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Ésquilo As Suplicantes São João del-Rei – 2009 Personagens O Rei de Argos; Dânaos; Um Arauto; Coro das Danaides: - Corifeu (Quem dirigia o coro no teatro grego); - Danaides e suas aias. Ésquilo. As Suplicantes. São João del-Rei: Lombello Amaral Editora. 2009. Teatro; Teatro Grego. Traduzido das versões castelhana e italiana. A ação decorre à beira-mar, perto de Argos. Ao fundo da orquestra, um altar com as estátuas de Zeus, Apolo, Posseidom e Hermes. O Coro: Possa Zeus, protetor das suplicantes, lançar um olhar benévolo sobre o nosso grupo, que um navio trouxe até aqui desde as bocas do Nilo, marginadas de areia fina. Deixamos a terra de Zeus[1] contígua à Síria; exilamo-nos, não que um voto da cidade nos tenha banido por homicídio, mas porque, na nossa instintiva repugnância do homem, horrorizadas rejeitamos o hímen aos filhos de Egito: antes a morte que aceder aos seus ímpios desejos. Dânaos, nosso pai, que inspira os nossos desígnios e guia o nosso grupo, pesou as razões, e decidiu- se pela desgraça mais gloriosa, que era fugir a toda a pressa através das ondas salgadas a arribar à terra de Argos, de onde a nossa raça se honra de ser originária, pois nasceu da bezerra atormentada por um moscardo, sob o bafo e o contato de Zeus. Que país mais acolhedor poderíamos abordar com estes ramos de suplicantes cingidos de lã que nos carregam as mãos? Possa a cidade, possam o país e as suas águas límpidas, possam os deuses do céu e os manes[2] sepultados sob a terra, que exercem pesadas vinganças, possa, enfim, Zeus Salvador, guardião do lar dos homens piedosos, acolher este grupo de mulheres suplicantes neste país tocado de respeito pela desdita; e, antes que esse insolente enxame de machos, os filhos de Egito, consiga pôr o pé neste solo paludoso, lançai-os ao mar, a eles e ao seu rápido navio: por entre as rajadas do ciclone, o trovão, os relâmpagos e os ventos prenhes de chuva, esperemos que então os defronte o mar selvagem e morram antes de profanarem com as mãos as sobrinhas do seu pai e de se deitarem, apesar da lei que tal lhes proíbe, em leitos que os repelem. Estrofe 1. - Agora chamo, por sobre os mares, para que me proteja, o jovem touro nascido de Zeus[3], que, só com o seu bafo, o gerou na minha avó, a bezerra que pastava flores. Esse contato, que lhe valeu o nome, pôs justo fim ao tempo marcado pelo destino: Io pariu Epafos Antístrofe 1. - Vou hoje citar esse nome e lembrar os sofrimentos que a minha remota avó outrora padeceu nestes locais, onde pastava a verde erva; e faço-o para fornecer provas da minha origem dignas de fé; por surpreendentes que sejam, os íncolas achá-las-ão claras, a sua verdade não tardará a tornar-se patente. Estrofe 2. - Se próximo daqui houver algum indígena hábil na interpretação do canto das aves e se ele escutar os meus lamentos, julgará ouvir a voz da esposa de Tereu presa dos seus tristes pensamentos, a voz do rouxinol[4] perseguido pelo gavião. Antístrofe 2. Expulsa dos sítios que dantes habitava, deplora o lar perdido, pranteia a morte do filho, a quem ela própria, mãe desnaturada, com as suas mãos roubou a vida. Estrofe 3. - Tal como ela, gosto de me carpir à maneira jónica, dilacerando a minha terna face, bronzeada pelo sol do Nilo, e o meu coração mal afeito às lágrimas. Só colho flores de luto, perguntando-me com angústia se encontrarei algum amigo que vele pelo meu exílio longe do país dos céus serenos. Antístrofe 3. - Vamos, deuses responsáveis pelo nosso nascimento, vós que sabeis onde está a razão, escutai-nos, ou, se o destino vos proíbe de nos dar plena satisfação, ao menos, vós que detestais naturalmente a violência, mostrai a vossa justiça em face deste himeneu[5]. Mesmo os fugitivos esgotados pela guerra encontram refúgio contra a desgraça perto de uma ara que o temor dos deuses protege. Estrofe 4. - Ah!, se tudo pudesse resolver-se de um modo verdadeiramente feliz! Não é fácil apreender os desejos de Zeus; mas, em todo o caso, tais desejos flamejam mesmo nas trevas, enquanto o negro infortúnio se derrama sobre a raça dos mortais. Antístrofe 4. - Quando na cabeça de Zeus alguma coisa se decide, é certo que acontece, e tal como ele a engenhou. Os caminhos do seu pensamento correm para o seu destino, escondidos sob uma sombra espessa, que olhar algum pode atravessar. Estrofe 5. - Do alto das suas ambiciosas esperanças precipita os mortais no vazio, mas sem se armar de violência: nada custa trabalhos a um deus. O seu pensamento, que plana no alto do céu, executa lá de cima todos os seus desígnios, sem por isso ele deixar o seu sagrado assento. Antístrofe 5. Volte ele os olhos para a arrogância humana, tal como ressurge nessa raça fogosa que teimosamente busca o meu himeneu, espicaçada por um irresistível delírio, e reconheça a falsidade de Até. Estrofe 1. - Eis as angústias insuportáveis que me arrancam gritos agudos, pesados soluços e que lágrimas!, e lamentações parecidas aos cantos fúnebres. Viva ainda, presto a mim própria as honras dos mortos. Imploro a terra acidentada de Ápis: compreendes bem, ó terra, a minha voz bárbara? Muitas vezes a minha mão se abate, para despedaçar os linhos sob o meu véu de Sídon. Antístrofe 1. - Tantas criaturas oferecem sacrifícios expiatórios aos deuses para deles obterem a salvação, quando a morte chega e os ameaça. Ai, ventos incertos! Para onde nos arrastará esta onda? Imploro a terra acidentada de Ápis: compreendes bem, ó terra, a minha voz bárbara? Muitas vezes a minha mão se abate, para despedaçar os linhos sob o meu véu de Sídon. Estrofe 2. - Decerto os remos e esse edifício cingido de cordas de linho que rompia as vagas me transportaram até aqui sem tempestade, com a ajuda dos ventos. Não me lembro, mas possa o Pai que tudo vê pôr enfim um termo favorável à minha dor. Antístrofe 2. - Queira a casta filha de Zeus[6] escutar esta minha súplica e deixar cair sobre mim, do seu augusto rosto, um olhar tranquilizador, e, indignada com esta perseguição, empenhar toda a sua força de virgem em salvar outras virgens. Assim esta geração de uma ilustre avó escape, ó deuses!, do leito dos machos e se conserve livre e virgem! Estrofe 3. - Senão, queimadas pelos raios do sol, iremos com os nossos remos suplicantes até junto do deus subterrâneo (o Zeus dos Mortos, que recebe inumeráveis mortos), depois de nos termos enforcado, caso não consigamos o apoio dos deuses do