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Caderno de ARTIGOS ____________________________ Filosofia do Direito - Grupos Vulneráveis - Sucessões Ars commune 2020.1 fil direito 21-55336 Título: Caderno de Artigos: Filosofia do Direito, Grupos Vulneráveis e Sucessões Organização: Rafael Reis Ferreira Editora: Ars commune Boa Vista - Roraima Volume: I – 2021 A totalidade ou parte desta obra pode ser reproduzida, por qualquer meio, desde que referida a fonte. Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) (Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil) Com grande felicidade apresento o lançamento do primeiro Caderno de Artigos 2020.1 que contém artigos dos(as) acadêmicos(as) do Curso de Direito, de diferentes turmas, nas áreas de Filosofia do Direito, Grupos Vulneráveis e Sucessões. Tratam-se de textos produzidos no contexto da pandemia e do regime de Ensino Remoto Especial da Universidade Federal de Roraima, com ampla abrangência de temáticas atuais e fundamentais de serem refletidas por quem defende o Direito no sentido do justo, em perspectiva de superação da crise do direito legal-normativista. Gostaria de agradecer as turmas aqui representadas pela atitude frente à pandemia, com a manutenção do distanciamento e respeito ao ser humano. Diante da ignorância demonstrada por parcela da população e do comportamento individualista inferior até mesmo ao estado de natureza imaginado por Hobbes, os(as) acadêmicos(as) tiveram comportamento exemplar que dignificam para sempre o Curso de Direito da UFRR. Assim, segue o resultado de um esforço coletivo de produção científica materializado nesta primeira coletânea de artigos, que espero permaneça como espaço de pesquisa e reflexão jurídica diante de nossa sociedade racista, ignorante, violenta e tão sofrida. Prof. Me. Rafael Reis Ferreira ÍNDICE FILOSOFIA DO DIREITO Págs. ORDEM E PROGRESSO: O POSITIVISMO E SUAS INFLUÊNCIAS NO BRASIL Ana Beatriz Silveira Prado; Antonia Lara da Costa Macêdo; Marcia da Silva Oliveira Barata 6-16 REPENSANDO A HISTÓRIA ÚNICA DO DIREITO LEGALISTA A PARTIR DA TEORIA JURÍDICA FEMINISTA E DA INTERSECCIONALIDADE Andrezza Gabrielli Silveira Menezes; Juliana Carolina da Silva Lima; Juliana Fabrícia Correia Orihuela 17-27 ANÁLISE JURÍDICA E FILOSÓFICA DO FILME PANTERA NEGRA Danyele Beatriz Cavalcante de Oliveira; Isabelly da Silva Rodrigues; Maria Clara Govêia de Oliveira 28-39 O DISCURSO JURÍDICO E O DISCURSO FILOSÓFICO: A EVOLUÇÃO DO DIREITO NA SOCIEDADE MODERNA Darlete Souza do Nascimento; Ícaro Vitório Viana Braga; Yara Ravenna Nascimento do Rosário 40-48 A LUTA PELO DIREITO: IHERING E OS TEMPOS DE COVID-19 Lee Oswald Vito de Medeiros 49-56 ARBITRAGEM E INTERPRETAÇÃO JURÍDICA: ANÁLISE DE UMA IMPORTANTE DECISÃO DA 2ª VARA DE FAMÍLIA DE BOA VISTA-RORAIMA Luane Lopes Salazar; Mariana Schafer Ignatz; Natália Talia Andrade de Oliveira 57-66 A CIDADANIA E A TEORIA DA JUSTIÇA COMO EQUIDADE EM JOHN RAWLS Luciana Nascimento de Souza; Natálya Nallyja Medeiros; Wesley Tomé da Matta 67-75 PRINCÍPIO DA VEDAÇÃO AO RETROCESSO SOCIAL E SEUS FUNDAMENTOS Marília Talia Gabriel da Silva; Ricardo Matheus Gomes Botelho 76-85 FILOSOFIA DO DIREITO: AS DIVERSAS FORMAS DE COMPREENSÃO DO FENÔMENO JURÍDICO Micael Ferreira Menezes; Warlison Monteiro Mota 86-93 A INFLUÊNCIA DOS PRECEITOS BÍBLICOS NO DIREITO POSITIVO BRASILEIRO Michelly Larrary Araújo Botelho; Saymon Thyago Barbosa Menezes 94-108 GRUPOS VULNERÁVEIS Págs. O PROCESSO DE CONSTITUIÇÃO DOS DIREITOS DA CRIANÇA E DO ADOLESCENTE NO BRASIL E A ATUAL VULNERABILIDADE NO CENÁRIO BRASILEIRO Carla Johanna Duarte Correia 109-119 A TUTELA PENAL AO DIREITO DOS VULNERÁVEIS: A (IN)EFICÁCIA DO DIREITO PENAL NA PROTEÇÃO DOS GRUPOS VULNERÁVEIS 120-130 Edgard Mauricio Carneiro Coutinho; Francisco Artemízio Silva Freitas A NEGAÇÃO DE DIREITOS AOS POVOS INDÍGENAS FACE A CONVENIÊNCIA E OPORTUNIDADE DA NARRATIVA JURÍDICA: ESTUDO DE CASO