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Saberes expertos e medicalização no domínio da infância Comitê Científico Ary Baddini Tavares Andrés Falcone Alessandro Octaviani Daniel Arruda Nascimento Eduardo Saad-Diniz Francisco Rômulo Monte Ferreira Isabel Lousada Jorge Miranda de Almeida Marcelo Martins Bueno Miguel Polaino-Orts Maurício Cardoso Maria J. Binetti Michelle Vasconcelos Oliveira do Nascimento Paulo Roberto Monteiro Araújo Patricio Sabadini Rodrigo Santos de Oliveira Sandra Caponi Sandro Luiz Bazzanella Tiago Almeida Saly Wellausen Sandra Caponi Fabíola Stolf Brzozowski Leandro de Lajonquière (organizadores) Saberes expertos e medicalização no domínio da infância 1ª edição LiberArs São Paulo – 2021 Saberes expertos e medicalização no domínio da infância © 2021, Editora LiberArs Ltda. Direitos de edição reservados à Editora LiberArs Ltda ISBN 978-65-5953-022-9 Editores Fransmar Costa Lima Lauro Fabiano de Souza Carvalho Revisão técnica Cesar Lima Dados Internacionais de Catalogação na Publicação – CIP S115 Saberes expertos e medicalização no domínio da infância / organizado por Sandra Caponi, Fabíola Stolf Brzozowski, Leandro de Lajonquière. - São Paulo : LiberArs, 2021. 345 p. ; e-book: PDF Inclui bibliografia e índice. ISBN: 978-65-5953-022-9 1. Medicina. 2. História da Ciência. 3. História da medicina. I. Caponi, Sandra. II. Brzozowski, Fabíola Stolf. III. Lajonquière, Leandro de. IV. Tí- tulo. 2021-1796 CDD 610 CDU 61 Elaborado por Vagner Rodolfo da Silva - CRB-8/9410 Todos os direitos reservados. A reprodução, ainda que parcial, por qualquer meio, das páginas que compõem este livro, para uso não individual, mesmo para fins didáticos, sem autorização escrita do editor, é ilícita e constitui uma contrafação danosa à cultura. Foi feito o depósito legal. Editora LiberArs Ltda www.liberars.com.br contato@liberars.com.br mailto:contato@liberars.com.br ⸎ Este livro é o resultado de dois anos de trabalho conjunto realizado no marco do convênio internacional Capes-Cofe- cub entre a Universidade Federal de Santa Catarina e a Universidade Paris 8 Vincennes-Saint Denis. O projeto de- nominado “Os saberes expertos no do- mínio da infância” é coordenado pelo Professor Leandro de Lajonquière (Pa- ris 8) e a Professora Sandra Caponi (UFSC)•. ⸎ • Projeto Capes-Cofecub, período 2020 - 2023: Processo Capes nº 88881.191755/2018-01 / Processo Co- fecub nº Sh 940/19. SUMÁRIO Parte I - Dimensões epistemológicas dos saberes expertos Condições para a cooperação entre saberes expertos e saberes vulgares Gustavo Caponi ............................................................................................................. 19 Porque a indústria farmacêutica é diferente das outras? Saúde mental, ciência e psicotrópicos em questão Marcia da Silva Mazon ............................................................................................... 33 Sobre a impossibilidade da justificação ética de intervenções psi com crianças: notas a partir de Thomas Szasz Diogo de Oliveira Boccardi ...................................................................................... 53 A crítica ao cientismo não é negacionismo: a psiquiatria biológica em questão Sandra Caponi ............................................................................................................... 65 Parte II – Os dilemas da prevenção e da antecipação de riscos A psicanálise, o autismo e a prevenção na infância: a polêmica Lei 13.438 Leandro de Lajonquière ........................................................................................... 91 A escola inclusiva frente aos procedimentos ideológicos de normalização: salvemos o sujeito! Ilaria Pirone ................................................................................................................. 119 Proteção e prevenção: revisitando as políticas em prol dos direitos das crianças e dos adolescentes no Brasil Fernanda Martinhago ................................................................................................ 135 Neoliberalismo, neurociências e psiquiatria: discursividades contemporâneas em torno do sofrimento psíquico e do desenvolvimento infantil Letícia Hummel do Amaral...................................................................................... 155 Juan Portell y Vilá e o surgimento da psiquiatria infantil em cuba: higiene mental, crianças turbulentas e bulbocapnina Javier Ladrón de Guevara Marzal ......................................................................... 175 Parte III – A psiquiatrização da infância: diagnósticos, laudos e uso de psicofármacos Criando crianças para um mundo competitivo: o uso do metilfenidato para o aperfeiçoamento do desempenho na infância Fabíola Stolf Brzozowski Patrícia Kozuchovski Daré ...................................................................................... 203 Das casas de correção às escolas públicas: medicalização e psiquiatrização da infância na Colômbia, 1930-1950 María Fernanda Vásquez ......................................................................................... 223 O laudo de dislexia: ficção ou realidade? Elisabeth da Silva Eliassen Lais Oliva Donida Ana Paula de Oliveira Santana ............................................................................... 243 A história do conceito de Transtorno Bipolar, seus contornos e a emergência do diagnóstico em crianças Ana Carolina Welter Sandra Caponi ............................................................................................................... 267 Autismo em tempos de patologização da infância: (des)encontros entre a Psicanálise e o DSM Kelly Cristina Brandão da Silva Ariana Lucero ................................................................................................................ 297 Dos sonhos expertos à fabricação educativa: considerações sobre o esvaziamento da ex-periência escolar Caroline Fanizzi ............................................................................................................ 317 Sobre os autores ................................................................................ 337 13 APRESENTAÇÃO A advertência de Hannah Arendt sobre a possibilidade de que uma crise mundana venha a se converter numa catástrofe caso nos furtemos a pensar o fato mesmo de não confiarmos mais nas nossas antigas respostas às questões de sempre, tem, mais ou menos, tantos anos quanto a moderna car- reira farmacológica para se encontrar a molécula milagrosa capaz de reequi- librar os chamados estados de ânimos, sejam adultos ou infantis. De fato, no que tange às vicissitudes da nossa vida cotidiana com as crianças fizemos ou- vidos moucos. Um pouco mais de sessenta anos se passaram e, no lugar de retomarmos a velha questão, qual seja que a chegada de todo recém-nascido aponta para a fragilidade mesma do laço educativo, decidimos aventurarmos na distribuição massiva de todo tipo de neurolépticos, com vistas a formatar isso mesmo que resiste a toda formatação: o fato mesmo de não haver pro- porção entre as gerações. No entanto, embora as descobertas farmacológicas dosanos 50 tenham sido novas, não o era a velha insistência em parametri- zarmos a educação, isto é, o nosso anseio em fazer com que a vida com as crianças venha a responder a um gabarito mais ou menos escrito de antemão. Já desde os alvores do século XX, o mundo adulto tentava encontrar no campo, em vias de constituição, dos saberes psicológicos sobre a criança, a chave que permitisse aceder ao mistério que faz com que a criança à qual nos endereçamos responda como de fato responde àquilo que lhe propomos, lhe ordenamos, lhe sugerimos e/ou lhe ensinamos. A nossa insistência para que a criança venha a estar aí onde a esperamos, mais ou menos inconsciente- mente, é bem mais antiga. Até certo ponto ela é consubstancial aos tempos modernos e à instalação de uma série de dispositivos de controle mais ou menos justificados no discurso religioso. Precisamente, a ciência psicológica tentou tomar seu lugar, e logo mais foi a vez da farmacologia. Assim, hoje em dia, assistimos ao imperialismo de um enredo pedagógico de raiz psico-mé- dico-religiosa, no intuito de silenciarmos essa pergunta irredutível que não quer calar e que anima a vida cotidiana com as crianças: como estarmos cer- tos de algo e chegamos a falar disso com uma certa tranquilidade de espírito a uma criança de carne e osso? 14 A crise periódica da educação é consubstancial ao desaparecimento do mundo antigo. Com ele, foi-se também a autoridade e a tradição, disse a nossa filósofa. Ainda bem, nós dizemos, pois caso contrário o sonho da de- mocracia e da justiça social não teria expandido a experiência da vida na Pó- lis. Entretanto, como educar as crianças, como fazê-las entrar e crescer num mundo sempre velho sem que os laços educativos estejam atravessados pe- las vicissitudes da autoridade e da tradição? Em outras palavras, como edu- car uma criança sem responder pela palavra empenhada no interior de uma história em curso? A nosso entender, tal coisa é simplesmente impossível. Pois bem, como muito humanos que somos disso nada queremos saber. As- sim, perdemos nosso tempo, degradando todas as experiências de vida com a criança no altar dos saberes expertos sobre a criança. Nos iludimos com a suposta possibilidade de vir a encontrarmos cientificamente