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CULTURA E LINGUAGEM AULA 1 CONVERSA INICIAL As ciências sociais, de uma forma geral, estão preocupadas em descrever e compreender as relações humanas. Estas se desdobram em múltiplas direções: políticas, sociais, econômicas, culturais etc. Tais dimensões abarcam a totalidade da produção da vida humana para além dos elementos biológicos e naturais. A vida humana, com isso, não é apenas um fenômeno evolutivo natural, mas uma produção constante de maneiras de bem viver, que estabelecem limites, normas, percepções, regras morais, definições do “belo”, enfim, modos de vida. Fica claro que essas relações apresentam capacidades únicas do humano, como a produção de um universo compartilhado de símbolos, significados e práticas de transformação da natureza, tudo isso levando à vida em sociedade. Com isso, podemos perceber que o ser humano não é um ente isolado de seu meio, ele está em constante contato com os outros e compartilha meios comuns de produzir sua vida, perceber seu papel social e construir determinados valores, ainda que tácitos, que vão reger sua presença no mundo social. O elemento implícito dessas relações pode ser chamado de cultura, pois se trata de uma forma de vida que está para além de uma percepção consciente dos seres humanos envolvidos nas relações, apontando para uma dimensão “espiritual” das relações, ou seja, dimensões da produção das artes, das ideias, da ciência, literatura e representações sociais. Essa é uma forma de abordar a cultura e, podemos dizer, que poucos conceitos são tão complexos nas ciências sociais como este. Há uma explosão de sentidos da palavra no mundo atual. Falamos em “cultura empresarial”, “cultura das periferias”, “cultura literária”, “científica”, “cultura de massas”, “cultura popular” etc. Tais usos cotidianos apontam para a complexidade do tema e a forma como ele vem sendo tratado em seus sentidos sociais. Nosso objetivo é contribuir para o entendimento dos diferentes sentidos de cultura nas ciências sociais, apresentando as relações entre a cultura e a natureza, a multiplicidade das culturas e sua relação com as artes de uma forma geral. Com tais definições esperamos que vocês compreendam não apenas o processo de produção sócio-histórico da cultura, a forma como ela engendra diferentes modos de vida, mas, sobretudo, compreender o papel que ela desempenha no mundo contemporâneo. Todos esses elementos têm em comum a linguagem, pensada para além do uso da língua materna, ou seja, em sua dimensão de produção de significado para nossas práticas sociais. Por fim, traremos definições das ciências sociais para definirmos com alguma precisão o conceito e, a partir disso, refletir sobre as relações estabelecidas com a psicanálise, em especial o texto O Mal-estar na Civilização (Freud, 2010 [1930]). TEMA 1 – A IDEIA DE CULTURA O debate sobre a cultura enquanto um conceito das Ciências Sociais é relativamente recente na história do pensamento. Ele nos remete aos primórdios da modernidade (séc. XVI), em especial o período de nascimento do capitalismo e os contatos com populações não europeias que levaram a um debate sobre seus modos de vida. Mas é somente com a Revolução Industrial, nos séculos XVIII e XIX, que a cultura entra como uma palavra a ser debatida, passando assim por uma transformação semântica. Segundo Santos (1983): Cultura é palavra de origem latina e em seu significado original está ligada às atividades agrícolas. Vem do verbo Latim “colere”, que quer dizer cultivar. Pensadores romanos antigos ampliaram essa significação e a usaram para se referir ao refinamento pessoal, e isso está presente na expressão cultura da alma. (p. 27) Podemos perceber, com essa definição, que a cultura, em seus sentidos originais, estava ligada diretamente a uma ação feita sobre a natureza, ligada diretamente às sociedades rurais. Nesse aspecto, a cultura estaria ligada ao cultivo da terra para as plantações, por exemplo. O sentido da palavra vai mudando historicamente ao ser aplicada a novos objetos. Os romanos, conforme nos diz Santos (1983), vão aplicá-lo ao cultivo de si, ao cultivo das boas ideias, do bom comportamento e da boa vida. Tais elementos permanecem subjacentes à ideia moderna de cultura, mas apontam para outras questões. No século XIX, com o grande crescimento das cidades e da indústria, isto é, do que ficou conhecido como civilização, ela ganha novos contornos. Tal mudança na ordem social gera impacto nos modos de vida dos sujeitos, que assumem posturas ora críticas, ora elogiosas sobre a forma de vida nascente. Há, na ideia de cultura, uma duplicidade, o primeiro sentido que a liga à natureza, portanto enquanto uma questão orgânica e natural, e a segunda, que aponta para os sentidos daquilo que é produzido pelos seres-humanos em seus grupos sociais, o que podemos chamar de produções do “espírito”, aqui entendido como as produções artísticas, morais, científicas, em suma, produções intelectuais. O que trouxemos até o momento ainda não dá conta da questão fundamental a ser respondida: afinal, o que é cultura? Olhar para essa transformação dos sentidos da palavra nos dá pistas sobre a forma como ela será definida e as maneiras como ela se relaciona como todos os aspectos da vida humana. A partir do que dissemos até o momento, podemos dizer que: Com base em suas raízes etimológicas no trabalho rural, a palavra primeiro significa algo como "civilidade", depois no século XVIII, torna-se mais ou menos sinônima de civilização, no sentido de um processo geral de progresso intelectual, espiritual e material. Na qualidade de ideia, civilização equipara significativamente costumes e moral: ser civilizado inclui não cuspir no tapete assim como não decapitar seus prisioneiros de guerra. (Eagleton, 2000, p. 19) Há, com isso, uma abertura que faz com que a cultura possa der definida de diferentes formas que estão em disputa pela sociedade como um todo. Podemos dizer que cultura é aquilo que separa o ser humano da natureza, isto é, as sociedades, as formas de produzir o mundo, material ou simbolicamente, ela significa, aqui, a separação que há entre os animais e os humanos. Além disso, ela se desdobra em dois elementos, o primeiro como um elogio das conquistas da civilização, seja nos aspectos da racionalidade, das artes, ou da ciência. O segundo como uma crítica a essa mesma civilização, numa tentativa de retorno a um suposto momento em que os sujeitos ainda não haviam sido corrompidos pela sociedade moderna e viviam em comunidades orgânicas e em relações de proximidade. Todos esses elementos se fazem presentes quando falamos de cultura, eles situam os sentidos que ainda hoje são produzidos em nossa sociedade. Portanto, podemos dizer que a ideia de cultura é um objeto de luta política, já que nela vivemos e, a partir dela percebemos os acontecimentos do mundo e nos situamos e situamos os outros na sociedade. Contudo, este é apenas o primeiro passo para entendermos a questão, é preciso ir além e aprofundarmos em alguns desses termos. O primeiro deles é a relação cultura-natureza. Uma dicotomia clássica que está na origem não apenas do debate, mas situa as definições daquilo que podemos chamar de ser humano. TEMA 2 – CULTURA E NATUREZA Quando falamos da relação entre cultura e natureza, adentramos em uma questão insolúvel, ela nos leva a uma pergunta filosófica que muitas vezes recai na metafísica ou em respostas místicas, afinal, o que é o ser humano? Como, em que momento, nos descolamos do mundo animal e nos tornamos seres de linguagem e cultura, que falam, vivem juntos, se entendem e se desentendem? Qualquer resposta a essa pergunta, sobre as origens do ser humano enquanto animal social, recai em especulação. Rousseau dizia que antes vivíamos em um “estado de natureza” em que os seres humanos eram felizes e bondosos, estando aqui a origemdo “bom selvagem”, e que a instauração da cultura e da civilização corrompeu nossa bondade natural. Hobbes busca uma solução diferente, dizendo que o “estado de natureza” era um momento de guerra de todos contra todos e que a essência humana é perversa, no qual o homem é o lobo do homem, em que a sociedade surge para regular os excessos e evitar regular os comportamentos em sociedade. Esses dois exemplos nos mostram que esse descolamento da natureza não tem uma resposta fácil. Mas também nos mostra as formas como a cultura ocidental trata do tema das origens e destinos do humano, sendo estes também temas culturais. Porém, há um fato inescapável, vivemos em um mundo cultural, que definiu a forma das relações sociais e os valores morais que guiam nossos comportamentos, ainda que não tenhamos participado de sua elaboração. Ou seja, ao nascermos, adentramos em um mundo de valores, linguagem e relações (três elementos fundamentais da cultura) que existiam antes de nós e continuarão a existir depois de nossa morte. Mas, afinal, como chegamos a esse estado? O que motivou com que vivêssemos juntos e produzíssemos a vida material da forma como a produzimos? O primeiro ponto a ser destacado sobre essa questão vem de Freud (2010 [1930]): O que buscam os homens? É difícil não acertar a resposta; eles buscam a felicidade, querem se tornar e permanecer felizes. Essa busca tem dois lados, uma meta positiva e uma negativa; quer a ausência de dor e desprazer e, por outro lado, a vivência de fortes prazeres. (p. 29-30) As hipóteses de Freud sobre o mal-estar na cultura (ou civilização) partem da percepção de que o ser humano, no processo de seu desenvolvimento, se depara com elementos incontroláveis, sejam eles provenientes da natureza, do próprio corpo ou das relações que estabelece com outras pessoas. Para o autor, os homens buscam maximizar seu prazer e, ao mesmo tempo, reduzir seu desprazer. Tal