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FUNDAMENTOS DA GESTÃO ESCOLAR Luciana Borges Patroclo Artigo científico 1 FUNDAMENTOS DA GESTÃO ESCOLAR: ENTRE AÇÕES E DESAFIOS Luciana Borges Patroclo* RESUMO O artigo foi produzido com o propósito de estabelecer um percurso reflexivo sobre o tema fundamentos da gestão escolar e suas influências no processo de organização do trabalho pedagógico e no funcionamento da escola. No decorrer do texto, é destacada a emergência da gestão escolar democrática ou participativa como a instância organizacional voltada a lidar com as novas demandas e novos desafios enfrentados pelas instituições de ensino nos últimos anos. Acerca do modelo da escola democrática, são apresentados órgãos representativos que contribuem para o estabelecimento de relações horizontais e igualitárias de poder. Também é dedicado espaço ao documento basilar da gestão democrática: o Projeto Político- Pedagógico. A perspectiva de análise abarca as dimensões conceitual, histórica e legislativa, entre outros aspectos. Palavras-chave: Escola. Gestão Escolar. Gestão Escolar Democrática. Organização Escolar. Finalidade Educacional. INTRODUÇÃO “Um país no século XXI e uma educação ainda no século XIX”. A menção a tal colocação se tornou algo costumeiro quando se analisa a situação educacional brasileira. Ressalta-se o fato de a estrutura escolar nacional não estar preparada para enfrentar os desafios da sociedade contemporânea. O mundo vivencia novas concepções de espaço-tempo, a consolidação da sociedade do conhecimento1 e a rápida circulação de informações sem os devidos questionamentos (fake news). Essa realidade vem batendo à porta das instituições educativas. Cada vez mais os estabelecimentos de ensino têm se preocupado em tornar os alunos capazes de “[...] enfrentar adequadamente, dentre outros aspectos, os desafios da sociedade complexa, globalizada e da economia, que passa a centrar-se cada vez mais no conhecimento para o seu desenvolvimento” (LÜCK, 2013, p. 4). Em Professores e alunos frente ao processo de consolidação e crise da escola moderna, Xavier e Chaves (2017) descrevem que tais transformações atingiram diretamente o papel da escola e suas finalidades educacionais. Cenário que resultou na emergência da chamada “crise da escola moderna”. Esse modelo instrucional não mais se encaixa nas demandas do meio social. Além disso, encontra consonância junto ao processo de desconstrução das identidades docen te e discente, as duas em vigência desde o final do século XVIII. *Doutora em Educação pela Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. E-mail: lucianapatroclo@gmail.com. 1Para Libâneo, Oliveira e Toschi (2012), a sociedade do conhecimento se constitui como parte da revolução informacional. Nesse contexto, “as informações circulam de maneira a encu rtar distâncias e reduzir o tempo, o que se deve à multiplicação dos meios, dos modos e da velocidade com que são propagadas ou acessadas atualmente” (p. 66-67). 2 Tais mudanças provocaram a ruptura do consenso em torno dos objetivos do ensino, ao papel da escola e às funções docentes. Além disso, o aumento das demandas dirigidas aos professores não veio acompanhado de uma adequação da inf raestrutura da escola e dos sistemas de ensino , deixando-os sem recursos materiais e logísticos e sem suporte prof issional para lidar com questões que extrapolam o estoque de conhecimentos adquiridos em sua formação. No que se refere aos alunos, torna-se relevante assinalar que, nas sociedades contemporâneas, as crianças encontram acesso a muitos outros meios que lhes abrem distintos universos culturais e a cultura escolar se torna uma entre tantas outras, mais exigente e of icial, mais não é mais a única. (XAVIER; CHAVES, 2017, p. 24-25) As autoras apontam a ocorrência de uma espécie de mal-estar entre a sociedade e as instituições escolares. Além delas, Miguel Arroyo (2016, p.33) também classifica o atual momento educacional como um período de tensões e desequilíbrios. Nesse livro Imagens Quebradas: trajetórias e tempos de alunos e mestres, Arroyo evidencia, via análise das relações entre alunos e professores, a existência de uma falsa harmonia no interior da escola. As reflexões sobre esse cenário dissonante são instituídas a partir do seguinte questionamento: “o que mudou nas escolas?”; e da resposta dada pelos docentes: “os alunos não são mais os mesmos”. No contexto brasileiro, tal percepção teve a década de 1980 como um de seus marcos; momento inicial do processo de ampliação do acesso à escola e de massificação do ensino. As certezas sobre o tipo ideal2 de aluno e o caráter homogeneizador do trabalho pedagógico se esvaíram. Além disso, o aumento do número de matrículas não resultou no decréscimo das desigualdades socioeconômicas. Essa constatação causou rachaduras nas certezas sobre a função da escola e a finalidade da educação. Não poderíamos interpretar o mal-estar docente e a insegurança do pensamento pedagógico tanto progressista como conservador como um indicador de que os tempos desses convívios pacíf icos acabaram? A convivência pacíf ica entre práticas limitadoras do direito à educação e as visões abstratas de cidadania, de educando (as) vêm mostrando seus rostos, sua história, suas trajetórias. Enquanto os mantivemos silenciados pudemos proclamar por eles seu direito de cidadãos abstratos. Dos anos 1980 para cá muita coisa mudou, principalmente nas formas concretas de viver, sobreviver, dos cidadãos concretos. As formas brutais concretíssimas, palpáveis, de reprodução da existência quebraram as visões abstratas da cidadania. Sobretudo as formas inumanas de vivência da infância, adolescência e juventudes populares, desmistif icaram os discursos fáceis da cidadania abstrata. Todo cidadão virou esses cidadãos. Os movimentos sociais vêm colocando os direitos na concretude densa materialidade mais primária onde se joga o jogo pensado da cidadania real e dos direitos reais (ARROYO, 2016, p, 73). As instituições de ensino estáticas e engessadas não conseguem mais responder aos anseios e às angústias de educadores e alunos, tornando-se necessário “reinventar os convívios” entre esses sujeitos participantes da organização escolar (ARROYO, 2016, p. 323).2 Categoria de análise cunhada pelo sociólogo alemão Max Weber (1864-1920). 3 Respeitando-se os contextos temporais distintos, com o propósito de evitar a ocorrência do anacronismo3, é possível identificar o processo de complexificação dos objetivos educacionais ao se observar a primeira Lei Geral da Educação Brasileira, de 15 de outubro de 1827 ou Lei de Primeiras Letras4: Art 6º Os Professores ensinarão a ler, escrever as quatro operações de arithmetica, pratica de quebrados, decimaes e proporções, as nações mais geraes de geometria pratica, a grammatica da lingua nacional, e os principios de moral christã e da doutrina da religião catholica e apostolica romana, proporcionandos á comprehensão dos meninos; preferindo para as leituras a Constituição do Império e a História do Brazil. [...] Art 8º Só serão admittidos á opposição e examinados os cidadãos brazileiros que estiverem no gozo de seus direitos civis e politicos, sem nota na regularidade de sua conducta. (BRASIL,1827) A educação tinha uma dimensão utilitária e estava centrada na aprendizagem do ler, escrever e contar. No ensino direcionado às meninas, esse caráter se sobressaía porque disciplinas como a geometria eram substituídas por aulas de trabalhos manuais, como a costura e o bordado. Na atualidade é possível notar que a finalidade do educar se transformou em múltiplas finalidades. A Constituição Federal5 de 1988 estabeleceu a educação como um direito social obrigatório, estendido a todos os cidadãos brasileiros6 e voltada à formação de indivíduos “para o exercício da cidadania e sua qualif icação para o trabalho”7 (BRASIL, 1988). A legislação aponta ser dever do Estado e da família atuarem juntos na garantia do acesso ao ensino plural8: 3Anacronismo histórico significa analisar determinado contexto do passado com a perspectiva e o olhar da atualidade. 4A Constituição do Império, outorgada em 25 de março de 1824, abordava a temática educacional de maneira sucinta , no Artigo 179: “XXXII. A Instrucção primaria, e gratuita a todos os Cidadãos. XXXIII. Collegios, e Universidades, aonde serão ensinados os elementos das Sciencias, Bellas Letras, e Artes” (BRASIL, 1824). Deve ser observado que o conceito de cidadão tinha caráter excludente e não considerava os escravos inclusos nessa categoria. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/Constituicao/Constituicao24.htm. Acesso em: 15 mai. 2020. 5A Constituição Federal, promulgada em 5 de outubro de 1988, também é denominada Constituição Cid adã. A Carta Magna recebeu tal titulação pelo fato de sua elaboração, ocorrida após o fim do Regime Militar, ter privilegiado a concessão e a garantia de direitos sociais, políticos e civis. Para mais informações, consultar: CARVALHO, José Murilo de. Cidadania no Brasil. O longo caminho. 3. ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002. 6A concessão da educação como um direito social do cidadão , instituída pela Constituição de 1988, encontra consonância na Declaração Universal dos Direitos Humanos, decretada pela Organização das Nações Unidas (ONU) em 10 de dezembro de 1948. O documento ressalta que a “[...] instrução será orientada no sentido do pleno desenvolvimento da personalidade humana e do fortalecimento do respeito pelos direitos humanos e pela s liberdades fundamentais. A instrução promoverá a compreensão, a tolerância e a amizade entre todas as nações e grupos raciais ou religiosos, e coadjuvará as atividades das Nações Unida s em prol da manutenção da paz” (p. 14). Para mais informações, consultar: DECLARAÇÃO UNIVERSAL DOS DIREITOS HUMANOS. Assembleia Geral das Nações Unidas em Paris. 