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Material elaborado por Leonardo Leonel DIREITO HUMANOS PROFESSORA FLÁVIA PIOVESAN AULA I Parte 1/2 1. INFORMAÇÕES INICIAIS Na aula de hora enfocaremos na teoria geral dos direitos humanos. Iremos estruturar nossa conversa a partir de três vértices, iniciando pelo marco introdutório com ideias preliminares a respeito dos direitos humanos, expondo o seu sentido, significado e desenvolvimento histórico. No segundo momento, vamos concentrar na concepção contemporânea dos direitos humanos, analisando qual é o legado, o alcance e o significado da Declaração Universal de 1948, quando são inaugurados um novo olhar e uma nova narrativa acerca dos direitos humanos. Fecharemos com desafios contemporâneos e a perspectiva multinível que orientará as nossas conversas. 2. INTRODUÇÃO. TEORIA GERAL DOS DIREITOS HUMANOS Iniciaremos o tópico de introdução lançamento perspectivas preliminares de direitos humanos (o que são direitos humanos?). Nos ensinamentos de Joaquín Herrera Flores, os Direitos Humanos traduzem como processos que abrem e consolidam espaços de luta pela dignidade humana. Para o professor Herrera flores, os direitos humanos se dividem em três dimensões históricas: Material elaborado por Leonardo Leonel • Primeira dimensão: direitos humanos como processos; • Segunda dimensão: direitos humanos que abre e consolidam espaços de lutas; • Terceira dimensão: direitos humanos que luta pela dignidade humana. 2.1. Primeira dimensão (direitos humanos como processos) Para Hannah Arendt a cidadania não é um dado, mas sim um construído. Para Norberto Bobbio, os direitos humanos nascem quando podem, quando devem nascer, não nascem todos de uma vez, nem de uma vez por todas, são reinvindicações morais. Portanto, há de se ter essa visão dos direitos humanos como processos complexos, vivos, multifacetados, não lineares, dinâmicos, em que atuam diversos atores, como processos normativos, jurídicos, políticos, sociais, culturais, que invocam a abertura da construção dinâmica dos direitos humanos, nesse processo de afirmação a refletir. A segunda ideia é a de que não há direitos humanos sem lutas emancipadoras, portanto, as lutas pelos direitos humanos são incessantes. Cada ponto de chegada, é um novo ponto de partida. Assim, há de se ter essa visão dinâmica, complexa, plural e aberta do processo de construção dos direitos humanos. Agora, se há um ícone valorativo que move essa pauta, que move essa travessia história dos direitos humanos, é o fundamento ético da dignidade humana. Sobre isso, Kant traçou uma reflexão sobre o valor infinito de cada indivíduo, sendo os seres humanos como seres essencialmente morais, únicos, irrepetíveis, únicos capazes de atribuir um juízo ético às nossas ações, possuindo razão, capacidade de reflexão em separar o certo do errado, o justo do injusto, o ético do aético. Enquanto o mundo animal se inspira muito no mimetismo, que se fizéssemos pesquisas desde voo de pássaro até o comportamento mimético de algumas espécies, perceberíamos o grau de inventividade, de unicidade, de liberdade, de autonomia, que tem Material elaborado por Leonardo Leonel cada pessoa. Portanto, para Kant, o ser humano é um fim de si mesmo, e jamais pode ser utilizado como meio, e rechaça a ótica utilitarista. Para Santiago Nino, os direitos humanos seria o melhor invento século XX, sendo direitos morais pautados na autonomia, na independência, na inviolabilidade e na dignidade humana. Importante, também, citar Ronald Dworkin, para quem a ética dos direitos humanos é bastante singela, é ver no outro um igual em consideração e respeito. Com isso, compartilha com Nancy Fraser os direitos humanos como idioma da alteridade, portanto, ver no outro um igual, não um menor não um maior, mas um igual, em consideração e respeito. Até constituições, como a lei fundamental alemã de 1949, traz esse direito tão potente, que é o direito de desenvolver a personalidade humana de forma livre, autônoma e plena. Portanto, todos os seres humanos são dotados desse direito. Com isso, necessário insistir na dimensão histórica dos direitos humanos. É muito emocionante perceber as novas pautas. Na Comissão Interamericana de Direitos Humanos, hoje estamos enfocando muito em direitos digitais, analisando qual alcance do direito à privacidade digital; como combater o discurso de ódio online; como combater às fakes news; como combater online discrimination; qual seria a melhor maneira de trazer uma regulação para as redes sociais, lembrando sempre o norte valorativo dos direitos humanos, estado, direito e democracia; como trabalhar o tema da corrupção à luz dos direitos