a palavra que a criança espera/precisa/necessita nesse momento preciso do suposto desen- volvimento psicológico, tanto natural e quanto normal. O problema não é que perdemos nosso tempo correndo detrás dessa miragem pseudocientífica, o drama é que fazemos da inevitável e necessária crise na educação uma catás- trofe sem fim. Renunciar à educação degrada a autoria adulta, assim a sua palavra perde autoridade não fazendo mais laço ou tradição que possibilite à criança conquistar para si um lugar diferente de como fora esperada quando da sua chegada à vida e de sua entrada no mundo. O livro que aqui apresentamos está dividido em três grandes temas: a primeira parte está dedicada às dimensões epistemológicas dos saberes ex- pertos; a segunda parte aos dilemas da prevenção e da antecipação de riscos; e a terceira e última parte está dedicada à psiquiatrização da infância: diag- nósticos, laudos e uso de psicofármacos. As dimensões epistemológicas dos saberes expertos reúne os quatro primeiros capítulos do livro. Está dedicada a uma discussão teórico episte- mológica, mas também ética, referida à estruturação e circulação dos saberes expertos. São apontados seus limites e dificuldades, suas contribuições, e as formas de interação entre esses saberes e outros domínios discursivos e so- ciais, tais como os saberes vulgares, a ideologia científica, a relação ciência- ética, assim como as questões econômicas e políticas referidas à indústria farmacêutica. Inicialmente são abordados os saberes expertos em geral, para logo analisar o lugar desse discurso no campo específico da psiquiatria da infância. Abrimos o livro com um capítulo de Gustavo Caponi, dedicado a rea- lizar uma análise epistemológica sobre os saberes expertos. Trata-se aqui de delimitar esse conceito, que possui contornos opacos e pouco definidos, para 15 abordar as possíveis condições de cooperação entre eles e os chamados sa- beres vulgares, isto é, saberes sobre o mundo, cujo caráter é eminentemente prático. Segue o capítulo escrito por Marcia Mazon, que analisa a produção de psicofármacos como campo econômico com autonomia relativa. A autora estabelece um diálogo instigante com autores como Pierre Bourdieu, Bruno Latour, Fligstein e Michel Foucault, entre outros, para problematizar de que modo a produção científica no campo da psiquiatria ganha espaço, prestígio e poder a partir de suas interações com a indústria farmacêutica. O capítulo toma como exemplo o caso do TDAH e a cidadania neuroquímica. O capítulo de autoria de Diogo Boccardi analisa a impossibilidade da justificação ética de intervenções psi com crianças, tomando como ponto de partida os estudos do psiquiatra Thomas Szasz. Diogo analisa as críticas que Szasz dirige a uma intervenção terapêutica sobre a infância que leva a refor- çar processos de patologização, quando essas intervenções psi se transfor- mam em verdadeiros instrumentos de impostura e coerção psicológicas con- tra crianças impossibilitadas de dar seu consentimento. Para finalizar essa primeira parte, Sandra Caponi discute os limites e dificuldades da psiquiatri- zação da infância, desenvolvendo a necessidade de uma psiquiatria crítica que questione os limites e dificuldades da psiquiatria reducionista hoje he- gemônica. Para abordar a importância dessa crítica, a autora estabelece uma oposição entre epistemologia crítica e negacionismo científico, identificando a psiquiatria biológica como aquilo que Georges Canguilhem definiu como ideologia científica e outros autores definiram como cientismo. A segunda parte do livro, Os dilemas da prevenção e da antecipação de riscos, está dedicado à problemática da prevenção e da obsessão por ante- cipar os riscos de uma doença mental grave e irreversível (sic) que poderia surgir no futuro se não forem realizadas intervenções precoces no domínio da infância. Essa segunda parte está composta por cinco capítulos, inicia com o trabalho que Leandro de Lajonquiere dedica à temática do voto preventivo na primeira infância e em particular do autismo. Ele retoma a sua conhecida crítica do ideário psicológico desenvolvimentista no intuito de reabrir o de- bate sobre a polêmica Lei 13.438. Segundo Leandro, o raciocínio médico-sa- nitário-psicológico, articulado a partir da ideia do “risco para o desenvolvi- mento infantil”, deve ser precisamente interrogado no intuito de possibilitar a participação da psicanálise nos debates em torno do tempo da infância, suas vicissitudes e a devida atenção dos adultos para o fato de as crianças bem poderem vir a sofrer psiquicamente nos alvores da vida cotidiana. A professora Ilaria Pirone, da Universidade Paris 8 Vincennes-Saint- Denis, problematiza a normatização das práticas educativas, como as normas 16 parecem não se vincular com uma reflexão ética, com foco na inclusão esco- lar, a partir de uma perspectiva psicanalítica. Argumenta que essa inclusão pode gerar um efeito paradoxal porque, ao mesmo tempo em que defende a igualdade de oportunidades, as práticas normatizadoras podem ter como consequência a exclusão do sujeito. O texto de Fernanda Martinhago traça um histórico das políticas de defesa de direitos das crianças e adolescentes, a partir do século XX. A autora analisa como as concepções de proteção e pre- venção aparecem nessas políticas e acabam intervindo na subjetividade dessa população, nem sempre com consequências positivas. O capítulo de autoria de Leticia Hummel, denominado Neolibera- lismo, neurociências e psiquiatria: discursividades contemporâneas em torno do sofrimento psíquico e do desenvolvimento infantil, explora as dificuldadesexistentes na antecipação de riscos que caracterizam a psiquiatria do desen- volvimento e seu vínculo com a razão neoliberal. A autora destaca a necessi- dade de realizar uma crítica radical aos determinismos e reducionismos do paradigma psiquiátrico hegemônico, e privilegiar uma abordagem não-estig- matizante, centrada nos sujeitos e em suas subjetividades. A segunda parte do livro finaliza com o capítulo de autoria de Javier Ladrón de Guevara Marzal, que analisa o surgimento da psiquiatria infantil em Cuba nos primeiros anos da década de 1920. Para isso, estuda o trabalho do médico psiquiatra e higienista Juan Portell y Vilá (1888-1958), que traba- lhava com crianças internadas no Hospital para dementes de Cuba. O autor argumenta que a psiquiatria infantil desse período pode ser vista como uma estratégia biopolítica exercida com fins profiláticos e de normalização das crianças consideradas instáveis. A terceira parte do livro, denominada A psiquiatrização da infância: diagnósticos, laudos e uso de psicofármacos, com seis capítulos, propõe uma reflexão sobre os critérios utilizados para diagnosticar transtornos mentais, os laudos elaborados para descrever as pessoas diagnosticadas e os trata- mentos farmacológicos decorrentes desses diagnósticos, a partir de saberes expertos, situando esses processos num contexto de medicalização da vida, em especial do sofrimento infantil. Essa última parte do livro inicia com o capítulo de Fabíola Stolf Brzozowski e Patrícia Kozuchovski Daré. Elas apresentam um panorama ge- ral das influências das ideias de empreendedorismo, performance e compe- titividade no cotidiano escolar para analisar o uso de medicamentos estimu- lantes, com destaque para a Ritalina® (metilfenidato), com o objetivo de me- lhorar o desempenho acadêmico. Argumentam que o uso de medicamentos 17 faz parte do cenário escolar atual, no qual são enfatizadas determinadas com- petências, com ênfase nas avaliações quantitativas e valores que condizem com o discurso neoliberal. O capítulo seguinte, de autoria de Maria Fernanda Vásquez, analisa como os saberes psicopedagógico e médico-pedagógico adentraram as esco- las colombianas, a partir da década de 1930, com o objetivo de lidar com as “crianças difíceis” e identificar as consideradas “anormais”. Os dispositivos de medicalização e intervenção utilizados permitiram a emergência de novos saberes que, sob a justificativa de proteção da infância, exercem um poder que acaba reduzindo os comportamentos e atitudes infantis a indicadores passíveis de medições e de normalização. Elisabeth da Silva Eliassen, Lais Oliva Donida e Ana Paula de Oliveira Santana, a partir da análise de um laudo de dislexia, analisam os discursos encontrados nesses documentos relacionados às dificuldades escolares. Nesse sentido, tecem uma crítica à medicalização da infância ao afirmar que os laudos apresentam uma tendência em localizar a dislexia como uma con- dição de origem neurobiológica, pouco levando em conta aspectos sociais e educacionais do diagnóstico. A história do conceito de Transtorno Bipolar, com ênfase em crian- ças, é abordada pelas autoras Ana Carolina Welter e Sandra Caponi, numa perspectiva genealógica foucaultiana, por meio da análise de contextos, de condições de possibilidade para o surgimento desse transtorno, bem como os pontos de virada, continuidades e descontinuidades das classificações. O texto das autoras Kelly Cristina Brandão da Silva e Ariana Lucero tem como objetivo refletir sobre a definição de autismo, a partir de duas abordagens aparentemente antagônicas: uma alinhada ao Manual Diagnós- tico e Estatístico dos Transtornos Mentais (DSM) e outra relacionada a abor- dagens psicanalíticas. As autoras criticam ambas as abordagens, argumen- tado, dentre