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Saberes expertos e 
medicalização no domínio da infância 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
Comitê Científico 
 
 
Ary Baddini Tavares 
Andrés Falcone 
Alessandro Octaviani 
Daniel Arruda Nascimento 
Eduardo Saad-Diniz 
Francisco Rômulo Monte Ferreira 
Isabel Lousada 
Jorge Miranda de Almeida 
Marcelo Martins Bueno 
Miguel Polaino-Orts 
Maurício Cardoso 
Maria J. Binetti 
Michelle Vasconcelos Oliveira do Nascimento 
Paulo Roberto Monteiro Araújo 
Patricio Sabadini 
Rodrigo Santos de Oliveira 
Sandra Caponi 
Sandro Luiz Bazzanella 
Tiago Almeida 
Saly Wellausen 
 
 
 
 
 
Sandra Caponi 
Fabíola Stolf Brzozowski 
Leandro de Lajonquière 
 
(organizadores) 
 
 
Saberes expertos e 
medicalização no domínio da infância 
 
 
 
 
 
1ª edição 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
LiberArs 
São Paulo – 2021 
 
 
 
 
 
 
Saberes expertos e medicalização no domínio da infância 
© 2021, Editora LiberArs Ltda. 
 
Direitos de edição reservados à 
Editora LiberArs Ltda 
 
 
ISBN 978-65-5953-022-9 
 
 
Editores 
Fransmar Costa Lima 
Lauro Fabiano de Souza Carvalho 
 
Revisão técnica 
Cesar Lima 
 
 
 
 
 
Dados Internacionais de Catalogação na Publicação – CIP 
 
 
 
 
 
 S115 Saberes expertos e medicalização no domínio da infância / organizado 
por Sandra Caponi, Fabíola Stolf Brzozowski, Leandro de Lajonquière. - 
São Paulo : LiberArs, 2021. 
 345 p. ; e-book: PDF 
 
Inclui bibliografia e índice. 
 ISBN: 978-65-5953-022-9 
 
 1. Medicina. 2. História da Ciência. 3. História da medicina. I. Caponi, 
Sandra. II. Brzozowski, Fabíola Stolf. III. Lajonquière, Leandro de. IV. Tí-
tulo. 
 
 
 2021-1796 
 
 CDD 610 
 CDU 61 
 
Elaborado por Vagner Rodolfo da Silva - CRB-8/9410 
 
 
Todos os direitos reservados. A reprodução, ainda que parcial, por qualquer meio, 
das páginas que compõem este livro, para uso não individual, mesmo para fins didáticos, 
sem autorização escrita do editor, é ilícita e constitui uma contrafação danosa à cultura. 
Foi feito o depósito legal. 
 
 
Editora LiberArs Ltda 
www.liberars.com.br 
contato@liberars.com.br 
 
 
mailto:contato@liberars.com.br
 
 
 
⸎ 
 
 
Este livro é o resultado de dois anos de 
trabalho conjunto realizado no marco 
do convênio internacional Capes-Cofe-
cub entre a Universidade Federal de 
Santa Catarina e a Universidade Paris 8 
Vincennes-Saint Denis. O projeto de-
nominado “Os saberes expertos no do-
mínio da infância” é coordenado pelo 
Professor Leandro de Lajonquière (Pa-
ris 8) e a Professora Sandra Caponi 
(UFSC)•. 
 
 
⸎ 
 
• Projeto Capes-Cofecub, período 2020 - 2023: Processo Capes nº 88881.191755/2018-01 / Processo Co-
fecub nº Sh 940/19. 
 
 
 
SUMÁRIO 
 
Parte I - Dimensões epistemológicas dos saberes expertos 
 
Condições para a cooperação entre 
saberes expertos e saberes vulgares 
Gustavo Caponi ............................................................................................................. 19 
 
Porque a indústria farmacêutica é diferente das outras? 
Saúde mental, ciência e psicotrópicos em questão 
Marcia da Silva Mazon ............................................................................................... 33 
 
Sobre a impossibilidade da justificação 
ética de intervenções psi com crianças: 
notas a partir de Thomas Szasz 
Diogo de Oliveira Boccardi ...................................................................................... 53 
 
A crítica ao cientismo não é negacionismo: 
a psiquiatria biológica em questão 
Sandra Caponi ............................................................................................................... 65 
 
 
Parte II – Os dilemas da prevenção e da antecipação de riscos 
 
A psicanálise, o autismo e a prevenção na infância: 
a polêmica Lei 13.438 
Leandro de Lajonquière ........................................................................................... 91 
 
 
 
A escola inclusiva frente aos procedimentos 
ideológicos de normalização: salvemos o sujeito! 
Ilaria Pirone ................................................................................................................. 119 
 
Proteção e prevenção: revisitando as políticas em prol 
dos direitos das crianças e dos adolescentes no Brasil 
Fernanda Martinhago ................................................................................................ 135 
 
Neoliberalismo, neurociências e psiquiatria: 
discursividades contemporâneas em torno do 
sofrimento psíquico e do desenvolvimento infantil 
Letícia Hummel do Amaral...................................................................................... 155 
 
Juan Portell y Vilá e o surgimento da psiquiatria 
infantil em cuba: higiene mental, 
crianças turbulentas e bulbocapnina 
Javier Ladrón de Guevara Marzal ......................................................................... 175 
 
 
Parte III – A psiquiatrização da infância: 
diagnósticos, laudos e uso de psicofármacos 
 
Criando crianças para um mundo competitivo: 
o uso do metilfenidato para o aperfeiçoamento 
do desempenho na infância 
Fabíola Stolf Brzozowski 
Patrícia Kozuchovski Daré ...................................................................................... 203 
 
Das casas de correção às escolas públicas: 
medicalização e psiquiatrização da infância 
na Colômbia, 1930-1950 
María Fernanda Vásquez ......................................................................................... 223 
 
 
 
 
O laudo de dislexia: ficção ou realidade? 
Elisabeth da Silva Eliassen 
Lais Oliva Donida 
Ana Paula de Oliveira Santana ............................................................................... 243 
 
A história do conceito de Transtorno Bipolar, seus 
contornos e a emergência do diagnóstico em crianças 
Ana Carolina Welter 
Sandra Caponi ............................................................................................................... 267 
 
Autismo em tempos de patologização da infância: 
(des)encontros entre a Psicanálise e o DSM 
Kelly Cristina Brandão da Silva 
Ariana Lucero ................................................................................................................ 297 
 
Dos sonhos expertos à fabricação educativa: considerações 
sobre o esvaziamento da ex-periência escolar 
Caroline Fanizzi ............................................................................................................ 317 
 
Sobre os autores ................................................................................ 337 
 
 
13 
 
APRESENTAÇÃO 
 
 
A advertência de Hannah Arendt sobre a possibilidade de que uma 
crise mundana venha a se converter numa catástrofe caso nos furtemos a 
pensar o fato mesmo de não confiarmos mais nas nossas antigas respostas às 
questões de sempre, tem, mais ou menos, tantos anos quanto a moderna car-
reira farmacológica para se encontrar a molécula milagrosa capaz de reequi-
librar os chamados estados de ânimos, sejam adultos ou infantis. De fato, no 
que tange às vicissitudes da nossa vida cotidiana com as crianças fizemos ou-
vidos moucos. Um pouco mais de sessenta anos se passaram e, no lugar de 
retomarmos a velha questão, qual seja que a chegada de todo recém-nascido 
aponta para a fragilidade mesma do laço educativo, decidimos aventurarmos 
na distribuição massiva de todo tipo de neurolépticos, com vistas a formatar 
isso mesmo que resiste a toda formatação: o fato mesmo de não haver pro-
porção entre as gerações. No entanto, embora as descobertas farmacológicas 
dosanos 50 tenham sido novas, não o era a velha insistência em parametri-
zarmos a educação, isto é, o nosso anseio em fazer com que a vida com as 
crianças venha a responder a um gabarito mais ou menos escrito de antemão. 
Já desde os alvores do século XX, o mundo adulto tentava encontrar no 
campo, em vias de constituição, dos saberes psicológicos sobre a criança, a 
chave que permitisse aceder ao mistério que faz com que a criança à qual nos 
endereçamos responda como de fato responde àquilo que lhe propomos, lhe 
ordenamos, lhe sugerimos e/ou lhe ensinamos. A nossa insistência para que 
a criança venha a estar aí onde a esperamos, mais ou menos inconsciente-
mente, é bem mais antiga. Até certo ponto ela é consubstancial aos tempos 
modernos e à instalação de uma série de dispositivos de controle mais ou 
menos justificados no discurso religioso. Precisamente, a ciência psicológica 
tentou tomar seu lugar, e logo mais foi a vez da farmacologia. Assim, hoje em 
dia, assistimos ao imperialismo de um enredo pedagógico de raiz psico-mé-
dico-religiosa, no intuito de silenciarmos essa pergunta irredutível que não 
quer calar e que anima a vida cotidiana com as crianças: como estarmos cer-
tos de algo e chegamos a falar disso com uma certa tranquilidade de espírito 
a uma criança de carne e osso? 
14 
 