Olimpo. Ah! Zeus, é Io, ai de nós, quem a fúria divina persegue. Reconheço o ciúme de uma esposa todo- poderosa no céu. É bem terrível o vento que desencadeia a tormenta. Antístrofe 3. - E então Zeus servirá de alvo a imprecações que denunciarão sua injustiça, por ter desprezado a prole da bezerra que outrora ele próprio fecundou, e afastado os olhos das nossas orações. Escute ele antes dos céus aquelas que o chamam. Ah! Zeus, é Io, ai de nós, quem a fúria divina persegue. Reconheço o ciúme de uma esposa todo- poderosa no céu. É bem terrível o vento que desencadeia a tormenta. Dânaos (que observava o horizonte do alto da elevação): Minhas filhas, sede prudentes. Se chegastes até aqui, foi graças à prudência do vosso velho pai, piloto no qual tendes confiança. Agora que nos encontramos no continente, aconselho-vos, com o mesmo espírito de previdência, a guardardes as minhas advertências gravadas no vosso espírito. Diviso uma nuvem de poeira, muda vanguarda de um exército. Já ouço ranger os cabos e os eixos das rodas. Avisto agora tropas armadas com escudos e que brandem os dardos, e com elas os cavalos e os carros recurvos. Certamente os chefes do país vêm examinar-nos, advertidos por mensageiros. Mas, seja de paz ou de cólera o vento que no-los traz, mais vale, de toda a maneira, que vos senteis, minhas filhas, nesta eminência consagrada aos deuses da cidade. Um altar vale mais do que uma muralha: é um escudo infrangível. Vamos, apressai-vos a subir e, sustentando dignamente, com o braço esquerdo, os vossos ramos de suplicantes cingidos de lã branca, em homenagemao venerável Zeus, dai aos estrangeiros respostas pudicas, gementes, conformes com o vosso interesse, próprias de recém-chegadas, e explicai claramente que o vosso exílio não é punição de sangue derramado. A vossa voz não deve afetar a ousadia nem o desplante deve ler-se nos vossos rostos: a fronte modesta, os olhos tranquilos. Evitai a prolixidade nos vossos discursos: as pessoas daqui não a suportam. Sede maleáveis, não o esqueçais; estrangeiras e fugitivas, tendes de vos dobrar ante a necessidade. E a linguagem altiva não convém aos fracos. O Corifeu: Pai, falas com prudência a filhas prudentes. Cuidarei de não esquecer as tuas avisadas recomendações. Assim Zeus nosso avô lance sobre nós um olhar! Dânaos: Sim, queira ele conceder-nos um olhar benévolo! O Corifeu: Se assim for, tudo acabará bem. Dânaos: Agora não percas tempo; e serve-te dos meios de salvação que te recomendei. O Corifeu: Quem me dera estar já sentada ao teu lado! (O coro sobe ao altar e dirige-se à estátua de Zeus.) Ó Zeus, tem piedade dos nossos sofrimentos, antes que a morte nos leve. Dânaos: Invocai também o filho de Zeus que vedes aqui O Corifeu: Invocamos os raios salutares do Sol. Dânaos: Do venerável Apolo, deus que foi exilado do céu. O Corifeu: E que por isso bem podia, uma vez que tal destino conheceu, compadecer o dos mortais. Dânaos: Assim ele de nós se amerceie e com a sua bondade nos assista. O Corifeu: Qual destes deuses devo ainda invocar? Dânaos: Vejo aqui um tridente, que indica um deus. O Corifeu: Já que tão bem nos conduziu sobre o mar, do mesmo modo deve acolher-nos em terra! Dânaos: Eis ainda outro deus, Hermes, que as leis gregas veneram. O Corifeu: Traga-nos ele uma feliz mensagem de liberdade! Dânaos: Venerai o altar comum de todos estes deuses; depois sentai-vos neste local sagrado, como um bando de pombas fugindo dos gaviões, que são seus irmãos pelo sangue, mas se tornaram os inimigos que lhes maculam a raça. Como poderia ser pura a ave que outra ave devora? E como pode ser puro o homem que teima em desposar uma mulher contra a sua vontade e a do pai dela? Não, nem mesmo depois da morte, no domínio de Hades, esse homem escapará ao castigo da luxúria, se assim se conduziu. Aí também, dizem que outro Zeus julga soberanamente os crimes dos mortos. Sede circunspectas e respondei tal como vos aconselhei, se quereis ver triunfar a vossa causa. * O Rei: De que país vem esta gente a que me dirijo? Não está vestida à moda dos Gregos; está ornada com trajes e faixas bárbaras, e tal não é o vestuário das mulheres da Argólida, nem de qualquer outro Estado grego. Que tenhais ousado com tanta desenvoltura vir a este país, sem arautos nem intermediários e sem guias, eis o que me surpreende. Trazeis, é certo, ramos, que, segundo o costume dos suplicantes, depusestes aos pés dos deuses públicos. É o único ponto que me permite conjecturar que estais de acordo com a Grécia. Poderia fazer muitas outras conjecturas, mas estás aí e tens a palavra para te explicares. O Corifeu: Tudo o que sobre os nossos trajes disseste é verdade. Mas tu próprio, a quem me dirijo, quem és? Um simples particular, um arauto, portador do anel sagrado, ou o chefe da cidade? O Rei: Quanto a isso, podes responder-me e falar com toda a confiança. Sou o filho de Palaichthon, nascido da terra, Pelasgos, chefe supremo deste país: do meu nome real vem o nome do povo dos pelasgos, que cultiva esta terra. Sou eu quem manda em toda a região que atravessa o sagrado Estrímon, a partir da sua margem ocidental. Tenho como fronteiras a terra dos Perrebos e o país que fica para lá do Pindo, perto de Peônia, e as montanhas de Dodona, até onde o úmido mar corta os meus limites: daí para cá tudo me pertence. Quanto a esta planície do país de Ápis, foi outrora assim denominada, como preito de gratidão a um profeta médico, Ápis, filho de Apolo, que, vindo do outro lado do golfo, de Naupata, purificou esta região dos monstros que devoravam os mortais, flagelos que a terra produzira, irritada com as podridões geradas de crimes antigos - serpentes fervilhantes, funesta companhia. Graças a remédios radicais, perfeitamente aplicados, Ápis libertou-nos de tais horrores, e, em recompensa, a terra de Argos sempre mistura o seu nome às orações. Eis-te informada do que nos respeita; podes agora elogiar a tua raça e dizer o que tens a dizer. Mas advirto-te de que nestas paragens ninguém gosta de longos discursos. O Corifeu: O meu discurso será breve e preciso: temos a honra de ser originárias desta terra; somos o sangue dessa bezerra que foi mãe de um nobre filho. Eis a verdade; confirmá-la-ei com provas. O Rei: Eis, ó estrangeiras, afirmações incríveis para mim: como é que a raça de Argos pode ser a vossa? Pareceis-vos antes com as mulheres da Líbia e não com as do nosso país: só o Nilo poderia alimentar plantas da vossa