humanos, os câmbios climáticos; o tema da vacina à luz dos direitos humanos. Recentemente foi lançado pela Comissão Interamericana um comunicado de imprensa, enfocando o tema da vacina no caso da vacina da Covid-19 à luz dos direitos humanos. Analisando sob a ótica no campo da acessibilidade, da igualdade, da não discriminação; de uma distribuição equitativa; como assegurar o direito a gozar dos benefícios da ciência; o direito a saúde coletiva como tema da cooperação internacional. Material elaborado por Leonardo Leonel Foi também lançado pela Comissão Interamericana, uma publicação sobre o acesso à internet como direito humano. E hoje cada vez mais estamos no mundo virtual, como homeschooling, a internet não só no nosso olhar é um direito humano, mas é requisito para outros direitos, como por exemplo, o direito à educação. Assim, é muito fascinante perceber a trajetória dos direitos humanos, ler com a lupa os trinta artigos da Declaração Universal de 1948, e perceber quais são os novos temas emergentes nestas últimas décadas que não estão estampados na Declaração, como o direito ao desenvolvimento, ao acesso à água, da diversidade sexual, da tecnologia, portanto, novos temas, novas pautas, novos olhares, direitos humanos é vida, é processo, vivaz, pulsante, com avanços e com recuos, e sem uma linearidade. Uma vez mais, citemos Nancy Fraser, para quem os direitos humanos simbolizam a ética da alteridade, ver no outro um igual, não um menor não um maior, mas um igual, em consideração e respeito. Martha Nussbaum nos traz um olhar muito sensível quando afirma que “imaginar a dor de outra pessoa e perguntar o seu significado, é um modo poderoso de compreender a realidade humana, e de adquirir uma motivação para transformá-la”. Portanto, a ética da solidariedade, da empatia, se colocar no lugar do outro, e trabalhar com o tema diversidade e da igualdade. Destaca-se, Hannah Arendt, quando afirmava que todos somos únicos e diversos dos que existem hoje no mundo, dos que existiram ontem e dos que existirão amanhã. Assim, se hoje temos sete bilhões no planeta, cada ser humano é único diverso, portanto, cada ser humano tem a sua trajetória. Toda essa unicidade existencial honra toda a ideia do valor infinito de cada pessoa humana e da dignidade como valor que lhe é intrínseco. Podemos observar pelas mais nefastas, sórdidas e graves violações dos direitos humanos que já tivemos na história (por exemplo: a escravidão que coisificou os afros descentes por séculos; o nazismo com seus campos de concentração com toda a ótica de extermínio e de destruição da pessoa humana; sexismo; racismo; apartheid; homofobia; Material elaborado por Leonardo Leonel xenofobia), todas estas intolerâncias compartilham da mesma lógica que é a lógica da intolerância, que nega ao outro a condição de sujeito de direitos. Quando é tomada a diferença, e a partir dela construídas doutrinas de superioridade de alguns e inferioridade de outros, estará lançado o palco para as grandes e atrozes violações. Se avaliarmos as violações dos direitos humanos, essa ótica da intolerância encampauma relação assimétrica de poder (por exemplo: entre adultos e crianças; brancos e afrodescendentes; homens e mulheres; heterossexuais e homossexuais; etc.). Esse é o ponto central. Para quem abraça a ótica dos direitos humanos, a diversidade é enriquecedora, e a diferença deve ser visibilizada e protegida. Temos que proteger a igualdade em respeito a diversidade, sendo que jamais a diferença poderá ser fator para encampar doutrinas de superioridade baseadas em diferenças raciais, de idade, de nacionalidade, de gênero, de orientação sexual ou qualquer outra. Feito este introito, passaremos a percorrer a segunda reflexão: concepção contemporânea dos direitos humanos. 2.1.1. Concepção contemporânea de Direitos Humanos Nós fixamos como ponto de partida essa história plural, dinâmica, aberta dos direitos humanos. Aqui temos a lente histórica e quando se vai analisar a evolução história dos direitos humanos, vários e diversos podem ser os pontos de partida. Poderíamos recorrer à Magna Carta de 1215, do século XIII, ou poderia recorrer as modernas declarações do final século XVIII ou ainda as declarações do início do século XX. De todo modo, o nosso olhar será concentrado na Declaração Universal de 1948, lembrando que ela é fruto de toda uma trajetória histórica. Antes, cabe acenar, às declarações modernas de direitos do final do século XVIII, à declaração francesa dos direitos do homem e do cidadão de 1789, a declaração americana do bom povo de Virginia de 1776, declarações estas que se apropriavam de uma narrativa Material elaborado por Leonardo