A crise periódica da educação é consubstancial ao desaparecimento 
do mundo antigo. Com ele, foi-se também a autoridade e a tradição, disse a 
nossa filósofa. Ainda bem, nós dizemos, pois caso contrário o sonho da de-
mocracia e da justiça social não teria expandido a experiência da vida na Pó-
lis. Entretanto, como educar as crianças, como fazê-las entrar e crescer num 
mundo sempre velho sem que os laços educativos estejam atravessados pe-
las vicissitudes da autoridade e da tradição? Em outras palavras, como edu-
car uma criança sem responder pela palavra empenhada no interior de uma 
história em curso? A nosso entender, tal coisa é simplesmente impossível. 
Pois bem, como muito humanos que somos disso nada queremos saber. As-
sim, perdemos nosso tempo, degradando todas as experiências de vida com 
a criança no altar dos saberes expertos sobre a criança. Nos iludimos com a 
suposta possibilidade de vir a encontrarmos cientificamente a palavra que a 
criança espera/precisa/necessita nesse momento preciso do suposto desen-
volvimento psicológico, tanto natural e quanto normal. O problema não é que 
perdemos nosso tempo correndo detrás dessa miragem pseudocientífica, o 
drama é que fazemos da inevitável e necessária crise na educação uma catás-
trofe sem fim. Renunciar à educação degrada a autoria adulta, assim a sua 
palavra perde autoridade não fazendo mais laço ou tradição que possibilite à 
criança conquistar para si um lugar diferente de como fora esperada quando 
da sua chegada à vida e de sua entrada no mundo. 
O livro que aqui apresentamos está dividido em três grandes temas: 
a primeira parte está dedicada às dimensões epistemológicas dos saberes ex-
pertos; a segunda parte aos dilemas da prevenção e da antecipação de riscos; 
e a terceira e última parte está dedicada à psiquiatrização da infância: diag-
nósticos, laudos e uso de psicofármacos. 
As dimensões epistemológicas dos saberes expertos reúne os quatro 
primeiros capítulos do livro. Está dedicada a uma discussão teórico episte-
mológica, mas também ética, referida à estruturação e circulação dos saberes 
expertos. São apontados seus limites e dificuldades, suas contribuições, e as 
formas de interação entre esses saberes e outros domínios discursivos e so-
ciais, tais como os saberes vulgares, a ideologia científica, a relação ciência-
ética, assim como as questões econômicas e políticas referidas à indústria 
farmacêutica. Inicialmente são abordados os saberes expertos em geral, para 
logo analisar o lugar desse discurso no campo específico da psiquiatria da 
infância. 
Abrimos o livro com um capítulo de Gustavo Caponi, dedicado a rea-
lizar uma análise epistemológica sobre os saberes expertos. Trata-se aqui de 
delimitar esse conceito, que possui contornos opacos e pouco definidos, para 
15 
 
abordar as possíveis condições de cooperação entre eles e os chamados sa-
beres vulgares, isto é, saberes sobre o mundo, cujo caráter é eminentemente 
prático. Segue o capítulo escrito por Marcia Mazon, que analisa a produção 
de psicofármacos como campo econômico com autonomia relativa. A autora 
estabelece um diálogo instigante com autores como Pierre Bourdieu, Bruno 
Latour, Fligstein e Michel Foucault, entre outros, para problematizar de que 
modo a produção científica no campo da psiquiatria ganha espaço, prestígio 
e poder a partir de suas interações com a indústria farmacêutica. O capítulo 
toma como exemplo o caso do TDAH e a cidadania neuroquímica. 
O capítulo de autoria de Diogo Boccardi analisa a impossibilidade da 
justificação ética de intervenções psi com crianças, tomando como ponto de 
partida os estudos do psiquiatra Thomas Szasz. Diogo analisa as críticas que 
Szasz dirige a uma intervenção terapêutica sobre a infância que leva a refor-
çar processos de patologização, quando essas intervenções psi se transfor-
mam em verdadeiros instrumentos de impostura e coerção psicológicas con-
tra crianças impossibilitadas de dar seu consentimento. Para finalizar essa 
primeira parte, Sandra Caponi discute os limites e dificuldades da psiquiatri-
zação da infância, desenvolvendo a necessidade de uma psiquiatria crítica 
que questione os limites e dificuldades da psiquiatria reducionista hoje he-
gemônica. Para abordar a importância dessa crítica, a autora estabelece uma 
oposição entre epistemologia crítica e negacionismo científico, identificando 
a psiquiatria biológica como aquilo que Georges Canguilhem definiu como 
ideologia científica e outros autores definiram como cientismo. 
A segunda parte do livro, Os dilemas da prevenção e da antecipação 
de riscos, está dedicado à problemática da prevenção e da obsessão por ante-
cipar os riscos de uma doença mental grave e irreversível (sic) que poderia 
surgir no futuro se não forem realizadas intervenções precoces no domínio 
da infância. Essa segunda parte está composta por cinco capítulos, inicia com 
o trabalho que Leandro de Lajonquiere dedica à temática do voto preventivo 
na primeira infância e em particular do autismo. Ele retoma a sua conhecida 
crítica do ideário psicológico desenvolvimentista no intuito de reabrir o de-
bate sobre a polêmica Lei 13.438. Segundo Leandro, o raciocínio médico-sa-
nitário-psicológico, articulado a partir da ideia do “risco para o desenvolvi-
mento infantil”, deve ser precisamente interrogado no intuito de possibilitar 
a participação da psicanálise nos debates em torno do tempo da infância, 
suas vicissitudes e a devida atenção dos adultos para o fato de as crianças 
bem poderem vir a sofrer psiquicamente nos alvores da vida cotidiana. 
A professora Ilaria Pirone, da Universidade Paris 8 Vincennes-Saint-
Denis, problematiza a normatização das práticas educativas, como as normas 
16 
 
parecem não se vincular com uma reflexão ética, com foco na inclusão esco-
lar, a partir de uma perspectiva psicanalítica. Argumenta que essa inclusão 
pode gerar um efeito paradoxal porque, ao mesmo tempo em que defende a 
igualdade de oportunidades, as práticas normatizadoras podem ter como 
consequência a exclusão do sujeito. O texto de Fernanda Martinhago traça 
um histórico das políticas de defesa de direitos das crianças e adolescentes, 
a partir do século XX. A autora analisa como as concepções de proteção e pre-
venção aparecem nessas políticas e acabam intervindo na subjetividade 
dessa população, nem sempre com consequências positivas. 
O capítulo de autoria de Leticia Hummel, denominado Neolibera-
lismo, neurociências e psiquiatria: discursividades contemporâneas em torno 
do sofrimento psíquico e do desenvolvimento infantil, explora as dificuldadesexistentes na antecipação de riscos que caracterizam a psiquiatria do desen-
volvimento e seu vínculo com a razão neoliberal. A autora destaca a necessi-
dade de realizar uma crítica radical aos determinismos e reducionismos do 
paradigma psiquiátrico hegemônico, e privilegiar uma abordagem não-estig-
matizante, centrada nos sujeitos e em suas subjetividades. 
A segunda parte do livro finaliza com o capítulo de autoria de Javier 
Ladrón de Guevara Marzal, que analisa o surgimento da psiquiatria infantil 
em Cuba nos primeiros anos da década de 1920. Para isso, estuda o trabalho 
do médico psiquiatra e higienista Juan Portell y Vilá (1888-1958), que traba-
lhava com crianças internadas no Hospital para dementes de Cuba. O autor 
argumenta que a psiquiatria infantil desse período pode ser vista como uma 
estratégia biopolítica exercida com fins profiláticos e de normalização das 
crianças consideradas instáveis. 
A terceira parte do livro, denominada A psiquiatrização da infância: 
diagnósticos, laudos e uso de psicofármacos, com seis capítulos, propõe uma 
reflexão sobre os critérios utilizados para diagnosticar transtornos mentais, 
os laudos elaborados para descrever as pessoas diagnosticadas e os trata-
mentos farmacológicos decorrentes desses diagnósticos, a partir de saberes 
expertos, situando esses processos num contexto de medicalização da vida, 
em especial do sofrimento infantil. 
Essa última parte do livro inicia com o capítulo de Fabíola Stolf 
Brzozowski e Patrícia Kozuchovski Daré. Elas apresentam um panorama ge-
ral das influências das ideias de empreendedorismo, performance e compe-
titividade no cotidiano escolar para analisar o uso de medicamentos estimu-
lantes, com destaque para a Ritalina® (metilfenidato), com o objetivo de me-
lhorar o desempenho acadêmico. Argumentam que o uso de medicamentos 
17 
 
faz parte do cenário escolar atual, no qual são enfatizadas determinadas com-
petências, com ênfase nas avaliações quantitativas e valores que condizem 
com o discurso neoliberal. 
O capítulo seguinte, de autoria de Maria Fernanda Vásquez, analisa 
como os saberes psicopedagógico e médico-pedagógico adentraram as esco-
las colombianas, a partir da década de 1930, com o objetivo de lidar com as 
“crianças difíceis” e identificar as consideradas “anormais”. Os dispositivos 
de medicalização e intervenção utilizados permitiram a emergência de novos 
saberes que, sob a justificativa de proteção da infância, exercem um poder 
que acaba reduzindo os comportamentos e atitudes infantis a indicadores 
passíveis de medições e de normalização. 
Elisabeth da Silva Eliassen, Lais Oliva Donida e Ana Paula de Oliveira 
Santana, a partir da análise de um laudo de dislexia, analisam os discursos 
encontrados nesses documentos relacionados às dificuldades escolares. 
Nesse sentido, tecem uma crítica à medicalização da infância ao afirmar que 
os laudos apresentam uma tendência em localizar a dislexia como uma con-
dição de origem neurobiológica, pouco levando em conta aspectos sociais e 
educacionais do diagnóstico. 
A história do conceito de Transtorno Bipolar, com ênfase em crian-
ças, é abordada pelas autoras Ana Carolina Welter e Sandra Caponi, numa 
perspectiva genealógica foucaultiana, por meio da análise de contextos, de 
condições de possibilidade para o surgimento desse transtorno, bem como 
os pontos de virada, continuidades e descontinuidades das classificações. 
O texto das autoras Kelly Cristina Brandão da Silva e Ariana Lucero 
tem como objetivo refletir sobre a definição de autismo, a partir de duas 
abordagens aparentemente antagônicas: uma alinhada ao Manual Diagnós-
tico e Estatístico dos Transtornos Mentais (DSM) e outra relacionada a abor-
dagens psicanalíticas. As autoras criticam ambas as abordagens, argumen-
tado, dentre outras coisas, que há uma busca pela prevenção e uma tentativa 
de normalização da infância. 
Por fim, Caroline Fanizzi propõe uma reflexão sobre as práticas e dis-
cursos educacionais e os saberes expertos envolvidos, as implicações de uma 
educação pensada num futuro desejado. Nesse sentido, a ideia de renovação, 
pensada por expertos da área educacional, nem sempre está realmente bus-
cando a emergência do novo e do imprevisto. A busca por prever, predizer, 
prevenir quaisquer condições anormais impede a renovação e o rompimento 
com o esperado. 
 