10 dez. 1948. Disponível em: https://nacoesunidas.org/wp- content/uploads/2018/10/DUDH.pdf . Acesso em: 15 maio 2020. 7Esse trecho é referente ao Artigo 205 da Constituição Federal de 1988 . 8O ensino plural se caracteriza como modelo educativo centrado em práticas inclusivas, democráticas e baseadas na diversidade de ideias. Para mais informações, consultar: MIRANDA, Glaura Vasques de. Escola Plural. Estud. av., São Paulo, v.21, n. 60, p. 61-74, Aug. 2007. Disponível em: https://doi.org/10.1590/S0103-40142007000200005. Acesso em: 22 jun. 2020. 4 Art. 206. O ensino será ministrado com base nos seguintes princípios: I - igualdade de condições para o acesso e permanência na escola; II - liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar o pensamento, a arte e o saber; III - pluralismo de ideias e de concepções pedagógicas, e coexistência de instituições públicas e privadas de ensino; IV - gratuidade do ensino público em estabelecimentos of iciais; VI - gestão democrática do ensino público, na forma da lei; VII - garantia de padrão de qualidade. (BRASIL, 1988) O Artigo 206 descreve as relações educacionais e as práticas didático- pedagógicas como um processo complexo, cujo êxito envolve a necessidade de as escolas partilharem de modelos organizacionais e de funcionamento que privilegiem os sujeitos e suas singularidades. A Lei de Diretrizes e Bases de Educação Nacional (LDBEN 9.394/96), promulgada em 20 de dezembro de 1996, reforça o caráter multifacetado do processo educativo ao destacar que ele abrange diferentes redes de sociabilidade: Art. 1º A educação abrange os processos formativos que se desenvo lvem na vida familiar, na convivência humana, no trabalho, nas instituições de ensino e pesquisa, nos movimentos sociais e organizações da sociedade civil e nas manifestações culturais. (BRASIL,1996) A estrutura educacional brasileira aponta que esse cenário ideal preconizado nas legislações educacionais ainda não corresponde à realidade de grande parte das instituições de ensino9. Entre os aspectos que dificultam tal implementação, estão as más condições de trabalho e de remuneração dos educadores; a falta de equipamentos culturais, tecnológicos e de acessibilidade; além da pouca proximidade entre a escola e a comunidade local. Os questionamentos acerca da educação e suas finalidades são refle na organização e no modelo de funcionamento da escola, ou seja, na gestão escolar. Para que as escolas possam dirimir essas problemáticas, as orientações educacionais determinam que elas sejam estruturadas a partir da “gestão escolar democrática” (BRASIL, 1996). Observa-se que o exercício efetivo desse tipo de gestão está relacionado a uma série de alterações no caráter modelar dos estabelecimentos de ensino. Perspectivas de poder centralizadoras e verticalmente hierarquizadas têm sido contestadas em prol de um cenário escolar marcado pela horizontalidade e pelo compartilhamento de decisões. Esse processo não se traduz em tarefa simples porque acarreta modificações na chamada cultura escolar ou cultura organizacional da escola10. Este artigo se configura em espaço de reflexão sobre os diferentes aspectos que perpassam a construção e a implantação da Gestão Escolar democrática. Seu conteúdo está dividido em três capítulos: Gestão Escolar: princípios, conceitos e 9Os dados referentes à estrutura física e organizacional das instituições escolares podem ser acessados a partir dos resultados obtidos pelo Censo Escolar. Essas informações estão presentes no site do Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep). Disponível em: http://portal.inep.gov.br/censo- escolar. Acesso em: 16 maio 2020. 10A categoria cultura escolar engloba o conjunto de normas, condutas e práticas administrativas, pedagógicas sociais, culturais que forjam as relações cotidianas das escolas. Para mais informações, consultar: FARIA FILHO, Luciano Mendes de et al. A cultura escolar como categoria de análise e como campo de investigação na história da educação brasileira . Educação e Pesquisa, São Paulo, v. 30, n.1, p. 139-159, jan./abr. 2004. Disponível em: https://doi.org/10.1590/S1517-97022004000100008. Acesso em: 14 maio 2020. 5histórias; Gestão Escolar Democrática: participação e coletividade; e Órgãos Colegiados: múltiplos espaços e múltiplas vozes. No decorrer do texto são feitas menções à legislação; aspectos históricos; referenciais teóricos; dados contextualizadores da educação brasileira; e outros fatores que possam contribuir para o entendimento dessa temática. 1. GESTÃO ESCOLAR: PRINCÍPIOS, CONCEITOS E HISTÓRIAS Segundo Libâneo, Oliveira e Toschi (2012, p. 438), “a gestão é, pois, a atividade pela qual são mobilizados meios e procedimentos para atingir os objetivos da organização, envolvendo aspectos gerenciais e técnico administrativos”. Os autores definem as escolas como: [...] organizações, e nelas sobressai a interação entre as pessoas para a formação humana. De fato, a instituição escolar caracteriza-se por ser um sistema de relações humanas e sociais com fortes características interativas que a diferenciam de empresas convencionais. (LIBÂNEO; OLIVEIRA: TOSCHI, 2012, p. 237) De acordo com Lück (2006), o termo Gestão Educacional ou Escolar ganhou evidência a partir da década de 1990 e [...] vem-se constituindo em um conceito comum no discurso de orientação das ações de sistemas de ensino e de escolas. Isto porque foi reconhecido como base fundamental para a organização signif icativa e estabelecimento de unidade dos processos educacionais e mobilização das pessoas voltadas para o desenvolvimento e melhoria da qualidade do ensino que oferecem (p. 33). As definições de gestão e escola, bem como o uso dos termos Gestão Escolar e Organização Escolar11, estão envoltas às mudanças pelas quais a educação e os estabelecimentos educativos têm sido alvos no decorrer de décadas e séculos. No contexto educacional brasileiro, o século XIX teve as escolas isoladas como uma de suas estruturas mais costumeiras. Esses estabelecimentos de ensino funcionavam nas casas dos professores. Assim, o espaço da casa também era o espaço da aula12. Na obra Memórias de um Sargento de Milícias, de Manuel Antônio de Almeida (1830–1861), é descrita essa organização do trabalho escolar a partir da matrícula de Leonardo, personagem principal da narrativa, em uma escola isolada: 11Libâneo, Oliveira e Toschi (2012) definem organização escolar como processo de planejamento, estruturação e execução das atividades a serem implementadas na escola. “Assim, a organização escolar refere-se aos princípios e procedimentos relacionados à ação de planejar o trabalho da escola, racionalizar o uso dos recursos (materiais, financeiros e intelectuais) e coordenar e avaliar o trabalho das pessoas, tendo em vista a consecução de objetivos” (p. 436). 12O modelo da escola isolada permaneceu com destaque na educação brasileira até a década de 1930, com a criação do ministério da Educação e Saúde Pública, hoje ministério da Educação (Mec). Para mais informações, consultar: SCHUELER, Alessandra Frota Martinez de. A grandeza da Pátria e a riqueza do Estado: expansão da escola primária do Estado do Rio de Janeiro (1893 – 1930). Revista de Educação Pública, v. 19, n. 41, p. 535 – 550, set./dez. 2010. null null 6 Com efeito foi cuidar nisso e falar ao mestre para receber o pequeno; morava este em uma casa da rua da Vala, pequena e escura. Foi o barbeiro recebido na sala, que era mobiliada por quatro ou cinco longos bancos de pinho sujos já pelo uso, uma mesa pequena que pertencia ao mestre, e outra maior onde escreviam os discípulos, toda cheia de pequenos buracos para os tinteiros; nas paredes e no teto havia penduradas uma porção enorme de gaiolas de todos os tamanhos e feitios, dentro das quais pulavam e cantavam passarinhos de diversas qualidades: era a paixão predileta do pedagogo. O barbeiro entrou acompanhado pelo af ilhado, que f icou um pouco escabriado à vista do aspecto da escola, que nunca tinha imaginado. Era em um sábado; os bancos estavam cheios de meninos, vestidos quase todos de jaqueta ou robissões de lila, calças de brim escuro e uma enorme pasta de couro ou papelão pendurada por um cordel a tiracolo: cheg aram os dois exatamente na hora da tabuada cantada. Era uma espécie de ladainha de números que se usava então nos colégios, cantada todos os sábados em uma espécie de cantochão monótono e insuportável, mas de que os meninos gostavam muito. (1996, p. 27) Conforme a caracterização presente no livro, a estrutura das escolas isoladas era restrita. O currículo era reduzido a uma ou poucas matérias. Não havia as divisões por turmas e idades como conhecemos na atualidade13. Os professores eram os únicos responsáveis por todo o processo de organização e de funcionamento desses espaços de instrução, de modo que controlavam a disciplina e o tempo o escolar. Assim como estipulavam os modelos avaliativos14. Com o advento da Proclamação da República (1889), as elites econômicas, políticas e culturais passaram a defender a instituição de um modelo escolar que se diferenciasse das práticas pedagógicas do Império15. Souza (1998) descreve esse processo de mudança na organização educacional com base na criação da Escola Primária Graduada ou Grupo Escolar16, modelo difundido principalmente após sua adoção pelo estado de São Paulo. Os defensores desse modelo escolar compartilhavam a perspectiva do caráter redentor da educação. Em associação às políticas de cunho higienista17, a 13As escolas isoladas utilizavam o ensino mútuo como método pedagógico. Nesse modelo, o professor ensina o conteúdo para um pequeno grupo de alunos considerados os melhores da turma. Esses alunos ou monitores ficavam responsáveis por transmitir o mesmo conteúdo ao restante do grupo. Para mais informações, consu lta r: GONDRA, José Gonçalves; SCHUELER, Alessandra (Org.). Educação, poder e sociedade no Império brasileiro. São Paulo: Cortez, 2008. 