ENVOLVENDO PESSOA AUTODECLARADA INDÍGENA EM LITÍGIO CRIMINAL Francisco Alves Gomes 131-142 EDUCAÇÃO ESCOLAR INDÍGENA: A LUTA PELO DIREITO A UMA EDUCAÇÃO ESPECÍFICA E DIFERENCIADA Mávera Teixeira dos Santos 143-150 PANDEMIA DE COVID-19 E FECHAMENTO DA FRONTEIRA BRASIL-VENEZUELA MEDIDAS FRENTE À PAMDEMIA E CONSEQUÊNCIAS PARA OS REFUGIADOS Merian Pereira da Silva; Nataliene Cavalcante Rodrigues; Sandro Rafael da Fonseca Pinto 151-161 VULNERABILIDADE DOS IMIGRANTES VENEZUELANOS EM RORAIMA Warlison Monteiro Mota 162-170 SUCESSÕES Págs. RENÚNCIA À HERANÇA NO PACTO ANTENUPCIAL Ana Beatriz Silveira Prado; Itáryk Cardoso Peres; Márcia da Silva Oliveira Barata 171-181 SUCESSÃO LEGÍTIMA DA HERANÇA DIGITAL E OS ENFRENTAMENTOS JURÍDICOS POR AUSÊNCIA DE LEGISLAÇÃO ESPECÍFICA André Gabriel da Silva Soares; Bruna Vitória Lima Barros; Lee Oswald Vito de Medeiros; Ricardo José da Mota Filho 182-196 ANÁLISE SOBRE O RECONHECIMENTO DA MULTIPARENTALIDADE E SEUS REFLEXOS PARA O DIREITO SUCESSÓRIO Antonia Lara da Costa Macêdo; Fabiane Melo Alencar; Isabelle Campelo Bessa 197-210 A SUCESSÃO DOS BENS DIGITAIS E O DIREITO DE HERANÇA Beatriz Moura Pinho; Ícaro Vitorio Viana Braga; Matheus Fonteles Fernandes 211-219 UNIÃO ESTÁVEL: A EVOLUÇÃO JURÍDICA NAS SUCESSÕES Darlete Souza do Nascimento; Juliana de Castro Menezes Rangel; Yara Ravenna Nascimento do Rosário 220-231 ANÁLISE DA EVOLUÇÃO HISTÓRICA DO DIREITO SUCESSÓRIO E SEUS DESDOBRAMENTOS NO CÓDIGO CIVIL DE 2002 Dayana Souler Gonzaga Deodato; Marthleen Katrinny Gomes da Conceição 232-238 ASPECTOS DA HERANÇA DIGITAL NO DIREITO SUCESSÓRIO Gladstton Tiago da Silva Simas; Ítalo Lopes da Silva Teixeira; Mateus de Sousa Lima 239-250 SUCESSÃO TESTAMENTÁRIA EM TEMPOS DE PANDEMIA: UMA ANÁLISE DA RELATIVIZAÇÃO DAS FORMALIDADES PREVISTAS EM LEI Johana Rainara Ferreira Bispo; Vanessa Thays Kramer da Silva Alves; Victoria Holanda Cavalcante 251-264 AS DÍVIDAS DA HERANÇA E O PRINCÍPIO NON VIRES INTRA HEREDITATIS Pedro Augusto Silva Coelho César; Virgínia Gandur Pigari 265-276 A EXCLUSÃO DA SUCESSÃO POR INDIGNIDADE ALÉM DAS HIPÓTESES ELENCADAS NO CÓDIGO CIVIL BRASILEIRO Valério Graco Dantas de Sousa 277-286 6 ORDEM E PROGRESSO: O POSITIVISMO E SUAS INFLUÊNCIAS NO BRASIL Ana Beatriz Silveira Prado1 Antonia Lara da Costa Macêdo2 Marcia da Silva Oliveira Barata3 RESUMO O seguinte artigo científico busca examinar, sob o ponto de vista histórico, como o Positivismo ocorreu no Brasil, a partir de análise e explanação sobre a teoria positivista proposta por Auguste Comte e sua busca por investigar fenômenos sociais através da observância das leis naturais. Comte influencia Kelsen a estabelecer uma proposta de abordagem positivista para o Direito para a criação de uma ciência jurídica autônoma com dimensão científica, o Positivismo Jurídico. Neste ínterim, surge a ideia da teoria positivista no Brasil, contudo, tal teoria se afastou do aspecto sociológico em sua composição, limitando a compreensão do direito ao puro exame da norma, sem considerar a realidade fática a qual está inserida. Desse modo, criou-se excessivo formalismo que conduziu à fragilidade da ciência jurídica enquanto mecanismo de solução de conflitos sociais. Palavras-chave: Comte; Positivismo Jurídico; Positivismo no Brasil. 1 INTRODUÇÃO A teoria positivista de Auguste Comte iniciou como uma das nuances do Iluminismo e ascensão do desenvolvimento intelectual, nas perspectivas política, econômica e social após a época do Renascimento. Essa teoria é consequência da decadência do período da Idade Média, onde o conhecimento era cerceado pela Igreja e imposição de seus dogmas. Comte acreditava que a ciência era o fator norteador para que a sociedade ascendessena ordem social e, por consequência dessa primazia científica e intelectual, as crises política e social que ocorriam à época da Revolução Industrial chegariam ao fim. A teoria positivista influenciou grandes nomes, como Hans Kelsen, a aplicar tal teoria a outros campos do conhecimento, como o Direito. 