 
 
 
 
 
 
Parte I 
 
Dimensões epistemológicas dos 
saberes expertos 
 
 
19 
 
 
Condições para a cooperação entre saberes ex-
pertos e saberes vulgares 
 
 
 
GUSTAVO CAPONI1 
 
 
 
Toda atividade humana supõe e produz saberes. Em alguns casos, a 
produção de saber constitui a própria finalidade dessa atividade. Essas se-
riam as atividades teóricas: como a pesquisa científica e a reflexão filosófica. 
Mas, na maior parte dos casos, esse saber só funciona como um meio para 
alcançar objetivos que não são teóricos. Essas seriam as atividades práticas2. 
Um engenheiro, por exemplo, não só aplica conhecimentos previamente pro-
duzidos e aprendidos; ao fazer isso, ele também pode desenvolver novos co-
nhecimentos que respondam aos problemas que sua prática vá suscitando. 
Como acontece, por outro lado, na prática dos mais variados ofícios. Para 
além do treinamento e da capacitação prévia que um técnico possa receber 
antes de iniciar-se no exercício efetivo de sua profissão, esse exercício nunca 
deixará de suscitar e exigir o surgimento de novas habilidades e de novos 
conhecimentos sobre os problemas que aí emerjam. Porém, essa imbricação 
entre atividade e conhecimento ocorre em todos os campos da existência hu-
mana: qualquer interação com nosso entorno natural e social mais imediato, 
por desorganizada, rotineira e irrefletida que seja, sempre supõe e gera sa-
beres sobre esse entorno. Trata-se de saberes informais, e muitas vezes táci-
tos, sem os quais os afazeres mais habituais e corriqueiros seriam impossí-
veis (cf. POLANYI, 1966, p. 4). 
 
1 Departamento de Filosofia, Universidade Federal de Santa Catarina. 
2 Usarei a palavra “atividade” de uma maneira que pode lembrar a forma com que Louis Althusser 
(2014, p. 161) usava a expressão “prática”. Mas, como não me ajustarei a algumas restrições que a 
noção althusseriana de prática pode impor (cf. ALTHUSSER, 2014, p. 163), preferi usar o termo “ati-
vidade”. Entendo, de todo modo, que a noção de atividade abrange tanto o domínio da produção (poi-
ésis) quanto o domínio do agir (práxis), tal como Althusser (2014, p. 162) falava da noção de prática. 
Por outro lado, e similarmente ao que fazia Althusser (1965, p. 175) quando aludia à prática teórica, 
também considero que as atividades teóricas são atividades produtivas: nelas se procura produzir 
contribuições a um suposto saber, independentemente do valor que seja atribuído a esse saber. Ao 
introduzir esta última precisão, acredito já estar me distanciando de Althusser. 
20 
 
Pode-se falar, inclusive, que o heteróclito e confuso emaranhado das 
atividades humanas é, ao mesmo tempo, uma intrincada rede de saberes he-
terogêneos que se acavalam, interconectam, entrelaçam e, frequentemente, 
entram em conflito. Do mesmo modo que ocorre com as diversas atividades 
em que esses saberes operam. O desenvolvimento de uma atividade pode in-
terferir ou contribuir para o desenvolvimento de outra, havendo certas ati-
vidades que parecem ser o suporte ou o pressuposto para o desenvolvimento 
de qualquer outra. E isso vale para os saberes nelas envolvidos. Sem os sabe-
res mais básicos e corriqueiros sobre o funcionamento do mundo natural e 
social, seria impossível o desenvolvimento de qualquer outra atividade, e 
tampouco seria possível a aquisição de qualquer competência cognitiva re-
sultante dessas outras atividades (cf. POLANYI, 1966, p. 23). Mas, ao mesmo 
tempo em que os recursos cognitivos mais corriqueiros e básicos podem ser 
considerados como condição da aquisição, do desenvolvimentoe do manejo 
de outros recursos cognitivos mais complexos e elaborados, também é ver-
dade que, em geral, estes últimos recursos cognitivos, mais complexos, apa-
recem como detentores de uma definitiva preeminência epistêmica sobre re-
cursos cognitivos mais básicos e simples. 
É no contexto dessa relação hierárquica que temos que situar a pola-
ridade entre “saberes expertos” e “saberes vulgares”. Estes últimos seriam, 
em primeiro lugar, esses recursos cognitivos, mais básicos e corriqueiros, 
que surgem da interação cotidiana com nosso entorno. Mas, dependendo do 
contexto, também poderemos considerar como “vulgares” os saberes pró-
prios de ofícios específicos. Os saberes expertos, em troca, seriam recursos 
cognitivos mais complexos e elaborados que, por uma suposta validação ci-
entífica, estariam autorizados a impor-se sobre os saberes vulgares, inter-
vindo nas atividades em que eles operam. E aqui nos interessará um aspecto 
muito pontual dessa relação decididamente assimétrica: as condições sob as 
quais pode acontecer uma cooperação, real e profícua, entre os saberes con-
siderados vulgares e os saberes considerados expertos. 
Saberes e atividades diferentes supõem e geram linguagens diferen-
tes que amiúde se apresentam como sendo inicialmente incomensuráveis, e 
cuja possível intercomunicação exige trabalho e atenção. Ocorre, ademais, 
que em todos os saberes e atividades sempre está envolvida uma dimensão 
pré-discursiva, ou tácita (POLANYI, 1966, p. 29), que torna mais difícil a cons-
trução dessa interlocução. Mas o que aqui haveremos de examinar não é essa 
dificuldade de comunicação, mas sim a condição mais básica e fundamental 
que deve cumprir-se, e exigir-se, para a construção de espaços de verdadeira 
cooperação entre saberes expertos e vulgares. Essa condição, direi, é a sujei-
21 
 
ção ao que cabe caracterizar como “ontologia materialista”. Dita sujeição im-
põe exigências e limites não só aos saberes vulgares que possam entrar nessa 
interlocução, mas também aos supostos saberes expertos envolvidos. O esta-
belecimento de um diálogo entre saberes que possa resultar verdadeira-
mente útil para a resolução dos problemas que o suscitem, só é possível em 
virtude do que esses pretensos saberes, vulgares ou expertos, tenham de ge-
nuínos saberes e não de pura mistificação ideológica ou de pseudociência. 
Para além, é claro, do difícil que pode ser, em alguns casos, conseguir chegar 
a esse núcleo de genuíno saber que frequentemente se aninha nos “saberes 
vulgares”. 
 
1. Chaveiros e engenheiros 
 
Quando predicado de uma pessoa, o qualificativo “experto” alude a 
uma competência cognitiva. Um engenheiro pode ser um experto em explo-
sivos, e um artesão pode ser um experto na restauração de astrolábios. Às 
vezes, o experto é o especialista em uma determinada área de pesquisa que, 
em geral, apresenta alguma relevância ou aplicação prática. Outras vezes, o 
experto é o simples conhecedor: aquele que conquistou a competência cog-
nitiva em questão pelo simples exercício de um ofício ou de qualquer outra 
atividade. A situação se complica, no entanto, quando o qualificativo “ex-
perto” é predicado não mais de um indivíduo, mas sim de um saber. A regra 
de uso desse predicado não é clara e exige um esforço de elucidação. Quer 
dizer: o conceito de saber experto é opaco e de contornos pouco definidos. 
Por isso, sua delimitação exige algum trabalho, e aqui vou tentar fazê-lo em 
dois passos. A noção de saber experto, conforme mostrarei, comporta dois 
elementos: um deles é a sua exterioridade em relação à atividade a respeito 
da qual ele toma a palavra; o outro é a sua alegada fundamentação científica. 
Para esclarecer o primeiro aspecto, irei me valer de uma aproximação, em-
bora não de uma identificação, entre as noções de saber experto e peritagem. 
Para a segunda, empregarei o modelo fornecido pela extensão do conheci-
mento tecnológico. 
Um perito não é, necessariamente, um especialista no sentido acadê-
mico da palavra. Os conhecimentos de um perito podem ser meramente prá-
ticos e derivar do exercício de um ofício qualquer3. Dependendo do tipo de 
perícia solicitada, para realizá-la não é necessária uma habilitação universi-
tária como a de médico, psicólogo ou engenheiro (cf. RUBIANES, 1983, p. 350; 
 
3 A esse respeito, o Direito Processual parece unânime (cf. RUBIANES, 1983, p. 349; KIELMANOVICH, 
1996, p. 439; DIAZ, 1996, p. 83). 
22 
 