Leonel liberal. O cerne era o indivíduo e a sua liberdade. A partir desta ideologia, direitos civis, sobretudo, eram assegurados (direito à liberdade, à segurança, à propriedade (sagrada para a declaração francesa), e a resistência à opressão). Essas declarações surgem como repúdio ao arbítrio. Como no caso da declaração francesa, surge como uma resistência ao estado absolutista. Mas, previram, cada qual, destas declarações estabelecer uma ótica liberal, em que o indivíduo ganha centralidade e os direitos clássicos (liberdade, propriedade e segurança), são os direitos ali contemplados. Caminhando na história, indo ao outro extremo, chegaremos à declaração do povo trabalhador e explorado, da República Soviética Russa, do início do século XX. Nesta declaração, a percepção é oposta, onde não há uma linha sequer prevendo liberdades. O tema sensível é o combate à exploração econômica, com a abolição da propriedade privada como meio de produção, que para a declaração francesa era um direito sagrado. Portanto, o norte era o combate à exploração econômica, abolição da sociedade de classes, tendo como bandeira a justiça social para todos e, portanto, o tema era a igualdade, uma ótica coletivista, sem qualquer espaço para proteção das liberdades. Então, até a Declaração Universal de 1948, havia este antagonismo: ou liberdade ou igualdade. Termos estes que tensionavam nas suas narrativas: a narrativa liberal versus a narrativa social da cidadania. Em resposta à barbárie totalitária das duas guerras, Hannah Arendt, traz a simbologia da segunda guerra mundial como a grande ruptura dos direitos humanos. Traz toda a toda memória histórica dos campos de concentração, museus, filmes e toda uma literatura que busca ecoar a voz das atrocidades perpetradas ao longo da era Hitler, em que dezoito milhões foram a campos de concentração, sendo que onze milhões morreram, sendo que seis milhões eram de judeus. Material elaborado por Leonardo Leonel Qual era a equação nazista? A primazia e superioridade da raça puro ariana. Quem pertencesse a raça puro ariana, merecia viver. Quem à ela não pertencesse, seria levado à campos de extermínio e de destruição, portanto, a arquitetura da destruição. Sobre este fato, Hannah Arendt nos lembra algo muito peculiar, no sentido de que os campos de concentração não eram campos de pessoas condenadas, ninguém estava ali respondendo por qualquer ilicitude. A pergunta não era o que cometeram estas pessoas, senão quem são estas pessoas esvaziadas de qualquer humanidade e sem lugar no mundo (people with no place in the world). É por isso que o pós guerra traz toda a bandeira da hospitalidade universal, nas palavras de Hannah Arendt. Se a segunda guerra é a grande ruptura dos direitos humanos, porque ali é o relato da banalidade do mal – e esta é a reflexão. Eichmann é um ser desprovido de qualquer racionalidade, incapaz de atribuir juízos éticos às suas ações, sendo um indivíduo que serviu ao nazismo, transportava mulheres grávidas, crianças e idosos à campos de concentração. Quando foi julgado, surgiu como indivíduo frio e burocrata, afirmando que cumpria leis e ordens superiores. Portanto, Hannah Arendt que inclusive lembra que o totalitarismo se assemelha à forma de uma cebola, onde há várias camadas e o indivíduo é uma engrenagem ali invisibilizado, e sem a capacidade de perceber o todo de uma forma holística ao regime em que está servindo. Esta é a marca dolorosa do holocausto. Tudo isso impacta o mundo jurídico, pos isso que há o direito do pós guerra, que traz a esperança de reconstrução dos direitos humanos. No pós guerra tivemos a adoção da carta da ONU de 1945, adoção da convenção para a prevenção e a repressão do crime de genocídio em 1948, que é a pura intolerância e destruição de um todo ou parte de um grupo em razão da sua raça, cor, nacionalidade, opinião política, da sua etnia. Portanto, o genocídio é um crime que viola a humanidade, é um crime internacional, porque traz a mais pura intolerância à incapacidade de se conviver com a diversidade, que deve ser aniquilada. Material elaborado por Leonardo Leonel Nota-se que a própria convenção de 1948, que previne o crime de genocídio em seu artigo VI, prevê que tal crime deve ser julgado pelos Cortes locais ou pela Corte Penal Internacional. É interessante perceber que desde 1948, já havia esta alusão, esse desejo, de uma corte penal internacional, que foi criada pelo Estatuto de Roma de 1998, cinquenta anos depois, concretizando este sonho por uma justiça internacional cuja competência material envolve também o crime de genocídio, crimes contra a humanidade, crimes de guerra, crimes de agressão. ARTIGO VI As