meta de maximização do prazer possui seus limites, já que ela depende sempre de objetos – e aqui entendemos objeto como aquilo que está fora do sujeito, podendo ser outro sujeito, ou objetos da natureza. Essa relação com os objetos é onde está, na hipótese freudiana, o surgimento da cultura. Para ele, o que motiva a produção da cultura é a angústia ante o inesperado, ele afirma: O sofrer nos ameaça a partir de três lados: do próprio corpo, que, fadado ao declínio e à dissolução, não pode sequer dispensar a dor e o medo, como sinais de advertência; do mundo externo, que pode se abater sobre nós com forças poderosíssimas, inexoráveis, destruidoras; e, por fim, das relações com os outros seres humanos. (Freud, 2010[1930] p. 31) A cultura surge, portanto, de um duplo movimento. O primeiro a partir de um descolamento do humano da natureza. Os objetos se apresentam em estado bruto e são transformados em outros objetos, a madeira que, a partir do trabalho é transformada em uma mesa, por exemplo. A essa mesa é dada uma função, essa função, que já não é mais do tronco da árvore, é imbuída de sentido – significado – fazendo com que aquilo dado de início naturalmente se torne outra coisa. Tais transformações fazem com que a natureza animal do homem seja desnaturalizada, fazendo com que se produza um novo ritmo de produção da vida, o tempo do trabalho, da caça, do lazer, dos cuidados etc. Esses novos ritmos não são dados isoladamente, o desenvolvimento da cultura a partir da angústia ante o inesperado, a necessidade de controle sobre a natureza faz com que os humanos se aproximem, criando comunidades e construindo uma vida em comum. A produção da cultura, segundo Freud, é uma forma de proteção ante ao descontrole inerente ao mundo natural, é a produção humana de todo um modo de vida em comum, a partir da transformação da natureza. Tal processo gera o mundo humano, feito de linguagem, relações sociais, hierarquias e controle de comportamentos. Isso não quer dizer que há aqui uma evolução, isto é, que todas as culturas levam a um mesmo fim. Cada cultura teve seus modos específicos de produzir sentido para as relações, sejam humanas ou com a natureza. O que se pode dizer é que a cultura produz modos de vida, maneiras coletivas de encarar os desafios impostos pelo mundo e de regular as relações e produções humanas. “Assim, a cultura diz respeito à humanidade como um todo e ao mesmo tempo a cada um dos povos, nações, sociedades e grupos humanos” (Santos, 1983, p. 8). Para concluir, com Freud (2010[1930]), a cultura foi construída na tentativa de proteção e controle ante ao intempestivo e ela não foi feita sem um preço a ser pago. A saída do mundo natural gerou seus efeitos, colocando como centro do processo as relações humanas. TEMA 3 – CULTURA COMO MODO DE VIDA Conforme vimos no tema anterior, na hipótese freudiana a Cultura surge a partir da necessidade de autoproteção humana em relação às intempéries da vida. Com isso, se formam famílias, clãs, comunidades, enfim, agrupamentos humanos de ordem maior que os indivíduos. Tais agrupamentos criam suas formas específicas de produzir riqueza, controlar as relações sociais e proteger seus membros. Pensada dessa forma, a cultura aponta para todo um modo de vida histórico construído pelos seres humanos que está na base de toda a sociedade. Enquanto modo de vida, podemos dizer que a cultura é aquela que disponibiliza valores (morais, éticos e estéticos) para todos os indivíduos. Tais valores se materializam em instituições, em regras tácitas de comportamento e constroem a identidade dos sujeitos sociais que vivem sob uma determinada cultura. Pensar a cultura como modo de vida é, portanto, uma maneira de perceber a diversidade cultural presente no mundo, bem como a diversidade interna à sociedade em que vivemos. Ela nos convida a nos percebermos em sociedade e reconhecer as diferenças como constitutivas do mundo social. A riqueza de formas das culturas e as suas relações falam bem de perto a cada um de nós, já que convidam a que nos vejamos como seres sociais, nos fazem pensar na natureza de todos os seres sociais de que fazemos parte, nos fazem indagar das razões da realidade social de que partilhamos e das forças que a mantém e transformam. (Santos, 1983. p. 9) Dessa forma, ela nos leva a considerar tal processo não como uma evolução linear da humanidade que nos levaria a um modo de vida único, mas nas especificidades históricas que levaram determinados grupos a produzirem sua vida social de determinada forma e não de outra. Além disso, olhar para a diversidade dos modos de vida presentes no mundo nos apresenta a desigualdade das relações entre culturas e sujeitos na sociedade, ao processo de dominação e de relações de poder que fazem com que determinados grupos tenham acesso ou não aos aparelhos institucionais de controle da cultura. Um exemplo desse processo é de se pensar o racismo no Brasil como um processo de dominação cultural que tende a apagar em nossa historiografia as tradições africanas e indígenas que estão na base de nosso modo de vida. Como diz Eagleton, “a cultura [...] não significa uma narrativa grandiosa e unilinear da humanidade em seu todo, mas uma diversidade de formas de vida específicas, cada uma com suas leis evolutivas próprias e peculiares” (2000, p. 24). Essa é a definição que nos permite falar de, por exemplo, cultura indígena, cultura Maia, enfim, a cultura articulada como a identidade de um povo, seus mitos, suas histórias, seu modo de vida como um todo. Além disso, olhar as especificidades históricas de cada uma dessas populações faz com que possamos também relativizar o nosso modo de vida, calcado na chamada civilização ocidental e perceber que ela é também produto de relações históricas, políticas e sociais. “Definir o próprio mundo da vida como uma cultura é arriscar relativizá- la. Para uma pessoa, seu próprio modo de vida é simplesmentehumano; são os outros que são étnicos, indissiocráticos, culturalmente pecualiares” (Eagleton, 2000, p. 43). Chegamos, assim, ao cerne da questão, a cultura como modo de vida parte do reconhecimento da diversidade, deslocando nosso olhar para o nosso próprio modo de vida e relativizando supostos valores universais da civilização. Ela nos mostra que não há processo evolutivo linear, mas que existem diferentes formas de se produzir aglomerados humanos, com diferentes valores e percepções do mundo, o que nos leva a considerar a pluralidade de comunidades e identidades como o único elemento universal presente no mundo da vida. Conforme dissemos, os valores de uma cultura se materializam na sociedade de determinada forma. Nesse ponto, ela é um dos elementos articulados na noção moderna de Estado-Nação. Se desmembramos as duas palavras, podemos dizer que o Estado é aquele que comporta as instituições responsáveis por manter as normas sociais, como o judiciário, responsável pela aplicação e cumprimento das leis, as instituições políticas que organizam as formas de participação social e econômicas, que regulam as maneiras de se produzir bens. A Nação abarcaria com isso os valores que movem determinado país. Isto é, definiria a identidade cultural, os símbolos da pátria, os heróis e os mitos. Isso pode ser pensado quando falamos de Identidade Brasileira, que é um conjunto de valores compartilhados socialmente que dizem o que é ser um bom brasileiro, estipula valores positivos ou negativos para determinados comportamentos como o “jeitinho brasileiro”, ou seja, disponibiliza uma narrativa sobre o nosso passado, o presente e as perspectivas de futuro. Por fim, precisamos destacar que a cultura, enquanto modo de vida, está sempre atravessada por relações de poder. Há uma cultura dominante em toda a sociedade, fazendo com que existam relações de desigualdade entre os seres humanos, fazendo com que determinadas formas de vida sejam desvalorizadas e marginalizadas. Isso gera disputas de poder para mudanças na cultura e que as instituições absorvam essas demandas. Dessa forma, podemos citar a luta, como exemplo, as lutas pelos direitos civis dos negros nos EUA, que levaram ao reconhecimento da cultura negra e a integração dessas comunidades na sociedade americana. Esse aspecto nos mostra que a cultura é um elemento dinâmico da sociedade e, além disso, ela contribui de maneira fundamental em nossa percepção sobre nós mesmos e nossas relações com o mundo. TEMA 4 – CULTURA E CIVILIZAÇÃO Nas discussões que fizemos até o momento fica patente que a cultura é um dos elementos-chave para a compreensão da sociedade. Além disso, podemos observar que ela está calcada sempre na relação com o "outro”, seja este a natureza ou a sociedade. Quando falamos de civilização, o que se torna central são as questões em relação ao outro enquanto humano e social. Ela é, com isso, a amalgama de valores que media e controla essas relações. Além disso, em uma sociedade que carrega os valores civilizacionais (Estado, Direito, Modo de Produção Capitalista, Laicidade), como a nossa, ela também aponta para as relações de poder que sustentam a hierarquia social. De acordo com Freud (2010[1930]): A palavra civilização designa a inteira soma das realizações e instituições que afastam a nossa vida daquela de nossos antepassados animais, e que servem para dois fins: a proteção do homem contra a natureza e a regulamentação dos vínculos dos homens entre si. (p. 49) Contudo, quando pensamos na “civilização” enquanto um modo de vida, conforme visto anteriormente, percebemos que essa forma de organização social é apenas mais uma dentre várias outras que se estabeleceram historicamente. Esse fato aponta para uma das contradições da civilização, ela estipula um pensamento universal sobre o humano, baseado em valores locais – especialmente na Europa – e faz com que esse particular ganhe área de universal, concretizando um processo de poder e dominação que esteve na base do colonialismo. Dessa forma, ela aponta para dois aspectos: o primeiro para a ciência antropológica, que busca conhecer esse “outro” da sociedade, e o segundo para o projeto de dominação política de diferentes povos, que esteve na base dos processos coloniais (Santos, 1983). Temos, portanto, o seguinte cenário: Cultura pode por um lado referir-se à alta cultura, à cultura dominante, e por outro, a qualquer cultura. No primeiro caso, cultura surge em oposição à selvageria, à barbárie; e cultura é então a própria marca da civilização. Ou ainda, a alta cultura surge como marca das camadas dominantes da população de uma sociedade; se opõe à falta de domínio da língua escrita, ou à falta de acesso à ciência, à arte e à religião daquelas camadas dominantes. No segundo caso, pode-se falar de cultura a respeito de qualquer povo, nação, grupo ou sociedade humana. Considera-se como cultura todas as maneiras de existência humana. (Santos, 1983, p. 35) Com isso, temos que a cultura como civilização aponta para dois aspectos. Um de caráter normativo, no qual diz-se que determinado povo, ou camada da população, não possui cultura, ou só tem acesso àquilo que de pior foi produzido por ela mesma. Está na base disso os julgamentos estéticos e éticos sobre essas camadas sociais, independentemente de pertencerem a outros países ou não. Ela é uma das bases, por exemplo, do racismo, que visa tratar a população negra de determinada sociedade como inferiores. O outro ponto é de caráter descritivo, ao mostrar que olhar para a nossa sociedade a partir das lentes da cultura é uma forma de compreendê-la a partir do processo histórico, social, político e econômico que a criou e que sustenta a hierarquia social e determinadas formas de dominação. Essa concepção está na base de um pensamento crítico sobre a sociedade, que busca mostrar a não universalidade dos preceitos civilizacionais e que a civilização é uma das formas de dominação de uma camada social por outra. Ela está na base das discussões atuais sobre gênero e sexualidade, identidade cultural e comportamentos típicos de diferentes estratos sociais. Esse segundo ponto é o que mais se aproxima das definições de Freud sobre a relação complexa que temos com a civilização. Se uma das origens dos conflitos são as relações humanas, e estas são mediadas pelos valores culturais dominantes de uma determinada época, logo sempre há uma certa insatisfação em relação ao mundo. Para ele dois são os valores que estão na base da civilização enquanto cultura. Os padrões de ordem, ou seja, uma certa previsibilidade nas relações, o ordenamento jurídico que estipula uma igualdade formal e os padrões de higiene, que se articulam com a ordem, em especial a urbana. Ambas dizem respeito à noção de segurança contra o acaso da vida e do mundo e são balizas das relações humanas criadas a partir dos vínculos de proteção. Com isso, Freud (2010 [1930]) está dizendo que, ao adentrarmos no mundo da cultura, estamos fazendo uma troca. Isto é, trocamos uma porção de nossa liberdade irrestrita, e individual, de satisfação dos instintos por uma porção de segurança, fazendo com que a liberdade seja limitada em prol do coletivo. Esse aspecto é fundamental para o entendimento dos vínculos sociais e para os conflitos culturais. Já que é por meio deles que articulamos nossas identidades com os outros, a quem consideramos como iguais, mas também nossos antagonismos com outros grupos. Por fim, este é um aspecto importante, já que os vínculos estão na base da produção de nossas identidades. As identidades nos constituem enquanto sujeitos, já que incorporamos os valores sociais a nós mesmos, em especial pela linguagem, e vivemos em um mundo social de forma a não percebermos completamente os elementos que estão na base dessa constituição. TEMA 5 – A CULTURA E SUA RELAÇÃO COM A LINGUAGEMVimos até agora que a cultura é todo um modo de vida que produz sentido para aqueles que vivem na sociedade. Esse processo, que se materializa em práticas sociais, instituições e modos de produção está intimamente atrelado ao que podemos chamar de linguagem. Aqui é preciso fazermos uma definição mais ampla do que seja a linguagem. Quando falamos nesse termo, não estamos reduzindo-o apenas à língua nacional que os povos falam, a linguagem é um elemento mais amplo dessa realidade, ela se materializa não apenas na língua, mas nos rituais, nos sinais de trânsito, nos processos jurídicos, nas artes audiovisuais, enfim em todo o processo simbólico que produz reconhecimento dos sujeitos enquanto pertencentes a uma mesma comunidade. Esse processo de simbolização da cultura é fundamental para a compreensão do modo de vida das sociedades, pois é ele que está na base da compreensão do mundo, produzindo sentido para a vida em seu todo e regulando o funcionamento das relações sociais. Segundo Santos (1983): “É a simbolização que permite que o conhecimento seja condensado, que as informações sejam processadas, que a experiência acumulada seja transmitida e transformada” (p. 42). Provém daí a importância da linguagem, as tradições precisam ser passadas de geração em geração para se estabilizar o modo de vida, os valores precisam ser incorporados aos sujeitos para que eles se reconheçam enquanto pertencentes à sociedade. Sem a simbolização – o que podemos chamar também de produção de sentido – não há construção de uma memória coletiva, narrativas não são compartilhadas e as estruturas sociais não podem se reproduzir. Contudo, esse processo de troca simbólica que sustenta a cultura não é algo estanque na sociedade, ele está em disputa e podemos dizer que a cultura de um povo, de uma comunidade ou de uma nação, se dá por um processo de luta pela imposição de valores de determinado grupo. Esse é caso da nossa civilização que, após as revoluções burguesas, a vitória dessa classe social fez com que seus valores fossem universalizados. Podemos citar como valores de base da cultura burguesa hegemônica em nossa sociedade as ideias do indivíduo como o único responsável pelo seu destino e sucesso, o trabalho como categoria central para o reconhecimento social, o estabelecimento da igualdade formal perante a lei no sistema jurídico, o liberalismo econômico e a democracia parlamentar. Tal forma de organização se propõe universal – e de fato possui elementos de universalidade, mas sua origem está ligada aos valores em disputa contra a aristocracia reinante no período pré-moderno. Nessas disputas, comparece também o simbólico como aquele que sustenta a percepção sobre a sociedade e a luta por reconhecimento da existência de diferentes estratos sociais. Podemos citar de exemplo as lutas feministas, que buscam a integração da mulher no mercado de trabalho, as quais buscam alterar os sentidos do que é ser mulher na sociedade na busca pela igualdade de condições de trabalho e salário, ou seja, uma luta cultural por reconhecimento. Além desses exemplos, se nos voltarmos para o sujeito e sua relação com a linguagem, é a cultura que contribui para a autopercepção do lugar social que ocupamos na sociedade, a forma como expressamos nossos sentimentos, e muitas vezes como os sentimos, enfim, a forma como lemos e expressamos o mundo está profundamente relacionada ao processo de simbolização da cultura. O estudo dos processos de simbolização, ou seja, de processos de substituição de uma coisa por aquilo que a significa, que permitem, por exemplo, que uma ideia expresse um acontecimento, descreva um sentimento ou uma paisagem; ou então que a distribuição de pessoas numa sala durante uma conversa formal possa expressar as relações de hierarquia entre elas. (Santos, 1983. p. 41-42) Por fim, é possível afirmar que a cultura está na base do processo social enquanto uma forma de simbolizar essa vida, isto é, à forma como se produz sentido para o mundo, tendo a linguagem como seu fundamento principal. NA PRÁTICA Pensemos na identidade nacional. O que é ser brasileiro? Quais são as práticas sociais características de nosso país? Quais as histórias que contamos que fundamentam a nossa percepção enquanto pertencentes a este país? Além disso, é possível dizer que o discurso sobre “ser brasileiro” possui elementos de dominação de uma região determinada do país em relação às outras? Quais seriam esses elementos? Discuta com seus colegas sobre o processo histórico da formação da identidade nacional. FINALIZANDO Vimos nesta unidade que a cultura é um todo complexo de produção de sentido que está na base das nossas relações sociais. Ela foi a responsável por nos separar do estado de natureza e a fazer com que o humano produzisse algo que estava para além do natural. Com isso, uma série de questões e desentendimento é colocada para nós, como a regulação da vida em comum, a construção dos laços sociais, as práticas materiais que as sustentam e as instituições que se materializam para regular esses vínculos. Além disso, a cultura enquanto civilização pode ser percebida enquanto uma construção histórica, na qual um estrato social obteve hegemonia sobre os outros na determinação da forma como tais vínculos seriam regulados. A civilização, dessa forma, ganha uma duplicidade, ao mesmo tempo em que aponta para um sentido normativo sobre o que é “ser civilizado”, sobre o bom e o belo, ela tem caráter descritivo sobre um modo de vida específico dominante de uma determinada sociedade. O mais importante que precisamos ficar atentos é que a cultura não é algo estanque, ainda que sua mudança seja um processo longo e demorado, ela é de ordem histórico-social e diferentes grupos estão em constante conflito na luta por reconhecimento ou por uma mudança radical nos padrões