14 É preciso ressaltar que durante o Império existia instituições escolares de caráter modelar e com organização estrutural e curricular amplas. É o caso do Imperial Colégio de Pedro Segundo , fundado em 2 de dezembro de 1837, no Rio de Janeiro. O Colégio Pedro Segundo continua em funcionamento como instituição federal e pública de ensino. Para mais informações, consultar: MENDONCA, Ana Waleska P. C. et al. A criação do Colégio de Pedro II e seu impacto na constituição do magistério público secundário no Brasil. Educ. Pesqui., São Paulo, v. 39, n. 4, p. 985-1000, dez. 2013. Disponível em: https://doi.org/10.1590/S1517- 97022013000400011. Acesso em: 15 maio 2020. 15Por algumas décadas, os autores de referência da história da educação brasileira identificavam o Império com o um período marcado por iniciativas fracassadas no campo do ensino. As atuais produções historiográficas descontroem essa perspectiva ao demonstrarem a pluralidade de ações educativas, institucionalizadas ou não, no período anterior à Proclamação da República . Para mais informações, consultar: GONDRA, José Gonçalves; SCHUELER, Alessandra (Org.). Educação, poder e sociedade no Império brasileiro . São Paulo: Cortez, 2008. 16 De acordo com Souza (1998), os grupos escolares também receberam a denominação elogiosa de Templos de civilização. 17A Revolta da Vacina , ocorrida em 1904, no Rio de Janeiro, então capital da República, nos ajuda a compreender as relações entre os ideais republicanos e as políticas de saúde pública. Para mais informações: 7 escola foi identificada como o espaço ideal para a formação de um novo povo brasileiro. A educação ganhava ares reformadores. Os partidários do regime republicano defendiam a necessidade do país de adequar aos pilares do progresso, da modernidade e da civilidade compartilhados pelas nações europeias. Combinad a a tal ideário estava a transformação da concepção de criança e do conceito de infância18. Nesse contexto, a escolarização primária ganhou destaque. Inicialmente porque se dedicava à formação dacriança, cujas relações como o meio social tinham se modificado. Ao mesmo tempo, constituía-se em arma de combate ao analfabetismo, considerado um dos símbolos de atraso na sociedade brasileira. Um aspecto relevante é que a escola graduada tinha como uma de suas principais funções a colaboração com o processo de construção e legitimação da nação republicana e identidade nacional republicana19: Um amplo projeto civilizador foi gestado nessa época e nele a educação popular foi ressaltada como uma necessidade política e social. A exigência da alfabetização para a participação política (eleições diretas) tornava a difusão da instrução primária indispensável para a consolidação do regime republicano. Além disso, a educação popular passa a ser considerada um elemento propulsor, um instrumento importante no projeto prometéico 20 de civilização da nação brasileira. Nesse sentido, ela se articula com o processo de evolução da sociedade rumo aos avanços econômico, tecnológico, científ ico, social, moral e político alcançados pelas nações mais adiantadas, tornando-se um dos elementos dinamizadores dessa evolução. Por outro lado, responsabilizada pela formação intelectual e moral do povo , e educação popular foi associada ao projeto de controle e ordem social, a civilização vista da perspectiva da suavização das maneiras, da polidez, da civilidade e da dulcif icação dos costumes. (SOUZA, 1998, p. 37) O modelo escolar proposto pelas elites republicanas teve como parâmetro a escola moderna europeia. Essa conformação instituiu novas dimensões no campo formativo e das sociabilidades, configurando-se como uma espécie de marco civilizatório (BOTO, 2017, p. 280). Com a emergência da burguesia como classe econômica e o estabelecimento do iluminismo como referência de pensamento, a dinâmica de transmissão dos saberes apenas pela via familiar cedeu espaço às instituições de ensino. Conforme Boto (2017): Compreendida como um conjunto articulado de ritos, de hábitos, de disposições e de dispositivos educacionais, a forma escolar ident if ica-se como um sistema estruturado perante regras em alguma medida impessoais, as relações de métodos de ensino, as práticas postas em ação CARVALHO, José Murilo de. Os Bestializados: o Rio de Janeiro e a República que não foi. 3. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2009. 18A criança passa a ser identifica da como um ator social em formação. Rompia -se com a representação do adulto em miniatura. No contexto brasileiro esse novo olhar resultou em uma série de polí ticas públicas voltadas à infância. Para mais informações: CAMARA, Sônia. Sob a Guarda da República: a infância menorizada no Rio de Janeiro da década de 1920. Rio de Janeiro: Quarter. 2010. 19Os partidários do novo regime político defendiam o estabelecimento de um novo imaginário brasileiro. Com isso foram construídos novos heróis nacionais e selecionadas novas datas simbólicas para a nação. Para mais informações, consultar: CARVALHO, José Murilo de. Formação das Almas: o imaginário da República no Brasil. São Paulo: Companhia das Letras, 2009. 20Expressão que remete à narrativa mitológica de Prometeu, que rouba o fogo sagrado do Olimpo para leva r a os homens. Os mortais passam a ter acesso ao conhecimento. Metáfora sobre a construção da inteligência e sabedoria humana. 8 na rotina escolar. A forma escolar requer, para seu êxito, a ef icácia na produção e na reprodução de saberes e de modos tópicos de savoir-faire postos em curso pela efetivação da ordem escolar. A escola, faz-se assim, como um particular movimento de socialização específ ica regrado por um tecido muito particular de relações sociais (2017, p. 281). Hilsdorf (2006) aponta que a escola moderna europeia inaugurou uma série de ações pedagógicas que modificaram as relações de ensino-aprendizagem. Em razão da concepção de indivíduo difundida pelos iluministas, centrado na razão, e o processo de formação dos Estados Nacionais europeus, que precisavam alfabetizar e difundir os sentimentos pátrios a uma grande camada populacional, ocorreu o processo de expansão da educação elementar graduada: No f inal do século XVIII, a escola elementar de classes graduadas e modelo simultâneo, onde os alunos de um mesmo nível trabalhavam com o mesmo material, na mesma tarefa e ao mesmo tempo os mesmos conteúdos de leitura, escrita, aritmética, civilidade e religião [...] isso quer dizer, de um lado, que o movimento crescente de alfabetização e escolarização tomou como referência ou padrão essa escola [...]. (p. 183) Como vamos nos deter a seguir, o modelo do grupo escolar brasileiro seguiu os princípios da instrução pública difundidos após a Revolução Francesa (1789). O formato educacional, elementar e popular proposto pelos revolucionários tinha como princípios: o ensino público, gratuito, laico, obrigatório e universal (HILSDORF, 2006, p.188). Boto (2003) e Hilsdorf (2006) fazem menção ao Relatório Condorcet, documento apresentado pelo Marquês de Condorcet (1743-1794) à Assembleia Geral Francesa em 1792. Embora não tenha sido implementado naquele momento, no decorrer do século XIX, os princípios ali defendidos se tornaram basilares para os projetos nacionais de educação de diversos países, inclusive no caso brasileiro. O conteúdo do Relatório defendia a universalização ao ensino elementar como forma de promover a redução das desigualdades sociais, pois a condição financeira não deveria ser o fator primordial para o acesso ao ensino de qualidade. Trazia a dimensão da formação homogênea, em razão da manutenção da harmonia e do bem-estar da coletividade. As escolas primárias ou elementares tinham que acolher meninos e meninas, e compartilhariam dos mesmos conhecimentos, porém a sociedade deveria estabelecer a utilidade da instrução feminina. Condorcet defendia que as mulheres escrevessem livros e tivessem uma participação social mais incisiva, no entanto deixava claro que tais afazeres não poderiam afastar o sexo feminino do papel de mãe. Uma esposa bem instruída poderia cuidar dos filhos de forma aprimorada e exercer a chamada maternidade científica. Transpondo tais concepções europeias para o contexto brasileiro, a Escola Primária Graduada ou Grupo Escolar deflagrou mudanças no entendimento do fazer educação. O Grupo Escolar constituiu uma nova concepção de arquitetura voltada ao ensino (arquitetura escolar). Ao invés de serem ministradas na casa do professor, as aulas foram transferidas para prédios construídos exclusivamente para o cumprimento de finalidade educativa. Professorado e alunado passaram a 9 compartilhar salas de aulas com mobiliário e equipamentos específicos para o ensino21. O acréscimo na quantidade de matrículas acarretou a expansão do quadro docente. A estrutura curricular ampliada estabeleceu não apenas o ensino fragmentado, como também resultou na fragmentação do trabalho docente. As crianças tinham mais conteúdos