KIELMANOVICH, 1996, p. 444). Um chaveiro, por exemplo, pode ser chamado 
para informar a um magistrado sobre a possibilidade de que um determi-
nado tipo de fechadura seja aberto, com maior ou menor facilidade, sem a 
chave apropriada, e ali, no marco da atividade judicial, o chaveiro operará 
como experto: não obstante a notória assimetria que existe entre o prestígio 
social do saber próprio de seu ofício e o do saber próprio dos magistrados. O 
que o coloca nessa posição é justamente a exterioridade que esse saber 
guarda em relação à atividade na qual a palavra lhe é concedida. De fato, o 
que define o perito é sua condição de deter um saber alheio “ao saber comum 
e ao saber jurídico do magistrado” (KIELMANOVICH, 1996, p. 439) e, se este 
solicita uma perícia, é porque já está assumindo sua ignorância sobre esse 
assunto a respeito do qual o perito emitirá seu parecer. 
Contudo, malgrado o chaveiro aparecer como imbuído de um saber 
do qual o magistrado carece, isso não leva a que este último renuncie, sequer 
parcialmente, à condução do processo judicial. Mais ainda: nesse contexto, o 
ditame do perito só é relevante em virtude do espaço bem delimitado que o 
magistrado lhe concedeu. Este último, por outro lado, nunca renuncia à po-
testade de valorar e apreciar o valor probatório da peritagem (RUBIANES, 
1983, p. 372; KIELMANOVICH, 1996, p. 461). E é aí que esse modelo encontra 
seu limite como referência para demarcar a noção de saber experto. O perito 
é convocado, sim, a pronunciar-se sobre um assunto na sua condição de ex-
perto em um assunto específico. Todavia, com relação ao processo judicial, o 
saber do perito não chega a revestir-se da condição de saber experto. Não 
chega a isso porque o desenvolvimento do processo não passará a ser orien-
tado por esse saber. O modo como o processo jurídico é conduzido é recalci-
trante a qualquer interferência do perito, que só pode falar sobre aquilo que 
lhe é perguntado. Algo que é muito diferente do que, em geral, ocorre no caso 
da aplicação do conhecimento científico em algumas atividades produtivas. 
Não raramente, essa aplicação se impõe, deslocando ou subordinando os sa-
beres que previamente pautavam essas atividades. Isso pode ser visto muito 
claramente no desenvolvimento e extensão da tecnologia agropecuária (cf. 
DENIS, 1999). 
É o caso do impacto da Genética de Populações na criação e melho-
ramento do gado (cf. MINVIELLE, 1998). Seguindo o caminho marcado por 
Jay Lusch (1943), no início da década de 1940 (HILL, 2014), as fórmulas 
dessa teoria biológica deram lugar a regras tecnológicas que reconfiguraram 
completamente essa atividade, redefinindo sua linguagem, seus procedimen-
tos e suas estratégias (cf. CARDELLINO; ROVIRA, 1987)4.Os saberes prévios 
 
4 Sobre a complexa relação entre leis científicas e regras tecnológicas, ver Bunge (1974, p. 31). 
23 
 
sobre esse tema, desenvolvidos ao longo de séculos, não necessariamente fo-
ram desprezados e esquecidos, mas passaram a ser considerados como com-
plementos subordinados ao novo saber tecnológico. E acredito que nesse 
caso paradigmático podemos encontrar a peça que nos falta em nossa con-
ceptualização dos saberes expertos. 
A referência à peritagem nos permitiu chegar a uma primeira delimi-
tação dessa noção: os saberes expertos podem ser caracterizados como re-
cursos cognitivos considerados relevantes e adequados para a resolução de 
problemas que se colocam numa atividade, mas que foramproduzidos, ou 
pelo menos sistematizados, validados e transmitidos com relativa indepen-
dência dessa atividade. A reorganização da criação e do melhoramento do 
gado, enquanto isso, põe-nos perante outro aspecto que é de importância 
crucial para nossa análise: o saber experto se supõe detentor de uma autori-
dade epistêmica superior ao saber efetivamente desenvolvido na prática por 
ele intervinda. Isso nos permite chegar à seguinte conclusão: um saber ex-
perto se define em virtude de sua exterioridade em relação a uma atividade, 
mas também em virtude da sua preeminência sobre os saberes resultantes 
dessa prática. 
Quer dizer, um saber é experto em referência a uma atividade na qual 
ele intervirá de fora. Porém, ademais de atender a isso, a caracterização de 
saber experto também deve considerar que, no regime epistêmico no qual 
estamos hoje situados, essa intervenção será vista como legítima, como per-
tinente e aceitável, em virtude do suposto fundamento, ou aval, científico que 
esse saber teria: seja por derivar-se, mediata ou imediatamente, de conheci-
mentos científicos prévios, ou simplesmente por ter sido produzido seguindo 
pautas ou métodos homologáveis aos que regem a pesquisa científica (cf. 
BUNGE, 1980, p. 207). Falta, entretanto, uma última determinação: essa ati-
vidade na qual o saber experto intervém é sempre uma atividade prática. 
Quer dizer: não é uma atividade cujo objetivo seja a produção de algum tipo 
de saber. As atividades teóricas não podem ser intervindas por saberes, ex-
ternos a elas, que desloquem ou subordinem o saber delas resultante. Isso 
equivaleria a sua simples absorção nesse outro saber. Uma atividade teórica 
pode valer-se de saberes produzidos em atividades alheias a ela. Entretanto, 
a relação que aí se dá é mais semelhante à que acontece quando se apela para 
uma peritagem num processo judicial. Desse modo, considerando esta última 
precisão, nossa definição de saber experto poderia ficar assim: 
Um saber experto é um conjunto de recursos cognitivos que foram 
produzidos, ou pelo menos sistematizados, validados e transmitidos com re-
lativa independência de uma atividade prática qualquer, mas que se consi-
dera relevantes para o desenvolvimento dessa atividade e epistemicamente 
24 
 
preeminentes sobre os recursos cognitivos previamente pressupostos ou 
produzidos nessa mesma atividade. 
Daí também podemos obter uma delimitação da noção de saber vul-
gar. Afinal de contas, esse qualificativo sempre é usado em contraste com um 
suposto saber experto. Desse modo, caberia dizer que um saber vulgar é um 
conjunto de recursos cognitivos, produzidos e usados no desenvolvimento 
de atividades práticas, e aos quais se considera passíveis de serem desloca-
dos ou subordinados por outros saberes, supostamente mais creditados, no 
exercício dessas mesmas atividades. Isso, como se pode ver, não pressupõe a 
denegação do valor epistêmico desse saber que passa a ser tido como vulgar, 
embora pressuponha sua inferioridade epistêmica com relação a esses sabe-
res mais creditados, os supostos saberes expertos, que seriam chamados a 
deslocá-lo ou a subordiná-lo no desenvolvimento da atividade na qual ele vi-
nha operando. Que um saber careça de créditos de cientificidade não signi-
fica que esteja desprovido de todo valor epistêmico. 
 
2. Encanadores e garçonetes 
 
Em Siena, quando moço, vi uma discussão de cinco minutos sobre a 
melhor maneira de mover blocos de granito; em seguida, os pedreiros 
abandonaram uma técnica milenar e adotaram uma disposição muito 
mais inteligente das cordas.5 
 
Sublinho, entretanto, que falo “epistêmico”; não falo “simbólico” ou 
algo semelhante. Não falo isso porque quero indicar que esses saberes vulga-
res podem constituir genuíno conhecimento sobre o mundo natural e social, 
mesmo tratando-se de um conhecimento parcial, enviesado e pouco refle-
xivo. Nem todo nosso conhecimento do mundo é conhecimento científico e, 
entre os saberes que costumam ser tidos como vulgares, podemos encontrar 
muitos exemplos disso. E para que não se interprete mal o que acabo de di-
zer, quero sublinhar que, quando digo que nem todo conhecimento do 
mundo é conhecimento científico, não estou aludindo a nada que possa se 
considerar como “saber não empírico”. Não estou me referindo, por exemplo, 
à reflexão filosófica, a qual não considero um conhecimento do mundo. Tam-
pouco quero aludir à ficção literária, a qual não considerarei aqui, embora 
efetivamente ache que ela, de certo modo, brinda-nos, sim, com algum conhe-
cimento do mundo. Nem estou pensando, é claro, em qualquer pretenso co-
nhecimento de tipo místico, mágico, religioso ou teológico. 
 
5 Intervenção de Galileu em Vida de Galileu (BRECHT, 1991[1955], p. 57). 
 
25 
 
Em The quest for certainty, John Dewey (1929, p. 3) alude a dois mo-
dos pelos quais os seres humanos procuraram sua segurança “em um mundo 
de perigos”. Um foi o recurso “à súplica, ao sacrifício, ao rito cerimonioso e 
ao culto mágico”. Seu objetivo era propiciar o favor desses poderes ameaça-
dores que os rodeavam. O outro modo foi o controle, e até o aproveitamento, 
sempre parcial, desses poderes. E, para além do quão entrelaçados esses pro-
cedimentos estejam às práticas e representações das mais diversas culturas, 
aqui só estou aludindo a saberes que surgem ao insistir-se no segundo modo 
de procurar a segurança. Esse modo que, em lugar de propiciar a resignação 
perante forças das quais só cabe esperar alguma compaixão (ALTHUSSER, 
2014, p. 60), conduz à progressiva transformação e a um crescente, embora 
sempre precário, domínio do mundo (ALTHUSSER, 2014, p. 84). 
Estou pensado, em resumo, em saberes do mundo, de caráter emi-
nentemente prático, que estão fundados parcialmente na experiência e que 
são retificáveis por essa mesma experiência. Saberes que, embora possam 
entrar em diálogo com o conhecimento científico, enriquecendo-o, ou encon-
trando aí alguma ratificação, fundamentação ou retificação, não são, nem 
pretendem, nem precisam ser, científicos. Isso inclui saberes que não duvi-
daríamos em considerar “vulgares”, mas é claro que também abrange outros 
saberes que não quereríamos qualificar dessa maneira. Pense-se, por exem-
plo, nos diagnósticos médicos, nas revelações do jornalismo de investigação, 
nos resultados das pesquisas policiais; e pense-se, mais uma vez, nas perícias 
de todo tipo que podem ser requeridas nos processos judiciais. Tampouco 
podemos esquecer esses saberes inerentes a cada arte e ofício. Saberes cuja 
sofisticação, em muitos casos, torna difícil pensar em contextos nos quais 
possam ficar nessa posição subordinada que é própria do saber vulgar. 
Mas, além desses saberes que são próprios de atividades bem espe-
cíficas e delimitadas, também temos que seguir considerando esse conheci-
mento, mais ou menos desajustado e enviesado, que cada um de nós forma 
do mundo a partir de atividades e interações quotidianas. Conhecemos luga-
res e trajetos. Conhecemos localizações e fisionomias das entidades com as 
quais nos vinculamos, e conhecemos invariantes que nos permitem prever, 
controlar e entender o comportamento dessas entidades em diferentes cir-
cunstâncias. O que inclui, é claro, invariantes que regem o comportamento 
de outras pessoas: um conhecimento sem o qual a vida social seria impossí-
vel (CAPONI, 2020, p. 84). E é esse tipo de saber que permite que uma lojista, 
que conhece as preferências de seus fregueses, possa inferir se o produto ofe-
recido por um caixeiro viajante será ou não bem vendido na sua loja. E é tam-
bém esse tipo de saber que permite que uma garçonete possa controlar esse 
26 
 