culturais dominantes de determinada conjuntura. CULTURA E LINGUAGEM AULA 2 Prof. Cícero Costa Villela CONVERSA INICIAL CULTURA E REPRESENTAÇÃO A cultura pode ser definida como um conjunto de práticas, dentre essas práticas temos uma que é de importância central para o entendimento da forma como produzimos os sentidos para o mundo. Estamos falando da prática da linguagem, esta entendida como algo mais amplo que a língua, que abarca imagens visuais, conceitos, rituais, enfim, toda e qualquer prática simbólica que sustenta os significados compartilhados em nossa sociedade. Nesta etapa vamos aprofundar o debate sobre essa relação, buscando compreender como se dão esses entrelaçamentos entre as duas práticas, além do papel da circulação das representações sociais para a mudança e a manutenção de valores culturais. Debater a cultura enquanto um sistema representacional nos coloca no cerne da análise dos conflitos culturais no mundo contemporâneo. Além disso, nos abre a possibilidade de, no futuro, debatermos a questão dos sujeitos sociais, suas lutas por reconhecimento e as disputas de poder por meio da linguagem que sustentam grande parte do debate atual. Nosso objetivo é, portanto, iniciar o debate sobre a relação entre cultura e linguagem a partir do entendimento da relação de ambas enquanto sistemas representacionais (Hall, 2016). Sistemas esses que circulam dentro da sociedade, mas que levam ao questionamento da suposta homogeneidade que se poderia pressupor. Não podemos esquecer que trabalhar tal relação dessa forma retoma a definição de cultura enquanto “modo de vida” de determinada população, comunidade ou estrato social, como afirma Hall (2016), tratá-las dessa forma é entrar naquilo que há de mais atual no debate sobre a cultura, Nos últimos anos, porém, a palavra “cultura passou a ser utilizada para se referir a tudo o que seja característico sobre o “modo de vida” de um povo, de uma comunidade, de uma nação ou de umgrupo social – o que veio a ser conhecido como definição “antropológica”. Por outro lado, a palavra também passou a ser utilizada para descrever os “valores compartilhados” de um grupo ou de uma sociedade – o que de certo modo se assemelha à definição antropológica, mas com uma ênfase sociológica maior”. (Hall, 2016, p.19) Com isso, devemos ter claro que, a partir de agora, sempre que nos referirmos à cultura, estaremos falando da conjunção entre “modo de vida” e “valores compartilhados”, pois são eles que nos permitem pluralizar a abordagem sobre a cultura e que abrem espaço para um trabalho mais amplo das relações com a linguagem. TEMA 1 – O CIRCUITO DA CULTURA O advento da modernidade, com o crescimento das cidades, a revolução industrial e o desenvolvimento econômico, gerou impactos no modo de vida da sociedade. Nesse período, meados do século XIX, houve também o início de uma grande expansão do sistema cultural. Estamos chamando de sistema cultural todo um aparato de circulação da cultura, de valores sociais, que foram fundamentais para o desenvolvimento do consumo da cultura. Trata-se de jornais, revistas, museus, romances literários, enfim, todo um aparato de transmissão e consumo que deslocou as culturas tradicionais, integrando-as – não sem um processo de dominação – aos valores da civilização. O século XX foi ainda mais longe com o desenvolvimento do cinema, televisão, rádio e, atualmente, das redes sociais, ampliando o sistema de produção e consumo cultural, fazendo com que determinados valores circulem de maneira irrestrita por todo o globo. Estamos aqui no cerne daquilo que Adorno (1994) chamava de Indústria Cultural. Vivemos, com isso, em meio a todo um circuito da cultura massificado, produzindo seus efeitos e transformando relações. A Indústria Cultural é a articulação do processo industrial de produção, com seus produtos homogeneizados, voltados para um público amplo, com o processo cultural de produção e circulação de valores sociais. Ou seja, o que a Indústria Cultural vende é o que podemos chamar de “Cultura de Massa”, esta que está embebida de valores sociais da classe dominante. A tese de Adorno (1994) de que a Indústria Cultural seria responsável pela alienação dos sujeitos sociais se sustenta apenas até determinado ponto, já que o autor não leva em conta os processos culturais que mediam o consumo e apropriação desses valores pelas pessoas. Além disso, ele desconsidera que há produções culturais que se situam à margem do sistema. Nesse aspecto, precisamos ampliar essa percepção para entendermos que onde há poder, há resistência, e que os sujeitos se apropriam dessa cultura de maneiras diferentes. Esse é ponto que Du Gay et al. (1997) vão abordar, eles nos falam de um circuito cultural, conforme a figura a seguir: Figura 1 – O Circuito da Cultura Fonte: Du Gay et al., 1997. A articulação desses cinco elementos da cultura nos coloca no cerne da questão da representação, já que ela é o meio privilegiado de produção e circulação de valores sociais, tendo como base a linguagem. Nesse aspecto, entra um novo ponto na definição da cultura enquanto um modo de vida que se sustenta em “significados compartilhados” por meio da linguagem, já que ela é “o meio privilegiado pelo qual ‘damos sentido’ às coisas, onde o significado é produzido e intercambiado. Significados só podem ser compartilhados pelo acesso comum à linguagem” (Hall, 2016, p. 17). Nessa interpretação, os objetos culturais perdem a centralidade dada por Adorno (1994) e ganha destaque a representação, já que, ao articular identidade, regulação, consumo e produção, ela coloca como questão o sujeito e os grupos sociais, e o uso que estes fazem desses produtos. Tais usos que são de ordem prática, de apropriação, tendo a prática significante (sentido) da linguagem como seu fundamento. É por compartilharem sentidos sobre o mundo que os sujeitos podem dizer que pertencem a uma mesma cultura. Basicamente, a cultura diz respeito à produção e ao intercâmbio de sentidos – o “compartilhamento de significados” – entre os membros de um grupo ou sociedade. Afirmar que dois indivíduos pertencem à mesma cultura equivale a dizer que eles interpretam o mundo e maneira semelhante e podem expressar seus pensamentos e sentimentos de forma que um compreenda o outro. (Hall, 2016, p. 20) Estamos dizendo que a prática da linguagem, a produção de sentido, é o que permite que construamos nossas identidades, nossa noção de pertencimento a determinado grupo, cidade, país etc. Ela que sustenta as histórias que contamos, a forma como lemos e interpretamos o mundo e como situamos os sujeitos na sociedade. O sentido é sempre um diálogo, isto é, uma forma de travar contato com outro e, por isso, passível de ser parcialmente compreendido, mas sustentado em uma troca desigual. Esse elemento serve, por exemplo, para pensarmos as concepções que sustentam algumas práticas da sociedade. Quando perguntamos “qual o papel da mulher na sociedade?” estamos fazendo uma pergunta cultural que aponta para os sentidos do que é ser “mulher” e “seu lugar na sociedade”. Tal resposta está embebida em um sistema de valores que situa relações de poder e discrimina os sujeitos sociais. Essas relações sociais, baseadas na desigualdade, são constitutivas de nosso modo de vida. Elas circulam em representações midiáticas, artísticas, discursos políticos e produzem identificações (identidades), fazendo com que os sujeitos se vejam, ou não, na sociedade. Essa circulação é fundamentalmente uma circulação de linguagem, que é o elemento fundamental na “captura” e construção dessas identificações. TEMA 2 – CULTURA E REPRESENTAÇÃO Ao falarmos da cultura enquanto compartilhamento de sentidos, significados, entramos no âmbito da representação. Falar em representação é falar em algo que se coloca no lugar de outra coisa, por exemplo, uma palavra que designa um objeto, um sentimento ou descreve um acontecimento. Dessa forma, falar em representação é falar de todo o sistema simbólico que regula as relações sociais e, ao mesmo tempo, produz o laço social. Como afirma Hall (2016, p. 20), “os significados culturais não estão somente na nossa cabeça – eles organizam e regulam práticas sociais, influenciam nossa conduta e consequentemente geram efeitos reais e práticos”. Há, com isso, todo um processo de compartilhamento social do sistema simbólico que (re)produz valores sociais e que são inculcados historicamente em nossa mente. É preciso ressaltar o fato de a cultura ser uma produção eminentemente humana e que descola os humanos da natureza, por isso o funcionamento da cultura não é marcado biologicamente, mas funciona a partir de sua naturalização, isto é, um certo funcionamento inconsciente, no qual nossos julgamentos estão incluídos, mas não necessariamente passam por um crivo racional do indivíduo. Nesse ponto se situa o fato de que todos os eventos, objetos e pessoas possuem suas representações sociais, ou seja, estão marcadas por um certo circuito que faz funcionar uma série de expectativas em relação ao sujeito social. Em parte, nós damos significados a objetos, pessoas e eventos por meio de paradigmas de interpretação que levamos a eles. Em parte damos sentidos às coisas pelo modo como as utilizamos ou as integramos em nossas práticas cotidianas. É o uso que fazemos de uma pilha de tijolos com argamassa que faz disso uma “casa”; e o que sentimos, pensamos ou dizemos a respeito dessa “casa” um “lar”. Em outra parte ainda, nós concedemos sentido às coisas pela maneira como as representamos – as palavras que usamos para nos referir a elas, as histórias que narramos a seu respeito, as imagens que delas criamos, as emoções que associamos a elas, as maneiras como a classificamos e a conceituamos, enfim, os valores que nelas embutimos. (Hall, 2016, p. 21) O processodescrito