qualidade. É certo que também lembrais o tipo das cipriotas, vasado pelos homens em moldes femininos. Também ouvi falar de mulheres nómadas da Índia, que viajam de palanque em camelos, como se estes fossem cavalos, num país vizinho da Etiópia. Se estivésseis armadas com arcos, teria eu decerto conjecturado que seríeis amazonas sem maridos, dessas que comem carne crua. Explica-me, pois, de forma a que eu o entenda, como é que são de Argos a tua origem e o teu sangue. O Corifeu: Não é verdade que se diz que houve outrora neste país de Argos uma guardiã do templo de Hera chamada Io? O Rei: Sim, não há dúvida, e os ecos dessa história assentam em fatos reais. O Corifeu: E não se diz também que Zeus se uniu a ela, embora se tratasse de um simples mortal? [7] E que tais amplexos não escaparam à mirada de Hera? O Rei: E como acabou essa querela real? O Corifeu: A deusa de Argos transformou a jovem em bezerra. O Rei: E Zeus não se aproximou daí em diante dessa bezerra de lindos chifres? O Corifeu: Dizem, pelo contrário, que ele a possuiu sob a forma de um touro. O Rei: Que fez então a poderosa esposa de Zeus? O Corifeu: Colocou perto da bezerra o guarda que tudo via. O Rei: E esse guarda que tudo via e que só guardava uma bezerra, que nome me dizes que tinha? O Corifeu: Argos, filho da Terra, que foi morto por Hermes. O Rei: E que inventou ela ainda contra a desafortunada bezerra? O Corifeu: Um inseto que persegue e apoquenta os bois. O Rei: Ao qual chamam moscardo perto do Nilo. O Corifeu: E assim ela foi expulsa deste país numa correria interminável. O Rei: Também nesse ponto estás perfeitamente de acordo comigo. O Corifeu: E chegou por fim a Canopo e a Mênfis[8]. Aí, Zeus, tocando-a com a mão, fê-la dar à luz uma cria. O Rei: E quem foi esse touro, filho de Zeus, que se honrava de ter por mãe tal bezerra? O Corifeu: Epafo, cujo nome recorda o bom sucesso de Io. O Rei: E de Epafo quem nasceu? O Corifeu: Líbia, que ceifa as espigas da maior região do mundo. O Rei: E que outro ramo dizes que dela saiu? O Corifeu: Belos, que teve dois filhos e foi o pai do meu pai, aqui presente. O Rei: Dize-me então o nome deste homem de avisado semblante. O Corifeu: Dânaos é o seu nome; e tem, como disse, um irmão, por sua vez pai de cinquenta filhos. O Rei: Dize-me também como se chama, por favor. O Corifeu: Chama-se Egito. Agora que conheces a nossa antiga origem, trata-nos como se tivesses diante de ti um rancho de mulheres de Argos. O Rei: Parece-me que efetivamente antigos elos vos unem a este país. Mas como ousastes abandonar o teto pátrio? Que desgraça vos atingiu? O Corifeu: Ó rei dos Pelasgos, os homens estão sujeitos a males de vária sorte. Em lado algum se mostra igual a asa do infortúnio. Quem pudera adivinhar que esta fuga imprevista nos conduziria a Argos, terra da nossa raça, e que buscaríamos aqui asilo contra um odioso himeneu? O Rei: Por que vindes, dize-me, suplicar os deuses desta cidade, com esses ramos recém-cortados envoltos em lã branca? O Corifeu: Para não sermos escravas dos filhos de Egito. O Rei: Porque os odiais ou porque olhaisisso como um crime? O Corifeu: Quem é que gosta de ter dono?! O Rei: O himeneu é para os mortais a forma de aumentarem a sua força. O Corifeu: E também a maneira de escaparem facilmente à indigência. O Rei: Como posso testemunhar-vos a minha piedade? O Corifeu: Não nos entregando aos filhos de Egito, que nos reclamam. O Rei: É perigoso o que me pedes, pode desencadear uma guerra. O Corifeu: Mas a justiça protege os que combatem por ela. O Rei: Sim, se desde o início esteve do vosso lado. O Corifeu: Respeita a popa da cidade coroada com os nossos ramos. O Rei: Estremeço só de ver nestes altares a sombra desses ramos. O Corifeu: Terrível é também a cólera de Zeus suplicante. O Coro: Ó filho de Palaichton, rei dos Pelasgos, escuta-me com benevolência. Olha a suplicante que eu sou, fugindo desesperadamente como bezerra perseguida por um lobo através das rochas escarpadas, mugindo e por fim contando a sua desdita ao boieiro, a cuja proteção se confia. O Rei: Sim, vejo ramos recém-cortados que se balançam sobre esta assembleia dos deuses da cidade ensombrecida. Praza aos céus que a chegada desses cidadãos estrangeiros não nos traga desgraça e que nenhuma querela inesperada e imprevista desabe sobre a nossa terra pacífica. Coro: Queira a deusa dos suplicantes, Témis, filha de Zeus que dispensa os destinos, voltar um olhar sobre nós, para que a nossa fuga não tenha consequências desastrosas. E tu, por muito sábio e venerando que sejas - e é-lo de fato -, não te envergonhes de aprender com uma jovem como eu que, respeitando um suplicante, asseguras a tua prosperidade, pois os deuses agradecem as oferendas que lhes vêm de um coração puro. O Rei: Não estais sentada na pedra do meu lar. Se é a comunidade de Argos a ofendida, ao povo cumpre decidir em assembleia geral o remédio para a afronta. Quanto a mim, nada posso prometer-vos antes de comunicar o caso a todos os árgios. O Coro: És tu a cidade; és tu o povo: monarca absoluto, és o senhor do altar, fogo sagrado do país. Os únicos sufrágios aqui são os acenos da tua cabeça; o único cetro, aquele que empunhas no teu trono; tu e só tu decides tudo; não queiras manchar-te. O Rei: Deixo as manchas para os meus inimigos; mas não posso socorrer-vos sem graves danos; e, no entanto, não é humano desprezar as vossas súplicas. Não sei como determinar-me e tenho, ao mesmo tempo, medo de agir e de tentar a sorte. O Coro: Ergue os olhos para aquele que vela, lá em cima, e que protege os inditosos mortais que, dirigindo-se aos seus semelhantes, deles não obtêm a justiça que a lei lhes promete. A cólera de Zeus Suplicante atinge os que ficam insensíveis aos rogos dos infelizes. O Rei: Se os filhos de Egito têm algum direito sobre as vossas pessoas, em virtude das leis do vosso país e se alegarem que são os vossos mais próximos parentes, quem pode competir com eles? Cabe-vos, pois, convencer-me de que eles não têm, de fato, segundo as leis do Egito, qualquer direito sobre vós. O Coro: Deus nos preserve sempre dessa sujeição à autoridade masculina. Para nos preservarmos de um odioso himeneu, decidimos fugir, guiadas pelas estrelas. Aceita a justiça como aliada e julga consoante o respeito que aos deuses se deve. O Rei: Esse julgamento é difícil: não me tomes por juiz. Já te disse que o que me pedes não posso eu fazê-lo sem o povo, admitindo mesmo que me