a serem aprendidos. Assim, foram instalados novos espaços para construção do conhecimento como os laboratórios de ciência e as bibliotecas. A preocupação e os cuidados com a higiene estavam presentes via aulas de educação física, diferenciadas de acordo com o sexo do alunado, e a presença dos gabinetes de saúde. No caminho inverso ao propagado pela escola isolada, os alunos da Escola Primária Graduada passaram a ser divididos por turmas de acordo com critérios etários. Em consonância à estrutura curricular, os conteúdos didáticos também tinham de ser ensinados de forma fracionada: dos assuntos mais fáceis para os mais difíceis (ensino concêntrico). Meninos e meninas poderiam estudar na mesma instituição escolar, mas em turmas separadas e com a manutenção de diferenciações curriculares, por exemplo, as aulas de bordado e costura direcionadas ao público feminino. A coeducação continuava a ser proibida22. Houve o processode racionalização temporal. Os tempos escolares – aulas, intervalo e recreio – passaram a ser determinados por segmentos superiores – direção, legislação e governo – e não mais pelo professor. O processo de construção do grupo escolar como uma nova organização administrativo-pedagógica do ensino primário concretizou-se em poucos anos. Uma escola urbana, moderna e de melhor qualidade. A reunião das escolas trazia todos os princípios fundamentais que propiciaram as mudanças no ensino primário: a racionalização e a padronização do ensino, a divisão do trabalho docente, a classif icação dos alunos, o estabelecimento de exames, a necessidade de prédios próprios com a consequente constituição da escola como lugar, o estabelecimento de programas amp los enciclopédicos, a prof issionalização do magistério, novos procedimentos de ensino, uma nova cultura escolar. (SOUZA, 1998, p. 49-50) Essas transformações também resultaram em modificações na organização e no funcionamento da escola. Tornou-se necessário o desenvolvimento de formas de coordenação das atividades realizadas no ambiente escolar, como também das relações de ensino – aprendizagem. Acerca desse processo de complexificação das ações coordenativas da escola, é possível citar, entre seus marcos legislativos, a reforma da Escola 21Nesse período era comum que equipamentos específicos como os usados nos laboratórios escolares para o ensino Ciências fossem trazidos diretamente da Europa. A importação desses ma teriais encarecia os custos de implementação dos Grupos Escolares. 22As primeiras legislações escolares brasileiras estabeleciam que a formação escolar dos meninos deveria ser conduzida prioritariamente por professores e que as meninas tinham que ser instruídas por docentes mulheres. Os debates em relação à continuidade desse modelo ganharam força no final do século XIX e início do século XX, com a ocorrência do processo de feminização do magistério. Movimento no qual as mulheres passaram a ocupar de forma majoritária as vagas nas instâncias formativas e nas escolas e no mercado de traba lho esco la r. Destaca-se a forte presença feminina nos níveis de ensino iniciais como a educação infantil e o ensino fundamental. Para mais informações, consultar: VILLELA, Heloisa de O. S. O Mestre – Escola e a Professora. In: LOPES, Eliane Marta Teixeira; FARIA FILHO, Luciano Mendes de; VEIGA, Cynthia Greive. 500 anos de Educação no Brasil. 5 ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2011. p. 95-134. 10 Normal23 paulista, ocorrida no final do século XIX24. O Decreto n. 27, assinado em 12 de março de 1890, apresentava nos Artigos 11 e 14 não apenas a ampliação do corpo de funcionários, como também a importância da figura do diretor escolar: Artigo 11. O pessoal da Escola constará do seguinte: 1 Director; 10 Professores (art. 3.°); 6 Ditos contractados (art. 4.°); 1 Professor director da escola modelo annexa do sexo masculino; 1 Professora Directora da escola modelo annexa do sexo feminino; 1 Preparador de physica e chimica; 1 Secretario; 1 Bibliotecario e archivista; 2 Porteiros; 2 Contínuos [...] Artigo 14. O cargo de director será de nomeação do Governo e poderá ser um dos professores da Escola. Em seus impedimentos será substituído pelo professor vitalicio mais antigo, como vice director. (SÃO PAULO, 1890) Para além da ampliação da função escolar, esse cenário fortaleceu a estruturação de relações centralizadoras e hierarquizantes de poder no interior da escola. O Grupo Escolar não conseguiu ser implementado da forma como foi idealizado. Além do fato de não ter propiciado uma real massificação da escola entre as problemáticas observadas estavam o alto custo da construção dos estabelecimentos de ensino. Eram igualmente caros o mobiliário escolar e os materiais pedagógicos provenientes da Europa. Na década de 1930 esse formato pedagógico se tornou alvo de críticas, principalmente pelos partidários da Escola Nova, movimento pedagógico que ganhou espaço no debate educacional brasileiro entre as décadas de 1920 e 1940. O Grupo cunhado no interior da Associação Brasileira de Educação (ABE) era formado por intelectuais – educadores como Anísio Teixeira (1900-1971), Fernando de Azevedo (1894-1974), Lourenço Filho (1897-1970) e Cecília Meireles (1901- 1964). Inspirados nas teorias educacionais do norte – americano John Dewey (1859 - 1952), os escolanovistas criticavam o fato de esse modelo privilegiar o caráter livresco e teórico e não manter qualquer vinculação com as mudanças vividas pela sociedade brasileira. Com o advento da Era Vargas (1930-1945) foram feitos investimentos na indústria e nos meios de comunicação, com destaque para o rádio e o cinema (TEIXEIRA, 1930). 23A reforma da Escola Normal pa ulista ganha destaque porque, até a promulgação da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional de 1996 (LDBEN 9.394/96), era o local oficial de formação dos professores da educaçã o infantil e do ensino primário, hoje ensino fundamental I. Posteriormente a graduação no curso de Pedagogia passou a ser obrigatória (BRASIL, 1996). 24Durante o Império, via assinatura do Ato Adicional de 12 de agosto de 1834, as assembleias provinciais tinham o direito de fundar instituições de ensino conforme a necessidade de localidade em que atuavam. Apenas a estrutura de ensino do Rio de Janeiro, município neutro da Corte, ficava a cargo do governo Central (BRASIL, 1834). Nas primeiras décadas republicanas foi mantida a autonomia dos estados na realização de reformas escolares. A Constituição de 1891, a primeira Carta Magna da República , não se dedicava detalhadamente à instrução pública. O Artigo 72, por exemplo, instituiu o ensino laico nas instituições públicas escolares: “§ 6º - Será leigo o ensino ministrado nos estabelecimentos públicos” (BRASIL, 1891). Como já citado em nota anterior, a criação do ministério da Educação e Saúde Pública (MES), em 1930, acarretou a centralização das decisões educacionais junto ao Governo Federal. 11 Outro aspecto questionado pelos escolanovistas era a centralidade do professor e de seus saberes no processo educacional. Eles ressaltavam que as relações de ensino-aprendizagem tinham de ser deslocadas para atender as necessidades dos alunos. O caráter prático do ensino deveria ser estimulado pela realização de projetos escolares, e o processo educacional tinha que ser estruturado sob as bases científicas da Biologia e da Psicologia. Observa-se que, embora tivessem restrições ao modelo pedagógico da Escola Primária Graduada, algumas instâncias permaneceram como a reprovação e repetência. Em 19 de março de 1932 foi publicado na imprensa o Manifesto dos Pioneiros da Escola Nova ou Manifesto da nova educação ao governo e ao povo. O documento fazia enfática defesa da educação pública, gratuita e laica. Entre outros aspectos renovadores estavam a luta pela coeducação e pela garantia de que a formação para o magistério, em todos níveis de ensino, ocorresse em instituições de ensino superior (2003). O caminhar das propostas escolanovistas perdeu o rumo com a instauração do Estado Novo (1937 – 1945). Os projetos educacionais de cunho modernizante ficaram reféns da política autoritária do Governo Federal e, por consequência, do Ministério da Educação e Saúde Pública25. No decorrer do século XX, o modelo do Grupo Escolar, mesmo alvo de críticas, continuou a ter predomínio na estrutura pedagógica nacional. De mesmo modo, outros modelos e tendências pedagógicas também influenciaram na organização do trabalho escolar. Por consequência, a gestão traz algumas dessas marcas. Esses contextos culminaram no processo atual de questionamento e redefinição da função da escola e das finalidades do ensino. 1.1 A Gestão Escolar e as Tendências Pedagógicas Nacionais A gestão escolar possui duas dimensões básicas de atuação: as dimensões de organizaçãoe as dimensões de implementação. A primeira categoria envolve as etapas de planejamento e a segunda está diretamente alinhada ao fazer acontecer, ou seja, transformar em prática as ações e estratégias elaboradas no processo de organização do trabalho escolar. As dimensões organizativas envolvem: o estabelecimento dos princípios e fundamentos da educação; a estruturação da gestão escoar, o planejamento das ações escolares; avaliação institucional; e análise dos resultados educacionais. As dimensões de implementação são compostas por: gestão democrática e participativa, gestão de pessoas, gestão pedagógica, gestão administrativa, gestão da cultura escolar e gestão do cotidiano escolar (LÜCK, 2009). As dimensões organizativa e de implementação devem convergir para que o processo da gestão escolar possa resultar em ações pedagógicas direcionadas à aprendizagem dos alunos. 