outras coisas, que há uma busca pela prevenção e uma tentativa de normalização da infância. Por fim, Caroline Fanizzi propõe uma reflexão sobre as práticas e dis- cursos educacionais e os saberes expertos envolvidos, as implicações de uma educação pensada num futuro desejado. Nesse sentido, a ideia de renovação, pensada por expertos da área educacional, nem sempre está realmente bus- cando a emergência do novo e do imprevisto. A busca por prever, predizer, prevenir quaisquer condições anormais impede a renovação e o rompimento com o esperado. Parte I Dimensões epistemológicas dos saberes expertos 19 Condições para a cooperação entre saberes ex- pertos e saberes vulgares GUSTAVO CAPONI1 Toda atividade humana supõe e produz saberes. Em alguns casos, a produção de saber constitui a própria finalidade dessa atividade. Essas se- riam as atividades teóricas: como a pesquisa científica e a reflexão filosófica. Mas, na maior parte dos casos, esse saber só funciona como um meio para alcançar objetivos que não são teóricos. Essas seriam as atividades práticas2. Um engenheiro, por exemplo, não só aplica conhecimentos previamente pro- duzidos e aprendidos; ao fazer isso, ele também pode desenvolver novos co- nhecimentos que respondam aos problemas que sua prática vá suscitando. Como acontece, por outro lado, na prática dos mais variados ofícios. Para além do treinamento e da capacitação prévia que um técnico possa receber antes de iniciar-se no exercício efetivo de sua profissão, esse exercício nunca deixará de suscitar e exigir o surgimento de novas habilidades e de novos conhecimentos sobre os problemas que aí emerjam. Porém, essa imbricação entre atividade e conhecimento ocorre em todos os campos da existência hu- mana: qualquer interação com nosso entorno natural e social mais imediato, por desorganizada, rotineira e irrefletida que seja, sempre supõe e gera sa- beres sobre esse entorno. Trata-se de saberes informais, e muitas vezes táci- tos, sem os quais os afazeres mais habituais e corriqueiros seriam impossí- veis (cf. POLANYI, 1966, p. 4). 1 Departamento de Filosofia, Universidade Federal de Santa Catarina. 2 Usarei a palavra “atividade” de uma maneira que pode lembrar a forma com que Louis Althusser (2014, p. 161) usava a expressão “prática”. Mas, como não me ajustarei a algumas restrições que a noção althusseriana de prática pode impor (cf. ALTHUSSER, 2014, p. 163), preferi usar o termo “ati- vidade”. Entendo, de todo modo, que a noção de atividade abrange tanto o domínio da produção (poi- ésis) quanto o domínio do agir (práxis), tal como Althusser (2014, p. 162) falava da noção de prática. Por outro lado, e similarmente ao que fazia Althusser (1965, p. 175) quando aludia à prática teórica, também considero que as atividades teóricas são atividades produtivas: nelas se procura produzir contribuições a um suposto saber, independentemente do valor que seja atribuído a esse saber. Ao introduzir esta última precisão, acredito já estar me distanciando de Althusser. 20 Pode-se falar, inclusive, que o heteróclito e confuso emaranhado das atividades humanas é, ao mesmo tempo, uma intrincada rede de saberes he- terogêneos que se acavalam, interconectam, entrelaçam e, frequentemente, entram em conflito. Do mesmo modo que ocorre com as diversas atividades em que esses saberes operam. O desenvolvimento de uma atividade pode in- terferir ou contribuir para o desenvolvimento de outra, havendo certas ati- vidades que parecem ser o suporte ou o pressuposto para o desenvolvimento de qualquer outra. E isso vale para os saberes nelas envolvidos. Sem os sabe- res mais básicos e corriqueiros sobre o funcionamento do mundo natural e social, seria impossível o desenvolvimento de qualquer outra atividade, e tampouco seria possível a aquisição de qualquer competência cognitiva re- sultante dessas outras atividades (cf. POLANYI, 1966, p. 23). Mas, ao mesmo tempo em que os recursos cognitivos mais corriqueiros e básicos podem ser considerados como condição da aquisição, do desenvolvimentoe do manejo de outros recursos cognitivos mais complexos e elaborados, também é ver- dade que, em geral, estes últimos recursos cognitivos, mais complexos, apa- recem como detentores de uma definitiva preeminência epistêmica sobre re- cursos cognitivos mais básicos e simples. É no contexto dessa relação hierárquica que temos que situar a pola- ridade entre “saberes expertos” e “saberes vulgares”. Estes últimos seriam, em primeiro lugar, esses recursos cognitivos, mais básicos e corriqueiros, que surgem da interação cotidiana com nosso entorno. Mas, dependendo do contexto, também poderemos considerar como “vulgares” os saberes pró- prios de ofícios específicos. Os saberes expertos, em troca, seriam recursos cognitivos mais complexos e elaborados que, por uma suposta validação ci- entífica, estariam autorizados a impor-se sobre os saberes vulgares, inter- vindo nas atividades em que eles operam. E aqui nos interessará um aspecto muito pontual dessa relação decididamente assimétrica: as condições sob as quais pode acontecer uma cooperação, real e profícua, entre os saberes con- siderados vulgares e os saberes considerados expertos. Saberes e atividades diferentes supõem e geram linguagens diferen- tes que amiúde se apresentam como sendo inicialmente incomensuráveis, e cuja possível intercomunicação exige trabalho e atenção. Ocorre, ademais, que em todos os saberes e atividades sempre está envolvida uma dimensão pré-discursiva, ou tácita (POLANYI, 1966, p. 29), que torna mais difícil a cons- trução dessa interlocução. Mas o que aqui haveremos de examinar não é essa dificuldade de comunicação, mas sim a condição mais básica e fundamental que deve cumprir-se, e exigir-se, para a construção de espaços de verdadeira cooperação entre saberes expertos e vulgares. Essa condição, direi, é a sujei- 21 ção ao que cabe caracterizar como “ontologia materialista”. Dita sujeição im- põe exigências e limites não só aos saberes vulgares que possam entrar nessa interlocução, mas também aos supostos saberes expertos envolvidos. O esta- belecimento de um diálogo entre saberes que possa resultar verdadeira- mente útil para a resolução dos problemas que o suscitem, só é possível em virtude do que esses pretensos saberes, vulgares ou expertos, tenham de ge- nuínos saberes e não de pura mistificação ideológica ou de pseudociência. Para além, é claro, do difícil que pode ser, em alguns casos, conseguir chegar a esse núcleo de genuíno saber que frequentemente se aninha nos “saberes vulgares”. 1. Chaveiros e engenheiros Quando predicado de uma pessoa, o qualificativo “experto” alude a uma competência cognitiva. Um engenheiro pode ser um experto em explo- sivos, e um artesão pode ser um experto na restauração de astrolábios. Às vezes, o experto é o especialista em uma determinada área de pesquisa que, em geral, apresenta alguma relevância ou aplicação prática. Outras vezes, o experto é o simples conhecedor: aquele que conquistou a competência cog- nitiva em questão pelo simples exercício de um ofício ou de qualquer outra atividade. A situação se complica, no entanto, quando o qualificativo “ex- perto” é predicado não mais de um indivíduo, mas sim de um saber. A regra de uso desse predicado não é clara e exige um esforço de elucidação. Quer dizer: o conceito de saber experto é opaco e de contornos pouco definidos. Por isso, sua delimitação exige algum trabalho, e aqui vou tentar fazê-lo em dois passos. A noção de saber experto, conforme mostrarei, comporta dois elementos: um deles é a sua exterioridade em relação à atividade a respeito da qual ele toma a palavra; o outro é a sua alegada fundamentação científica. Para esclarecer o primeiro aspecto, irei me valer de uma aproximação, em- bora não de uma identificação, entre as noções de saber experto e peritagem. Para a segunda, empregarei o modelo fornecido pela extensão do conheci- mento tecnológico. Um perito não é, necessariamente, um especialista no sentido acadê- mico da palavra. Os conhecimentos de um perito podem ser meramente prá- ticos e derivar do exercício de um ofício qualquer3. Dependendo do tipo de perícia solicitada, para realizá-la não é necessária uma habilitação universi- tária como a de médico, psicólogo ou engenheiro (cf. RUBIANES, 1983, p. 350; 3 A esse respeito, o Direito Processual parece unânime (cf. RUBIANES, 1983, p. 349; KIELMANOVICH, 1996, p. 439; DIAZ, 1996, p. 83). 