pessoas acusadas de genocídio ou qualquer dos outros atos enumerados no Artigo III serão julgadas pelos tribunais competentes do Estado em cujo território foi o ato cometido ou pela Corte Penal Internacional competente com relação às Partes Contratantes que lhe tiverem reconhecido a jurisdição. ARTIGO III Serão punidos os seguintes atos: a) o genocídio; b) a associação de pessoas para cometer o genocídio; c) a incitação direta e pública a cometer o genocídio; d) a tentativa de genocídio; e) a co-autoria no genocídio. Desde então, havia o desejo de criação de uma corte penal internacional, que foi criada cinquenta anos depois, pelo Estatuto de Roma do Tribunal Penal Internacional, no ano de 1998, concretizando esse sonho por uma justiça internacional, cuja competência material envolve também o crime de genocídio, crimes contra a humanidade, crimes de guerra e agressão. Voltando a Declaração Universal de 1948, como lembra o professor Herrera Flores, a declaração deverá ser entendida também no contexto em que ela surge - el texto y Material elaborado por Leonardo Leonel el contexto. Neste pós guerra (que muitos chamam de pós positivismo), o direito surge para abraçar direitos éticos e morais, é um direito que tem como centralidade o valor da dignidade humana, e este valor passa guiar o este movimento. Portanto há um direito pré e pós 1945, tanto no âmbito internacional quanto no âmbito constitucional. No âmbito internacional emerge um direito internacional dos direitos humanos,como resposta às atrocidades e à barbárie totalitária do nazismo. No pós 1945, surgem também as constituições europeias do pós guerra, também muitas sensíveis, estabelecendo como grande princípio o valor à dignidade humana, que também é encampada pela nossa carta democrática de 1988, em seu art. 1º, III, com o princípio que é a solidez, que estrutura o Estado Democrático de Direito no Brasil. Art. 1º A República Federativa do Brasil, formada pela união indissolúvel dos Estados e Municípios e do Distrito Federal, constitui-se em Estado Democrático de Direito e tem como fundamentos: III - a dignidade da pessoa humana; Nesta perspectiva, vamos aproximar da Declaração Universal de 1948. Naquele momento histórico, 48 estados votaram favoravelmente à declaração e 8 estados se abstiveram. Então, a declaração nasce com votos favoráveis, como um grande consenso do pós guerra sem qualquer voto contrário. Portanto, é um código forte. Registra-se que as declarações são expressões de soft law, possuindo poder recomendatório, de onde pode até mesmo extrair princípios e diretrizes, mas não possui em seu texto força jurídica vinculante. Veremos nas próximas aulas, que um tratado deve ser assinado pelo presidente da república, aprovado pelo congresso e ratificado pelo presidente, existindo todo um ritual. Os tratados internacionais, seja qual for a matéria, possuem força jurídica vinculante, debateremos que o tratado de direitos humanos possui status privilegiado na ordem jurídica brasileira. Material elaborado por Leonardo Leonel Veremos, ainda, que as declarações nascem como soft law, sem força jurídica vinculante, mas que passa a adquiri-la passo a passo, tendo se transformado em costume internacional. Como exemplo, basta comparar os trinta artigos da declaração com o art. 5º da CF/1988, onde constatará que há muita projeção da declaração em nossa constituição, tendo muitos dos incisos como cópia literal. Parte 2/2 Se replicassem esta experiência e comparece com as constituições do mundo ocidental, chegariam a mesma conclusão. Deste modo, a declaração universal dos direitos humanos influenciou, impactou, todo o direito constitucional, ao menos do mundo ocidental. É por isso que a declaração tenha se transformado em costume internacional, envolvendo esta prática generalizada pelos estados com senso de ope iuris, como senso jurídico. A carta que cria a ONU, anteriormente à declaração universal, porque a carta de São Francisco é de 1945, prevê os propósitos das Nações Unidas, manter a paz e a segurança internacional, promover a cooperação internacional no campo social e econômico, e promover os direitos e liberdades no âmbito universal. Pode-se perguntar quais são esses direitos, mas a carta da ONU não responde, por isso muitos veem a declaração universal como interpretação autorizada da carta da ONU, na medida em que clarifica, esclarece, o que são os direitos humanos, nela enunciados. Então se a ONU tem por propósito promover os direitos humanos no âmbito universal, a resposta que direitos são esses é dada três anos depois pela declaração universal. Estas duas teses podem ser conjugadas, isto é, a declaração universal em si