assista tal direito. Não quero que o povo me diga um dia, se por acaso tal desgraça sucedesse: “Para honrares uns recém-chegados, deitaste a perder a cidade.” O Coro: Zeus, de quem descendemos, tu e nós, contempla imparcialmente este debate, ele que implanta naturalmente a injustiça no coração dos maus e a piedade no coração dos que observam a lei. Se desse modo ele mantém o equilíbrio da balança, por que havias tu de lamentar um ato justo? O Rei: Preciso, para nos salvarmos, de uma reflexão profunda e de um olhar penetrante que nenhuma embriaguez possa turvar e mergulhe nos abismos como um pescador de esponjas, a fim de que nada disto chame a desgraça sobre a cidade, senão que termine em bem a meu próprio contento. Nem quero desencadear uma guerra de represálias nem quero, entregando-vos assim prosternadas ante o altar dos deuses, causar a ruína da minha casa, acendendo a cólera do terrível deus vingador que, mesmo no Hades, não deixa de atormentar os mortos. Não te parece que bem necessito de uma ideia que nos salve? O Coro: Estrofe 1. - Reflete e sê para nós, como deves sê-lo, um piedoso protetor. Não abandones as fugitivas que um ímpio exílio expulsou de longínquas paragens. Antístrofe 1. - Não consintas que nos arranquem a estes altares dos deuses, ó tu, senhor absoluto deste país; reconhece a insolência dos varões e não desafies a cólera divina. Estrofe 2. - Não deixes que na tua presença, desprezando a justiça, eles nos arrastem daqui, do pé destas estátuas, como se éguas fôssemos, agarrando-nos pelas nossas faixas e pelos nossos véus de cerrados fios. Antístrofe 2. - Fica sabendo que, como quer que te determines, os teus filhos e a tua casa serão um dia regidos pela mesma lei. Capacita-te de que Zeus governa com justiça. O Rei: Não o esqueci. Mas eis onde o meu barco vem encalhar: é-me forçoso, contra uns ou contra outros, sustentar perigosa guerra, e o meu barco aqui está parado, como içado por cabrestantes. Em parte alguma diviso uma saída sem dor. Pilhadas que sejam as riquezas de uma casa, podem-se recuperar, e mais até do que as perdidas, assim praza a Zeus, protetor dos bens; se a nossa língua lançou expressões intempestivas, que agitem dolorosamente um coração, pode ainda uma palavra curar o mal que uma palavra causou. Mas para impedir que o sangue dos nossos seja derramado, é preciso fazer muitos sacrifícios e imolar vítimas a numerosos deuses para curar o mal, ou muito me engano eu quanto ao conflito que se aproxima. Mas prefiro parecer ignorante do que bom profeta de catástrofe. Assim os acontecimentos evoluam no melhor sentido contra a minha expectativa. O Corifeu: Após tantas palavras de súplica, digna-te escutar a última. O Rei: Estou ouvindo: fala. Corifeu: Temos cordões e cintos para apertar os vestidos. O Rei: São objetos próprios das mulheres... O Corifeu: Temos aí um bom recurso... O Rei: Explica-me o que queres dizer com isso. O Corifeu: Se não fizeres ao nosso grupo uma leal promessa... O Rei: Que partido contas tirar desses cintos? O Corifeu: Ornaremos estas estátuas com oferendas de um novo gênero. O Rei: Falas por enigmas: explica-te claramente. O Corifeu: Enforcar-nos-emos neste mesmo altar. O Rei: O que acabas de dizer flagela-me o coração. O Corifeu: Até que enfim que compreendeste; consegui abrir-te os olhos. O Rei: Só vejo por todo o lado dificuldades insuperáveis! Uma quantidade de males avança na minha direção como um rio. Eis-me metido num mar insondável de desgraças, sem poder atravessá-lo, nem encontrar porto que se abra à minha desdita. Se não acedo ao vosso pedido, ameaçais-me com inexpiável mácula. Se, pelo contrário, junto destas muralhas tiver de pelejar com os vossos primos, os filhos de Egito, para decidir a vossa querela, correrei o risco de uma amarga derrota, ensanguentando o solo com o sangue dos varões para vos salvar a vós, mulheres. Mas há que temer a cólera de Zeus Suplicante: nada receio no mundo mais do que essa fúria. Tu, ancião, pai destas jovens, pega imediatamente nestes ramos e leva-os para outros altares dos nossos deuses nacionais, a fim de que todos os cidadãos vejam o signo das vossas súplicas e não rejeitem a minha proposta, pois o povo gosta de criticar os seus chefes. Talvez a vista destes ramos desperte alguma piedade; a violência dos perseguidores alevantará depois a indignação, e o povo pôr-se-á do vosso lado. É-se sempre levado a tomar o partido dos mais fracos. Dânaos: É para nós inapreciável favor termos encontrado em ti um protetor que respeita os suplicantes. Mas dá-me companheiros e guias locais, que me escoltem e me ajudem a achar os altares colocados diantedos templos dos deuses da cidade e as suas hospitaleiras moradas. Só assim poderemos caminhar com segurança através da cidade. A natureza deu-nos feições diferentes: o Nilo não alimenta uma raça igual à dos Inacos. Cuidado, que a ousadia não engendre o medo. Já se têm visto pessoas matarem um amigo por ignorância. O Rei: Ide, guardas: o estrangeiro tem razão. Conduzi-o aos altares da cidade, onde se encontram os nossos deuses, e àqueles com quem vos cruzardes dizei, sem vos demorardes com conversas: “É um marinheiro, que levamos ao lar dos nossos deuses”. (Dânaos sai.) O Corifeu: Falaste ao meu pai, que vai cumprir as tuas instruções. Mas eu, que devo eu fazer? Como vais garantir a minha segurança? O Rei: Deixa aí os teus ramos, sinais da tua dor. O Corifeu: Pronto! Aqui os deixo, confio no teu braço e na tua palavra. O Rei: Agora esconde-te na parte plana do bosque sagrado. O Corifeu: E como é que um bosque aberto a todos pode proteger-me? O Rei: Descansa que não te entregamos às aves de rapina. O Corifeu: E se me entregares a gente mais cruel do que os implacáveis dragões? O Rei: A boas palavras responde com boas palavras. O Corifeu: Não é de estranhar que o medo me torne impaciente. O Rei: O medo, a partir de certa altura, é impossível de dominar. O Corifeu: Restitui então a alegria ao meu coração, pelas tuas palavras e pelos teus atos. O Rei: Não te aflijas, o vosso pai não vos deixará por muito tempo sós. Quanto a mim, vou convocar o povo de Argos, para dispor a comunidade a vosso favor, e ensinarei ao vosso pai o que deve dizer. Fica, portanto, aqui e roga aos deuses do país que vos concedam o que desejais obter. Por meu lado, farei o que puder. Assim a Persuasão me acompanhe e a Fortuna secunde os meus esforços. (O Rei sai.) O Coro: Estrofe 1. - Ó rei dos reis, ó