22 KIELMANOVICH, 1996, p. 444). Um chaveiro, por exemplo, pode ser chamado para informar a um magistrado sobre a possibilidade de que um determi- nado tipo de fechadura seja aberto, com maior ou menor facilidade, sem a chave apropriada, e ali, no marco da atividade judicial, o chaveiro operará como experto: não obstante a notória assimetria que existe entre o prestígio social do saber próprio de seu ofício e o do saber próprio dos magistrados. O que o coloca nessa posição é justamente a exterioridade que esse saber guarda em relação à atividade na qual a palavra lhe é concedida. De fato, o que define o perito é sua condição de deter um saber alheio “ao saber comum e ao saber jurídico do magistrado” (KIELMANOVICH, 1996, p. 439) e, se este solicita uma perícia, é porque já está assumindo sua ignorância sobre esse assunto a respeito do qual o perito emitirá seu parecer. Contudo, malgrado o chaveiro aparecer como imbuído de um saber do qual o magistrado carece, isso não leva a que este último renuncie, sequer parcialmente, à condução do processo judicial. Mais ainda: nesse contexto, o ditame do perito só é relevante em virtude do espaço bem delimitado que o magistrado lhe concedeu. Este último, por outro lado, nunca renuncia à po- testade de valorar e apreciar o valor probatório da peritagem (RUBIANES, 1983, p. 372; KIELMANOVICH, 1996, p. 461). E é aí que esse modelo encontra seu limite como referência para demarcar a noção de saber experto. O perito é convocado, sim, a pronunciar-se sobre um assunto na sua condição de ex- perto em um assunto específico. Todavia, com relação ao processo judicial, o saber do perito não chega a revestir-se da condição de saber experto. Não chega a isso porque o desenvolvimento do processo não passará a ser orien- tado por esse saber. O modo como o processo jurídico é conduzido é recalci- trante a qualquer interferência do perito, que só pode falar sobre aquilo que lhe é perguntado. Algo que é muito diferente do que, em geral, ocorre no caso da aplicação do conhecimento científico em algumas atividades produtivas. Não raramente, essa aplicação se impõe, deslocando ou subordinando os sa- beres que previamente pautavam essas atividades. Isso pode ser visto muito claramente no desenvolvimento e extensão da tecnologia agropecuária (cf. DENIS, 1999). É o caso do impacto da Genética de Populações na criação e melho- ramento do gado (cf. MINVIELLE, 1998). Seguindo o caminho marcado por Jay Lusch (1943), no início da década de 1940 (HILL, 2014), as fórmulas dessa teoria biológica deram lugar a regras tecnológicas que reconfiguraram completamente essa atividade, redefinindo sua linguagem, seus procedimen- tos e suas estratégias (cf. CARDELLINO; ROVIRA, 1987)4.Os saberes prévios 4 Sobre a complexa relação entre leis científicas e regras tecnológicas, ver Bunge (1974, p. 31). 23 sobre esse tema, desenvolvidos ao longo de séculos, não necessariamente fo- ram desprezados e esquecidos, mas passaram a ser considerados como com- plementos subordinados ao novo saber tecnológico. E acredito que nesse caso paradigmático podemos encontrar a peça que nos falta em nossa con- ceptualização dos saberes expertos. A referência à peritagem nos permitiu chegar a uma primeira delimi- tação dessa noção: os saberes expertos podem ser caracterizados como re- cursos cognitivos considerados relevantes e adequados para a resolução de problemas que se colocam numa atividade, mas que foramproduzidos, ou pelo menos sistematizados, validados e transmitidos com relativa indepen- dência dessa atividade. A reorganização da criação e do melhoramento do gado, enquanto isso, põe-nos perante outro aspecto que é de importância crucial para nossa análise: o saber experto se supõe detentor de uma autori- dade epistêmica superior ao saber efetivamente desenvolvido na prática por ele intervinda. Isso nos permite chegar à seguinte conclusão: um saber ex- perto se define em virtude de sua exterioridade em relação a uma atividade, mas também em virtude da sua preeminência sobre os saberes resultantes dessa prática. Quer dizer, um saber é experto em referência a uma atividade na qual ele intervirá de fora. Porém, ademais de atender a isso, a caracterização de saber experto também deve considerar que, no regime epistêmico no qual estamos hoje situados, essa intervenção será vista como legítima, como per- tinente e aceitável, em virtude do suposto fundamento, ou aval, científico que esse saber teria: seja por derivar-se, mediata ou imediatamente, de conheci- mentos científicos prévios, ou simplesmente por ter sido produzido seguindo pautas ou métodos homologáveis aos que regem a pesquisa científica (cf. BUNGE, 1980, p. 207). Falta, entretanto, uma última determinação: essa ati- vidade na qual o saber experto intervém é sempre uma atividade prática. Quer dizer: não é uma atividade cujo objetivo seja a produção de algum tipo de saber. As atividades teóricas não podem ser intervindas por saberes, ex- ternos a elas, que desloquem ou subordinem o saber delas resultante. Isso equivaleria a sua simples absorção nesse outro saber. Uma atividade teórica pode valer-se de saberes produzidos em atividades alheias a ela. Entretanto, a relação que aí se dá é mais semelhante à que acontece quando se apela para uma peritagem num processo judicial. Desse modo, considerando esta última precisão, nossa definição de saber experto poderia ficar assim: Um saber experto é um conjunto de recursos cognitivos que foram produzidos, ou pelo menos sistematizados, validados e transmitidos com re- lativa independência de uma atividade prática qualquer, mas que se consi- dera relevantes para o desenvolvimento dessa atividade e epistemicamente 24 preeminentes sobre os recursos cognitivos previamente pressupostos ou produzidos nessa mesma atividade. Daí também podemos obter uma delimitação da noção de saber vul- gar. Afinal de contas, esse qualificativo sempre é usado em contraste com um suposto saber experto. Desse modo, caberia dizer que um saber vulgar é um conjunto de recursos cognitivos, produzidos e usados no desenvolvimento de atividades práticas, e aos quais se considera passíveis de serem desloca- dos ou subordinados por outros saberes, supostamente mais creditados, no exercício dessas mesmas atividades. Isso, como se pode ver, não pressupõe a denegação do valor epistêmico desse saber que passa a ser tido como vulgar, embora pressuponha sua inferioridade epistêmica com relação a esses sabe- res mais creditados, os supostos saberes expertos, que seriam chamados a deslocá-lo ou a subordiná-lo no desenvolvimento da atividade na qual ele vi- nha operando. Que um saber careça de créditos de cientificidade não signi- fica que esteja desprovido de todo valor epistêmico. 2. Encanadores e garçonetes Em Siena, quando moço, vi uma discussão de cinco minutos sobre a melhor maneira de mover blocos de granito; em seguida, os pedreiros abandonaram uma técnica milenar e adotaram uma disposição muito mais inteligente das cordas.5 Sublinho, entretanto, que falo “epistêmico”; não falo “simbólico” ou algo semelhante. Não falo isso porque quero indicar que esses saberes vulga- res podem constituir genuíno conhecimento sobre o mundo natural e social, mesmo tratando-se de um conhecimento parcial, enviesado e pouco refle- xivo. Nem todo nosso conhecimento do mundo é conhecimento científico e, entre os saberes que costumam ser tidos como vulgares, podemos encontrar muitos exemplos disso. E para que não se interprete mal o que acabo de di- zer, quero sublinhar que, quando digo que nem todo conhecimento do mundo é conhecimento científico, não estou aludindo a nada que possa se considerar como “saber não empírico”. Não estou me referindo, por exemplo, à reflexão filosófica, a qual não considero um conhecimento do mundo. Tam- pouco quero aludir à ficção literária, a qual não considerarei aqui, embora efetivamente ache que ela, de certo modo, brinda-nos, sim, com algum conhe- cimento do mundo. Nem estou pensando, é claro, em qualquer pretenso co- nhecimento de tipo místico, mágico, religioso ou teológico. 5 Intervenção de Galileu em Vida de Galileu (BRECHT, 1991[1955], p. 57). 25 Em The quest for certainty, John Dewey (1929, p. 3) alude a dois mo- dos pelos quais os seres humanos procuraram sua segurança “em um mundo de perigos”. Um foi o recurso “à súplica, ao sacrifício, ao rito cerimonioso e ao culto mágico”. Seu objetivo era propiciar o favor desses poderes ameaça- dores que os rodeavam. O outro modo foi o controle, e até o aproveitamento, sempre parcial, desses poderes. E, para além do quão entrelaçados esses pro- cedimentos estejam às práticas e representações das mais diversas culturas, aqui só estou aludindo a saberes que surgem ao insistir-se no segundo modo de procurar a segurança. Esse modo que, em lugar de propiciar a resignação perante forças das quais só cabe esperar alguma compaixão (ALTHUSSER, 2014, p. 60), conduz à progressiva transformação e a um crescente, embora sempre precário, domínio do mundo (ALTHUSSER, 2014, p. 84). Estou pensado, em resumo, em saberes do mundo, de caráter emi- nentemente prático, que estão fundados parcialmente na experiência e que são retificáveis por essa mesma experiência. Saberes que, embora possam entrar em diálogo com o conhecimento científico, enriquecendo-o, ou encon- trando aí alguma ratificação, fundamentação ou retificação, não são, nem pretendem, nem precisam ser, científicos. Isso inclui saberes que não duvi- daríamos em considerar “vulgares”, mas é claro que também abrange outros saberes que não quereríamos qualificar dessa maneira. Pense-se, por exem- plo, nos diagnósticos médicos, nas revelações do jornalismo de investigação, nos resultados das pesquisas policiais; e pense-se, mais uma vez, nas perícias de todo tipo que podem ser requeridas nos processos judiciais. Tampouco podemos esquecer esses saberes inerentes a cada arte e ofício. Saberes cuja sofisticação, em muitos casos, torna difícil pensar em contextos nos quais possam ficar nessa posição subordinada que é própria do saber vulgar. Mas, além desses saberes que são próprios de atividades bem espe- cíficas e delimitadas, também temos que seguir considerando esse conheci- mento, mais ou menos desajustado e enviesado, que cada um de nós forma do mundo a partir de atividades