mesma é expressão de soft law, ou seja não é um tratado, não carrega em si mesma, tecnicamente falando, esta força jurídica vinculante, mas ganhou esta força por ter se transformado paulatinamente além das décadas em costume internacional, pela sua grande Material elaborado por Leonardo Leonel influência e impacto, no constitucionalismo ocidental; e ademais pode ser concebida como interpretação autorizada da carta da ONU no que se refere ao alcance e significado dos direitos humanos. Lembrando que a carta da ONU é um tratado. Aliás, tratado é um termo genérico, que envolve carta, convenção, pacto. No nosso curso, sempre faremos menção à carta da ONU, como já fizemos, à Convenção sobre a eliminação da discriminação contra a mulher, ao pacto de direito civis e políticos. Pacto, convenção ou carta, ou seja, tratado, tem força jurídica vinculante. Feito este debate sobre o valor jurídico da declaração universal, chegamos ao outro tema: “qual é o seu legado?”, “qual é a sua mensagem?”, “qual é a sua narrativa e o seu olhar sobre os direitos humanos?”. E aí vemos que a declaração universal inovou toda narrativa de direitos humanos, introduzindo e inaugurando um novo olhar, esta concepção contemporânea de direitos humanos, que se alicerça em três ideias, que por sua vez são respostas para três perguntas: para a declaração universal, “quem tem direitos?”, “por que direitos?” e “quais direitos?”. Buscaremos responder a cada qual destas perguntas, e com isso desenvolveremos aqui esta concepção contemporânea dos direitos humanos, que por sua vez vai orientar todo o direito internacional dos direitos humanos, impactando também no constitucionalismo global. Para a declaração, quem tem direitos? A resposta é uma só: toda e qualquer pessoa. Isto é, a titularidade de direitos está condicionada apenas ao requisito de ser pessoa. Portanto, a condição humana é o requisito único e exclusivo para a titularidade de direitos. Seja quem for a pessoa, se rica ou pobre, independentemente de sua condição social econômica, nacionalidade, orientação sexual, idade, raça, etnia ou seu gênero. Esta é a voz revolucionária e emancipatória da declaração universal, que é capaz de romper de plano com a equação nazista, que condicionava a titularidade de direitos à pertencer à raça puro ariana, Material elaborado por Leonardo Leonel e a partir desta ótica que hierarquizava humanos com base em doutrina de superioridade radicada em diferenças. Sobre a matéria, uma nota importante: Existem diversas frentes de pesquisas com uma literatura cada vez mais ampla, a respeito de uma visão mais biocêntrica de que toda e qualquer espécie viva possui direitos e direito ao não sofrimento, uma ótica utilitarista. A constituição do Equador, nos seus artigos 75 a 78, é a primeira do mundo a assegurar essa visão de que a natureza tem direitos, baseado na cosmovisão dos povos originários. A natureza têm direitos à princípios como harmonia, com este pacto intergeracional. Segunda pergunta: por que direitos? Há algo muito importante de se notar, que é o princípio da dignidade humana é o fundamento ético dos direitos humanos. Desde o preâmbulo da declaração universal já há menção à dignidade humana, e à este princípio. Vejam que desde o preâmbulo a declaração vem afirmar que dignidade é inerente à toda e qualquer pessoa humana, e que as pessoas são titulares de direitos iguais e inalienáveis, e esses direitos são fundamentos da liberdade, da justiça e da paz no mundo. Então na sua primeira expressão a declaração já enaltece o valor da dignidade humana como valor intrínseco à condição humana. Portanto, a dignidade não é um valor extrínseco (que é conferido em razão da raça, etnia, condição econômica, nacionalidade, grau de instrução). Toda e qualquer pessoa, por ser pessoa, possui uma dignidade que lhe é inerente, um valor intrínseco. Existe todo um movimento crítico, que entende que as dignidades devem ser trabalhadas sob uma ótica pluralista e concreta. E fazem essa crítica à visão Kantiana que seria muito atomizada, individualizada e abstrata. O professor Barroso possui texto sobre essa dimensão transnacional cosmopolita da dignidade humana, sendo que para ele a dignidade encamparia três dimensões: a dimensão do valor intrínseco, como Kant; a dimensão da autonomia; e a dimensão comunitária, ou seja, a dignidade se realiza em determinada sociedade. Material elaborado por Leonardo Leonel E aí vem a pergunta: quais direitos? A declaração aqui é extremamente ousada, pois, olhando para trás, numa visão retrospectiva, temos na moderna declaração de direitosaquela visão dicotomizada: ou igualdade ou liberdade. E a declaração conjuga estas duas