venturoso entre os venturosos, poder soberano entre todos os poderes, ó ditoso Zeus, escuta-nos; afasta da tua raça a insolência destes varões, bem digna do teu ódio, e precipita no mar enrubescido o navio negro que nos traz a desgraça. Antístrofe 1. - Volve o olhar para estas mulheres cuja antiga raça remonta a uma avó que te foi querida, e de novo se falará da tua bondade. Lembra-te de que a tua mão tocou Io. Honramo-nos de sermos filhas de Zeus e originárias deste país. Estrofe 2. - Vim por um antigo trilho até estes lugares onde minha mãe pastava as flores, prados de que os bois se alimentavam e de onde Io, perseguida pelo moscardo, fugiu, desnorteada, através de múltiplas nações, até que, fendendo, por ordem do destino; o estreito encapelado que separa os dois continentes, deste passou ao que se lhe opõe. Antístrofe 2. - Corre por terras da Ásia, atravessa toda a Frígia, onde abundam os carneiros, passa pela cidade mísia[9] de Teutras, transpõe os vales da Lídia[10], galopa por sobre os montes dos Cilícios[11], e dos Panfílios, e atinge os caudalosos rios e as ricas e ilustres terras de Afrodite, férteis em trigo[12]. Estrofe 3. - Ei-Ia que chega, sempre picada pelo aguilhão do boieiro alado, à terra sagrada de Zeus, rica em frutos de toda a espécie, à pradaria alimentada pela fusão das neves e assaltada pelo furor de Tifão[13], às margens do Nilo de águas eternamente sãs, enlouquecida, como uma bacante, pelas vexatórias dores e tormentos que lhe causa o aguilhão de Hera. Antístrofe 3. - Os mortais que então habitavam a região empalideceram de assombro ante esse estranho espetáculo e os seus corações sobressaltaram-se, quando viram aquele repugnante animal, misto de ser humano, metade mulher metade bezerra, e ficaram estupefatos perante tal prodígio. E quem foi que então encantou o sofrimento da errante Io, perseguida pelo moscardo? Estrofe 4. - Foi o rei cujo império é ilimitado... Foi Zeus que a libertou, graças à sua força benfazeja e ao seu bafo divino - e correm lágrimas de pudor dos seus olhos aflitos. Mas da semente que ela recebeu de Zeus, segundo uma verídica narração, deu à luz um filho irrepreensível. Antístrofe 4. - Um filho cumulado de bens durante uma longa vida. Aliás, a terra inteira o proclama: “Este filho a quem devemos a vida é sem dúvida o filho de Zeus.” Pois que outro ser teria posto termo ao delírio causado pela insidiosa Hera? Foi obra de Zeus. E quando se diz que a nossa raça provem de Epafo, diz-se a verdade. Estrofe 5. - Que deus poderíamos invocar com mais razão, tendo em conta a justiça dos seus atos? É o nosso próprio pai, o rei que, com a sua mão, plantou a vergôntea de que descendemos, o antigo e poderoso autor da nossa raça, o deus que tudo cura, o deus dos ventos favoráveis, Zeus. Antístrofe 5. - Nenhum poder existe acima do seu; e é tão forte como os mais fortes. Ninguém se senta mais alto do que ele; a ninguém, abaixo dele, tem de prestar honras. Fala e o efeito segue-se: o que o seu espírito decidir logo se cumpre. Dânaos: Tranquilizai-vos, minhas filhas: o povo de Argos está conosco, já foram tomadas medidas decisivas. O Corifeu: Eu te saúdo, meu velho pai, que tão boas novas me trazes. Mas dize-nos em que consistem essas medidas e qual foi a percentagem dos sufrágios populares a nosso favor. Dânaos: Os votos dos cidadãos de Argos não se dividiram, com o que o meu velho coração rejubilou. O éter estremeceu com tantos braços erguidos, quando o povo ratificou, por unanimidade, a proposta de sermos tratados como habitantes do país, como seres livres, que ninguém poderá reivindicar para a escravatura e que serão invioláveis, de quem nenhum habitante, nenhum estrangeiro, poderá apoderar-se, pois, em caso de violência, os naturais desta terra prestar-lhe-ão ajuda, sob pena de serem condenados, por sentença do povo, à atímia ou ao exílio. Tal é a proposta do rei dos Pelasgos, a nosso respeito, na qual adverte a cidade contra o terrível ressentimento de Zeus, deus dos suplicantes, e onde declara que a dupla mácula, ao mesmo tempo estrangeira e nacional, que atingiria a cidade, se esta nos abandonasse, seria inesgotável fonte de desgraça. Depois de ter escutado este discurso, o povo de Argos, sem esperar a proclamação do arauto, ratificou-o por aclamação, com os braços erguidos. Os acentos persuasivos do hábil orador convenceram o povo pelasgo e Zeus triunfou. O Corifeu: Bem, façamos votos de felicidade pelo povo de Argos, em troca do favor que nos concede. Assim Zeus hospitaleiro tome em conta as homenagens que lhe rende a boca dos seus hóspedes e dê plena satisfação aos nossos votos. O Coro: Estrofe 1. - Eis o momento para vós, deuses filhos de Zeus, de realizardes os votos de felicidade que formulamos para este povo. Que jamais a terra dos Pelasgos seja incendiada pelo furor de Ares[14], cujo grito paralisa as danças e ceifa os mortais em campos feitos para outras ceifas! Porque eles tiveram piedade de nós, emitindo este voto favorável; respeitam os suplicantes de Zeus neste nosso rancho desditoso. Antístrofe 1. - Não desdenharam a causa das mulheres, não votaram pelos varões; pensaram no deus que vigia e vinga o crime, sem que com ele se possa lutar. Que casa poderá permanecer insensível quando ele se abate sobre o seu teto com todo o peso da sua cólera?! Honram os seus parentes na pessoa dos suplicantes de Zeus santíssimo. Mas agradarão aos deuses sacrificando em altares puros! Estrofe 2. - Não saiam das nossas bocas, à sombra destes ramos, senão votos de glória para Argos. Nunca a peste esvazie a cidade dos seus homens nem a discórdia intestina avermelhe a terra com o sangue dos cidadãos abatidos! Possa a flor da juventude escapar à foice! Não venha o amante de Afrodite, Ares, o flagelo dos humanos, cortá-la em pleno viço! Reúnam-se os anciões em assembleias junto dos altares ardentes. Assim a cidade será próspera, pois aí será venerado o grande Zeus, o deus acima de tudo hospitaleiro, esse cuja antiga lei regula o destino. Desejamos que continuem a nascer novos filhos de Argos, para que velem pelo país, e que Artemisa Hécata vele, por seu turno, pelos partos das mulheres. Estrofe 3. - Não venha algum flagelo mataros homens de Argos e destruir a cidade, armando Ares, deus das lágrimas, que silencia os coros e a Cítara e ergue os clamores da guerra civil! Vá o triste enxame das doenças pousar longe das cabeças dos cidadãos e seja o deus do Liceu[15] propício a toda