por Hall nos mostra como essas representações são deslocadas de uma função inicial a partir de seus usos e associações. No caso em questão ele fala da passagem da “casa” para o “lar”, ambas que designam o mesmo objeto no mundo, mas que representam para os sujeitos diferentes relações com aquilo sobre o que se fala. Esse é um fenômeno fundamental da representação e de sua relação com a cultura, a prática simbólica – que podemos usar como sinônimo de representação – situa os objetos para além deles mesmos, ou seja, não há o objeto em si, sua existência é condicionada a sua função dentro do sistema simbólico da cultura, eles valem por essas relações. Estas que permitem a construção de diferentes sistemas de interpretação da realidade e que são responsáveis pela manutenção dos laços sociais, bem como pelos conflitos culturais. A representação, enquanto sons, gestos, expressões, roupas, imagens são parte do nosso cotidiano, está entremeada de signos que expressam os significados e os valores sociais com os quais nos associamos, eles “funcionam como símbolos que representam ou conferem sentido (isto é, simbolizam) às ideias que desejamos transmitir” (Hall, 2016, p. 24). Ao abordamos a cultura, dessa forma estamos abrindo ainda mais o campo de estudos, já que agora olhamos para a heterogeneidade da cultura dentro de um ambiente social, e não mais para os elementos homogêneos. Pensemos em uma cidade como São Paulo, repleta de tribos urbanas, como punks, hipsters, empreendedores, religiosos etc. Cada um desses grupos compartilha determinados valores entre si, estes estão situados em um espectro mais amplo, ou seja, os valores do Estado, da cidadania e dos direitos e deveres. Porém, ao mesmo tempo, compartilham diferentes valores entre si, em seus modos de vestir, de interpretar o mundo, de se apresentarem socialmente. Essas diferentes formas significam diferentes práticas de vida, pois elas se materializam em seus comportamentos e na forma como eles se apresentam socialmente. São, por isso, culturas diferentes, já que produzem e representam sentidos sociais diferentes sobre a vida e a sociedade. Tal abordagem da cultura, enquanto representação, é uma virada fundamental nas ciências sociais e traz para o centro do debate a questão da linguagem. É exatamente por esse motivo que ela é de relevância para a psicanálise, já que os processos simbólicos são fundamentais na constituição do sujeito, sendo o campo de compartilhamento de valores e da forma como os sujeitos enxergam a si mesmos, a cultura, enquanto modo de vida, ganha elementos mais amplos, já que passa a ser definida em referência à representação. [...] a cultura é definida como um processo original e igualmente constitutivo, tão fundamental quanto a base econômica ou material para a configuração de sujeitos sociais e acontecimentos históricos – e não uma mera reflexão sobre a realidade depois do acontecimento. (Hall, 2016, p. 26) Olhar para a cultura a partir da representação é uma virada fundamental para seu estudo, já que ela traz de volta a dimensão do sujeito, dos usos que ele faz dos diferentes sentidos produzidos e compartilhados socialmente e intervém na disputa por novos significados sociais para determinados grupos e sujeitos, até então apartados, ou não reconhecidos, pela vida comum da sociedade. A linguagem se torna, portanto, o paradigma central de avaliação e estudo da cultura, já que, agora, ela vai buscar compreender o sistema simbólico em seu todo, tendo como fundamento o estudo da vida das representações sociais no seio da sociedade. TEMA 3 – SENTIDO E LINGUAGEM Ao adentrarmos na discussão sobre a cultura como representação, chegamos na consideração do papel central que a linguagem tem para a produção dos vínculos sociais e os nexos de pertencimento a uma cultura. Essa afirmação nos coloca no cerne do paradigma da semiótica – ciência que estuda a vida dos signos na sociedade. O falarmos sobre sentido e linguagem estamos no campo da linguagem enquanto uma prática, como já ressaltamos, e, por isso, ela transborda a descrição da língua somente. Quando falamos em língua nos limitamos ao sistema de representação do mundo por meio das palavras – sejam faladas ou escritas –, já quando falamos de linguagem ampliamos a questão para todos os objetos e práticas que produzem sentido no mundo social. Todavia, o funcionamento da linguagem é similar ao da língua, ambas são sistemas de representação, isto é, podemos afirmar que essas práticas funcionam ‘como se fossem línguas’ não porque elas são escritas ou faladas (elas não são), mas sim porque todas se utilizam de algum componente para representar ou dar sentido àquilo que queremos dizer e para expressar ou transmitir um pensamento, um conceito, uma ideia, um sentimento. (Hall, 2016, p.23-24) O sentido e a linguagem, com isso, ligam-se à cultura por meio da representação. Esta é construída no compartilhamento de signos e de sistemas de interpretação da realidade pelos membros de uma mesma cultura. Além disso, é ela, ao ser a materialização do sistema simbólico como um todo, que possibilita que nos reconheçamos enquanto cidadãos e pertencentes a determinadas comunidades, ou seja, ela é o processo pelo qual a identidade dos sujeitos é produzida. Pensemos, por exemplo, na representação da cruz para os cristãos. Enquanto objeto material ela é apenas a disposição perpendicular de duas tábuas de madeira. Mas quando inserida no contexto da fé, ela se torna outra coisa, ela passa a representar a crucificação, a salvação da humanidade pelo sacrifício de Jesus etc. Ou seja, um objeto é investido de significado e passa a simbolizar toda uma história. Essa simbolização gera reconhecimento dos laços de pertencimento à comunidade cristã, ela é um dos elementos que produz o laço entre esses sujeitos. A produção de sentido por meio das práticas de linguagem, o que estamos chamando de representação, é o que une os conceitos, a linguagem e o mundo dos objetos (físicos ou não). Existem, com isso, dois processos de representação que estão articulados. Como afirma Hall (2016), Primeiro, há o “sistema” pelo qual toda ordem de objetos, sujeitos e acontecimentos é correlacionada a um conjunto de conceitos ou representações mentais que nós carregamos. Sem eles jamais conseguiríamos interpretar o mundo de maneira inteligível. (p. 34) Esse primeiro sistema se dá por um processo de similaridade, quando vemos ou presenciamos um acontecimento, ou descrevemos um sentimento, todo um sistema de sentidos é posto em circulação e faz com que identifiquemos o lugar que esse elemento ocupa. Pensemos, por exemplo, em conceitos abstratos como a “amizade”, ou a “guerra”, elas não são coisas materiais como “mesas” ou “telefones”, mas podemos produzir sentidos sobre essas práticas a partir de conceitos formados em nossa mente – lembre-se, tais conceitos não são individuais, mas produzidos pelo sistema cultural que nós incorporamos em nossa vida. Esse sistema de representação se organiza a partir da relação com a cultura, ela que dispõe as maneiras de agrupar, organizar e classificar os acontecimentos, os indivíduos e estabelece relações entre eles. O ponto que devemos destacar é que não se trata de uma coleção aleatória de conceitos, mas que todo o processo de organização deles que está baseado nas relações que estabelecemos entre nós e os fenômenos do mundo. O sentido funciona, pois depende da relação entre as coisas do mundo – sejam elas reais, ficcionais, pessoas, objetos e acontecimentos – e o mapa conceitual determinado pela cultura que carregamos em nós. Esse é o motivo pelo qual conseguimos estabelecer comunicação, gerar entendimentos, pois os sujeitos pertencentes a uma mesma cultura carregam consigo praticamente os mesmos mapas conceituais em si. “Uma vez que nós julgamos o mundo de forma demaneira relativamente similar, podemos construir uma cultura de sentidos compartilhadas e, então, criar um mundo social que habitamos juntos” (Hall, 2016, p. 36). Mas carregar apenas os mapas conceituais em nossa mente não é o suficiente. Uma cultura é feita de compartilhamento de sentidos, daí a importância do segundo sistema, que é a “linguagem”, ou seja, a prática social de troca de signos que gera o (re)conhecimento dos sujeitos entre si e possibilita a materialização dos sentidos nas representações. A linguagem é um bem comum, todos nós a possuímos, ela é, como diz Saussure (1916), “um tesouro social depositado na mente dos falantes”. Isso significa que temos uma dupla articulação, as representações mentais que temos em nossa mente somente ganham vida na sociedade, ou seja, no compartilhamento delas no mundo. Com isso, não há linguagem individual, ela é sempre pública, no sentido de que os sentidos não são determinados individualmente, mas preexistem a nós mesmos, fazendo com que, ao representarmos o mundo, ele sempre está já relacionado a códigos culturais e sentidos que estão para além da vontade individual. É por esse motivo que não há existência do sujeito fora da cultura, já que a realidade do pensamento só é possível porque há um sistema de correspondências na linguagem que permite que os sentidos sejam sempre compartilhados, mesmo quando discordamos há um sistema comum que nos coloca nessa posição, já que para discordamos é preciso que todos estejamos imersos na linguagem. TEMA 4 – OS CÓDIGOS CULTURAIS O tratamento da linguagem enquanto sistema de representação desloca uma certa concepção referencialista da linguagem. Isso significa que não estamos mais lidando com a relação referencial entre linguagem e coisa, mas com processos de semelhança e articulação de sentidos que têm o sujeito e sua relação com o mundo como um dos elementos fundamentais. A interpretação do mundo passa, com isso, necessariamente pela linguagem