e interações quotidianas. Conhecemos luga- res e trajetos. Conhecemos localizações e fisionomias das entidades com as quais nos vinculamos, e conhecemos invariantes que nos permitem prever, controlar e entender o comportamento dessas entidades em diferentes cir- cunstâncias. O que inclui, é claro, invariantes que regem o comportamento de outras pessoas: um conhecimento sem o qual a vida social seria impossí- vel (CAPONI, 2020, p. 84). E é esse tipo de saber que permite que uma lojista, que conhece as preferências de seus fregueses, possa inferir se o produto ofe- recido por um caixeiro viajante será ou não bem vendido na sua loja. E é tam- bém esse tipo de saber que permite que uma garçonete possa controlar esse 26 freguês, importante e poderoso, que já está visivelmente alcoolizado e se comporta de maneira inconveniente. Em resumo: entre a simples ignorância e a prodigiosa ciência há mui- tas mais formas de saber do que aquelas que a Teoria do Conhecimento to-mou a moléstia de considerar. Ademais, dos exemplos já citados, a inesgotá- vel lista desses saberes incluiria esse saber sobre o mundo que se baseia nos conteúdos veiculados pela mídia. Sei, por exemplo, que em 2019 houve um golpe de estado na Bolívia, embora esse conhecimento, certamente, não te- nha nada de científico. Como tampouco é científico o efetivo saber político que alguns grupos e indivíduos chegam a construir em virtude de sua expe- riência e envolvimento nos mais diversos âmbitos e processos sociais (cf. CA- PONI, 2016, p. 161). Todavia, o fato de que esses saberes não são científicos não quer dizer que sejam “intuitivos”, ou “instintivos”, tampouco que sejam saberes necessária e integralmente tácitos. A lojista que rejeita a oferta do caixeiro viajante pode expor seu raciocínio ao marido quando este voltar do boteco, e a garçonete sempre saberá nos dizer algo sobre como tratar com “bêbados conhecidos”. Porém, ademais do fato de não serem puramente tácitos, esses sabe- res não científicos tampouco têm por que serem alheios a todo controle crí- tico que possa estar baseado em argumentos apropriados e em evidência em- pírica aceitável. Quando uma médica formula um diagnóstico a partir de de- terminados sintomas, ela poderá retificar sua apreciação em virtude dos re- sultados dos exames clínicos. Por sua vez, um detetive a quem algumas evi- dências levam a aventar certa suspeita, pode também descartá-la à luz do que surja dos interrogatórios que realize na sua investigação. E um encanador que atribui um vazamento de água a um cano estragado, antes de romper a parede para proceder à troca desse cano, fecha primeiro o registro perti- nente para verificar se o vazamento é realmente dali. Em todos esses casos, há inferências que partem de evidências e chegam a conclusões que aceita- mos como formas legítimas de saber, e, em todos esses casos, essas inferên- cias e evidências podem ser integradas a argumentos legítimos e bem articu- lados. Mas, embora quase todas essas conclusões possam vir a ter, a posteri- ori, uma justificação qualificável como científica, sua aceitação e validade não depende necessariamente dessa justificação. Quer dizer: há saberes, genuínos e não fictícios, que não são científi- cos, e é justamente com esse tipo de saberes que os saberes expertos devem entrar em diálogo quando intervêm em uma atividade prática. Se assim não ocorresse, a intervenção do experto não só se privaria do importante auxílio que a ela poderia dar o saber prático já desenvolvido na atividade, mas se privaria até da própria possibilidade de incidir nessa atividade. Intervir em 27 uma atividade não é destruí-la, nem a inviabilizar: é controlá-la e reorientá- la. E, dado que toda atividade supõe um saber, é impossível que essa inter- venção não dialogue com esse saber. Inclusive no caso muito improvável, di- ria que impossível, em que nada do saber prático previamente ali envolvido resultasse de genuína utilidade na nova organização dessa atividade; sem compreender e sem considerar esse saber, escassamente poderia modificar- se à atividade que ele vinha pautando. Pense-se, por exemplo, o quão difícil seria explicar a um agricultor a forma com que ele pode apropriar-se das téc- nicas e procedimentos de trabalho que lhe estejam propondo, sem que aí in- tervenha um conhecimento de suas formas prévias de trabalho e dos saberes nelas envolvidos. 3. Conversação e Cooperação É verdade, como já assinalei no início, que esse diálogo não é fácil. Diferentes saberes respondem ao que se costuma caracterizar como esque- mas conceituais diferentes (cf. DAVIDSON, 1973, p. 6). Se essa diferença en- tre esquemas conceituais pode afetar a comunicação entre cientistas que tra- balham a partir de diferentes referenciais conceituais (KUHN, 1970, p. 193), isso também poderá acontecer na comunicação entre um engenheiro e um produtor agropecuário, cujo saber prático pode ter raízes muito diferentes das do engenheiro. Raízes que, não poucas vezes, remetem a universos cul- turais cujos pontos de contato são escassos e de difícil identificação. No que tange a esse tipo de dificuldades, sempre podem ser lembradas as teses de Benjamin Lee Whorf (1956, p. 247), de que linguagens diferentes exprimem modos de pensar e de representar o mundo que seriam virtualmente inco- mensuráveis e incomunicáveis entre si. Porém, conforme Donald Davidson (1973, p. 19) argumentou, essas dificuldades sempre podem ser superadas procurando-se, e produzindo-se, pontos de contato entre esses “esquemas conceituais”, ou “visões de mundo”, que inicialmente se mostram recalcitran- tes a toda comunicação. Que isso pode ser assim, evidencia a transferência e a apropriação transcultural de tecnologia, e o próprio desenvolvimento da Antropologia. De fato, a mera existência dessa ciência já pressupõe, como condição de possibi- lidade, que as diferentes culturas não são “mônadas semânticas” sem comu- nicação entre si (GEERTZ, 1986, p. 113). Certamente, estabelecer essa comu- nicação pode ser muito difícil, mas isso não quer dizer que ela seja impossível ou ilusória (GEERTZ, 1975, p. 48). E o que vale para a compreensão intercul- tural vale para a comunicação entre esquemas conceituais diversos: como 28 pode ser o caso desses esquemas conceituais que estão embutidos em dife- rentes saberes. Por isso o diálogo entre eles é possível. Isso vale para a co- municação entre o que consideremos saberes expertos e o que consideremos saberes vulgares. Mas aqui o que interessa não é o mero diálogo, e sim a genuína coo- peração. O que importa não é só entender-se, mas também a efetiva coope- ração na resolução de problemas. E esta é uma condição mais restritiva. Ela supõe a mútua compreensão, mas vai além disso. Se somente se tratasse de transferir tecnologia, a compreensão poderia dar conta. Se o engenheiro não só compreende a linguagem do agricultor, mas também conhece a forma pela qual esse agricultor entende o próprio trabalho, isso certamente possibilitará a transferência do saber tecnológico. E para isso também ajudaria o conheci- mento que o agricultor já possa ter dos modos de pensar típicos dos enge- nheiros. Mas, se o engenheiro também quer melhorar sua tecnologia a partir do que o agricultor conhece do entorno em que ela será aplicada, e dos pro- blemas que essa aplicação possa suscitar, aí já há algo a mais. Em uma situa- ção como essa, o engenheiro aceitará que seu saber (“experto”) pode ser me- lhorado a partir do saber (“vulgar”) do agricultor, e isso supõe uma hipótese que vale a pena ressaltar: o engenheiro está assumindo que o agricultor pos- sui um saber genuíno. E o que aqui procuramos é estabelecer sob que condi- ções essa hipótese é legítima. Isto é, queremos determinar em que condições pode-se reconhecer o valor epistêmico de um saber vulgar. O interessante, entretanto, é que, em última instância, essas condi- ções não são muito diferentes das que deve cumprir um suposto saber ex- perto para que sua intervenção em uma determinada atividade seja aceitável. No mínimo, de um saber experto se espera não só algum aval científico, de natureza conceitual, mas também o fato de ter sido produzido por procedi- mentos análogos aos implicados na investigação científica. Quer dizer: se o saber experto não for a simples aplicação de teorias científicas bem credita- das, como aconteceu com as aplicações da Genética de Populações no melho- ramento de gado, espera-se que, pelo menos, esse saber tenha sido desenvol- vido a partir de pesquisas metodologicamente análogas às pesquisas cientí- ficas, e que também seja possível dar alguma justificação teórico-científica de seus pontos de partida e de suas conclusões. Entretanto, para que isso seja possível é necessário que esse saber experto aluda a variáveis que caibam na esfera das variáveis às quais as teorias científicas podem e devemaludir: va- riáveis que, pelo menos sob certas condições e dentro de certas restrições, sejam passíveis de intervenção e controle experimental (cf. WOODWARD, 2003, p. 10). 