25 Durante o Estado Novo, o ministério da Educação teve o perfil centralizador de Gustavo Capanema (1900- 1985) como uma de suas principais características. O ministro Capanema era opositor das ideias educacionais preconizadas por Anísio Teixeira. Sua gestão privilegiou o ensino secundário e o ensino superior, em detrimento da escola primária. Entre os aspectos os que diferenciavam estava a defesa de Gustavo Capanema por um ensino dual: um destinado a formação de mão de obra e outro destinado às classes abastadas cuja formação era vo lta da ao ingresso na universidade. Para mais informações, consultar: BOMENY, Helena. (Org.). Constelação Capanema: intelectuais e política. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2001. 12 O modo como tais dimensões se configuram está diretamente vinculado à organização educacional e à tendência pedagógica na qual a escola está inserida, ou seja, o modelo escolar privilegiado pelo estabelecimento de ensino. A circunstância permite ressaltar que a educação e a gestão escolar possuem uma dimensão histórica que dialoga com as questões de seu tempo. A seguir, vamos nos dedicar a discorrer sobre como esses diferentes modelos influenciaram o pensar sobre a escola e as finalidades do ensino. 1.1.1 Gestão Escolar Técnico-Científica Acerca da relação entre a escola e a tendência pedagógica técnico-científica, é preciso refletir sobre os seguintes conceitos: administração escolar e gestão escolar. Para Lück (2013), administração e gestão não podem ser classificadas como categorias sinônimas quando relacionadas à organização escolar. A autora enfatiza que o caráter administrativo possui noções restritivas sobre o funcionamento da escola e seus participantes. De forma errônea, a administração escolar26 suplanta a condicionante de pessoalidade do processo educacional. Por outro lado, a gestão escolar enfatiza a importância da noção de sujeito e subjetividade: [...] em vista do que demandam visão global e abrangente, assim como ação articulada, dinâmica e participativa. Assenta-se, portanto, sobre a mobilização dinâmica e, em equipe do elemento humano, coletivamente organizado, enfocando-se em especial sua energia e competência como condições básicas e fundamentais da qualidade da educação e das realizações nos sistemas de ensino, assim como, em última instância, da transformação do próprio signif icado da educação brasileira, dos sistemas de ensino e de suas escolas. (p. 23) É preciso apontar que tal dissociação entre esses conceitos é recente. As reflexões sobre a tendência técnico-científica demonstram que a perspectiva administrativa foi utilizada como referência. Nesse modelo pedagógico, a escola adota os parâmetros de funcionamento de uma empresa, por exemplo. Na linha de produção de uma fábrica, todos os produtos devem ser padronizados e seguir determinadas normas de qualidade. Após o cumprimento do ciclo produtivo, as mercadorias são testadas e verificadas. Aquelas consideradas reprovadas são descartadas. Se pudermos substituir a fábrica por uma escola, podemos traçar algumas das principais características da tendência pedagógica técnico-científica. 26O Prof. Dr. Vitor Paro considera que administração escolar e gestão escolar podem ser utilizadas em categorias sinônimas. “Embora sejam várias as motivações para essa valorização da administração escolar [...] a justificativa comum é de que o ensino é importante e é por isso que se deve realizá -lo da forma mais racional e eficiente; portanto é fundamental o modo como a escola é administrada. Essa justificativa, expressa ou tacitamente supõe a administração (ou de gestão, e as palavras serão tomadas aqui como sinônimas) [...] Assim , parece óbvio que, quanto maior é a relevância dos objetivos, maior a importância das mediações para se conseguir realizá-los. Esse conceito deve nos alertar para o seu caráter sintético e geral, que permite abarcar toda e qualquer administração, qualquer que seja seu objeto e que, por isso, precisa fazer abstração dos objetos específicos de cada administração concretamente considerada. Isto é, administração é sempre u tilização raciona l de recursos para realizar fins, independente da coisa administrada: por isso podemos falar em administração industrial, administração pública, administração privada, administração hospitalar, administração escolar e assim por diante (2010, p. 765). null 13 Assim como no processo industrial, a escola deve priorizar o caráter homogeneizador. Dessa forma, o alunado deve se encaixar em modelos pedagógicos prontos. A instituição escolar é vista como uma espécie de linha de produção estudantil. Nesse modelo, as dimensões da diferença e da diversidade não são contempladas, ao contrário, elas são identificadas como interferências nocivas à eficácia do ensino. Dessa forma, a educação técnico-científica se caracteriza como um modelo escolar excludente. A concepção técnico-científ ica, como já assinalamos, baseia-se na hierarquia de cargos e funções, nas regras e procedimentos administrativos, para a racionalização do trabalho e a ef iciência dos serviços escolares. A versão mais conservadora dessa concepção é denominada de administração clássica ou burocrática. A versão mais recente é conhecida como modelo de gestão da qualidade total, com utilização mais forte de métodos e práticas de gestão da administração empresarial . (LIBÂNEO; OLIVEIRA; TOSCHI, 2012, p. 446) A dimensão do indivíduo como alguém dotado de sentimentos, vivências e vontades não se encaixa nesse padrão. A escola como local de formação científica e direcionada ao mundo do trabalho não pode ser atingida por demandas e problemas que transpõem seus muros; como se estivesse protegida por uma redoma de vidro, supostamente preservada das agruras sociais. O modelo de coordenação dos diferentes segmentos da escola também estava vinculado às formas de gestão exercidas nas empresas. As teorias administrativas foram aplicadas à organização das instituições de ensino porque não havia modelos específicos voltados ao campo educacional. Posteriormente a ligação entre interesses econômicos e interesses educacionais também moldou essa relação. A perspectiva técnico-científica tem a racionalização do processo escolar como um de seus principais objetivos. A escola tem a função primordial de formar indivíduos aptos para o mercado de trabalho. Cada conteúdo ensinado e etapa cumprida equivalem à inserção de novas peças na engrenagem pedagógica. A educação se configura em algo insípido e estéril, sendo que o processo educacional é identificado pela fragmentação e compartimentação dos saberes. Assim como acontece em uma linha de produção. As empresas são administradas a partir de estruturas verticalmente hierarquizadas, ou seja, as decisões são tomadas de cima para baixo. O cargo de presidente, hoje, também denominado de CEO, identificado como a figura central nas relações de poder. O mesmo modelo é reproduzido pela escola técnico- científica, queadota esse padrão centralizado. Embora atinjam a todos os segmentos, as decisões escolares são tomadas por poucos ou por somente uma pessoa. A escola se torna uma instituição de resoluções monocráticas. Os professores possuem a alcunha de detentores do saber. Assim como a estrutura administrativa é hierarquizada, essa mesma posição de poder é legitimada em sala de aula. Ao professor cabe o poder de fala, ao aluno cabe apenas o silêncio. No contexto escolar brasileiro, em diversos momentos houve a prevalência desse modelo de ensino e gestão. Pode ser citada a década de 1970. Nesse período, em razão das políticas de industrialização e realização de grandes obras (milagre econômico), foi priorizado o modelo educacional tecnicista. Houve o predomínio de aprendizagens mecanizadas centradas na rápida formação de mão de obra industrial. A dimensão crítica do ensino não era incentivada. A esse respeito 14 é preciso salientar que, nesse momento, o país estava imerso em uma ditadura, que tinha na censura às ações políticas um dos seus principais recursos de controle. Acerca da contextualização educacional do período é possível fazer menção a duas iniciativas que corroboraram ao caráter acrítico da tendência pedagógico- -técnico-científica. A primeira foi a promulgação da Lei n. 5.692/71, de 11 de agosto de 1971, que instituiu mudanças no ensino de 1º e 2º graus; nos moldes atuais correspondem ao ensino fundamental e médio. Essa lei foi aprovada com o objetivo de inserir mudanças na Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional de 1961 (LDBEN 4.024/61). A nova legislação tinha o ensino profissionalizante e o aceleramento da formação escolar como princípios basilares. Inicialmente houve a determinação de que todo ensino de 2º grau, público ou privado, fosse direcionado ao mercado de trabalho. O Artigo 4º trazia como um de seus incisos “§ 1º - A preparação para o trabalho, como elemento de formação integral do aluno, será obrigatória no ensino de 1º e 2º graus e constará dos planos curriculares dos estabelecimentos de ensino” (BRASIL, 1971). Essa medida provocou reações contrárias vindas das escolas particulares que priorizavam o ensino direcionado àqueles que cursariam o ensino superior. Por tal razão, a medida foi extinta. Outra iniciativa marcante nesse período foi a implementação do Movimento Brasileiro de Alfabetização (MOBRAL). Fundado pelo Decreto n. 62.455, de 22 de março de 1968: “Art. 1º. É instituída a fundação sob a denominação de Movimento Brasileiro de Alfabetização (MOBRAL), vinculada