compartilhada entre as culturas. Ela estabelece padrões de interpretação para o mundo, isso ocorre pelo processo de introjeção do sistema simbólico pelos sujeitos, fazendo com que surja em meio ao processo as identidades culturais e o sentimento de pertencimento a determinado grupo social. Esse deslocamento entre coisa e representação coloca a noção de sentido como algo mutável, ou seja, o que estabelece determinado padrão de interpretação, ou a nomeação de um acontecimento no mundo se dá por um processo de produção social do sentido. A relação entre signo e referente se torna menos clara, fazendo com que um mesmo acontecimento possa ser nomeado de maneiras diferentes. Um exemplo desse processo está na forma como os jornais nomeiam as lutas por terra do Movimento dos Trabalhadores Sem-Terra (MST). O grupo tem como prática a ocupação de fazendas improdutivas, “ocupação” é o termo que o próprio grupo usa para designar sua ação, enquanto os jornais os nomeiam como “invasão”. Temos, nesse caso, instalado uma disputa de sentido em relação a uma mesma ação que pode ser nomeada de maneiras positivas ou negativas. Isso afeta a percepção pública sobre o evento, seus sujeitos, tendo por base diferentes códigos culturais que sustentam essas percepções. Os códigos culturais, portanto, são formas de estabilizar os sentidos do mundo, já que se levarmos ao extremo esse deslizamento entre signo e referente, a comunicação entre os sujeitos seria impossibilitada. O sentido desses códigos não está no objeto, na pessoa, no acontecimento, ou mesmo na palavra. Somos nós quem fixamos o sentido tão fortemente que, depois de um tempo, ele parece natural e inevitável. O sentido é construído pelo sistema de representação. Ele é constituído e fixado pelo código, que estabelece a correlação entre nosso sistema conceitual e nossa linguagem, de modo que, a cada vez que pensamos em uma árvore, o código nos diz para usar palavra em português ÁRVORE, ou a palavra inglesa TREE. (Hall, 2016, p. 41-42) Podemos definir os códigos culturais como o universo simbólico compartilhado pelas comunidades que estabilizam as relações entre o elemento externo da linguagem, ou seja, as representações, a língua e os mapas conceituais que incorporamos em nós no processo de transmissão da cultura. É preciso levar em conta que esses mapas conceituais não são determinados biologicamente, eles são sistemas de convenções que aprendemos em nosso desenvolvimento, em especial no contato com a linguagem. Esse processo de significação também não se dá por decreto, ele é resultado de um acordo tácito entre os membros da cultura. No seu processo de socialização, as crianças, por exemplo, internalizam, inconscientemente, esses códigos, que vão permitir a expressão das ideias por meio das representações. O código está, com isso, intimamente relacionado com a língua. Esta é um sistema de signos arbitrários, isto é, a razão de se referirem a determinada coisa não possui uma relação necessária. A princípio, qualquer relação de sons e letras pode se referir a determinada coisa. O que conta nos códigos culturais é a relação que sons, letras, conceitos estabelecem entre si. Dessa forma, podemos dizer que a língua tem íntima relação com tais códigos e que todas as línguas expressam valores de diferentes formas, relacionadas com os códigos culturais aos quais pertencem. Um exemplo desse processo pode ser visto na linguagem dos esquimós. Enquanto em nossa língua temos três palavras para fenômenos da água em estado sólido (gelo, neve e granizo), eles, por viverem nesse clima, desenvolveram um vocabulário que é capaz de diferenciar múltiplos aspectos de tal estado. Figura 2 – Termos inuítes para neve e gelo Fonte: Hall, 2016. Percebemos com isso que a relação entre língua e cultura se dá por meio dos códigos compartilhados pelas comunidades humanas. Estes são os responsáveis por todo o sistema simbólico que produz sentido e se materializa nas práticas representacionais da linguagem. TEMA 5 – TEORIAS DA REPRESENTAÇÃO Em termos gerais, podemos dizer que existem três diferentes enfoques para explicar como a representação do sentido funciona por meio da linguagem. Cada uma delas visa responder às seguintes perguntas: “De onde vêm os significados?”; “Como podemos saber dizer o significado verdadeiro de uma palavra ou imagem?”. As diferentes respostas a essas questões apontam para essas diferentes teorias, podemos chamar a primeira de abordagem reflexiva, a segunda de abordagem intencional e a terceira de abordagem construtivista. Na perspectiva reflexiva, o sentido é pensado como repousado, ou pertencente ao objeto, pessoa ou evento. A linguagem funcionaria, dessa forma, como um reflexo do sentido verdadeiro que já estaria dado no mundo. Ela repousa sobre a noção grega de mimesis, ou imitação, já que pensa a linguagem enquanto uma imitação da verdade do mundo real. Tal teoria funciona muito bem na abordagem de imagens realistas, por exemplo, já que nossos mapas conceituais conseguem reconhecer em um quadro a imagem de uma cabra, por exemplo, contudo ela não aborda o fato de que tal imagem é na verdade um signo e que suas relações com mundo real são apenas uma das quais ela estabelece na produção de sentido, já que ela também se articula com os outros signos visuais apresentados na imagem. Hall (2016) vai utilizar a rosa como exemplo para tal funcionamento, É claro, podemos usar a palavra rosa para fazer referência à planta real e verdadeira crescendo no jardim, como dissemos antes. Mas isso funciona porque eu conheço o código que liga o conceito a uma palavra ou imagem particular. Eu não posso pensar, falar ou desenhar com uma rosa verdadeira. (p. 47) Esse caso nos coloca o fato de que a diferença de códigos culturais vai fazer com que nomeemos os objetos da realidade de formas diferentes, ou seja, cada cultura as olhade uma determinada forma, estando ambas corretas. A segunda corrente, chamada intencional, vai tentar resolver esse problema afirmando que o mais importante na representação dos sentidos é a intenção do falante. As palavras vão significar aquilo que o autor pretende que elas signifiquem. Essa teoria funciona até determinado ponto, obviamente quando designamos ou falamos sobre um evento temos uma intenção em dizê-lo e, ao mesmo tempo, de sermos compreendidos em nossas intenções. Contudo, o funcionamento do sentido na cultura extrapola a intenção individual. A língua, por exemplo, está para além dos significados privados que damos aos objetos, ela é pública, fazendo com que os sentidos preexistam àquilo que falamos. Ou seja, a linguagem é sempre social, os sentidos não são produzidos de maneira adâmica pelos locutores individuais. A linguagem é um sistema social por completo. Isso significa que nossos pensamentos privados precisam negociar com todos os sentidos das palavras ou imagens guardadas na linguagem que o uso do nosso sistema inevitavelmente desencadeará. (Hall, 2016, p. 48) Por fim, e esta abordagem esteve no centro de nossa discussão em nossas etapas, temos a abordagem construtivista. Ela vai afirmar que nem as coisas, nem as intenções individuais podem fixar os significados das coisas no mundo. O mundo não possui significado em si mesmo, somos nós que construímos e compartilhamos sentidos, criando laços e colocando o sistema simbólico em funcionamento. São os atores sociais que usam os sistemas conceituais, seja a língua ou outro sistema de representação, fazendo com que ele seja compreensível e, com isso, possa ser comunicado com os outros. Olhada por esse aspecto, a linguagem é vista como um sistema simbólico, no qual os diferentes signos se relacionam com os outros na produção do sentido. E nesse processo de construção coletiva dos sentidos o laço social se realiza. Olhar para a representação, a cultura e a linguagem, dessa forma, é fundamental, pois não há produção de significado para o mundo de forma isolada, ela é sempre assujeitada pelo sistema da língua e da cultura que preexiste a nós, mas é ela também que possibilita a mudança – sempre coletiva – dos significados sociais. É por meio desse sistema que construímos laços, que nos aproximamos uns dos outros, mas que também se estabelecem conflitos e antagonismos. Sendo esse aspecto fundamental para a compreensão do sujeito, seus conflitos e sua relação com o outro. NA PRÁTICA Abra o jornal ou algum portal de notícias de alcance nacional. Nesse site busque as notícias relacionadas às favelas. Olhe para o texto e para as imagens presentes. Agora, responda: quais são as representações que os jornais constroem sobre as favelas? Como elas são vistas? Quais são os sujeitos passíveis de serem encontrados em tais ambientes urbanos? Ao fazer tal análise leve em conta que os jornais são um dos meios de circulação das representações e que, com isso, constroem uma percepção pública sobre a vida na cidade. FINALIZANDO Nesta unidade nos dedicamos a olhar mais de perto a relação entre linguagem e cultura, tendo como eixo explicativo a noção de representação. Vimos que a representação é um elemento fundamental na compreensão do processo de produção de significado para o mundo social. Além disso, tal processo é a base para o entendimento da cultura como compartilhamento de significados, ou seja, uma forma de ler, perceber e interpretar o mundo a partir de determinados signos socialmente compartilhados. A linguagem deve ser vista enquanto uma prática social, que produz e altera o sentido das coisas do mundo, produz laço e possibilita a comunicação. Além disso, ela é um elemento social, “um tesouro social depositado na mente dos falantes”, que se inserem num mundo de sentidos que já existam antes deles. Tal prática da linguagem está no cerne do sistema simbólico que estrutura a nossa percepção do mundo e nossas