29 Com isso, todavia, não se alude a outra coisa que o simples fato des- sas variáveis ficarem, pelo menos em algumas circunstâncias e dentro de cer- tos limites, ao alcance efetivo de nossa ação: devem ser variáveis sobre as quais nós possamos agir e às quais não seja impensável controlar. Se isso não se cumprir, o saber experto só pode ser considerado mistificação ideológica ou simples fraude. O saber de um exorcista seria um exemplo extremo desse tipo de pseudossaber especializado. Outro exemplo, não menos extremo, se- ria o coaching. Mas também se poderiam mencionar algumas “medicinas al- ternativas”, e, sobretudo, esses discursos motivacionais, de caráter mais ou menos religioso, que sob a aparência de nos ensinar a modificar atitudes, ap- tidões e modos de comportamento, só operam como legitimadores da ordem social imperante. Esses discursos motivacionais inscrevem-se na esfera do que John Dewey (1929, p. 74) caracterizaria como “artes de aceitação”, embora sejam vendidos como isso que Dewey chamaria “artes de controle”. Lembrando Al- thusser (2014, p. 60), pode-se dizer que o fundo religioso desses discursos motivacionais se denuncia no fato de, diretamente ou indiretamente, sempre operarem como chamados à resignação. Eles são legitimações de um deter- minado status quo. Nesse sentido, também cabe falar que sua função é tipica- mente ideológica (cf. ALTHUSSER, 2014, p. 329). E, nesse ponto, também se pode entrever uma convergência entre alguns pretensos saberes vulgares e muitos pseudossaberes expertos: num e noutro campo nos encontramos com “artes de aceitação” fantasiadas como “artes de controle”, oferecendo-se as- sim como saberes efetivos que não são. Mas é justamente fora dessa esfera das artes de aceitação que pode- mos encontrar o ponto no qual os saberes vulgares podem realmente coope- rar com genuínos saberes expertos. O saber vulgar pode cooperar com o sa- ber experto na medida em que, é claro, tenha algum fundamento na experi- ência. Pense-se, por exemplo, no conhecimento que um pastor pode ter a res- peito de como diminuir o ataque de insetos que sofrem suas cabras. Esse co- nhecimento, podemos supor, deve estar cimentado em sua própria observa- ção ou na experiência coletivamente acumulada por sua cultura. Porém, isso só poderá ser assim na medida em que essa experiência aluda, direta ou in- diretamente, explícita ou implicitamente, a variáveis que, em última instân- cia, não sejam diferentes dessas variáveis que podem ser consideradas numa pesquisa científica. A experiência, e isso já é pleonasmo, só pode aludir a fe- nômenos empiricamente acessíveis. O pastor poderá tentar proteger seu rebanho desenhando uma cruz numa parte do corpo das cabras que elas não consigam proteger por seus próprios meios, e é muito possível que ele associe a parcial efetividade do 30 procedimento ao suposto poder mágico da cruz. Todavia, se o recurso for efi- caz, isso só poderá se dever a fatores tais como as propriedades da substância usada para pintar as cruzes, sendo aí, nessa dimensão que é pertinente ao efetivo controle do mundo e que pode estar oculta numa trama de represen- tações alheias a esse controle, que o saber vulgar pode cooperar com o saber experto. Esse espaço de cooperação se dá em virtude daquilo que o saber vulgar tem de arte de controle, e não em virtude daquilo que tem de arte de aceitação. Quer dizer: o ponto de contato entre um genuíno saber experto e um saber vulgar está no que este último tem de técnica, e não no que tem de sacrifício propiciatório. Nesse sentido, o que cabe exigir aos saberes vulgares não é distinto do que cabe exigir aos saberes expertos. Para cooperar entre si, eles têm que se encontrar nesse terreno. Se não puderem chegar aí, certa- mente não se perderá muito com essa falta de cooperação. 4. Uma última insistência O que acabo de dizer vale tanto para o caso em que esses saberes aludem ao mundo natural como para o caso em que aludem ao entorno social. Mas também vale para o conhecimento que cada um de nós tem dos próprios estados de ânimo, de sua emotividade e de suas habilidades ou limitações. Já me referi mais acima ao conhecimento de invariantes que permitem compre- ender, predizer e até controlar a atividade dos outros. Esse é um saber que se desenvolve no exercício da vida social, e sem o qual a sociabilidade em geral, conforme já disse, seria impossível. Mas esse saber é quase indistinguí- vel do saber, mais ou menos incerto, e em grande medida tácito, que todos temos sobre nós mesmos. Um saber que todos vamos desenvolvendo, de ma- neira mais ou menos reflexiva, ao longo de nossa existência. Esse saber que, entre outras coisas, permite-nos prever o que poderá nos trazer satisfação ou insatisfação em certas circunstâncias, e de que coisas seremos ou não ca- pazes sob determinadas condições. Esse conhecimento, como Jon Elster (1984; 2000) mostrou, até nos dá alguma capacidade para administrar e controlar nossas próprias paixões, e sendo algo constitutivo de nossa subjetividade, não pode deixar de ser o partenaire e, sobretudo, o contraponto, de toda essa plêiade de saberes ex- pertos que hoje, com maior ou menor pertinência, querem intervir no campo de nossa subjetividade e de nossa intimidade. Nesse caso, como no campo das interações sociais, a cooperação entre o saber experto e o saber vulgar não é só possível: é inevitável e imprescindível. Aí, mais que em qualquer ou- tro caso, a negação do saber vulgar pelo saber experto só poderá ser danosa e até destrutiva. Todavia, e mais uma vez, essa cooperação só será efetiva na 31 medida em que esses saberes, os pretensos saberes expertos, mas também os saberes vulgares, aludam ao domínio daquilo que está ao alcance de nossa ação. Só assim esses saberes poderão ter algum apoio empírico, e só assim po- derão cooperar no entendimento e na solução dos problemas que, eventual- mente, requeiram a intervenção dos saberes expertos no domínio de nossa subjetividade e de nossas relações sociais. Na medida em que saberes expertos e vulgares não se ajustem a essa exigência, deslizando para o campo do mágico e do sobrenatural, é muito pouco o que se pode esperar deles. 5. Referências ALTHUSSER, L. Pour Marx. Paris: Maspero, 1965. ALTHUSSER, L. Initiation à la philosophie pour les non-philosophes. Paris: PUF, 2014. BRECHT, B. Vida de Galileu. In: BRECHT, B. Teatro completo. v. 6. Rio de Janeiro: Paz & Terra, 1991[1955]. p. 51-170. BUNGE, M. Technology as applied science. In: RAPP, F. (Org.). 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Não é pos- sível colocar em segundo plano o fato de que os movimentos da indústria – pesquisa de mercado, lançamento de produto, promoções e estratégia de dis- tribuição – tenham gigantesco impacto sobre hábitos e decisões dos consu- midores. As estratégias de distribuição ganham reforço nos canais de comu- nicação, mídias sociais e telefones portáteis, os quais transformam consumi- dores em canais de informação para a própria indústria (KOTLER; KELLER, 2006; TOMAS et al., 2012). Todos interferem nas formas de consumo. Porém, provavelmente nenhuma outra indústria tem um peso tão de- terminante sobre o consumo como a indústria farmacêutica. Em particular, a indústria dos psicotrópicos. Isso não apenas pelo seu peso econômico (este, como outros setores da grande indústria, investe bilhões em pesquisa de no- vos produtos), mas pelo seu peso simbólico. A indústria farmacêutica vende um bem com características particulares: é um bem credencial (a experiência do bem não é verificada antes como as roupas, nem durante como viagens – apenas depois de consumida e sob a análise dos efeitos esperados avaliados 1 Docente do Departamento de Sociologia e Ciência Política e do PPGSP da UFSC, coordenadora do Núcleo de Sociologia Econômica – NUSEC. 34 por um especialista médico) e vendido por procuração (precisamos da re- ceita médica para adquiri-lo na farmácia). Isto significa dizer que o consumo de fármacos é singular em relação a outros bens disponíveis no mercado. Ele tem uma característica especial dos bens simbólicos. Conforme Bourdieu, es- ses bens seriam construídos nas mãos do produtor e nos olhos de quem os reconhece e consome (BOURDIEU, 1996, 2006): “o trabalho de fabricação não é nada sem o trabalho coletivo de produção do valor do produto e do interesse pelo produto” (BOURDIEU, 2006, p. 163). Os psicotrópicos estão constituindo um novo campo de autonomia relativa, que envolve desde sem- pre a indústria farmacêutica, cientistas e psiquiatras que atendem consumi- dores/pacientes. Conforme Bourdieu (2006), a produção da obra de arte como objeto sagrado e consagrado é produto de um empreendimento de “al- quimia social no qual colabora com a mesma convicção e com benefícios bas- tante desiguais, os agentes envolvidos do campo da produção (artistas, escri- tores, críticos, editores, como clientes entusiastas quanto os vendedores con- vencidos” (BOURDIEU, 2006, p. 29). Transpomos este raciocínio para o mer- cado de psicotrópicos. Propomos, neste capítulo, analisar a produção de psicofármacos en- quanto campo econômico com autonomia relativa (BOURDIEU, 2000a; 2005). O campo, para Bourdieu, é o espaço onde um bem é produzido, distri- buído e consumido; no campo há lutas pelos critérios de definição do que é o objeto em disputa (BOURDIEU, 2005, 1996). Conforme observam Bourdieu (2000a; 2005), Zelizer (2011; 1985[1994]; 1978[1992]), Fligstein (2001) e Fourcade (2011), o mercado não se constitui como livre jogo de forças abs- tratas entre oferta e demanda, é antes resultado de um arranjo social amplo que envolve agentes, instituições, em processos político-culturais complexos e passíveis de contestação. Esses processos constituem uma hierarquia mo- ral que legitima a valoração e precificação de bens e pessoas. O campo eco- nômico é acomodado pela máxima “negócios são negócios”, ou seja, é o lugar onde a disputa aberta pelo lucro está autorizada. Universos como o da alta costura, campo literário ou campo científico são constituídos pela concorrên- cia em torno da questão da legitimidade e, nesses espaços, impera um cons- tante exercício de denegação da lógica do lucro. Denegar impõe envolver es- ses bens numa aura de encantamento. Encantamento que poderia estar li- gado à dominação carismática do curandeiro2 que a produz, mas que Bour- dieu observa como parte componente da constituição do campo; o princípio 2 Bourdieu cita Mauss para lembrar que a questão não é tanto saber “quais são as propriedades es- pecíficas do mago, nem sequer operações e representações mágicas, mas determinar os fundamentos da crença coletiva ou ainda melhor do irreconhecimento coletivo, coletivamente produzido e man- tido que se encontra na origem do poder do qual o mago de se apropria” (BOURDIEU, 2006, p. 28). 