freguês, importante e poderoso, que já está visivelmente alcoolizado e se 
comporta de maneira inconveniente. 
Em resumo: entre a simples ignorância e a prodigiosa ciência há mui-
tas mais formas de saber do que aquelas que a Teoria do Conhecimento to-mou a moléstia de considerar. Ademais, dos exemplos já citados, a inesgotá-
vel lista desses saberes incluiria esse saber sobre o mundo que se baseia nos 
conteúdos veiculados pela mídia. Sei, por exemplo, que em 2019 houve um 
golpe de estado na Bolívia, embora esse conhecimento, certamente, não te-
nha nada de científico. Como tampouco é científico o efetivo saber político 
que alguns grupos e indivíduos chegam a construir em virtude de sua expe-
riência e envolvimento nos mais diversos âmbitos e processos sociais (cf. CA-
PONI, 2016, p. 161). Todavia, o fato de que esses saberes não são científicos 
não quer dizer que sejam “intuitivos”, ou “instintivos”, tampouco que sejam 
saberes necessária e integralmente tácitos. A lojista que rejeita a oferta do 
caixeiro viajante pode expor seu raciocínio ao marido quando este voltar do 
boteco, e a garçonete sempre saberá nos dizer algo sobre como tratar com 
“bêbados conhecidos”. 
Porém, ademais do fato de não serem puramente tácitos, esses sabe-
res não científicos tampouco têm por que serem alheios a todo controle crí-
tico que possa estar baseado em argumentos apropriados e em evidência em-
pírica aceitável. Quando uma médica formula um diagnóstico a partir de de-
terminados sintomas, ela poderá retificar sua apreciação em virtude dos re-
sultados dos exames clínicos. Por sua vez, um detetive a quem algumas evi-
dências levam a aventar certa suspeita, pode também descartá-la à luz do que 
surja dos interrogatórios que realize na sua investigação. E um encanador 
que atribui um vazamento de água a um cano estragado, antes de romper a 
parede para proceder à troca desse cano, fecha primeiro o registro perti-
nente para verificar se o vazamento é realmente dali. Em todos esses casos, 
há inferências que partem de evidências e chegam a conclusões que aceita-
mos como formas legítimas de saber, e, em todos esses casos, essas inferên-
cias e evidências podem ser integradas a argumentos legítimos e bem articu-
lados. Mas, embora quase todas essas conclusões possam vir a ter, a posteri-
ori, uma justificação qualificável como científica, sua aceitação e validade não 
depende necessariamente dessa justificação. 
Quer dizer: há saberes, genuínos e não fictícios, que não são científi-
cos, e é justamente com esse tipo de saberes que os saberes expertos devem 
entrar em diálogo quando intervêm em uma atividade prática. Se assim não 
ocorresse, a intervenção do experto não só se privaria do importante auxílio 
que a ela poderia dar o saber prático já desenvolvido na atividade, mas se 
privaria até da própria possibilidade de incidir nessa atividade. Intervir em 
27 
 
uma atividade não é destruí-la, nem a inviabilizar: é controlá-la e reorientá-
la. E, dado que toda atividade supõe um saber, é impossível que essa inter-
venção não dialogue com esse saber. Inclusive no caso muito improvável, di-
ria que impossível, em que nada do saber prático previamente ali envolvido 
resultasse de genuína utilidade na nova organização dessa atividade; sem 
compreender e sem considerar esse saber, escassamente poderia modificar-
se à atividade que ele vinha pautando. Pense-se, por exemplo, o quão difícil 
seria explicar a um agricultor a forma com que ele pode apropriar-se das téc-
nicas e procedimentos de trabalho que lhe estejam propondo, sem que aí in-
tervenha um conhecimento de suas formas prévias de trabalho e dos saberes 
nelas envolvidos. 
 
3. Conversação e Cooperação 
 
É verdade, como já assinalei no início, que esse diálogo não é fácil. 
Diferentes saberes respondem ao que se costuma caracterizar como esque-
mas conceituais diferentes (cf. DAVIDSON, 1973, p. 6). Se essa diferença en-
tre esquemas conceituais pode afetar a comunicação entre cientistas que tra-
balham a partir de diferentes referenciais conceituais (KUHN, 1970, p. 193), 
isso também poderá acontecer na comunicação entre um engenheiro e um 
produtor agropecuário, cujo saber prático pode ter raízes muito diferentes 
das do engenheiro. Raízes que, não poucas vezes, remetem a universos cul-
turais cujos pontos de contato são escassos e de difícil identificação. No que 
tange a esse tipo de dificuldades, sempre podem ser lembradas as teses de 
Benjamin Lee Whorf (1956, p. 247), de que linguagens diferentes exprimem 
modos de pensar e de representar o mundo que seriam virtualmente inco-
mensuráveis e incomunicáveis entre si. Porém, conforme Donald Davidson 
(1973, p. 19) argumentou, essas dificuldades sempre podem ser superadas 
procurando-se, e produzindo-se, pontos de contato entre esses “esquemas 
conceituais”, ou “visões de mundo”, que inicialmente se mostram recalcitran-
tes a toda comunicação. 
Que isso pode ser assim, evidencia a transferência e a apropriação 
transcultural de tecnologia, e o próprio desenvolvimento da Antropologia. De 
fato, a mera existência dessa ciência já pressupõe, como condição de possibi-
lidade, que as diferentes culturas não são “mônadas semânticas” sem comu-
nicação entre si (GEERTZ, 1986, p. 113). Certamente, estabelecer essa comu-
nicação pode ser muito difícil, mas isso não quer dizer que ela seja impossível 
ou ilusória (GEERTZ, 1975, p. 48). E o que vale para a compreensão intercul-
tural vale para a comunicação entre esquemas conceituais diversos: como 
28 
 
pode ser o caso desses esquemas conceituais que estão embutidos em dife-
rentes saberes. Por isso o diálogo entre eles é possível. Isso vale para a co-
municação entre o que consideremos saberes expertos e o que consideremos 
saberes vulgares. 
Mas aqui o que interessa não é o mero diálogo, e sim a genuína coo-
peração. O que importa não é só entender-se, mas também a efetiva coope-
ração na resolução de problemas. E esta é uma condição mais restritiva. Ela 
supõe a mútua compreensão, mas vai além disso. Se somente se tratasse de 
transferir tecnologia, a compreensão poderia dar conta. Se o engenheiro não 
só compreende a linguagem do agricultor, mas também conhece a forma pela 
qual esse agricultor entende o próprio trabalho, isso certamente possibilitará 
a transferência do saber tecnológico. E para isso também ajudaria o conheci-
mento que o agricultor já possa ter dos modos de pensar típicos dos enge-
nheiros. Mas, se o engenheiro também quer melhorar sua tecnologia a partir 
do que o agricultor conhece do entorno em que ela será aplicada, e dos pro-
blemas que essa aplicação possa suscitar, aí já há algo a mais. Em uma situa-
ção como essa, o engenheiro aceitará que seu saber (“experto”) pode ser me-
lhorado a partir do saber (“vulgar”) do agricultor, e isso supõe uma hipótese 
que vale a pena ressaltar: o engenheiro está assumindo que o agricultor pos-
sui um saber genuíno. E o que aqui procuramos é estabelecer sob que condi-
ções essa hipótese é legítima. Isto é, queremos determinar em que condições 
pode-se reconhecer o valor epistêmico de um saber vulgar. 
O interessante, entretanto, é que, em última instância, essas condi-
ções não são muito diferentes das que deve cumprir um suposto saber ex-
perto para que sua intervenção em uma determinada atividade seja aceitável. 
No mínimo, de um saber experto se espera não só algum aval científico, de 
natureza conceitual, mas também o fato de ter sido produzido por procedi-
mentos análogos aos implicados na investigação científica. Quer dizer: se o 
saber experto não for a simples aplicação de teorias científicas bem credita-
das, como aconteceu com as aplicações da Genética de Populações no melho-
ramento de gado, espera-se que, pelo menos, esse saber tenha sido desenvol-
vido a partir de pesquisas metodologicamente análogas às pesquisas cientí-
ficas, e que também seja possível dar alguma justificação teórico-científica de 
seus pontos de partida e de suas conclusões. Entretanto, para que isso seja 
possível é necessário que esse saber experto aluda a variáveis que caibam na 
esfera das variáveis às quais as teorias científicas podem e devemaludir: va-
riáveis que, pelo menos sob certas condições e dentro de certas restrições, 
sejam passíveis de intervenção e controle experimental (cf. WOODWARD, 
2003, p. 10). 
29 
 