a mocidade! Antístrofe 3. - Faça Zeus que a terra lhe pague um exato tributo de frutos em todas as estações e que as ovelhas que pastam nos seus campos dêem à luz milhares de crias e que tudo prospere, sob o favor das deusas! Façam os aedos[16] ressoar junto dos altares cantos de alegria e as bocas puras unam as suas vozes aos sons da lira! Estrofe 4. - Esperamos que o conselho que governa a cidade, poder previdente que vela pelo bem comum, mantenha as suas prerrogativas e que, antes de armar Ares, afaste as desgraças, mostrando-se conciliador com os estrangeiros. Antístrofe 4. - E que aos deuses protetores do país sejam sempre prestadas as honras que os antepassados lhes rendiam, coroando-se de loiros e imolando-lhes bois. Porque a veneração dos que nos deitaram ao mundo é a terceira lei inscrita no livro infinitamente respeitável da justiça. Dânaos: Eis que ouço votos bem sensatos, minhas filhas; e aprovo-os; agora não vos assusteis se vos der uma inesperada nova. Deste observatório, asilo do nosso grupo suplicante, avisto o navio; é fácil de distinguir e reconheço muito bem a disposição das suas velas, a sua pavesada e a figura da proa, cujos olhos miram a rota em frente e que a nós se nos afigura demasiado dócil ao leme que a dirige, pois nos visita como inimiga. Distingo os marinheiros, cujos membros escuros saem dos seus alvos trajes. Agora já se vêem as outras naves, toda a armada que se aproxima. O navio da frente recolheu a vela ao aproximar-se de terra e avança com grande ruído de remos. O que tendes a fazer é encarar o fato com calma e com prudência e encomendar-vos a estes deuses. Pelo meu lado, vou procurar defensores e advogados. É possível que um arauto ou uma embaixada venham buscar-vos, invocando o direito de vos recuperar. Mas nada disso acontecerá, não tenhais medo. Em todo o caso, se tardar o socorro que vou buscar, não esqueçais a proteção que este local vos assegura. No tempo e no dia marcados, todo o mortal que desprezar os deuses receberá o seu castigo. O Corifeu: Pai, tenho medo, chegaram os navios de asas rápidas. Já não podemos contar com nenhum adiamento. O Coro: Estrofe 1. - Receamos nada ter ganho com a nossa fuga através de mil caminhos. Morremos de pavor, pai. Dânaos: Os cidadãos de Argos emitiram um voto decisivo. Coragem, minhas filhas. Eles vão combater por vós, estou certo disso. O Corifeu: É uma raça maldita a desses insolentes filhos de Egito, ávidos de combates, sabe-o tão bem como eu. O Coro: Antistrofe 1. - Conseguiram, movidos pelo rancor, chegar a estas margens, nos seus barcos de sólida e sombria quilha, com o seu numeroso exército negro. Dânaos: Numerosas são também as tropas que eles aqui encontrarão, com braços endurecidos pelo sol a pino. O Corifeu: Suplico que não me deixes só, meu pai. Uma mulher sozinha nada vale. Marte não a habita. O Coro: Estrofe 2. - Eles só têm funestos pensamentos e desígnios pérfidos, e os seus espíritos impuros, tais como os dos corvos, não querem saber para nada dos altares. Dânaos: Seria para nós, filhas, uma bela vantagem, se eles se tornassem tão odiosos aos deuses como a vós. O Corifeu: Ah!, pai, não serão por certo estes tridentes e a majestade dos deuses que os impedirão de nos pôr as mãos em cima. O Coro: Antístrofe 2. - Com a sua arrogância sem limites, o seu coração ímpio e enfurecido, de uma impudência canina, são inteiramente surdos à voz dos deuses. Dânaos: Mas diz-se que os lobos são mais fortes do que os cães e o fruto do papiro não é superior à espiga de trigo[17]. O Corifeu: Como têm também os instintos luxuriosos e sacrílegos dos animais ferozes, temos de evitar cair em seu poder. Dânaos: As manobras de uma armada para ancorar são morosas: há que fazer chegar a terra os cabos que garantem a segurança do navio, e mesmo quando é lançada a âncora, os comandantes não ficam logo inteiramente tranquilos, sobretudo se chegaram a um país sem porto, à hora em que o Sol declina para a noite. A noite causa habitualmente angustia ao piloto prudente. Nem as tropas poderiam desembarcar em condições, sem do barco se assegurarem previamente da fundura das águas, para o lançamento da âncora: e tudo isso leva tempo. Se tens medo, não te esqueças de recorrer aos deuses. Voltarei em breve com socorros. O mensageiro não há de merecer censura da cidade: é velho, sim, mas jovem de espírito e sabe servir-se da língua. O Coro: Estrofe 1. - Ah!, terra montanhosa, digno objeto da nossa veneração, que vai ser de nós? Para onde havemos de fugir, neste país de Ápis, de modo a encontrarmos um esconderijo bem escuro? Se ao menos fôssemos fumo negro que se aproximasse das nuvens de Zeus! Se pudéssemos desaparecer por inteiro e, como a poeira, que, sem asas, se dispersa nos ares, escapar à vista dos outros e morrer! Antístrofe 1. - A minha alma não cessa de estremecer; sinto palpitar o meu coração ensombrecido. O que o meu pai viu, do cimo deste altar, desgraçou-me: morro de medo. Quem me dera poder enfiar a cabeça no nó fatal e enforcar-me antes que um homem execrado ponha as mãos no meu corpo. Antes eu pereça e me torne súdita de Hades! Estrofe 2. - Queria ter no éter um assento contra o qual as nuvens úmidas se mudassem em neve, ou uma rocha escarpada, inacessível, invisível, selvagem, suspensa no ar, um ninho de abutre que me assegurasse uma queda profunda, antes de suportar, contra a minha vontade, um himeneu lacerante! Antístrofe 2. - Antes tornar-me presa dos cães, pasto das aves da Argólida. A morte liberta-nos da dor e dos gemidos. Venha ela antes que eu me deite no leito nupcial! Que outra via poderia encontrar para fugir e furtar-me ao casamento? Estrofe 3. - Elevemos a voz aguda até ao céu, invocando os deuses nos nossos cantos. Depressa chegue o fim das nossas provações e nos sintamos libertas e tranquilas! Olha para nós, pai, e lança sobre a violência os olhares de cólera que ela merece. Respeita as tuas suplicantes, Zeus todo- poderoso, protetor deste país.. Antístrofe 3. - A raça de Egito, esses varões, de uma intolerável insolência que correm atrás de nos, com clamores luxuriosos, querem apoderar-se pela força das fugitivas. Mas és tu só quem rege os pratos da balança. Que podem os mortais levar a cabo sem ti?. Ah! Ah! Eis que sai do navio aquele que nos vem arrancar a este país; já tocou em terra. A morte te arrebate, antes de aqui chegares, ladrão da nossa honra [...][18] Gritemos a nossa angústia. E já o prelúdio das