relações com os outros. Tal sistema se sustenta nos códigos culturais atrelados à nossa língua e as representações que construímos do mundo. Daí a importância de olharmos para uma teoria da representação construtivista, que coloca as relações sociais como fundamentais na produção de significado para o mundo, afastando assim hipóteses da linguagem enquanto imitação ou pura intencionalidade do sujeito. CULTURA E LINGUAGEM AULA 3 Prof. Cícero Costa Villela CONVERSA INICIAL O que veio primeiro, a cultura ou a linguagem? Tal pergunta permeia todo o pensamento filosófico desde a Antiguidade. Com esta, outras perguntas também surgem: como a língua representa a realidade? O que é a língua? Como surgiu a capacidade humana da linguagem? Até aqui traçamos esboços de respostas sobre essas perguntas, tomando a cultura como foco e a representação como aquela que tem por papel ligar cultura, língua à realidade. Nesta etapa, vamos passar para o outro lado da questão e abordar as concepções de língua e linguagem que abriram a questão para a cultura e que deslocaram uma concepção naturalista do signo linguístico. Teremos como enfoque dois autores fundamentais para o pensamento contemporâneo e que se situam nessa interface com questões relativas ao sujeito e à sociedade e, por consequência, à cultura. Abordaremos a concepção de língua de Ferdinand de Saussure, pai da linguística moderna, responsável pelo estatuto científico da linguística e pensador fundamental do campo do pensamento psicanalítico sobre a linguagem. Além dele, veremos as relações entre língua e poder por meio da perspectiva discursiva de Michel Foucault. Tal filósofo foi o responsável por deslocar as noções estruturais do signo e trazer para cena a questão do sujeito, do poder e do discurso. Nosso objetivo é mapear os principais conceitos desses pensadores para nos municiar de perspectivas sólidas sobre os estudos da linguagem que se abrem para a discussão das relações entre sujeito, cultura e realidade. TEMA 1 – SIGNO E REALIDADE O fato de Ferdinand de Saussure ser considerado o pai da linguística moderna não significa que a linguagem tenha se tornado objeto de reflexão apenas da parte dele. Pelo contrário, os filósofos da Antiguidade clássica, da Idade Média e do princípio da modernidade também se debruçaram sobre a relação entre língua e mundo, sobre a origem da língua e sobre como esse sistema funciona. A gramática, a retórica, a poética e a lógica sempre estiveram presentes nessas reflexões, contudo, sempre atreladas a concepções metafísicas sobre o ser humano. Com isso, se pode dizer que a reflexão sobre a linguagem estava subordinada à discussão sobre a consciência do “ser”, colocando o papel do logos, das ideias da mente dos falantes, como central. Nesse primeiro tema, vamos fazer um breve esboço histórico sobre as reflexões acerca da linguagem em diferentes momentos históricos para, com isso, situarmos o debate e as elaborações de Saussure. No século I a.C., os estoicos elaboraram uma teoria da linguagem. Segundo eles: A razão recebe as ideias mediante as sensações, a memória e a experiência. Daí nascem os conceitos. A representação, sendo intelecção pela qual se reconhece a verdade das coisas, permite que haja assentimento, compreensão e pensamento. O pensamento é enunciativo, exprime com palavras o material recebido da representação, que são as proposições completas em si, podendo ser verdadeiras ou falsas porque dizem algo sobre o que foi expresso. No processo de significação, há três elementos: o significado, o signo e a coisa, que pode ser uma entidade física, uma ação, um acontecimento. (Araújo, 2004. p. 19-20) Podemos perceber que essas ideias se relacionam com as questões de representação, já que a língua está sempre atrelada ao mundo, isto é, à “coisa”, sendo que as palavras e as expressões proferidasnecessitam ser verificadas de sua realidade por meio do apontamento da coisa no mundo. É o que podemos chamar de uma teoria veritativa, ou seja, a língua está ligada às condições de verdade de suas expressões que são atestadas empiricamente por meio do olhar, do sentimento e da elaboração. Só há significados porque há fatos significativos. Essa forma de tratar a língua perdura até o século XIX, e ainda hoje tem seus defensores. Entretanto, ela já aponta para a existência do signo. Por exemplo, quando falamos o nome “João”, para os estoicos o signo é a palavra da forma como está aqui, a significação é o processo mental que se estabelece quando se diz ou ouve a palavra e a coisa é como ela se apresenta no mundo. Um avanço sobre esse debate acontece com Santo Agostinho (354-430). Na obra O Mestre, ele vai considerar que falar é exteriorizar a vontade por meio da articulação do som. A linguagem serve, portanto, para ensinar ou para recordar, para a “fala interior” que é o pensamento aderido à memória. A grande novidade em Agostinho é sua concepção de que os signos são formas de relação, em que as palavras seriam sinais verbais que remeteriam a outros sinais. “As orações se compõem de nomes, e a presença do verbo assegura que se trata de uma proposição. Enquanto a palavra resulta da verbalização, isto é, o que se entende quando alguém fala ou escreve algo, o nome relaciona-se ao que o espírito compreende ou conhece” (Araújo, 2004, p. 21). Tal concepção ainda permanece atrelada à noção de referência, isto é, à “coisa”, já que para haver significado é preciso que a palavra aponte para coisas do mundo. O conhecimento verdadeiro seria somente aquele em que as palavras poderiam apontar para elementos realmente existentes na realidade. Dessa forma, o aprendizado da língua não se dá por meio do aprendizado dos sons, estes não tinham significado antes de apontarem para algo. O significado das palavras só será aprendido ao sabermos ao que elas se referem. Essa tradição de pensamento produziu ótimas análises da linguagem, mas sempre atreladas à questão da realidade. Não há aqui uma autonomia da língua, ela ainda está subordinada a uma relação entre sujeito e coisa mediada por uma certa universalidade de que, ao se apontar para uma coisa no mundo, todos as reconhecem como a mesma. Ou seja, a noção de que as culturas afetam a percepção e a produção da língua ainda não estão presentes nessas reflexões. O avanço da modernidade faz com que algumas concepções de língua avancem. A noção do cogito cartesiano abre a possibilidade de separação entre sujeito e objeto, radicalizando a separação entre mundo e língua, ou entre ideia e realidade. Foi com a gramática de Port-Royal (1660) que tal concepção tomou forma. Para esse grupo de pensadores, há de um lado as ideias e de outro lado o mundo, a realidade a ser captada por essas ideias. A linguagem é o elemento que media esse contato, interferindo na relação entre pensamento e ser das coisas. Nesse caso, a linguagem é um elemento útil, mas imperfeito, já que não consegue captar plenamente o significado das coisas, isto é, não atinge a essência do mundo ao se falar sobre ele. Há, contudo, a reflexão de que a língua é um sistema de signos, fato que será importante para o pensamento contemporâneo. Para Port-Royal, a língua é um sistema de signos. As palavras ou expressões são invólucros das ideias. Apenas as ideias ligam-se aos objetos. O nível mais elaborado é o nível lógico das ideias, a língua exterioriza essa lógica, que é o fundo comum por detrás da diversidade linguística, daí a gramática fundir-se com a lógica. As palavras são sons distintos e articulados que se transformam em signos, encarregados de traduzir o que se passa no pensamento, isto é, as operações lógicas, tais como conceber, julgar, raciocinar. As palavras apenas marcam essas operações. (Araújo, 2004, p. 24) O que podemos perceber nessa forma de pensar a língua é um deslocamento das coisas para o sujeito. A língua não é mais uma forma de captar a realidade das coisas, mas a forma como o sujeito expressa, por meio de seu pensamento, o seu raciocínio sobre o mundo. A relação entre língua e referência é dependente da intenção do sujeito e não mais do conhecimento do mundo. Tal forma de enxergar a língua subsiste ainda em concepções centradas no indivíduo, no qual a língua é uma forma de julgar a realidade do mundo, de produzir juízos, colocando o indivíduo como o criador supremo da linguagem que, com base em sua experiência individual expressa o significado do mundo. Existem ainda outros pensadores que trazem questões relevantes sobre a linguagem, como Hobbes e Locke, mas não abordaremos suas concepções, pois elas também estão articuladas com a base das que já vimos até aqui. Se trata de duas formas, uma eminentemente empírica, na qual o significado é produzido do mundo exterior, e outra racionalista, na qual é a elaboração do sujeito sobre o mundo que cria a realidade. Essas duas formas de ver a língua caem ao adentrarmos no pensamento de Saussure, já que, para esse linguista, ao se elaborar a ciência da língua a questão da referência do signo se torna menos importante. É o que veremos a seguir. TEMA 2 – SAUSSURE E SIGNO LINGUÍSTICO Saussure é por muitos considerado o pai da linguística moderna, a ciência que estuda a língua. Seu projeto de pesquisa, publicado com base em notas de seus alunos no Curso de Linguística Geral, visava criar um campo autônomo de estudo sobre a língua e a linguagem deslocado das questões filosóficas e gramaticais que o precederam. Essa perspectiva se afastava da gramática à medida que o estudo da língua não estava voltado para o uso normativo, regras do bem dizer, ou uso correto da língua; seu projeto era estudar a língua no seio do sistema social. Pelo lado filosófico, o pensador retira as discussões sobre o ser e a relação entre língua e coisa da reflexão, tomando a língua enquanto um sistema autônomo e que