35 de eficácia não se situa na força do carisma, nem na estrutura, antes na dinâ- mica do espaço estruturado de posições ou o que Bourdieu nomeia como cír- culo da crença: “o princípio da eficácia de todos os atos de consagração não é outro senão o próprio campo, lugar da energia social acumulada reproduzido com a ajuda dos agentes e instituições através das lutas pelas quais eles ten- tam apropriar-se dela[...]” (BOURDIEU, 2006, p. 25). Bourdieu (2000a), ao abordar o mercado de casas próprias, demons- tra como uma necessidade, ou objeto de consumo que não existia, é criado como arbitrário cultural, e isso envolve encantamento ou os efeitos poéticos da propaganda que associa a aquisição de uma casa a valores sagrados como família, garantia de futuro, herança para os filhos, entre outros. O que dizer do campo da saúde? Como se acomodam os discursos sobre a saúde e quais os efeitos dos discursos na constituição da saúde, em particular a saúde mental? Argumentamos que o espaço da saúde tem se constituído segundo o discurso da transformação dos seres humanos em se- res otimizados, empreendedores de si, ou o que Rose (2013a; 2019) nomeia como si mesmos neuroquímicos. Importante considerar que a psiquiatria foi incapaz de localizar no corpo a enfermidade mental (FOUCAULT, 2005; CA- PONI, 2009a, 2009b). Como os discursos desse campo produzem essa apro- ximação com o corpo? A lógica da indústria farmacêutica está apoiada na afir- mação de que os ganhos e lucros mais importantes não são os dela, mas os desses seres otimizados a partir do uso das drogas (CAPONI, 2019). Explora- mos esse argumento a partir da análise da medicalização da infância e emer- gência do TDAH. Entretanto, esse arranjo entre indústria e psiquiatria adquire novos contornos nas últimas décadas, assim como é alvo de críticas. Vários autores investigam o modo como a indústria farmacêutica tem sido bem sucedida em constituir a forma como nóssentimos; tão bem como alterar profundamente a natureza da medicina (BORCH-JACOBSEN, 2013); na maioria das vezes nos faz acreditar que estamos doentes e que o mal-estar que sentimos, a tristeza, a decepção, ou problemas como falta de trabalho justamente remunerado, a falta de convívio social, são problemas do cérebro (WHITAKER, 2017; ROSE, 2019; 2013; QUENTIN, 2015, PETRYNA; KLEINMAN, 2006; BORCH-JACOB- SEN, 2013; MOYNIHAN et al., 2002). De outro lado, as críticas são dirigidas aos psiquiatras e à forma de construção de conhecimento e condução de pes- quisa sobre doenças mentais que constitui um ambiente promíscuo de en- contro eticamente questionável entre psiquiatras e a indústria farmacêutica (WHITAKER, 2017; FRANCES, 2016; HEALY, 2006; CASTIEL, 2017). Essa questão é especialmente sensível quando o tema são os transtornos mentais 36 da infância ou a epidemia do transtorno de déficit de atenção e hiperativi- dade (TDAH), associada à demanda de Ritalina; destaque para o Brasil, se- gundo maior consumidor mundial (CAPONI, 2016;2019). Se o TDAH é um diagnóstico que completa 100 anos (LAKOFF, 2005; MAZON, 2017), sua manifestação como problemática, que diz respeito à es- cola e à escolarização, é algo que ganha contornos em anos recentes. Os dis- cursos eugenistas e higienistas das primeiras décadas do século XX (STEPAN, 2012; FREIRE, 1970; MAZON 2019) foram substituídos pelos discursos bio- médicos relacionados às escolas a aos alunos (CAPONI, 2014; 2010; 2019; MARTINHAGO, 2019; BRZOZOWSKI, 2013). Em alguns contextos, como na cidade de Porto Alegre, professores estão recebendo formação oferecida por especialistas em saúde (PRODAH, 2020)3 para que possam identificar trans- tornos mentais entre estudantes e encaminhá-los aos profissionais da psiqui- atria. É possível observar como as escolas estão delegando à psiquiatria a au- toridade para legislar sobre problemas que poderiam ser vistos como esco- lares ou sociais, num processo de medicalização (CAPONI, 2019; SANTOS; FREITAS, 2016). Observar esses acontecimentos como fenômenos políticos e que en- volvem escolha (bem ou mal-intencionada) dos agentes envolvidos, nos im- pede de enxergar o campo cognitivo e moral no qual essas escolhas se apre- sentam como escolhas razoáveis. Se os Estudos Sociais da Ciência e Tecnolo- gia, em uma de suas vertentes, explora como o conhecimento científico se enreda com as experiências cotidianas das pessoas comuns (JASANOFF, 2004), aqui nos interessa focar como a ciência e os mercados enredam-se a partir da análise dos transtornos mentais. Como psiquiatria e indústria far- macêutica interagem: não focar apenas na força do carisma da psiquiatria nem exclusivamente na força estrutural da indústria farmacêutica, mas no caminho do meio do espaço estruturado de posições. Propomos, então, ob- servar o mercado farmacêutico como campo com autonomia relativa, onde há interesses em disputa e onde diferentes agentes lutam pelos critérios de classificação da realidade (BOURDIEU, 2005; 1996; JARDIM, 2009). Neste campo em particular, o objeto em disputa trata dos limites entre saúde e do- ença (CAPONI, 2009a) e os efeitos do discurso sobre sujeito saudável do sé- culo XXI, o qual Rose nomeia como si-mesmo neuroquímico; mais do que ser 3 O Programa de Transtornos de Déficit de Atenção/Hiperatividade (ProDAH) é uma área de ativida- des do Serviço de Psiquiatria da Infância e da Adolescência e do Serviço de Psiquiatria do Hospital de Clínicas de Porto Alegre (HCPA) e do Departamento de Psiquiatria e Medicina Legal da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), dedicada ao ensino, pesquisa e atendimento a pacientes com o transtorno. 37 curado da doença, esse sujeito deve ser otimizado (ROSE, 2013a). A manu- tenção da saúde do corpo e da mente é central para a autoadministração do indivíduo (ROSE, 2013a, p. 24). Aqui as tecnologias não são meramente tec- nologias médicas ou da saúde, são nomeadas como tecnologias de vida (ROSE, 2013a, p. 33). A pesquisa, quer realizada na indústria farmacêutica, quer em universidades, associada à geração de propriedade intelectual e à doença ou saúde – ou, ainda, às lutas pela definição destes termos – tornou- se área importante para a atividade corporativa e para a geração de valor para o acionista (ROSE, 2013a, p. 25) na era da financeirização (FLIGSTEIN, 2001; GRÜN, 2013). Esta pesquisa contou com um levantamento bibliográfico da área, tanto da atividade da indústria farmacêutica como da psiquiatria, e as publi- cações recentes da área da sociologia econômica e sociologia da saúde. Fo- ram realizadas pesquisas documentais nos sites sobre informações da atua- ção médica e normas de conduta médica na prescrição de medicamentos. Na primeira parte do capítulo fazemos uma revisão bibliográfica de pesquisas dedicadas ao tema, situando o encontro entre os mercados e a sa- úde a partir do fenômeno da razão farmacêutica. Interessa-nos apontar as- pectos da dinâmica dos padrões de universalização no campo da saúde, acompanhando de perto a construção social da procuração, a partir de exem- plos das instituições médicas dos Estados Unidos. Na segunda parte, situa- mos aspectos dos efeitos discursivos desses encontros entre mercados e sa- úde, abordando o fenômeno do Transtorno do Déficit de Atenção e Hiperati- vidade-TDAH como parte da construção do si-mesmo neuroquímico. 1. Medicamentos, saúde e significados: a emergência da razão farmacêutica Como mencionado na introdução, diversas leituras focam no poder, ora da indústria ora da psiquiatria, e aqui não discordamos de que esses são atores poderosos quando o assunto é o campo da saúde mental. Porém, falar da indústria ou da psiquiatria sem considerar o que acontece no restante da sociedade nos deixa reféns de um fenômeno que é socialmente situado (BOURDIEU, 2000a; JARDIM, 2009). É fundamental compreender o contexto em que os psicotrópicos se transformaram em balas mágicas (HEALY, 2006; HEALY, 2013; WHITAKER, 2017) e quais os significados compartilhados do que são e para que serve tomar medicamentos, em especial os psicotrópicos. 