violências que nos preparam. Fujamos, em busca de socorro. O terror triunfa, intolerável, sobre a terra e sobre o mar. Ó rei do país, protege-nos. O Arauto: Corram já para o navio. Vamos! Depressa! Se não, cuidado com os cabelos arrancados, com as ferroadas dos dardos, com as cabeças cortadas em sangrento massacre. A caminho, desgraçadas, a caminho do navio. O Coro: Estrofe 1. - Antes tivesses morrido, ao atravessares as alterosas vagas do mar, e contigo desaparecessem a insolência dos teus senhores e a vossa nave de fortes cavilhas! O Arauto: Vamos lá para o navio [...] Intimo-vos a abandonar este altar. Saiam daí, venham para o navio, mostrem respeito pela vossa cidade. O Coro: Antístrofe 1. - Não quero tornar a ver as águas que nutrem os bois e que fazem nascer nos homens o sangue que dá a vida[19]! O Arauto: [...] Ah! mas vais imediatamente para o navio, quer queiras quer não [...] O Coro: Estrofe 2. - Ai, ai, maldito! tomara ver-te morto, errando na planície líquida, impelido pelos ventos do céu para o promontório arenoso de Sarpédon[20]! O Arauto: Grita, vocifera, chama os deuses. Depois de estares na galera egípcia, já não te atiras ao mar. Grita, uiva, ainda mais amargamente [...] O Coro: Antístrofe 2. - Ai de nós! [...] Só queria que o grande Nilo, que te está vendo, teafastasse para longe de nós, com a tua insolência, e te fizesse desaparecer. O Arauto: Ordeno-te que marches para a galera que se balança sobre as ondas. E depressa! Se tiver de arrastar- vos, não pouparei os anéis dos vossos cabelos. O Coro: Estrofe 3. - Bem dizia eu, pai: o socorro dos altares é a nossa perdição. Sim, arrasta-nos para o mar como uma aranha, passo a passo, o espectro, o espectro negro. Ai! ai!, terra mãe, terra mãe, afasta de nós este atroz energúmeno, ó pai, Zeus, filho da Terra! O Arauto: Inútil. Não temo os deuses daqui: não afeiçoaram a minha infância nem nutrirão a minha velhice. O Coro: Antístrofe 3. - Salta na nossa direção a serpente de dois pés. Como uma víbora morde-me e detém- me. Ai! ai!, terra mãe. Terra mãe, afasta de nós este atroz energúmeno, ó pai Zeus, filho da Terra. O Arauto: Se não te dirigires para o navio como eu ordeno, despedaço-te a túnica, sem contemplações. O Coro: Estamos perdidas. Senhor, tratam-nos de uma maneira ímpia. O Arauto: Senhores ides vós vê-los, e não poucos: os filhos de Egito. Descansai, não podereis queixar-vos de falta de senhores. O Coro: Ah!, chefes que comandais em Argos, ponde termo à violência que nos fazem. O Arauto: Estou vendo que para vos arrancar daí terei de vos arrastar pelos cabelos, visto que fazeis ouvidos moucos às minhas intimações. O Rei: Alto! Que fazes tu aqui, imprudente, que te atreves a desprezar a terra dos Pelasgos? Julgas acaso que vieste ter a uma cidade de mulheres? Para um bárbaro, falas de alto aos gregos. Cometer tal engano é dar mostras de pouco senso. O Arauto: Em que é que errei e faltei à justiça? O Rei: Antes de mais, não sabes comportar-te como deve comportar-se um estrangeiro. O Arauto: Como assim? Apenas trato de reaver o que perdi. O Rei: A que responsáveis pelo país te dirigiste? O Arauto: A um que acima de vós se encontra, a Hermes, deus dos que buscam. O Rei: Dirigiste-te então aos deuses, mas não manifestas o menor respeito pelos deuses. O Arauto: Os deuses que eu honro são os do Nilo. O Rei: Os daqui, para ti, nada significam, pelo visto. O Arauto: Levo comigo estas mulheres, a menos que mas arrebatem. O Rei: Vais arrepender-te, se lhes tocas, e não terás muito que esperar. O Arauto: Estou a ouvir palavras que nada têm de hospitaleiras. O Rei: Não trato como hóspedes os que despojam os deuses. O Arauto: Vou dar conta de tudo isto aos filhos de Egito. O Rei: Vai, que bem me ralo eu com isso! O Arauto: Mas, para saber e poder transmitir mais claramente as coisas, pois cumpre a um arauto dar claramente conta de tudo, como devo exprimir-me? Quem devo eu nomear, quando chegar ao navio, como sendo quem me arrebatou o grupo das primas? Estes debates, não os julga Ares pelas disposições das testemunhas, nem resolve a pendência recebendo dinheiro. É forçoso que primeiro muitos homens caiam, muitas vidas sejam ceifadas. O Rei: Para que hei-de dizer-te o meu nome? Aprenderás a conhecê-lo com o tempo, tu e os teus companheiros. Quanto a estas mulheres, podes levá-las contigo, se elas estiverem nessa disposição, se com piedosas razões a tanto as decidires. O povo de Argos ratificou com voz unânime a resolução de não vos entregar este grupo de mulheres. E essa decisão é como um prego bem pregado e enterrado, que resistirá a todas as violências. São coisas que não gravamos em tabuinhas nem selamos nas dobras de uma folha de papiro. Eis a resposta límpida que te dá uma boca livre. Agora desaparece depressa da minha vista. O Arauto: Fica sabendo que neste mesmo momento desencadeias uma nova guerra. A vitória e a força hão-de vir para o lado dos machos! O Rei: Quanto a machos, encontrá-los-eis também neste país, e dos que não bebem vinho de cevada. (O Arauto retira-se.) Vós todas, com as vossas aias, tranquilizai-vos e entrai na nossa cidade murada, protegida pelo aparelho das suas altas torres. Nela possui o Estado numerosas casas. Eu próprio disponho de um palácio suficientemente amplo. Aqui podereis dispor de habitações confortáveis, que partilhareis com outras pessoas. Mas, se o preferirdes, podereis hospedar-vos em casas onde estareis sós. Tendes a liberdade de escolher o que melhor vos parecer e o que mais vos agradar. Respondo por vós eu e todos os cidadãos que vos garantiram com o seu voto a sua proteção. Por que esperar patrões mais autorizados do que estes? O Corifeu: Como desejaria, ó divino rei dos Pelasgos, ver-te cumulado de bens, em troca dos teus favores! Agora pedimos-te a gentileza de mandares aqui vir o nosso pai, o valente Dânaos, para que nos guie e nos aconselhe. Cabe-lhe a ele decidir em que casas devemos ficar e onde seremos bem acolhidas. Os estrangeiros estão sempre sujeitos à crítica. Façamos por que tudo se passe da melhor maneira. (O Rei sai.) Para que nos estimem e falem de nós sem malícia, colocai-vos, queridas aias, segundo a ordem determinada por Dânaos para cada uma de vós, quando vos inscreveu no nosso dote. Dânaos: Minhas filhas, tendes de oferecer aos cidadãos de Argos votos, sacrifícios e libações como a deuses do Olimpo, pois que, por um acordo unânime, vos salvaram. Escutaram a narração que lhes fiz com a