcanre entre neurose e psicose: a neurose, seria o rtsidtado do conflito entre a “ego" t JS 
0 ld e. em troca, a psicose, o desenlace análogo de tal perturbação das nlações entre o “ego" e 0 jj 
mundo extmor. (...) A etiologia comum da explosão de unia neurose ou uma psicose 
é sempre a privação, o não cumprimento de um daqueles desejos infantis, jamais'í 
dominados, que tão profundamente estão arraigados em nossa organização, deter-1 
minada pela fiiogenia. Essa privação rem sempre, no fundo, uma origem exterior, f 
ainda que possa emanar a parcir da instância interior (superego) encarregada de re- t 
presenrar as exigências da realidade. (...) O efeito patogênico é este ou aquele, H 
dependendo de permanecer 0 ego, nessa tensão conflituosa, fiel ao seu compromisso | 
com 0 mundo exterior, buscando amordaçar 0 ld% ou se deixar dominar pelo ld e, ao.; 
mesmo rempo, se afastar da realidade.0 i
A ampliação do campo da Psicanálise ao atendimento de pacientes psicóticos'! 
deu-se a partir de 1920, cora as contribuições iniciais de Melanie Klein e, poste-J 
riormente, com as de W.R. Bíon, H . Rosenfeld, H . Segal, J. Rivíère e outros.
Melanie Klein (1882-1960) é a pioneira do que se convencionou chamar "Escola ;l 
Inglesa de Psicanálise”. A parcir da experiência clínica, observou que as crianças;, 
sofrem, nas primeiras fases de seu desenvolvimenco, angústias que se as-seme- 
lham muito às vividas por pacientes adultos em processo de regressão psicótica.. 
Ela concluiu, através do esrudo de vários casos clínicos, que o psicótico não con- < 
seguiu superaras angústias primitivas da infância e regressou a elas quando sua; 
psicose se tornou manifesta. Segundo a aurora, não há uma fronceira nítida deli­
mitando o território da neurose e da psicose, a distinção entre ambas é dada pelo 
caráter regressivo (quantitative) que pode atingir determinados aspectos do run-
Ehftbech & úudm «cú Michel Ploon. Op. cit., p.620.
6. S^mund Frcud. Obras CompWtw. H>uâ*'ttí Dr/ AJmíj«mrífi Psr«nt<rtii/<o (] 923/24). Madrid, Sibb'ocecA Nucvn, p, 2742-4$.
aon;UTtent° psíquico, preservando outros. Dessa perspectiva, rodos possuímos 
simultaneamente uma parce não psicótica e uma outra psicótica, sendo que no 
tratamento devemos nos apoiar na pane sadia do ego.
M elanie Klein modificou o paradigma psicanaiítico de Freud, descreveu um novo 
modelo de mente e de funcionamento psíquico. A formulação de Freud dc apare­
lho psíquico pressupõe a existência de pulsões que, por definição, tendem a se 
descarregar, e de rorças contrárias a essa descarga, caracterizando o conflito psí­
quico. Para Melanie Klein, a perspectiva é oucra. Os fatores decisivos para o 
desenvolvimento mental são as emoções humanas c as fantasias que as expri­
mem. As emoções de amor e ódio prioritariamente definem o conteúdo e a estru­
tura do mundo interno. Rezende observou:
Se nos perguntássemos qual a característica principal de Freud, aquela que se 
tomou elemento disrinrivo de seu pensamento, poderíamos responder tranqüila­
mente dáendo que é a ênfase na sexuatidade como característica da mente, e não 
apenas do corpo. Característica da mente, não só cm geral, mas do próprio in­
consciente, É impossível falar de Freud sem mencionar a sexualidade (...) Para 
Melanie Klein, a grande originalidade é o trabalho com o emocional. Mais pro­
priamente, com o emocionai infantil, seja na criança, seja no adulto. ?
A teoria das relações objetais desenha uma nova estrutura da mente. As principais 
mudanças referem-se à concepção de um ego inato. A importância da pulsão de 
morte, as relações primitivas com objetos parciais, a ênfase na angústia de aniqui­
lamento precoce são fundamentais aqui.
A psícosè, da qual Melanie Klein estudará as duas formas mais primitivas no 
alvorecer da existência, sob a denominação de posição esquáo — paranóiáe c 
depressiva, é para ela o destino fundamental e comum de todo ser humano, não 
passando a sintomatologia neurótica, como a "normalidade", de modos de supe­
ração mais ou menos bem sucedidos, de posições psicóticas.s
Outro autor a ser destacado por suas contribuições ao escudo da psicose é W R. 
&ion (1S97-I979), que surgiu como o seguidor mais Original do pensamento
Aftcortio M u n ii de Rdende. Melanie Khu: * a Ouacpçttn Hsvtvvitn í/t) Zimlaln. A pú ííila do O jfíO rccmAÇão cro Hsií* 
Sim ^jj/ta íníeiiutoSedes Smoícacúc, c.^p.í, p.13.
-Kôíand jaecard. Op cn.. p.?}.