narrativas, estabelecendo que não há igualdade sem liberdade, tampouco há liberdade sem igualdade. Portanto, direitos civis, políticos, econômicos, sociais e culturais são reunidos, formam uma unidade indivisível, interdependente e interrelacionada. Este é o lema da declaração universal de 1948. No próprio artigo 1º, a declaração já enuncia que todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e em direitos, e são dotados de razão e de consciência, devem agir uns para com os outros em espírito de fraternidade. Portanto, aqui há o reencontro com o pensamento Kantiano com as ideias de moralidade, dignidade, direito cosmopolita, paz perpétua. Da leitura dos trinta artigos, veremos que dos artigos 3º ao 21 da declaração universal dos direitos humanos de 1948, têm os direitos civis e políticos: vida, liberdade, segurança, a não ser submetido a escravidão ou a servidão, não ser submetido à tortura, igualdade, proibição à discriminação, liberdade pessoal (sendo vedada a prisão arbitrária), acesso à justiça, presunção de inocência, vida privada e familiar, liberdade de locomoção, expressão, opinião, pensamento com ciência e crença, reunião e associação, participação política, nacionalidade, propriedade, constituir uma família, gozar asilo em caso de perseguição. Temos aqui concentrados os direitos civis e políticos. A declaração não fica apenas nestes direitos. Nos seus artigos 22 a 28, encontraremos os direitos econômicos, sociais e culturais, como o direito ao trabalho e as condições justas e favoráveis de trabalho, repouso, lazer, padrão de vida capaz de assegurar a família saúde, bem estar, alimentação, vestuário, habitação, cuidados médicos, educação orientada pelo pleno desenvolvimento da pessoa humanada, fortalecimento ao respeito dos direitos humanos, tolerância, liberdade, direitos culturais de participar da vida cultural, participar do progresso científico e seus benefícios, econômicos, sociais e culturais Material elaborado por Leonardo Leonel indispensáveis à dignidade e ao livre desenvolvimento da personalidade. O artigo 28 traz o importante direito de que todo ser humano tem direito a uma ordem social e internacional, em que os direitos e liberdades possam ser plenamente realizados. Com isso, a declaração abraça uma visão holística integral dos direitos humanos. E essa visão traz duas consequências extraordinárias: a primeira é a paridade em grau de importância entre direitos civis e políticos, e direitos econômicos, sociais e culturais. Assim, para a declaração tão grave quanto ter violado o direito de liberdade de expressão ou religião, é ter negado o direito à saúde, educação e trabalho; tão grave morrer sob tortura, é morrer de fome. Portanto, a declaração traz essa paridade de grau e relevância dos direitos civis e políticos, e direitos econômicos, sociais e culturais. Mais do que isso, estabelece uma interrelação, interdependência, indivisibilidade entre eles, compondo uma unidade; voltemos a insistir que o respeito aos direitos civis e políticos, é condição para o exercício dos direitos econômicos, sociais e culturais; que por sua vez, a sua efetividade é condição para a efetividade dos direitos civis e políticos. Em artigo publicado sobre os impactos da Covid na visão da interdependência dos direitos. Notem que a aula está sendo gravada por ferramenta virtual, justamente em razão da pandemia que coloca em risco a saúde coletiva. Deste modo, a liberdade de ir e vir está restrita, em nome de um bem maior que é a saúde coletiva. Então vemos como um direito social (direito à saúde) impacta o direito à liberdade de ir e vir. Então quando tivermos todos vacinados, teremos restaurado o universo destes direitos (direito de aglomeração, de reunião). Vejam que o direito à saúde requer um direito essencial que é o direito à informação, pois não se pode combater a pandemia sem acesso à informação, inclusive sobre os cuidados preventivos. Uma das primeiras demandas que surgiu na comissão interamericana foi dos povos indígenas, que pleiteavam na Bolívia campanha de prevenção à Covid nas línguas e nos idiomas originários daqueles povos. Diante disso, não há prevenção Material elaborado por Leonardo Leonel sem direito à informação. O direito compõe esta interdependência, esta unidade de sentido, de visão integral e holística. Com isso, para fechar esse ponto dois, deve-se destacar que os direitos humanos para a declaração universal apresentam três componentes, três atributos: são universais, basta a condição humana para tê-los; tem como fundamento ético a dignidade humana; são interdependentes, interrelacionados, indivisíveis. Esta é a visão acolhida pela declaração universal