simpatia que os parentes nos inspiram e a indignação que merecem os vossos primos. Deram-me, além disso, esta escolta de satélites armados, para desse modo me honrarem e para me garantirem contra alguma lançada imprevista e mortal que de surpresa me atingisse, o que seria para este país um eterno fardo. Em troca de tais serviços, deveis, se tendes a alma bem formada, redobrar de veneração e de reconhecimento para com eles. E agora, ao lado das numerosas lições de modéstia gravadas na vossa memória pelo vosso pai, inscrevei ainda esta máxima: que só o tempo revela o que vale um grupo de desconhecidos. Todas as línguas estão sempre prontas a dizer mal dos estrangeiros e facilmente se inclinam a sujá-las com insinuações. Por isso peço que não me cubram de vergonha com essa beleza que sobre vós chama o olhar dos homens. Não é fácil olhar o tenro fruto maduro: todos querem meter-lhe o dente, homens e animais, bem no sabeis, os monstros que voam e os monstros que andam sobre o solo. Cypris[21] proclama a atração dos corpos cheios de sumo [ ... ] Todos os homens que passam pelas virgens de formas delicadas lhes volvem olhares de encantamento, vencidos pelo amor. Sabendo isso, guardai-vos de sofrer ofensas que até aqui só conseguistes evitar à custa de fadigas sem conto e lavrando com a quilha do nosso barco grande extensão de mar; não vamos agora cometer erros, que seriam a nossa vergonha e uma alegria para os nossos inimigos. Para nos alojarmos, dispomos mesmo de duas habitações, a que o rei dos Pelasgos nos propõe e a que a cidade nos oferece, e sem termos de pagar aluguer. Mas segui os conselhos do vosso pai: tende em mais alta conta a modéstia do que a vida. O Corifeu: Quanto ao resto, possam os deuses do Olimpo assegurar-nos a felicidade. Agora, quanto à flor da minha beleza, descansa, pai: a menos que os deuses tomem nova decisão, não me afastarei da via que até aqui o meu coração seguiu. (Dânaos sai.) O Coro: Estrofe 1. - Celebremos os venturosos deuses senhores de Argos, os que habitam a cidade e os que habitam as margens do antigo Erásinos. E vós, aias, respondei ao nosso canto. Dirijamos os nossos louvores à cidade dos Pelasgos: não mais havemos de venerar nos hinos nossos as bocas do Nilo, mas os rios que derramam através desta região as suas ondas sossegadas e por múltiplos canais enriquecem o solo com os seus gordos extravasamentos. Antístrofe 1. - Digne-se a casta Artemisa volver sobre o nosso rancho um piedoso olhar e Citereia[22] que não pense em nos impor um himeneu forçado. Reserve o céu tal provação aos nossos inimigos! As Aias: Estrofe 2. - Não esqueçamos Cípris em nossos piedosos cantos; pois ela é, tal como Hera, quase tão poderosa como Zeus. É uma deusa de espírito subtil, e honramo-la pelas suas obras augustas. Perto dela, associados à sua mãe, encontram-se o Desejo e aencantadora Persuasão, a quem ninguém resiste. A Harmonia recebeu também a sua parte do dote de Afrodite, bem como os Amores, com seus ternos gorjeios. Antistrofe 2. - Receamos para as suplicantes os ventos, as dores cruéis, as guerras sangrentas. Por que motivo fizeram eles tão feliz travessia e tão depressa já nos perseguem? Bem pode ser que se cumpra o que o destino marcou. Quem pode ir além do profundo, do impenetrável pensamento de Zeus?! Como tantas outras mulheres antes de vós, é bem possível que acabeis por vos casar. O Coro: Estrofe 3. - Digne-se o grande Zeus afastar de nós o himeneu com os filhos de Egito! As Aias: Mas seria essa a melhor das soluções. O Coro: Não conseguireis vergar a nossa inflexível decisão. As Aias: E vós não conheceis o futuro. O Coro: Antístrofe 3. - Pois se ninguém pode ler no espírito de Zeus, abismo insondável! As Aias: Curai de medir melhor os vossos votos. O Coro: Que medida quereis que observemos? As Aias: Guardai-vos de escrutar com excessiva curiosidade os segredos dos deuses. O Coro: Estrofe 4. - Livre-nos Zeus, nosso senhor, de um casamento detestável, odioso, assim como libertou em boa hora Io dos seus sofrimentos, tocando-a com mão salutar e fazendo-lhe uma doce violência. Antístrofe 4 - Conceda ele a vitória às mulheres - resignamo-nos já ao menor dos males e a metade dos nossos votos - e faça que uma sentença conforme com a justiça se siga às nossas súplicas, de modo a vermo-nos livres graças a algum arranjo divino. [1] Nome dado, na mitologia clássica, ao Egito, a terra sagrada de Zeus Olímpico. [2] As almas dos ancestrais. [3] Epafo, nome que significa etimologicamente o tato de Zeus, ou seja, aquele que nasceu do tato. [4]Segundo o mito mais generalizado, Filomela, irmã de Proene, foi transformada em rouxinol; aqui, porém, Ésquilo atribui essa sorte à própria Proene, mulher de Tereu. [5] Casamento. [6] Artemisa ou Diana, a virgem caçadora, ciosa da sua castidade. [7] Aqui havia uma réplica do Rei, ilegível nos manuscritos. [8] Aqui havia também uma fala do Rei, ilegível nos manuscritos. [9] Região do Noroeste da Ásia Menor - Anatólia Oriental - onde ficavam as cidades de Tróia e de Abido. [10] Antigo pais da Ásia Menor, entre a Mísia e a Cária, pátria do riquíssimo rei Creso, que foi vencido pelos persas. [11] Povo antigo da Ásia Menor, na região do Tauro, próximo de Bagdá, onde surgiram depois os Partos e os Selêucidas (atual Iraque). [12] A Fenícia (atual Líbano), onde se adorava Astarté, deusa do Amor e mãe de Adônis. [13] Tifão era, no antigo Egito, o deus do mal, das trevas e da esterilidade. [14] Ares (ou Marte), deus da guerra. [15] Apolo, o deus do Sol e da Música, que era também o deus das curas. Em grego, Liceu (Lykeion) significava um antigo lugar de passeio, ao pé do templo de Apolo Lício. Foi depois, em Atenas, a escola onde Aristóteles ensinou a filosofia. [16] Poetas, recitadores, contadores de história, por vezes ambulantes. [17] O deus Anúbis tinha cabeça de cão, animal venerado no Egito. enquanto o lobo era o símbolo do povo de Argos. Dânaos pretendia significar que os egípcios, que comiam o fruto do papiro, não venceriam os cidadãos de Argos, que se alimentavam de pão. [18] Passagem ilegível nos manuscritos. [19] Rio Nilo. [20] Promontório da antiga Cilícia, fronteiro a Chipre. [21] Afrodite, nascida, junto de Chipre, numa concha, sobre a espuma do mar. [22] Afrodite Citereia. Afrodite, ou Vênus, tinha um templo magnífico na ilha de Citera, hoje Cérigo. Citera tornou-se símbolo do amor e do encanto.
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