ao Ministério da Educação e Cultura” (BRASIL, 1968). O projeto começou a funcionar de forma efetiva apenas em 1970. O governo tinha o objetivo de diminuir as taxas de analfabetismo entre jovens e adultos, e formar mão de obra direcionada ao trabalho industrial. O MOBRAL tinha certa inspiração nas técnicas educacionais desenvolvidas por Paulo Freire (1921- 1997)27. No entanto, o aprendizado era apenas funcional. As ações em prol da conscientização acerca das tensões e desigualdades sociais eram consideradas subversivas, e por isso rechaçadas. O MOBRAL foi extinto na década de 1980, em razão de não ter cumprido a missão de erradicar o analfabetismo no país. Na atualidade, a perspectiva técnico-científica cedeu lugar à perspectiva produtivista. Seus princípios pedagógicos remontam à década de 1990; panorama marcado pelo neoliberalismo econômico e pela globalização. No contexto educacional, esse período foi evidenciado pela realização de conferências internacionais com o propósito de estabelecerem metas pedagógicas que tinham de ser cumpridas nos anos 2000. Em termos legislativos essa tendência pedagógica encontra consonância junto à aprovação da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDBEN 9.394 de 20 de dezembro de 1996); a promulgação dos Planos Nacionais de Educação (PNE); e a realização de avaliações governamentais e internacionais com a intenção de mensurar a qualidade do ensino básico brasileiro. Compreende-se que embora a gestão escolar tenha tido influência de certos princípios ligados à administração, ela supera tal perspectiva. Resumir a função educativa à aspectos técnicos, mecânicos e administrativos, é empobrecer o 27O MOBRAL também utilizava palavras-chave como referências para o aprendizado da escrita e leitura. No entanto, os termos escolhidos não faziam menção a qualquer crítica social. Costumavam estar vinculados a temas considerados mais amenos, por exemplo: o futebol. É preciso lembrar que, em 1970, a seleção brasileira conquistou o tricampeonato na Copa do Mundo do México. 15 processo pedagógico. Nesse contexto, a gestão destaca o papel dos sujeitos escolares, insere uma percepção global e interligada. 1.1.2 – Gestão Escolar Sociocrítica Em A pedagogia do oprimido (1987, p.34), o educador Paulo Freire (1921- 1997) descreve a educação bancária: Na concepção bancária que estamos criticando, para qual a educação é o ato de depositar, de transferir, de transmitir valores e conhecimentos [...] Daí então que nela: a) o educador é o que educa; os educandos, os que são educados; b) o educador é o que sabe; os educandos, os que não sabem; c) o educador é o que pensa; os educandos, os pensados; d) o educador é o que diz a palavra; os educandos, a que as escutam docilmente; e) o educador é o que disciplina; os educandos, os disciplinados; f ) o educador é o que opta e prescreve sua opção; os educandos os que seguem a prescrição; g) o educador é o que atua; os educandos, os que têm a ilusão que atuam, na atuação do educador; h) o educador escolhe o conteúdo programático; os educandos jamais ouvidos nesta escolha, se acomodam a ele; i) o educador identif ica a autoridade do saber com sua autoridade funcional, que opõe antagonicamente à liberdade dos educandos; estes devem adaptar-se às determinações daquele; j) o educador, f inalmente, é sujeito do processo; o s educandos, meros objetos. No decorrer da lista são apresentadas as características que configuram a tendência pedagógico-técnico-científica. Conforme demonstrado no item anterior, esse modelo é estruturado a partir da anulação da condição de aluno – sujeito. Os conteúdos mencionados demonstram um processo pedagógico alicerçado nas relações dicotômicas e opositoras entre educadores e educandos. Na conjugação desse modelo: o professor é o saber enquanto o aluno é o aceitar. O trecho reporta uma educação alijada de qualquer dimensão social; apenas voltada para o acúmulo de conteúdos sem perspectiva crítica. Em outro capítulo da mesma publicação, Paulo Freire (1987, 38-39) discorre sobre os pressupostos da educação problematizadora (libertadora): A educação que se impõe aos que verdadeiramente se comprometem com a libertação não pode fundar-se numa compreensão dos homens como seres “vazios” a quem o mundo encha de conteúdos ; não pode basear-se numa consciência especializada, mecanicizamente compartimentada, mas nos homens como “corpos conscientes” e na consciência como consciênc ia intencionada ao mundo. Não se pode ser a do depósito de conteúdos, mas a da problematização dos homens em sua relação com o mundo. Ao contrário da “bancária”, a educação problematizadora [...] . Na citação, Freire dimensiona o fazer pedagógico problematizador como o rompimento dos sujeitos escolares com uma lógica de ensino que não encontra compatibilidade com a realidade. Dessa forma, a educação não é identificada pela neutralidade, pelo contrário, as práticas escolares estão imersas a intencionalidades. O educador preconiza a necessidade do rompimento com a educação bancária em prol de um ensino problematizador, cuja finalidade seja conscientizar os null 16 alunos acerca das contradições presentes na sociedade. É priorizado o afastamento da perspectiva linear presente na concepção técnico-científica. A escolanão deve ser o lugar de reprodução das desigualdades, mas um espaço para sua superação. Esse modelo teve como experiência mais conhecida os círculos de leitura criados por Paulo Freire, no final dos anos 1950. Destaque para a iniciativa freireana realizada em 1963, na cidade de Angicos, no Rio Grande do Norte. Destinado ao ensino de jovens e adultos, o processo educacional era todo centrado na realidade do alunado. O aprendizado da leitura e da escrita tinha nas palavras-geradoras ou temas geradores seu recurso mais potente. As palavras escolhidas tinham que ter ligação com o cotidiano dos alunos, por isso a seleção dependia da localidade em que o método fosse aplicado: No processo de alfabetização dos trabalhadores rurais, foco principal de Freire, há que trabalhar com temas – os temas geradores – que abram a possibilidade do conhecimento crítico da totalidade em que vivem. Na medida em que a realidade tende a ser conhecida como se fosse formada por partes que não se conectam, alcançar um conhecimento crítico dessa mesma realidade requer a possibilidade de articular essas partes na análise de um signif icado na existência das pessoas. A palavra terra, por exemplo, é aprendida de forma mais signif icativa se é conectada à luta dos oprimidos pelo direito de trabalharem a terra para sustento e moradia, se é conectada às razões de não haver o direito à terra para todos. (LOPES; MACEDO, 2011, p. 85-86) Segundo Lopes e Macedo (2011), essa concepção pedagógica perpassa mudanças na relação professor-aluno. O processo de transmissão e absorção de conteúdos é substituído por ações de cunho dialógico, baseadas no diálogo e na troca de experiências. Os espaços educativos devem ser identificados como lugares de encontros. A função da escola é salientar o caráter conscientizador do ensino e a finalidade da educação centrada na formação de indivíduos cientes das relações desiguais presentes na sociedade. De mesmo modo, eles poderiam atuar para modificar tal estrutura social. Como observa Libâneo, Oliveira e Toschi (2012, p.248-249), esse modelo educacional é pautado pelo embate e pela análise crítica da realidade. A escola não pode ser considerada imune a esse processo, pelo contrário, ela se constitui como um dos focos dessas tensões: Numa perspectiva sociocrítica, a educação é prática social ampla e inerente ao processo de construção da vida social, alterando -se no tempo e no espaço em razão das transformações sócias. Ela se dá nas relações sociais que os homens estabelecem entre si, nas diversas instituições e nos movimentos sociais, sendo, portanto, constituintes dessas relações e por elas constituídas. Em razão disso, a educação deve ser compreendida como um campo social de disputa hegemônica, portanto, um espaço de luta e contradição, uma vez que ref lete a própria constituição da sociedade. No âmbito da gestão, a perspectiva sociocrítica propõe mudanças nas relações de poder vivenciadas na escola. Por tal razão é preconizado o rompimento com as estruturas centralizadoras de poder. A coletividade e a descentralização se tornam objetivos a serem buscados no decorrer do processo de organização do trabalho escolar. As instâncias de participação ganham espaço. A escola não pode reproduzir as relações hierárquicas no contexto administrativo, tais como a manutenção do diretor como figura solitária de poder. A criação de órgãos 17 colegiados – como conselho escolar e o grêmio estudantil – é incentivada, desde que dotados de caráter propositivo. Com o processo de redemocratização na década de 1980, a perspectiva sociocrítica ocupou novamente o espaço escolar. Podem ser apontados como seus aspectos catalizadores: o fim da censura às obras de Paulo Freire e a luta dos movimentos sociais por mudanças na legislação educacional e pela garantia de direitos sociais e políticos. Com o avanço dos estudos culturais a partir dos anos 1990, o pensamento sociocrítico perdeu certos espaços de atuação no campo pedagógico. 