de 1948, que se projeta em todo o direito internacional dos direitos humanos. Examinaremos em futuras aulas, por exemplo, a convenção da ONU sobre a eliminação da discriminação racial, a convenção da ONU sobre a eliminação da discriminação contra a mulher, a convenção da ONU que protege as pessoas com deficiência, que são três instrumentos de alcance especial, mas que incorporam esta concepção contemporânea de direitos humanos. Para as mulheres, a convenção busca assegura direitos civis, políticos, econômicos, sociais e culturais. Mirando os povos afrodescendentes e indígenas, a convenção racial também parte desta concepção holística, buscando resguardar direitos civis, políticos, econômicos, sociais e culturais. O mesmo se diga com relação aos direitos das pessoas com deficiência. A Declaração de Direitos Humanos de Viena de 1993, subscrita por 171 estados pares, respalda e reitera a declaração de 1948. A Declaração Universal, de 1948, foi adotada por 48 votos, com 8 abstenções, num foro então composto por apenas 56 países, e se levarmos em conta que a Declaração de Viena é consensual, envolvendo 171 Estados, a maioria dos quais eram colônias no final dos anos 40, entenderemos que foi em Viena, em 1993, que se logrou conferir caráter efetivamente universal àquele primeiro grande documento internacional definidor dos direitos humanos. Hoje o mundo tem entorno de 200 estados pares. Importante mencionar que o § 5º da Declaração de Viena: Material elaborado por Leonardo Leonel Todos os Direitos Humanos são universais, indivisíveis, interdependentes e interrelacionados. A comunidade internacional deve considerar os Direitos Humanos, globalmente, de forma justa e eqüitativa, no mesmo pé e com igual ênfase. Embora se deva ter sempre presente o significado das especificidades nacionais e regionais e os diversos antecedentes históricos, culturais e religiosos, compete aos Estados, independentemente dos seus sistemas políticos, econômicos e culturais, promover e proteger todos os Direitos Humanos e liberdades fundamentais. Portanto, para a declaração de Viena, os direitos humanos são universais, indivisíveis, interdependentes, interrelacionados, e tem como fundamento ético a dignidade humana. Com isso, nós passamos ao último ponto é o sistema jurídico multinível, que vai guiar todo nosso percurso ao longo das demais aulas. Vejam que a partir da declaração, nós temos o processo de internacionalização dos direitos humanos, de humanização do direito internacional, de internacionalização do direito constitucional, de constitucionalização do direito internacional, que se torna cada vez mais palpável e positivado por meio de tratados e de instrumentos escritos. Esses fenômenos impactam o modo de perceber o direito que se ensina, o direito que se pesquisa e o direito que se estuda. É por isso que a ótica que vamos adotar ao longo de nossas aulas será a lente do sistema jurídico multinível, isto é, vamos trabalhar os direitos humanos a partir de três arenas: arena global, arenaregional e arena local. Importará para o nosso estudo, examinar com muita cautela o prisma global, que vem sendo gerado pelas Nações Unidas, são tratados com alcance universal envolvendo quase duzentos países. Veremos na próxima aula os pactos da ONU em matéria de direitos civis e políticos, e direitos econômicos, sociais e culturais. Cada qual tem em média cento e Material elaborado por Leonardo Leonel setenta estados partes, o que é um número expressivo, considerando que temos duzentos estados que integral e habitam a órbita da terra. Temos então o sistema global com tratados de alcance geral. Temos também tratados de alcance específico, como são as convenções que protegem os direitos das mulheres, das crianças, das pessoas com deficiência, dos grupos raciais, dos povos indígenas, afro descentes, ou seja, todo um universo do sistema especial de proteção que é direcionado a grupos e pessoas em situação de vulnerabilidade, que demandam grau de proteção reforçada do estado. E temos tratados de âmbito geral, que são estes que vamos ver na sequência, que são os pactos da ONU em matéria de direitos civis e políticos, e direitos econômicos, sociais e culturais. Esta é a vertente global. Temos também a vertente regional, na qual há todo um processo de regionalização de direitos humanos. Hoje este processo se expressa de maneira consolidada e institucionalizada em três geografias: Europa, Américas e África. Temos, assim, consolidado o sistema regional europeu, sistema regional interamericano e sistema regional africano. O aplicado no Brasil é o sistema regional interamericano. Há movimentos para a criação de um sistema