E N C ON T K O M A R C A D O C O M A L O U C U R A
kleiniano. Suas construções reúnem um pensamento de base filosófica, macemá- 'i 
tica e humanística, associadas à observação clínica. Propõe o uso de modelos no í 
campo da Psicanálise, destacando sua flexibilidade em contraste com a rigidez de /■ 
outras teorias. O modelo contineme-coneeúdo difundiu-se de tal maneira, que í 
fnz pane do vocabulário comum de muitos terapeutas, talvez não familiarizados ;| 
com a sua origem e com quem a criou; assim como 0 conceito de vínculo (e de 
ataque ao vínculo), aqui apresentado por Lino Silva: |
Um vínculo assume feições definidas, que se podem representar tomando a relação de $ 
um continente com o seu contido, c vice-versa, como um modelo. Em tal relação, f
>v.
cabem aspectos mecânicos, como o do líquido com sua vasilha, aspectos dinâmicos, 
como o da asa delta, e a atmosfera; aspectos orgânicos e emocionais, como o do feco e |í
o venrre; aspectos sociais, como o do indivíduo e seu grupo, ou de um grupo e sua | 
comunidade,(...). Entre seres humanos, continente e convido afetam am ao outro por ■ jf 
identificação projetiva, o que significa que aquilo que parece ser o mesmo evento | 
sendo recebido pelo mesmo continente em oucro momento, mas de clima emocional í? 
diferente, já constitui uma outra realidade psíquica completamente diferente. ^
■'ti
O conceito de personalidade psicótica, segundo Bion, é fundamentai para enten-.!| 
der os fenômenos associados ao processo psicócico, uma vez que o estado mental 
dos pacientes acometidos por tai distúrbio mostra-se visível e, por isso mesmo, 
passível de observação. Com relação a isso, os trabalhos realizados por Bion são^í 
predominantemente clínicos, desenvolvendo-se em torno de hipóteses sobre a j 
linguagem e o pensf.menco do esquizofrênico. Assim, a personalidade vai se de- p 
senvolvendo e ganhando contornos cada vez mais severos devido a uma disposi- | 
Ção congênita, a uma disposição destrutiva primária e a uma relação conflitiva §' 
com uma mãe que não foi capaz de reaiizar sua função de "rêveric" - compreen- 
der, acolher e modificar as emoções manifestadas pela criança. Em seu desenvol- 
vimenco, o indivíduo enfrenta incontáveis fenômenos de natureza emocionai eAi 
tenta resolvê-íos de forma particular conforme sua consciência que, para Freud, é ç; 
"o órgão sensorial para a percepção das qualidades psíquicas". Para Bion, a cons- 
ciência já nasce com o indivíduo, ainda que de forma rudimentar, no momento í: 
em que a vida é gerada. Seu desenvolvimento necessita de estímulos emocionais í 
captados sensorialmente para, posteriormente, ir se aprimorando através das ex- 
perimentações de fenômenos mentais. O contato com a realidade interna e ex- ’
9, Maxia t m i l i i L ino Silva. Pcnsnn<to o jxrnsar, São P m iIo , M O , Í9&S. p.S. \
« I
P 5 1 C 0 P A T O L O G 1 A C O K O 5 t E N S I N A
terna está intimamente relacionado a esse órgão/consciência e o modo de encarar 
a. realidade depende de seu funcionamenco.
As inúmeras experiências do indivíduo em concaco consigo mesmo e com a rea­
lidade que o cerca necessariamente implicam um confronto encre a tendência a 
c o ! e r á - l a ou fugir dela. Desse confronto e das conseqüências geradas a parcir dele 
serão configuradas as diferences merttalidades individuais, uma das quais a per­
sonalidade psicótica ou parce psicótica da personalidade.
É importance ressaltar que o conceito de parce psicócica da personalidade desig­
na pata Bion um estado mental, delimitando um modo de funcionamento m en­
tal que se expressa e é observado através de manifestações de conduta e de lin ­
guagem, podendo coexiscir com outro escado mencal chamado personalidade 
não psicótica. Portanto não se refere a um diagnóstico psiquiátrico.
O traço que mais se descaca na personalidade psicótica c a intolerância à frustração, 
junto com o predomínio dos impulsos destrutivos que se manifestam como ódio 
desmedido contra a realidade, canto interna ccmo externa. Odio que se estende aos 
próprios sentidos, à personalidade e aos elementos psiquicos que lidam com a rea­
lidade e seu reconhecimento, à consciência e a codas as funções relacionadas a ela.
Bion (1994) afirma que o “pensar passa a existir para dar conta dos pensamen­
tos", considerando o pensar um desenvolvimento imposco à psique pela pressão 
dos pensamentos. De acordo com esse desenvolvimento, os pensamentos podem 
ser classificados como pré-concepções, concepções ou pensamentos e, finalmen­
te, conceitos. Os conceitos têm nome e são, porcanto, concepções ou pensamen­
tos firmados. A concepção se inicia através da conjunção de uma pré-concepção 
com uma realização, e o pensamento resulta do pareamenro de uma pré-concep- 
ção com uma frustração. Dessa forma, sugere o seguinte modelo:
O modelo que proponho é o de uni bebê cuja expectativa de um seio se una a um a 
"realização" ce um não seio disponível para satisfação. Essa união e vivida como 
um não seio, ou seio ausente, dentro deie. O passo seguinte depende da capacida­
de de o bebê tolerar a frustração.

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