38 Do ponto de vista de quem os consome, medicamentos são substân- cias capazes de transformar a condição de um organismo para melhor4, no caso de medicamentos curativos. Eles aliviam o sofrimento associado a uma doença, e o significado de um medicamento, para a maioria das pessoas, re- pousa sobre sua eficácia (VAN DER GEEST et al., 1996, p. 154). O que tornou os medicamentos tão populares como solução em momentos de estresse? Conforme Van Der Geest et al. (1996), eles têm concretude, tangibilidade: são engolidos, injetados, espalhados na pele. Procedimentos que trazem consigo a promessa do efeito físico, adequam-se logicamente às tradições biomédi- cas: a medicina é a arte de curar a doença. Tal tangibilidade fornece aos pa- cientes e seus cuidadores significados para lidar com a doença. No entanto, como considera Bourdieu, é necessário observar a dinâ- mica do campo onde se constrói a crença. No campo da saúde, não apenas o que é o medicamento, mas antes aquilo que se constitui como doença (ROSE, 2013a). Essa relação ganhou nova dinâmica a partir da emergência da era moderna: era da especialização e das drogas sintéticas manufaturadas e pro- duzidas em massa pela indústria farmacêutica. Elas são commodities e sua disseminação mundial tem profunda implicação para sistemas médicos naci- onais (WHYTE et al., 2002). 1.1. Padrões e saúde: dos estudos sociais da ciência à sociologia econômica Conforme ponderam Latour e Woolgar5(1979/1997), a universali- dade, através da padronização, está no coração da medicina e da prática ci- entífica. Os padrões visam tornar as ações comparáveis ao longo do tempo e espaço; eles são móveis e estáveis e podem ser combinados com outros re- cursos (TIMMERMAN; SOURCE, 1997). O desafio está em seguira mudança de redes que fornecem condições e conexões para a conquista da universali- dade. Na investigação sobre Pasteur e a vacina contra o Antraz, Latour pon- dera como a vacina só funcionaria universalmente se os agricultores respei- tassem padrões fundamentais de laboratório como desinfecção, limpeza, conservação, entre outros. Conforme Latour (1979), Pasteur conseguiu transformar as práticas de trabalho dos agricultores, no sentido da adesão a novos padrões de laboratório. Poderíamos pensar este como um momento 4 Embora em algumas situações, como a de envenenamento, seja usado para piorar a condição de saúde (GEEST et al., 1996). 5 Latour (1979/1997, p. 68) compara o laboratório a uma tribo (com habilidades consideráveis na arte de construir dispositivos quanto na arte da persuasão) de leitores e autores, os quais passam dois terços do tempo trabalhando em grandes inscritores; a produção de artigos científicos é consi- derada uma produção literária com objetivo de persuadir leitores. 39 bem-sucedido quando novas normas pressupõem controle das pulsões; Pas- teur teria sido um prescritor de novas etiquetas (ELIAS, 1993[1939]). Con- forme a crítica de Timmerman e Source (1997, p. 235), na proposta de Latour (1979) o aspecto das instituições pré-existentes fica em segundo plano: “Pas- teur não criou o mundo apenas com a vacina contra o antraz: o mundo já foi criado de maneiras muitos diferentes”. A doença do antraz foi combatida com técnicas de isolamento, imunologia, sabedoria à base de plantas, e outras for- mas de medicina emergente. A vacina foi um elemento inserido num conjunto de interesses, instituições e práticas existentes. Conforme Timmerman e Source (1997, p. 236), uma das tensões cen- trais na criação e conquista de universalização de padrões – investigando os padrões médicos - é a relação com infraestruturas, procedimentos e práticas. Para entender a universalização de padrões é fundamental observar esses processos de incorporação e transformação. O desafio, segundo esses auto- res, é capturar a maneira pela qual a padronização alcança um nível univer- sal, ou seja, quais os passos para alcançar legitimidade. Segundo Timmerman e Source (1997), é necessário fazer apelo ao contexto, tanto dos atores como de suas motivações e interesses entre seu passado, presente e futuro. Propo- mos, neste capítulo, inserir esses fenômenos no ambiente do mercado: testes clínicos, padrões de saúde e medicamentos dizem respeito à indústria farma- cêutica e seus interesses na conformação de novos protocolos. Novos pa- drões, antes de serem inseridos numa rede, devem ser compreendidos como parte do universo político-cultural no qual existem e encerram relações de poder, dito de outro modo, o conhecimento antes do que tácito possui poder generativo (Petrina Kleinman, 2006). 1.2. Pesquisadores e a lógica do mercado Quando Latour estuda o laboratório de Salk, o interesse da indústria farmacêutica aparecia do lado de fora do laboratório6 e, no momento atual, as ações da indústria e da ciência estão intimamente atravessadas. Conforme Latour e Woolgar (1979/1997), a finalidade principal da tribo de cientistas era produzir artigos, que eram apenas um meio de comunicar importantes descobertas, baseadas num conjunto de conhecimentos tácitos (LATOUR; WOOLGAR, 1979/1997, p. 77). Atualmente, é difícil separar o que acontece na indústria farmacêutica daquilo que diz respeito às pesquisas e ao atendi- mento de pacientes (LAKOFF, 2006). Os produtos de pesquisa universitária 6 Os financiadores eram alguém a ser “conquistado” (LATOUR; WOOLGAR, 1979/1997, p. 68). 40 eram considerados como parte do domínio público e os pesquisadores não tinham nenhum interesse financeiro nos produtos de seu trabalho. Esse cenário se transforma em 1974, quando a faculdade de medi- cina da Universidade de Harvard concluiu um contrato com a Monsanto, pelo qual ela cederia as patentes sobre todas as invenções e descobertas feitas no quadro desse projeto financiado pela empresa. Foi a primeira experiência de uma faculdade de medicina em parceria econômica com a indústria. Essas transferências de tecnologia, como são chamadas desde então, tornam-se constantes a partir da era Reagan e da aprovação, nos EUA, do Bayh-Dole Act, que autorizava universidades e pesquisadores a patentear suas descobertas e dela auferir lucro. Esse sistema se espalha mundialmente, transformando, do dia para a noite, laboratórios universitários em startups e os pesquisado- res em empreendedores em busca de parcerias lucrativas com a indústria. O investimento da indústria se dirige diretamente para as universidades, ficam em segundo plano as pesquisas nas quais não havia interesse econômico (CA- HUZAC, 2013, p. 367-8). Ainda segundo Cahuzac (2013, p. 368), o resultado dessa aproximação entre indústria e universidades é que praticamente todos os especialistas estejam conectados a alguma empresa. Como um estudante atinge a condição de especialista? Segundo Ca- huzac, é comum que alguém seja escolhido cedo na sua carreira pela indús- tria farmacêutica – mais exatamente por uma empresa especializada nesta função de gestão de líderes de opinião – KOL (como são chamados nos Esta- dos Unidos) ou Cutting Edge Information – para ser um líder. As firmas ob- servam os brilhantes pesquisadores e os nomeiam como campeões de pro- duto. Esses pesquisadores serão auxiliados pela indústria farmacêutica a es- calar os postos de prestígio na sua profissão, patrocinando sua pesquisa e os apoiando financeiramente para colóquios, e colocando seus artigos em revis- tas de prestígio (LAKOFF, 2006). Ao fim desse processo, a maior parte desses pesquisadores serão amigos das indústrias de fármacos; uma vez que essa posição foi alcançada será difícil que o KOL se sinta inclinado a criticar as farmacêuticas (CAHUZAC, 2013, p. 369). Conforme Petryna et al. (2006), espera-se que o aumento da padro- nização do processo terapêutico promova o progresso científico da medicina, protegendo o público contra alegações duvidosas sobre os efeitos e usos de substâncias reivindicadas como remédios para restaurar a saúde. Os padrões são importantes marcadores culturais e sociais da modernidade, porém, es- tão longe de serem neutros, como observado. Essa é a denúncia de uma parte dos estudiosos sobre saúde (RAVELLI, 2015), saúde mental e saúde mental 41 infantil: há um processo de inflação diagnóstica e relações questionáveis en- tre a indústria farmacêutica, o seu departamento de marketing e a psiquiatria (FRANCES, 2016; CAPONI, 2016; 2019). A padronização diagnóstica organiza vastas arenas burocráticas e di- visões de trabalho envolvendo redes de especialistas, pesquisadores, infor- mações e espaços institucionais em todo o mundo (PETRYNA et al., 2006). A depressão, assim como o TDAH, é um diagnóstico considerado como condi- ção universal com prevalência transcultural consistente; tratamentos são anunciados como aplicáveis em todos os lugares. Essa suposta universali- dade implica grande volume de confiança, sustentada pelo know-how especi- alizado, cujo produto se torna um conjunto de documentos principais: dire- trizes de vigilância que restringem a sintomatologia central a interpretações bastante fixas (LAKOFF, 2005; MAZON, 2020). Essa confiança, no entanto, tem sido abalada e sofre revezes: a má administração científica, o tráfico de influência e, no caso de psiquiatras, o pagamento de viagens a congressos (WHITAKER, 2016; CASTIEL, 2017). A influência da indústria farmacêutica na publicação de resultados em artigos científicos (HEALY, 2006; RAVELLI, 2015) tem levado associações médicas a manifestações públicas estabele- cendo e esclarecendo limites éticos para a prática profissional, a exemplo do Conselho Federal de Medicina no Brasil (CFM, 2019; MAZON, 2019). Conforme Lakoff (2006, p. 112), há forte relação
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