Com isso, todavia, não se alude a outra coisa que o simples fato des-
sas variáveis ficarem, pelo menos em algumas circunstâncias e dentro de cer-
tos limites, ao alcance efetivo de nossa ação: devem ser variáveis sobre as 
quais nós possamos agir e às quais não seja impensável controlar. Se isso não 
se cumprir, o saber experto só pode ser considerado mistificação ideológica 
ou simples fraude. O saber de um exorcista seria um exemplo extremo desse 
tipo de pseudossaber especializado. Outro exemplo, não menos extremo, se-
ria o coaching. Mas também se poderiam mencionar algumas “medicinas al-
ternativas”, e, sobretudo, esses discursos motivacionais, de caráter mais ou 
menos religioso, que sob a aparência de nos ensinar a modificar atitudes, ap-
tidões e modos de comportamento, só operam como legitimadores da ordem 
social imperante. 
Esses discursos motivacionais inscrevem-se na esfera do que John 
Dewey (1929, p. 74) caracterizaria como “artes de aceitação”, embora sejam 
vendidos como isso que Dewey chamaria “artes de controle”. Lembrando Al-
thusser (2014, p. 60), pode-se dizer que o fundo religioso desses discursos 
motivacionais se denuncia no fato de, diretamente ou indiretamente, sempre 
operarem como chamados à resignação. Eles são legitimações de um deter-
minado status quo. Nesse sentido, também cabe falar que sua função é tipica-
mente ideológica (cf. ALTHUSSER, 2014, p. 329). E, nesse ponto, também se 
pode entrever uma convergência entre alguns pretensos saberes vulgares e 
muitos pseudossaberes expertos: num e noutro campo nos encontramos com 
“artes de aceitação” fantasiadas como “artes de controle”, oferecendo-se as-
sim como saberes efetivos que não são. 
Mas é justamente fora dessa esfera das artes de aceitação que pode-
mos encontrar o ponto no qual os saberes vulgares podem realmente coope-
rar com genuínos saberes expertos. O saber vulgar pode cooperar com o sa-
ber experto na medida em que, é claro, tenha algum fundamento na experi-
ência. Pense-se, por exemplo, no conhecimento que um pastor pode ter a res-
peito de como diminuir o ataque de insetos que sofrem suas cabras. Esse co-
nhecimento, podemos supor, deve estar cimentado em sua própria observa-
ção ou na experiência coletivamente acumulada por sua cultura. Porém, isso 
só poderá ser assim na medida em que essa experiência aluda, direta ou in-
diretamente, explícita ou implicitamente, a variáveis que, em última instân-
cia, não sejam diferentes dessas variáveis que podem ser consideradas numa 
pesquisa científica. A experiência, e isso já é pleonasmo, só pode aludir a fe-
nômenos empiricamente acessíveis. 
O pastor poderá tentar proteger seu rebanho desenhando uma cruz 
numa parte do corpo das cabras que elas não consigam proteger por seus 
próprios meios, e é muito possível que ele associe a parcial efetividade do 
30 
 
procedimento ao suposto poder mágico da cruz. Todavia, se o recurso for efi-
caz, isso só poderá se dever a fatores tais como as propriedades da substância 
usada para pintar as cruzes, sendo aí, nessa dimensão que é pertinente ao 
efetivo controle do mundo e que pode estar oculta numa trama de represen-
tações alheias a esse controle, que o saber vulgar pode cooperar com o saber 
experto. Esse espaço de cooperação se dá em virtude daquilo que o saber 
vulgar tem de arte de controle, e não em virtude daquilo que tem de arte de 
aceitação. Quer dizer: o ponto de contato entre um genuíno saber experto e 
um saber vulgar está no que este último tem de técnica, e não no que tem de 
sacrifício propiciatório. Nesse sentido, o que cabe exigir aos saberes vulgares 
não é distinto do que cabe exigir aos saberes expertos. Para cooperar entre 
si, eles têm que se encontrar nesse terreno. Se não puderem chegar aí, certa-
mente não se perderá muito com essa falta de cooperação. 
 
4. Uma última insistência 
 
O que acabo de dizer vale tanto para o caso em que esses saberes 
aludem ao mundo natural como para o caso em que aludem ao entorno social. 
Mas também vale para o conhecimento que cada um de nós tem dos próprios 
estados de ânimo, de sua emotividade e de suas habilidades ou limitações. Já 
me referi mais acima ao conhecimento de invariantes que permitem compre-
ender, predizer e até controlar a atividade dos outros. Esse é um saber que 
se desenvolve no exercício da vida social, e sem o qual a sociabilidade em 
geral, conforme já disse, seria impossível. Mas esse saber é quase indistinguí-
vel do saber, mais ou menos incerto, e em grande medida tácito, que todos 
temos sobre nós mesmos. Um saber que todos vamos desenvolvendo, de ma-
neira mais ou menos reflexiva, ao longo de nossa existência. Esse saber que, 
entre outras coisas, permite-nos prever o que poderá nos trazer satisfação 
ou insatisfação em certas circunstâncias, e de que coisas seremos ou não ca-
pazes sob determinadas condições. 
Esse conhecimento, como Jon Elster (1984; 2000) mostrou, até nos 
dá alguma capacidade para administrar e controlar nossas próprias paixões, 
e sendo algo constitutivo de nossa subjetividade, não pode deixar de ser o 
partenaire e, sobretudo, o contraponto, de toda essa plêiade de saberes ex-
pertos que hoje, com maior ou menor pertinência, querem intervir no campo 
de nossa subjetividade e de nossa intimidade. Nesse caso, como no campo 
das interações sociais, a cooperação entre o saber experto e o saber vulgar 
não é só possível: é inevitável e imprescindível. Aí, mais que em qualquer ou-
tro caso, a negação do saber vulgar pelo saber experto só poderá ser danosa 
e até destrutiva. Todavia, e mais uma vez, essa cooperação só será efetiva na 
31 
 
medida em que esses saberes, os pretensos saberes expertos, mas também 
os saberes vulgares, aludam ao domínio daquilo que está ao alcance de nossa 
ação. Só assim esses saberes poderão ter algum apoio empírico, e só assim po-
derão cooperar no entendimento e na solução dos problemas que, eventual-
mente, requeiram a intervenção dos saberes expertos no domínio de nossa 
subjetividade e de nossas relações sociais. Na medida em que saberes expertos 
e vulgares não se ajustem a essa exigência, deslizando para o campo do mágico 
e do sobrenatural, é muito pouco o que se pode esperar deles. 
 
5. Referências 
 
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33 
 
 
 
Porque a indústria farmacêutica é 
diferente das outras? Saúde mental, ciência e psi-
cotrópicos em questão 
 
 
MARCIA DA SILVA MAZON1 
 
 
 
Quando a indústria automobilística anuncia novos modelos de carros 
somos levados a crer que ela influencia a decisão das pessoas em se deslocar 
sobre quatro rodas; quando a indústria da moda lança uma nova coleção 
acreditamos ser influenciados por cores, modelos de peças das roupas que 
usamos; se a indústria alimentar lança novas guloseimas, compromete nossa 
saúde. A lista é longa. Enfim, vivemos no mundo da produção industrial não 
só em grande escala, como multinacional e do consumo em massa, desde 
quando Henry Ford colocou sua primeira esteira em movimento. Não é pos-
sível colocar em segundo plano o fato de que os movimentos da indústria – 
pesquisa de mercado, lançamento de produto, promoções e estratégia de dis-
tribuição – tenham gigantesco impacto sobre hábitos e decisões dos consu-
midores. As estratégias de distribuição ganham reforço nos canais de comu-
nicação, mídias sociais e telefones portáteis, os quais transformam consumi-
dores em canais de informação para a própria indústria (KOTLER; KELLER, 
2006; TOMAS et al., 2012). Todos interferem nas formas de consumo. 
Porém, provavelmente nenhuma outra indústria tem um peso tão de-
terminante sobre o consumo como a indústria farmacêutica. Em particular, a 
indústria dos psicotrópicos. Isso não apenas pelo seu peso econômico (este, 
como outros setores da grande indústria, investe bilhões em pesquisa de no-
vos produtos), mas pelo seu peso simbólico. A indústria farmacêutica vende 
um bem com características particulares: é um bem credencial (a experiência 
do bem não é verificada antes como as roupas, nem durante como viagens – 
apenas depois de consumida e sob a análise dos efeitos esperados avaliados 
 
1 Docente do Departamento de Sociologia e Ciência Política e do PPGSP da UFSC, coordenadora do 
Núcleo de Sociologia Econômica – NUSEC. 
34 
 
por um especialista médico) e vendido por procuração (precisamos da re-
ceita médica para adquiri-lo na farmácia). Isto significa dizer que o consumo 
de fármacos é singular em relação a outros bens disponíveis no mercado. Ele 
tem uma característica especial dos bens simbólicos. Conforme Bourdieu, es-
ses bens seriam construídos nas mãos do produtor e nos olhos de quem os 
reconhece e consome (BOURDIEU, 1996, 2006): “o trabalho de fabricação 
não é nada sem o trabalho coletivo de produção do valor do produto e do 
interesse pelo produto” (BOURDIEU, 2006, p. 163). Os psicotrópicos estão 
constituindo um novo campo de autonomia relativa, que envolve desde sem-
pre a indústria farmacêutica, cientistas e psiquiatras que atendem consumi-
dores/pacientes. Conforme Bourdieu (2006), a produção da obra de arte 
como objeto sagrado e consagrado é produto de um empreendimento de “al-
quimia social no qual colabora com a mesma convicção e com benefícios bas-
tante desiguais, os agentes envolvidos do campo da produção (artistas, escri-
tores, críticos, editores, como clientes entusiastas quanto os vendedores con-
vencidos” (BOURDIEU, 2006, p. 29). Transpomos este raciocínio para o mer-
cado de psicotrópicos. 
Propomos, neste capítulo, analisar a produção de psicofármacos en-
quanto campo econômico com autonomia relativa (BOURDIEU, 2000a; 
2005). O campo, para Bourdieu, é o espaço onde um bem é produzido, distri-
buído e consumido; no campo há lutas pelos critérios de definição do que é o 
objeto em disputa (BOURDIEU, 2005, 1996). Conforme observam Bourdieu 
(2000a; 2005), Zelizer (2011; 1985[1994]; 1978[1992]), Fligstein (2001) e 
Fourcade (2011), o mercado não se constitui como livre jogo de forças abs-
tratas entre oferta e demanda, é antes resultado de um arranjo social amplo 
que envolve agentes, instituições, em processos político-culturais complexos 
e passíveis de contestação. Esses processos constituem uma hierarquia mo-
ral que legitima a valoração e precificação de bens e pessoas. O campo eco-
nômico é acomodado pela máxima “negócios são negócios”, ou seja, é o lugar 
onde a disputa aberta pelo lucro está autorizada. Universos como o da alta 
costura, campo literário ou campo científico são constituídos pela concorrên-
cia em torno da questão da legitimidade e, nesses espaços, impera um cons-
tante exercício de denegação da lógica do lucro. Denegar impõe envolver es-
ses bens numa aura de encantamento. Encantamento que poderia estar li-
gado à dominação carismática do curandeiro2 que a produz, mas que Bour-
dieu observa como parte componente da constituição do campo; o princípio 
 