1.1.3 – Gestão Escolar Autogestionária A perspectiva autogestionária se caracteriza como aquela que estabelece os parâmetros mais complexos para o exercício da gestão escolar democrática. Ela se diferencia dos outros modelos de organização da escola, pois nele ocorre a prevalência da manifestação direta da vontade coletiva. As instâncias representativas consideradas oficiais não são consideradas necessárias: A concepção autogestionária baseia-se na responsabilidade coletiva, na ausência de direção centralizada e na acentuação da participação direta e por igual de todos os membros da instituição. Tende a recusar o exercício de autoridade e as formas mais sistematizadas de organização e gestão . (LIBÂNEO; OLIVEIRA; TOSCHI, 2012, p. 446) Esse tipo de gestão é centrado no princípio da solidariedade entre os diferentes segmentos da escola, além disso exige um forte comprometimento de seus membros. É estabelecida uma relação de embate entre os chamados elementos instituídos e instituintes (LIBÂNEO; OLIVEIRA; TOSCHI, 2012, p. 446). A categoria “instituídos” é referente ao processo de normatização das relações escolares, tais como as normas e os estatutos escolares. A categoria instituintes privilegia a dimensão subjetiva das relações no ambiente escolar. Os grupos que compõem a comunidade escolar são capazes de se autogerirem; de criarem e recriarem normas e procedimentos voltados ao funcionamento de uma instituição de ensino (LIBÂNEO; OLIVEIRA; TOSCHI, 2012, p. 446). Esse modelo de gestão necessita que haja um rompimento com a cultura organizacional centrada em relações de poder impositivas. Conforme Lück (2009, p.122) é preciso que tais interações sejam centradas na “co-influência recíproca”28 entre os diferentes sujeitos que integram a coletividade escolar. 2. GESTÃO ESCOLAR DEMOCRÁTICA: PARTICIPAÇÃO E COLETIVIDADE O Artigo 3º da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDBEN 9.394/96) elenca os princípios educativos que devem reger as práticas pedagógicas: Art. 3º O ensino será ministrado com base nos seguintes princípios: 28Os membros da comunidade escolar influenciam e são influenciados pela coletividade. Por razão das relações de poder horizontalizadas, esses sujeitos estão imersos nas duas dimensões. Em um modelo hierarquizado há os influenciadores e aqueles que são a penas influenciáveis. null null 18 I - igualdade de condições para o acesso e permanência na escola; II - liberdade de aprender, ensinar, pesquisar e divulgar a cultura, o pensamento, a arte e o saber; III - pluralismo de ideias e de concepções pedagógicas; IV - respeito à liberdade e apreço à tolerância; V - coexistência de instituições públicas e privadas de ensino; VI - gratuidade do ensino público em estabelecimentos of iciais; VII - valorização do prof issional da educação escolar; VIII - gestão democrática do ensino público, na forma desta Lei e da legislação dos sistemas de ensino; IX - garantia de padrão de qualidade; X - valorização da experiência extra-escolar; XI - vinculação entre a educação escolar, o trabalho e as prát icas sociais. XII - consideração com a diversidade étnico-racial29; XIII - garantia do direito à educação e à aprendizagem ao longo da vida30. (BRASIL, 1996) Na mesma legislação, o Artigo 12 enumera as atividades que devem nortear um estabelecimento de ensino: I - elaborar e executar sua proposta pedagógica; II - administrar seu pessoal e seus recursos materiais e f inanceiros; III - assegurar o cumprimento dos dias letivos e horas-aula estabelecidas; IV - velar pelo cumprimento do plano de trabalho de cada docente; V - prover meios para a recuperação dos alunos de menor rendimento; VI - articular-se com as famílias e a comunidade, criando processos de integração da sociedade com a escola; VII - informar pai e mãe, conviventes ou não com seusf ilhos, e, se for o caso, os responsáveis legais, sobre a f requência e rendimento dos alunos, bem como sobre a execução da proposta pedagógica da escola31; VIII – notif icar ao Conselho Tutelar do Município, ao juiz competente da Comarca e ao respectivo representante do Ministério Público a relação dos alunos que apresentem quantidade de faltas acima de cinquenta por cento do percentual permitido em lei32. IX - promover medidas de conscientização, de prevenção e de combate a todos os tipos de violência, especialmente a intimidação sistemática (bullying), no âmbito das escolas33; X - estabelecer ações destinadas a promover a cultura de paz nas escolas34. 29Item incluído pela Lei n. 12.796, de 4 de abril de 2013. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2011-2014/2013/Lei/L12796.htm. Acesso em: 16 maio 2020. Deve ser observado que a inserção da temática diversidade étnico-racial entre os princípios norteadores do ensino dialoga com o Artigo 26 da LDBEN 9.394/96 e com as Lei n. 10.639, de 9 de janeiro de 2003 e Lei n. 11.465, de 10 de março de 2008, que visam a obrigatoriedade do ensino de História e Cultura Africana, Afro – Brasileira e Indígena . Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2003/l10.639.htm e http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2007-2010/2008/Lei/L11645.htm. Acesso em: 16 maio 2020. 30Item incluído pela Lei n. 13.632, 6 de março de 2018. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2015-2018/2018/Lei/L13632.htm. Acesso em: 16 maio 2020. 31Item incluso via promulgação da Lei n. 12.013, de 6 de agosto de 2009. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2007-2010/2009/Lei/L12013.htm#art1. Acesso em:15 maio 2020. 32 Item incluso pela aprovação da Lei n. 10.287, de 20 de setembro de 2001. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/LEIS_2001/L10287.htm . Acesso em: 15.mai.2020. 33 Item incluso pela aprovação da Lei n. 13.663, de 14 de maio de 2018. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2015-2018/2018/Lei/L13663.htm#art1. Acesso em: 15.mai. 2020. http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2007-2010/2008/Lei/L11645.htm http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/LEIS_2001/L10287.htm http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2015-2018/2018/Lei/L13663.htm#art1 19 XI - promover ambiente escolar seguro, adotando estratégias de prevenção e enfrentamento ao uso ou dependência de drogas35. (BRASIL, 1996) O primeiro aspecto observado é a multiplicidade de ações e valores a serem considerados pela escola durante o planejamento de suas ações administrativas e pedagógicas. Faz-se necessário constatar que décadas após sua aprovação, a LDBEN continuou a ser atualizada com a inclusão de novas demandas e temáticas. O acréscimo de assuntos como o bullying e a cultura de paz trazem indícios de uma escola centrada em abranger dinamismo e a complexidade das relações humanas: A escola é uma instituição social com objetivo explícito: o desenvolvimento das potencialidades f ísicas, cognitivas e afetivas dos alunos, por meio da aprendizagem dos conteúdos (conhecimentos, habilidades, procedimentos, atitudes e valores), para se tornaram cidadãos participativos da sociedade em que vivem. O objetivo da escola é, portanto, o ensino e aprendizagem dos alunos, tarefa a cargo da atividade docente. (LIBÂNEO; OLIVEIRA; TOSCHI, 2012, p. 419) Para Lück (2000, p.14), essa concepção ampla e plural do ensino é decorrente do processo de transição entre o modelo estático e o paradigma dinâmico. O modelo estático possui as mesmas características do projeto pedagógico técnico-científico. O ensino é compreendido a partir de uma visão reducionista do processo de ensino-aprendizagem. A escola é identificada como apenas um lugar de transmissão de conteúdos. Os alunos recebem uma formação homogênea e padronizada. O fator subjetividade é alijado do ambiente escolar. A padronização do sujeito escolar (seja diretor, professor ou aluno) se coaduna com a definição sujeito do Iluminismo proposta por Stuart Hall (2005). Para o autor, “o sujeito do Iluminismo estava baseado numa concepção de figura humana como um indivíduo totalmente centrado, unificado, dotado de capacidades de razão, de consciência e ação [...]” (p. 10). O indivíduo iluminista é dotado de racionalidade e objetividade. Tem identidade única. É sujeito completo e por tal razão sem questionamentos acerca de si e do meio social. Essa perspectiva educacional estática estava amparada nos paradigmas científicos do século XIX. O conhecimento tinha que ser construído a partir de bases sólidas, objetivas e imparciais; cujo resultado final era a busca por uma verdade universal (KUNH,1997). Vivenciava-se a era das certezas. O paradigma dinâmico traz em sua própria denominação a noção da educação como algo ligado a movimento e mudanças. Nesse contexto: Os sistemas educacionais, como um todo, e os estabelecimentos de ensino , como unidades sociais especiais, são organismos vivos e dinâmicos, fazendo parte de processo socioeconômico cultural marcado não só pela pluralidade, como pela controvérsia que vêm, também, a se manifestar na escola [...] portando ao serem vistas como organizações vivas, caracterizadas por uma rede de relações entre todos os elementos que nela atuam ou interferem direta ou indiretamente, a sua direção demanda um 34 Item incluso pela aprovação da Lei n. 13.663, de 14 de maio de 2018. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2015-2018/2018/Lei/L13663.htm#art1. Acesso em: 15.mai. 2020. 35 Item incluso pela aprovação da Lei n. 13.840, de. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2019-2022/2019/Lei/L13840.htm#art17. Acesso em 15.mai.2020. http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2015-2018/2018/Lei/L13663.htm#art1 http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2019-2022/2019/Lei/L13840.htm#art17 20 novo enfoque de organização e é a esta necessidade que a gestão escolar procura responder. Ela abrange, portanto, a dinâmica das interações, em decorrência do que o trabalho, como prática social, passa a ser o enfoque orientador da ação de gestão realizada em organização de ensino. (LÜCK, 2000, p. 14) Essa citação é constituída por uma série de elementos que nos auxiliam na compreensão sobre as diferenças entre as perspectivas estática e dinâmica da educação. A linearidade e a objetividade do fazer educacional são encampadas por temas como a pluralidade e a diversidade. A menção feita às escolas como organizações vivas contribui para o entendimento da subjetividade como fator de importância no processo formativo. A existência de uma rede de relações aponta para presença de múltiplos sujeitos que pertencem ao espaço escolar. Conforme Hall (2005), o deslocamento da noção objetiva de indivíduo para um espectro marcado pela subjetividade é identificado como parte do fenômeno de morte do sujeito moderno. Ele define como elemento inicial desse processo a fragmentação das identidades modernas36: A identidade plenamente unif icada, completa, segura e coerente é uma fantasia. Ao invés disso, à medida em que os sistemas de signif icação e representação cultural se multiplicam, somos confrontados por uma multiplicidade desconcertante e cambiante de identidades possíveis, com cada uma das quais poderíamos nos identif icar – ao menos temporariamente. (p. 13) Entre contextos apontados pelo autor como relevantes para o deslocamento indenitário estão os movimentos políticos ocorridos a partir da década de 1960. Diferentes vertentes do movimento negro lutaram por direitos políticos e civis. Foram realizados comícios, marchas e protestos em prol do fim da segregação racial. No mesmo período o movimento feminista ganhou as ruas em prol da igualdade entre homens e mulheres37. Também pode ser citada a revoltaestudantil ocorrida na França, em 1968. No contexto brasileiro, a década 1980 marcou a redemocratização do país e a luta dos movimentos sociais. Negros, indígenas, mulheres, entre outros grupos, entenderam que era o momento ideal para mudanças na estrutura social do país. Esse viés reformador encontrou consonância junto aos estudos promovidos por áreas do conhecimento, tais como a sociologia, que evidenciava a necessidade de ampliar as concepções de sujeito e sua relação com a sociedade. As pessoas não deveriam ser classificadas como um grupo homogêneo, mas sim como indivíduos dotados de trajetórias socioculturais diversas. 36Para Benedict Anderson (2008), a identidade nacional e o sentimento de nação estão vinculados à formação dos Estados Nacionais. Constituem-se como construções idealizadas porque é baseada em valores e símbolos generalizantes, com os quais os indivíduos estabelecem algum tipo de vínculo . É caracterizada como comunidade imaginada porque as pessoas partilham as mesmas construções simbólicas, mas nunca irão se conhecer. Para mais informações, consultar: ANDERSON, Benedict. Comunidades Imaginadas: reflexões sobre a origem e a difusão do nacionalismo. São Paulo: Companhia das Letras, 2008. 37Como observa Scott (2012), o movimento feminista contribuiu para a instituição do conceito de gênero como categoria e pesquisa sobre o papel social de mulheres e homens no decorrer da história; além de outros campos do conhecimento. Na atualidade os estudos de gêneros têm se fragmentado em razão dos estudos passarem a abordar temáticas mais específicas como feminismo negro. Para mais informações, consultar: SCOTT, Joan. História das Mulheres. In: BURKE, Peter. (Org.) A escrita da História: novas perspectivas. Tradução: Magda Lopes. São Paulo: Editora UNESP, 2011, p. 65-98. 21 Políticas públicas são construídas e orientadas à promoção dos direitos dos diversos grupos socioculturais discriminados e subalternizados. Articular políticas de igualdade e políticas de identidades tem sido uma preocupação fundamental tanto de instâncias governamentais quanto de movimentos sociais, organizações não governamentais e outros atores da sociedade civil. (CANDAU, 2016, p. 804) Outra temática que recebeu o apoio de educadores, e novamente dos movimentos sociais, foram as mudanças na legislação educacional. Com o fim do regime militar, era preciso adequar as leis, ao cenário pós-autoritarismo. Pleiteava- se que as novas diretrizes tivessem um caráter plural e inclusivo. Dessa forma era necessário suplantar os aspectos técnico-científicos do ensino em prol de um modelo democrático38. Embora reconheçam os avanços, Xavier e Chaves (2017) apontam que as instituições escolares ainda não se encontram preparadas para as consequências dessas transformações. Um número abrangente das escolas no país privilegia o formato escolar proveniente do século XVIII. As relações de ensino-aprendizagem, as práticas pedagógicas e os processos de socialização não estão prontos para lidar com esse cenário de dúvidas. Por tal razão é reconhecido que as relações educacionais estão em crise: A percepção de que a educação escolar, a aprendizagem e a socialização dos alunos, bem como o trabalho dos professores não estão correspondendo mais aos que deles sempre se esperou tem se apresentado como uma constante. Porém se esse sentimento tem sido partilhado por muitos, sua compreensão requer o conhecimento a respeito do projeto que, historicamente, conformou a própria como uma instituição aceita e naturalizada por todos. Ao longo do último século, ao mesmo tempo em que se transformou na agência socializadora por excelência, a escola também se tornou alvo de críticas e insatisfações, indicando que sua consolidação e crise devem ser entendidas como partes constitutivas de um mesmo projeto. (XAVIER; CHAVES, 2017, p.15) Em Cotidiano escolar e práticas interculturais, Vera Candau (2016) constata que a temática da diferença tem se configurado como questão sensível, mas que ainda encontra resistência na área educacional. 38As demandas dos movimentos sociais para a inclusão de novas temáticas na organização curricular e pedagógica das escolas públicas atendidas no início do século XXI. Em 9 de janeiro de 2003 foi promulgada a Lei n. 10.639/03 que estabeleceu a obrigatoriedade do ensino da História e Cultura Afro-Brasileira. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2003/l10.639.htm . Acesso em: 15 maio 2020. Na data de 11 de março de 2008 foi aprovada a Lei n.11.645/08 , que tornou obrigatório o ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Indígena. Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_Ato2007- 2010/2008/Lei/L11645.htm. Acesso em: 15 maio 2020. No dia 6 de julho de 2015 foi promulgada a Lei n. 13.146 , denominada Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência (Estatuto da Pessoa com Deficiência). Disponível em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2015/lei/l13146.htm. Acesso em: 15 maio 2020. 22 Existe, sem dúvida, uma crescente sensibilidade para essa temática, que se manifesta em diversos âmbitos sociais: dos partidos políticos aos movimentos sociais; das ruas às redes sociais; das manifestações artísticas à produção acadêmica. Políticas públicas são construídas e orientadas à promoção dos direitos dos diversos grupos socioculturais discriminados e subalternizados. Articular políticas de igualdade e políticas de identidades tem sido uma preocupação fundamental tanto de instâncias governamentais quanto de movimentos sociais, organizações não governamentais e outros atores da sociedade civil. No entanto, no âmbito da educação escolar, é possível detectar uma sensação de impotência, de não sabermos como lidar positivamente com essas questões. (p. 804) Candau aponta ser comum que a qualificação diferente esteja imersa a perspectivas desqualificadoras ou depreciativas. A dificuldade da escola em lidar com as diferenças ocorre porque o sistema de ensino não foi construído para abarcar o plural, mas apenas aquilo que é igual. O receio inicial da escola está centrado nas mudanças necessárias para receber esses novos sujeitos escolares. O termo diferença, em depoimentos de educadores em várias pesquisas que realizamos, é f requentemente associado a um problema a ser resolvido, à def iciência, ao déf icit cultural e à desigualdade. Diferentes são aqueles que têm baixo rendimento acadêmico, provêm de comunidades de risco e de famílias com condições de vida de grande vulnerabilidade social e possuem comportamentos que apresentam níveis diversos de violência e incivilidade. Trata-se de pessoas com características identitárias que são associadas à “anormalidade”, a “necessidades especiais” e/ou a um baixo capital cultural. Enf im, os diferentes são um problema que a escola e os/as educadores/as precisam enfrentar e essa situação vem se agravando e não sabemos como lidar com ela. Somente em poucos depoimentos, a diferença é articulada a identidades plurais que enriquecem os processos pedagógicos e devem ser reconhecidas e valorizadas. (CANDAU, 2016, p. 809) O fato de os educadores ainda classificarem o diferente como algo depreciativo reforça as relações de tensão e as resistências presentes na escola. Para Arroyo (2016), esse tipo de entendimento está alicerçado em “visões ultrapassadas” e historicamente construídas acerca do modelo ideal de aluno. Entre as propostas de reconstrução dessas relações está a implementação da escola democrática. 2.1 A Escola Democrática O Artigo 14 da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDBEN 9.394/96) estabelece que os estabelecimentos de ensino devem funcionar a partir de dois princípios básicos: I - participação dos profissionais da educação na elaboração do projeto pedagógico da escola; II - participação das comunidades
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