poderia ser estudada por si mesma. Apesar de ter como foco principal de estudo a língua, Saussure abre espaço para o estudo da linguagem de forma geral, o que ele chama de Semiologia, ou o estudo da vida dos signos na sociedade. Pode-se conceber uma ciência que estuda a vida dos signos no seio da vida social; ela formaria uma parte da psicologia social, e por conseguinte da psicologia geral; nós a chamaremos de semiologia (do grego semeion, “signo”). Ela nos diria em que consistem os signos, que leis os regem. Já que ela ainda não existe, não se pode dizer o que ela será; mas ela tem o direito à existência, seu lugar está previamente determinado. A linguística é apenas uma parte dessa ciência geral; as leis que a semiologia descobrir serão aplicáveis à linguística, e esta se encontrará assim ligada a um campo bem definido no conjunto dos fatos humanos. (Saussure, 1975, p. 33, grifos do autor) Mas como Saussure cria essa ciência? O primeiro ponto, que já mostramos, é o entendimento de que o estudo da língua é parte da Semiologia e que estuda os sistemas de signos na sociedade. A ideia de signo como algo que se coloca no lugar de alguma coisa não é nova, como pudemos ver anteriormente, mas na linguística, ao menos na saussuriana, ele perde a relação com a coisa, passando a ter outro funcionamento descritivo. Pensar as linguagens dessa forma abre espaço para o estudo das culturas. O gesto que possibilita tal autonomia do estudo da língua é a separação entre linguagem, língua e fala. Já vimos a definição de linguagem, como o sistema de signos, mas o que a diferencia da língua? Vamos ao próprio autor: Mas o que é a língua? Para nós ela não se confunde com a linguagem: ela é apenas uma parte determinada da linguagem, essencial, é verdade. É ao mesmo tempo um produto social da faculdade da linguagem e um conjunto de convenções necessárias, adotadas pelo corpo social, parapermitir o exercício dessa faculdade entre os indivíduos. Tomada em seu todo, a linguagem é multiforme a heterogênea, situada em vários campos; ao mesmo tempo física, fisiológica e psíquica, pertence ao domínio individual e ao domínio social; não se deixa classificar em nenhuma categoria dos fatos humanos, porque não se sabe como depreender a sua unidade. A língua, ao contrário, é um todo em si e um princípio de classificação. Logo que lhe damos o primeiro lugar entre os fatos da linguagem, introduzimos uma ordem natural em um conjunto que não se presta a nenhuma outra classificação. (Saussure, 1975, p. 25) Podemos depreender duas questões. A linguagem é formada de signos, assim como a língua. Tais signos fazem parte de convenções adotadas pelo corpo social, contudo, também tem seus aspectos individuais. A língua é vista como um princípio de classificação, isto é, um sistema que funciona não para designar aspectos do mundo real apenas, mas que funciona com autonomia em relação à coisas do mundo. Com isso, temos dois aspectos. A língua enquanto princípio de classificação em si, que tem como referência o social, isto é, ela está para além das vontades individuais, e a fala, que se liga às realizações individuais do sistema da língua. Dessa forma, o foco do estudo da linguística será a língua, pois essa é passível de sistematização, para além dos usos individuais, já que estes apenas reproduzem em ato o sistema linguístico ao qual pertencem. Definimos assim a primeira dicotomia de Saussure, mas ainda há algo que resta a ser dito. Falamos que a língua é composta por signos e, além disso, dissemos que essa noção em linguística não é a mesma dos filósofos da linguagem, já que há um gesto de exclusão feito pelo linguista; aqui o signo não está mais colado à coisa, isto é, a língua não é um sistema de nomenclatura. O signo, unidade fundamental para a linguística, é composto por duas faces, ele une “um conceito e uma imagem acústica” (Saussure, 1975, p. 98). O conceito, podemos definir como a imagem mental, que é produzida ao se falar um determinado som, ou se escrever uma palavra; ele é também designado como o significado. Essa noção está para além da coisa, já que, por exemplo, o significado da letra “A” vai depender de onde ela se situa em uma fala, de modo a ter significado de artigo definido ou marcador de feminino em determinados substantivos. A imagem-acústica, nós podemos associar à forma material com que o signo aparece, seja ela por som ou escrita; é o que o autor chama de significante. Retomando o exemplo anterior, a letra “A” não aponta para uma realidade exterior, para uma coisa, mas para seu funcionamento em relação aos outros elementos que se associam a ela no processo de produção do som ou da frase. Podemos dizer, com isso, que o signo é um elemento fundamental da língua, representado da seguinte forma (Figura 1). Figura 1 – Signo linguístico Fonte: elaborado com base em Saussure, 1975. Fica claro agora que o signo não aponta para uma relação externa à língua, esta é composta pela articulação dos signos. A relação entre significado e significante é eminentemente arbitrária, isto é, não há uma motivação exterior que justifique que uma palavra se conecte a uma determinada ideia. “Assim, a ideia de soeur (“irmã”, em francês) não está ligada por nenhuma relação interior com a sequência de sons s-ö-r (escrita fonética) que lhe serve de significante; ele poderia também ser representado por qualquer outra” (Saussure, 1975, p. 100). Tanto ela é arbitrária que, ao falarmos sobre o que é soeur, a traduzimos para o português “irmã”. Ou seja, a mesma realidade é designada por diferente signo, sem que haja uma relação necessária entre imagem acústica e palavra; elas são o que são, e esse é um postulado da linguística. Dessa forma, Saussure abre o caminho para o estudo da língua por si só, separando os fenômenos passíveis de estudo sistemático, como a língua, dos usos cotidianos e comuns da fala. Ele entende que esse estudo não é histórico, isto é, não se olha para a mudança histórica da língua, o que ele chama de “diacronia”, mas para o estado da língua no presente, na forma como esses signos se articulam no agora, é o que ele chama de “sincronia”. Olhar para a sincronia partindo do fato de a língua ser um sistema de classificação em si mesmo demanda que entendamos como funciona a língua. TEMA 3 – LÍNGUA COMO SISTEMA DE SIGNOS E NOÇÃO DE VALOR Os signos não aparecem isolados na realidade, eles estão sempre articulados, em palavras, frases, textos, sons. Por isso, é fundamental que compreendamos como se constroem os sentidos das coisas, já que, nessa concepção, elas estão apartadas da noção de “coisa” ou “referente”. Em seu funcionamento, a língua é um sistema de puro valor. Dizer que elas são “valor” significa que só se pode analisar uma língua por meio da relação que os signos estabelecem entre si. Voltemos ao exemplo da letra “A”. Se ela aparece na sequência “A, E, I, O, U”, diremos que seu significado é ser uma vogal. É do sistema de vogais de nossa língua, na relação que ela tem com “E”, o fato de ela ser “não E”, que faz com que determinemos seu valor. Quando ela aparece da seguinte forma: “A dentista”, ela agora se torna um artigo definido. Isso se dá pela relação que ela estabelece com o substantivo “dentista”, que demanda que o artigo seja feminino; quando essa mesma letra aparece em “jogadora”, temos que o “A” é designativo do gênero feminino na palavra. É importante perceber que a letra não tem sentido por si só, ela só pode ser determinada por meio da análise do conjunto no qual ela se articula. Essa é a ideia de valor para Saussure. A ideia de valor, assim determinada, nos mostra que é uma grande ilusão considerar um termo simplesmente como a união de um certo som com um certo conceito. Defini-lo assim seria isolá-lo do sistema do qual faz parte; seria acreditar que se pode começar pelos termos e construir o sistema fazendo a soma destes, ao passo que, ao contrário, é do todo solidário que se deve partir, para obter, por análise, os elementos que ele encerra. (Saussure, 1975, p. 157) Essa ideia de valor faz com que consideremos a língua como um sistema de diferenças. Nela não há uma identidade do signo consigo mesmo, sua identidade é dada por meio da cadeia em que ele se insere no sistema da língua. O exemplo de Saussure é entre sheep (“carneiro”) e mutton (“carne de carneiro”); o inglês faz essa diferenciação do estado do carneiro, vivo ou morto, enquanto no francês temos apenas mouton, que é válido para ambos os casos. A diferença de valor entre as duas expressões na língua está em que, no inglês, temos associado a mutton a palavra sheep, enquanto no francês esse valor não se realiza. Ou seja, é da relação interna ao sistema que os signos valem. Como diz o autor: Na língua só há diferenças. E não é só isso: uma diferença supõe, em geral, termos positivos entre os quais ela estabelece; mas na língua, há apenas diferenças sem termos positivos. Quer se tome o significado, quer o significante, a língua não comporta nem ideias nem sons que preexistiriam ao sistema linguístico, mas somente diferenças conceituais e diferenças fônicas provenientes desse sistema. (Saussure, 1975, p.166, grifos do autor) Esse sistema de diferenças e articulações vai ser descrito por Saussure por meio de dois eixos. O primeiro deles é chamado de eixo dos sintagmas, que se dá por intermédio das relações que os elementos consecutivos de um discurso estabelecem entre si. Essas relações podem se dar desde a palavra, como em “amaremos”, em que temos o verbo “amar” como radical e “emos” como designativo do tempo verbal, ou uma frase, como “Eu sou forte”, em que temos as relações entre pronome, verbo e predicativo do sujeito. Essa cadeia sintagmática se dá em razão do caráter linear do significante na
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