2 Bourdieu cita Mauss para lembrar que a questão não é tanto saber “quais são as propriedades es-
pecíficas do mago, nem sequer operações e representações mágicas, mas determinar os fundamentos 
da crença coletiva ou ainda melhor do irreconhecimento coletivo, coletivamente produzido e man-
tido que se encontra na origem do poder do qual o mago de se apropria” (BOURDIEU, 2006, p. 28). 
35 
 
de eficácia não se situa na força do carisma, nem na estrutura, antes na dinâ-
mica do espaço estruturado de posições ou o que Bourdieu nomeia como cír-
culo da crença: “o princípio da eficácia de todos os atos de consagração não é 
outro senão o próprio campo, lugar da energia social acumulada reproduzido 
com a ajuda dos agentes e instituições através das lutas pelas quais eles ten-
tam apropriar-se dela[...]” (BOURDIEU, 2006, p. 25). 
Bourdieu (2000a), ao abordar o mercado de casas próprias, demons-
tra como uma necessidade, ou objeto de consumo que não existia, é criado 
como arbitrário cultural, e isso envolve encantamento ou os efeitos poéticos 
da propaganda que associa a aquisição de uma casa a valores sagrados como 
família, garantia de futuro, herança para os filhos, entre outros. 
O que dizer do campo da saúde? Como se acomodam os discursos 
sobre a saúde e quais os efeitos dos discursos na constituição da saúde, em 
particular a saúde mental? Argumentamos que o espaço da saúde tem se 
constituído segundo o discurso da transformação dos seres humanos em se-
res otimizados, empreendedores de si, ou o que Rose (2013a; 2019) nomeia 
como si mesmos neuroquímicos. Importante considerar que a psiquiatria foi 
incapaz de localizar no corpo a enfermidade mental (FOUCAULT, 2005; CA-
PONI, 2009a, 2009b). Como os discursos desse campo produzem essa apro-
ximação com o corpo? A lógica da indústria farmacêutica está apoiada na afir-
mação de que os ganhos e lucros mais importantes não são os dela, mas os 
desses seres otimizados a partir do uso das drogas (CAPONI, 2019). Explora-
mos esse argumento a partir da análise da medicalização da infância e emer-
gência do TDAH. 
Entretanto, esse arranjo entre indústria e psiquiatria adquire novos 
contornos nas últimas décadas, assim como é alvo de críticas. Vários autores 
investigam o modo como a indústria farmacêutica tem sido bem sucedida em 
constituir a forma como nóssentimos; tão bem como alterar profundamente 
a natureza da medicina (BORCH-JACOBSEN, 2013); na maioria das vezes nos 
faz acreditar que estamos doentes e que o mal-estar que sentimos, a tristeza, 
a decepção, ou problemas como falta de trabalho justamente remunerado, a 
falta de convívio social, são problemas do cérebro (WHITAKER, 2017; ROSE, 
2019; 2013; QUENTIN, 2015, PETRYNA; KLEINMAN, 2006; BORCH-JACOB-
SEN, 2013; MOYNIHAN et al., 2002). De outro lado, as críticas são dirigidas 
aos psiquiatras e à forma de construção de conhecimento e condução de pes-
quisa sobre doenças mentais que constitui um ambiente promíscuo de en-
contro eticamente questionável entre psiquiatras e a indústria farmacêutica 
(WHITAKER, 2017; FRANCES, 2016; HEALY, 2006; CASTIEL, 2017). Essa 
questão é especialmente sensível quando o tema são os transtornos mentais 
36 
 
da infância ou a epidemia do transtorno de déficit de atenção e hiperativi-
dade (TDAH), associada à demanda de Ritalina; destaque para o Brasil, se-
gundo maior consumidor mundial (CAPONI, 2016;2019). 
Se o TDAH é um diagnóstico que completa 100 anos (LAKOFF, 2005; 
MAZON, 2017), sua manifestação como problemática, que diz respeito à es-
cola e à escolarização, é algo que ganha contornos em anos recentes. Os dis-
cursos eugenistas e higienistas das primeiras décadas do século XX (STEPAN, 
2012; FREIRE, 1970; MAZON 2019) foram substituídos pelos discursos bio-
médicos relacionados às escolas a aos alunos (CAPONI, 2014; 2010; 2019; 
MARTINHAGO, 2019; BRZOZOWSKI, 2013). Em alguns contextos, como na 
cidade de Porto Alegre, professores estão recebendo formação oferecida por 
especialistas em saúde (PRODAH, 2020)3 para que possam identificar trans-
tornos mentais entre estudantes e encaminhá-los aos profissionais da psiqui-
atria. É possível observar como as escolas estão delegando à psiquiatria a au-
toridade para legislar sobre problemas que poderiam ser vistos como esco-
lares ou sociais, num processo de medicalização (CAPONI, 2019; SANTOS; 
FREITAS, 2016). 
 Observar esses acontecimentos como fenômenos políticos e que en-
volvem escolha (bem ou mal-intencionada) dos agentes envolvidos, nos im-
pede de enxergar o campo cognitivo e moral no qual essas escolhas se apre-
sentam como escolhas razoáveis. Se os Estudos Sociais da Ciência e Tecnolo-
gia, em uma de suas vertentes, explora como o conhecimento científico se 
enreda com as experiências cotidianas das pessoas comuns (JASANOFF, 
2004), aqui nos interessa focar como a ciência e os mercados enredam-se a 
partir da análise dos transtornos mentais. Como psiquiatria e indústria far-
macêutica interagem: não focar apenas na força do carisma da psiquiatria 
nem exclusivamente na força estrutural da indústria farmacêutica, mas no 
caminho do meio do espaço estruturado de posições. Propomos, então, ob-
servar o mercado farmacêutico como campo com autonomia relativa, onde 
há interesses em disputa e onde diferentes agentes lutam pelos critérios de 
classificação da realidade (BOURDIEU, 2005; 1996; JARDIM, 2009). Neste 
campo em particular, o objeto em disputa trata dos limites entre saúde e do-
ença (CAPONI, 2009a) e os efeitos do discurso sobre sujeito saudável do sé-
culo XXI, o qual Rose nomeia como si-mesmo neuroquímico; mais do que ser 
 
3 O Programa de Transtornos de Déficit de Atenção/Hiperatividade (ProDAH) é uma área de ativida-
des do Serviço de Psiquiatria da Infância e da Adolescência e do Serviço de Psiquiatria do Hospital de 
Clínicas de Porto Alegre (HCPA) e do Departamento de Psiquiatria e Medicina Legal da Universidade 
Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), dedicada ao ensino, pesquisa e atendimento a pacientes com 
o transtorno. 
37 
 
curado da doença, esse sujeito deve ser otimizado (ROSE, 2013a). A manu-
tenção da saúde do corpo e da mente é central para a autoadministração do 
indivíduo (ROSE, 2013a, p. 24). Aqui as tecnologias não são meramente tec-
nologias médicas ou da saúde, são nomeadas como tecnologias de vida 
(ROSE, 2013a, p. 33). A pesquisa, quer realizada na indústria farmacêutica, 
quer em universidades, associada à geração de propriedade intelectual e à 
doença ou saúde – ou, ainda, às lutas pela definição destes termos – tornou-
se área importante para a atividade corporativa e para a geração de valor 
para o acionista (ROSE, 2013a, p. 25) na era da financeirização (FLIGSTEIN, 
2001; GRÜN, 2013). 
Esta pesquisa contou com um levantamento bibliográfico da área, 
tanto da atividade da indústria farmacêutica como da psiquiatria, e as publi-
cações recentes da área da sociologia econômica e sociologia da saúde. Fo-
ram realizadas pesquisas documentais nos sites sobre informações da atua-
ção médica e normas de conduta médica na prescrição de medicamentos. 
Na primeira parte do capítulo fazemos uma revisão bibliográfica de 
pesquisas dedicadas ao tema, situando o encontro entre os mercados e a sa-
úde a partir do fenômeno da razão farmacêutica. Interessa-nos apontar as-
pectos da dinâmica dos padrões de universalização no campo da saúde, 
acompanhando de perto a construção social da procuração, a partir de exem-
plos das instituições médicas dos Estados Unidos. Na segunda parte, situa-
mos aspectos dos efeitos discursivos desses encontros entre mercados e sa-
úde, abordando o fenômeno do Transtorno do Déficit de Atenção e Hiperati-
vidade-TDAH como parte da construção do si-mesmo neuroquímico. 
 