regional árabe e de um sistema regional asiático, mas que se observarmos de forma comparativa, o sistema europeu é o mais antigo, é o mais consolidado, que foi criado no pós guerra, a convenção europeia data da década de 1950; ao passo que o sistema interamericano seria o intermediário, a convenção americana é de 1969; já a carta africana dos direitos humanos e dos povos é da década de 1980, e traz toda uma leitura diferenciada, coletivista, que combina os direitos civis e políticos, com os direitos econômicos, sociais e culturais, ambientais, ao desenvolvimento, à paz. Então é uma outra perspectiva coletivista, e também mais holística e integral dos direitos humanos. Existe também o sistema interno ou sistema nacional, ou seja, a nossa constituição de 1988, as nossas leis, as instituições e a nossa jurisprudência. Material elaborado por Leonardo Leonel A nossa atravessia neste curso, a luz dessa teoria geral dos direitos humanos que hoje aqui desenvolvemos, tendo em vista que nesta aula, o nosso objetivo foi justamente apresentar à todos a concepção contemporânea dos direitos humanos, o legado da declaração universal de 1948 (ou seja, os direitos humanos como universais, interdependentes, indivisíveis, interrelacionados, e tendo como fundamento ético a dignidade humana), portanto, é esta a perspectiva que vai nutrir as demais aulas. Vamos prosseguir agora, aterrissando no sistema global de proteção, a fim de compreender como esse sistema foi sendo criado, fruto que é do processo de internacionalização dos direitos humanos. Voltemos a insistir, há um sistema internacional pré e pós 1945, e o direito internacional dos direitos humanos nasce pós 1945. Iremos nos encaminhar pelo sistema global agora, tratando inicialmente do sistema geral, dos tratados de alcance geral. Depois, vamos transitar para os tratados de alcance especial. Ainda, vamos fazer uma incursão nos sistemas regionais, notadamente no sistema regional interamericano. Finalmente vamos percorrer o sistema nacional, avaliando como a constituição brasileira se posiciona neste cenário, qual é o grau de abertura que o texto de 1988 tem ao processo de internacionalização dos direitos humanos. Será que a carta de 1988 encampa a concepção contemporânea de direitos humanos? Qual a porta de entrada, de recepção dos direitos humanos? Qual é a sua hierarquia, sua incorporação e o seu impacto? Então estas serão as nossas próximas conversas. Temos então que nesta primeira aula lançamos como ponto de partida a teoria geral dos direitos humanos, com reflexões preliminares; embarcando na declaração universal de 1948, seu sentido, alcance e legado; concepção contemporânea dos direitos humanos; e finalmente fulminando com o sistema jurídico multinível. Portanto, arenas global, regional e local, abertas e permeáveis aos diálogos, aos empréstimos, às incidências, às interações mútuas e recíprocas, tendo como norte o valor maior da dignidade humana, e, consequentemente, o princípio pro persona. Material elaborado por Leonardo Leonel É muito importante já se dizer nesta primeira aula, que no campo dos direitos humanos há uma lógica e principiologia própria; o princípio da dignidade humana e a sua prevalência é o que nos guia. Em decorrência deste princípio, é o princípio pro persona, que para alguns é o princípio pró homem. Qual é o sentido deste princípio? Prevalece sempre a norma mais protetiva, mais benéfica e mais favorável à vítima. A centralidade é das vítimas e os sistemas global, regional e local se somam, e sempre prevalecerá mais protetiva, mais benéfica, favorável à vítima. Seja ela de âmbito geral ou especial. Seja ela do âmbito global, regional ou local. Saliente-se que há campos do direito que têm racionalidades próprias, como o direito do consumidor, em que as partes estão numa relação assimétrica, portanto se protege a parte mais vulnerável; direito do trabalho, em que há uma vulnerabilidade maior dos trabalhadores. Então há princípios próprios. No campo dos direitos humanos também, em que desfazemos dos princípios tradicionais como, por exemplo, soluções de antinomias, em que norma posterior sempre revoga a anterior, em que a norma geral convive com a geral, e afasta a geral em que ela tem de especial, porque aqui a lógica material é a que prevalece. Portanto, o raciocínio que se faz é sempre avaliar a norma mais benéfica. Venha da onde vier, seja qual for o seu tempo, tenha sido antes ou depois, ela sempre prevalece. Este é o princípio pro persona, primazia da norma mais favorável, mais protetiva, mais benéfica à pessoa humana, decorrente do princípio da dignidade humana.
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