1. Medicamentos, saúde e significados: a emergência da razão farmacêutica 
 
Como mencionado na introdução, diversas leituras focam no poder, 
ora da indústria ora da psiquiatria, e aqui não discordamos de que esses são 
atores poderosos quando o assunto é o campo da saúde mental. Porém, falar 
da indústria ou da psiquiatria sem considerar o que acontece no restante da 
sociedade nos deixa reféns de um fenômeno que é socialmente situado 
(BOURDIEU, 2000a; JARDIM, 2009). É fundamental compreender o contexto 
em que os psicotrópicos se transformaram em balas mágicas (HEALY, 2006; 
HEALY, 2013; WHITAKER, 2017) e quais os significados compartilhados do 
que são e para que serve tomar medicamentos, em especial os psicotrópicos. 
38 
 
Do ponto de vista de quem os consome, medicamentos são substân-
cias capazes de transformar a condição de um organismo para melhor4, no 
caso de medicamentos curativos. Eles aliviam o sofrimento associado a uma 
doença, e o significado de um medicamento, para a maioria das pessoas, re-
pousa sobre sua eficácia (VAN DER GEEST et al., 1996, p. 154). O que tornou 
os medicamentos tão populares como solução em momentos de estresse? 
Conforme Van Der Geest et al. (1996), eles têm concretude, tangibilidade: são 
engolidos, injetados, espalhados na pele. Procedimentos que trazem consigo 
a promessa do efeito físico, adequam-se logicamente às tradições biomédi-
cas: a medicina é a arte de curar a doença. Tal tangibilidade fornece aos pa-
cientes e seus cuidadores significados para lidar com a doença. 
No entanto, como considera Bourdieu, é necessário observar a dinâ-
mica do campo onde se constrói a crença. No campo da saúde, não apenas o 
que é o medicamento, mas antes aquilo que se constitui como doença (ROSE, 
2013a). Essa relação ganhou nova dinâmica a partir da emergência da era 
moderna: era da especialização e das drogas sintéticas manufaturadas e pro-
duzidas em massa pela indústria farmacêutica. Elas são commodities e sua 
disseminação mundial tem profunda implicação para sistemas médicos naci-
onais (WHYTE et al., 2002). 
 
1.1. Padrões e saúde: dos estudos sociais da ciência à sociologia econômica 
 
Conforme ponderam Latour e Woolgar5(1979/1997), a universali-
dade, através da padronização, está no coração da medicina e da prática ci-
entífica. Os padrões visam tornar as ações comparáveis ao longo do tempo e 
espaço; eles são móveis e estáveis e podem ser combinados com outros re-
cursos (TIMMERMAN; SOURCE, 1997). O desafio está em seguira mudança 
de redes que fornecem condições e conexões para a conquista da universali-
dade. Na investigação sobre Pasteur e a vacina contra o Antraz, Latour pon-
dera como a vacina só funcionaria universalmente se os agricultores respei-
tassem padrões fundamentais de laboratório como desinfecção, limpeza, 
conservação, entre outros. Conforme Latour (1979), Pasteur conseguiu 
transformar as práticas de trabalho dos agricultores, no sentido da adesão a 
novos padrões de laboratório. Poderíamos pensar este como um momento 
 
4 Embora em algumas situações, como a de envenenamento, seja usado para piorar a condição de 
saúde (GEEST et al., 1996). 
5 Latour (1979/1997, p. 68) compara o laboratório a uma tribo (com habilidades consideráveis na 
arte de construir dispositivos quanto na arte da persuasão) de leitores e autores, os quais passam 
dois terços do tempo trabalhando em grandes inscritores; a produção de artigos científicos é consi-
derada uma produção literária com objetivo de persuadir leitores. 
39 
 
bem-sucedido quando novas normas pressupõem controle das pulsões; Pas-
teur teria sido um prescritor de novas etiquetas (ELIAS, 1993[1939]). Con-
forme a crítica de Timmerman e Source (1997, p. 235), na proposta de Latour 
(1979) o aspecto das instituições pré-existentes fica em segundo plano: “Pas-
teur não criou o mundo apenas com a vacina contra o antraz: o mundo já foi 
criado de maneiras muitos diferentes”. A doença do antraz foi combatida com 
técnicas de isolamento, imunologia, sabedoria à base de plantas, e outras for-
mas de medicina emergente. A vacina foi um elemento inserido num conjunto 
de interesses, instituições e práticas existentes. 
Conforme Timmerman e Source (1997, p. 236), uma das tensões cen-
trais na criação e conquista de universalização de padrões – investigando os 
padrões médicos - é a relação com infraestruturas, procedimentos e práticas. 
Para entender a universalização de padrões é fundamental observar esses 
processos de incorporação e transformação. O desafio, segundo esses auto-
res, é capturar a maneira pela qual a padronização alcança um nível univer-
sal, ou seja, quais os passos para alcançar legitimidade. Segundo Timmerman 
e Source (1997), é necessário fazer apelo ao contexto, tanto dos atores como 
de suas motivações e interesses entre seu passado, presente e futuro. Propo-
mos, neste capítulo, inserir esses fenômenos no ambiente do mercado: testes 
clínicos, padrões de saúde e medicamentos dizem respeito à indústria farma-
cêutica e seus interesses na conformação de novos protocolos. Novos pa-
drões, antes de serem inseridos numa rede, devem ser compreendidos como 
parte do universo político-cultural no qual existem e encerram relações de 
poder, dito de outro modo, o conhecimento antes do que tácito possui poder 
generativo (Petrina Kleinman, 2006). 
 
1.2. Pesquisadores e a lógica do mercado 
 
Quando Latour estuda o laboratório de Salk, o interesse da indústria 
farmacêutica aparecia do lado de fora do laboratório6 e, no momento atual, 
as ações da indústria e da ciência estão intimamente atravessadas. Conforme 
Latour e Woolgar (1979/1997), a finalidade principal da tribo de cientistas 
era produzir artigos, que eram apenas um meio de comunicar importantes 
descobertas, baseadas num conjunto de conhecimentos tácitos (LATOUR; 
WOOLGAR, 1979/1997, p. 77). Atualmente, é difícil separar o que acontece 
na indústria farmacêutica daquilo que diz respeito às pesquisas e ao atendi-
mento de pacientes (LAKOFF, 2006). Os produtos de pesquisa universitária 
 
6 Os financiadores eram alguém a ser “conquistado” (LATOUR; WOOLGAR, 1979/1997, p. 68). 
40 
 
eram considerados como parte do domínio público e os pesquisadores não 
tinham nenhum interesse financeiro nos produtos de seu trabalho. 
Esse cenário se transforma em 1974, quando a faculdade de medi-
cina da Universidade de Harvard concluiu um contrato com a Monsanto, pelo 
qual ela cederia as patentes sobre todas as invenções e descobertas feitas no 
quadro desse projeto financiado pela empresa. Foi a primeira experiência de 
uma faculdade de medicina em parceria econômica com a indústria. Essas 
transferências de tecnologia, como são chamadas desde então, tornam-se 
constantes a partir da era Reagan e da aprovação, nos EUA, do Bayh-Dole Act, 
que autorizava universidades e pesquisadores a patentear suas descobertas 
e dela auferir lucro. Esse sistema se espalha mundialmente, transformando, 
do dia para a noite, laboratórios universitários em startups e os pesquisado-
res em empreendedores em busca de parcerias lucrativas com a indústria. O 
investimento da indústria se dirige diretamente para as universidades, ficam 
em segundo plano as pesquisas nas quais não havia interesse econômico (CA-
HUZAC, 2013, p. 367-8). Ainda segundo Cahuzac (2013, p. 368), o resultado 
dessa aproximação entre indústria e universidades é que praticamente todos 
os especialistas estejam conectados a alguma empresa. 
Como um estudante atinge a condição de especialista? Segundo Ca-
huzac, é comum que alguém seja escolhido cedo na sua carreira pela indús-
tria farmacêutica – mais exatamente por uma empresa especializada nesta 
função de gestão de líderes de opinião – KOL (como são chamados nos Esta-
dos Unidos) ou Cutting Edge Information – para ser um líder. As firmas ob-
servam os brilhantes pesquisadores e os nomeiam como campeões de pro-
duto. Esses pesquisadores serão auxiliados pela indústria farmacêutica a es-
calar os postos de prestígio na sua profissão, patrocinando sua pesquisa e os 
apoiando financeiramente para colóquios, e colocando seus artigos em revis-
tas de prestígio (LAKOFF, 2006). Ao fim desse processo, a maior parte desses 
pesquisadores serão amigos das indústrias de fármacos; uma vez que essa 
posição foi alcançada será difícil que o KOL se sinta inclinado a criticar as 
farmacêuticas (CAHUZAC, 2013, p. 369). 
Conforme Petryna et al. (2006), espera-se que o aumento da padro-
nização do processo terapêutico promova o progresso científico da medicina, 
protegendo o público contra alegações duvidosas sobre os efeitos e usos de 
substâncias reivindicadas como remédios para restaurar a saúde. Os padrões 
são importantes marcadores culturais e sociais da modernidade, porém, es-
tão longe de serem neutros, como observado. Essa é a denúncia de uma parte 
dos estudiosos sobre saúde (RAVELLI, 2015), saúde mental e saúde mental 
41 
 
infantil: há um processo de inflação diagnóstica e relações questionáveis en-
tre a indústria farmacêutica, o seu departamento de marketing e a psiquiatria 
(FRANCES, 2016; CAPONI, 2016; 2019). 
A padronização diagnóstica organiza vastas arenas burocráticas e di-
visões de trabalho envolvendo redes de especialistas, pesquisadores, infor-
mações e espaços institucionais em todo o mundo (PETRYNA et al., 2006). A 
depressão, assim como o TDAH, é um diagnóstico considerado como condi-
ção universal com prevalência transcultural consistente; tratamentos são 
anunciados como aplicáveis em todos os lugares. Essa suposta universali-
dade implica grande volume de confiança, sustentada pelo know-how especi-
alizado, cujo produto se torna um conjunto de documentos principais: dire-
trizes de vigilância que restringem a sintomatologia central a interpretações 
bastante fixas (LAKOFF, 2005; MAZON, 2020). Essa confiança, no entanto, 
tem sido abalada e sofre revezes: a má administração científica, o tráfico de 
influência e, no caso de psiquiatras, o pagamento de viagens a congressos 
(WHITAKER, 2016; CASTIEL, 2017). A influência da indústria farmacêutica 
na publicação de resultados em artigos científicos (HEALY, 2006; RAVELLI, 
2015) tem levado associações médicas a manifestações públicas estabele-
cendo e esclarecendo limites éticos para a prática profissional, a exemplo do 
Conselho Federal de Medicina no Brasil (CFM, 2019; MAZON, 2019). 
Conforme Lakoff (2006, p. 112), há forte relação

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