1 Acadêmica de Direito da Universidade Federal de Roraima (bia.absp@gmail.com). 2 Acadêmica de Direito da Universidade Federal de Roraima (laracmacedo@hotmail.com.br). 3 Acadêmica de Direito da Universidade Federal de Roraima (profemarciaoliveira@gmail.com). 7 Este artigo objetiva aprofundar sobre a forma que a corrente positivista ocorreu no Brasil, a partir do ponto de vista histórico e da teoria Comtiana, além de breve exposição sobre o Positivismo Jurídico e Filosófico. Será desenvolvido por meio de revisão doutrinária com análise do tema em obras bibliográficas, artigos e material de cunho científico. Será utilizada linguagem jurídica de acordo com o âmbito histórico e jurídico da pesquisa. 2 POSITIVISMO O positivismo nasceu em um contexto em que a religião perdia espaço e se aprimorava o conhecimento científico e tecnológico. Assim, a ciência passou a ter lugar de prestígio em detrimento ao conhecimento religioso. O pensamento positivista tem por ideal o progresso da sociedade de forma contínua. Se atribui a origem da filosofia positivista, que se deu no século XIX, ao pensador francês Auguste Comte que foi fortemente influenciado pelas ideias Iluministas. Para Comte, a essência do positivismo se baseia na ideia de uma sociedade organizada onde se almejava uma reforma intelectual do homem. Desta maneira, apregoa tal filosofia a primazia da ciência como forma de conhecimento que guiasse a sociedade para a evolução na ordem social e, com isso, findaria a crise política e social que estava instaurada no século, derivadas da Revolução Industrial que ocasionou a explosão demográfica de forma desordenada nos centros urbanos, bem como as desigualdades sociais. Este ideal se inspirou no pensamento progressista, onde a progressão da humanidade acontecia de forma constante. O positivismo se compõe essencialmente duma filosofia e duma política, necessariamente inseparáveis, uma constituindo a base, a outra a meta dum mesmo sistema universal, onde inteligência e sociabilidade se encontram intimamente combinados (COMTE, 1978, p. 229). O ponto de partida para Comte expor a sua ideia foi a teoria denominada de lei dos três estados, a saber, o teológico, metafísico e o positivo. Segundo Comte, o conhecimento humano enfrentou estes três estados e afirma que em cada um deles há uma forma de pensar. [...] em virtude desses três estados existem também três tipos de filosofia, ou três modos de conceber o conjunto dos fenômenos, que são totalmente excludentes: a primeira, a filosofia teológica, constitui o ponto de partida da inteligência humana; a segunda, a filosofia metafísica, destina-se apenas a servir de etapa de transição; já a 8 terceira e última, a filosofia positiva, seria o estágio fixo e definitivo da razão humana (BRANDÃO, 2011, p. 3). O primeiro estado é o caracterizado por elementos mitológicos, no qual a sociedade buscava explicações por meio de crenças e entidades. Segundo Comte, este estado possui três estágios, o fetichismo, politeísmo e monoteísmo. O primeiro refere-se a atribuição de vida e poderes a corpos e astros celestes, a segunda ao espírito teológico onde há entrega de objetos à seres fictícios e na crença de que estes influenciavam os fenômenos exteriores e humanos. O último, em verdade, é o declínio da fase teleológica pois o homem passa a sujeitar os fenômenos a leis imutáveis e não mais em seres sobrenaturais. No estado metafísico ocorre a substituição dos seres fictícios por entidades abstratas que explicam os fenômenos e não há a predominância da observação. O estado positivo é aquele onde há uma quebra radical no estado metafísico. Há um “estado de virilidade da nossa inteligência” (BRANDÃO, 2011, p. 4). Neste estado, não se faz necessário a explicação dos fenômenos, mas sim pesquisar por meio da observação, as leis que existem entre estes. Assim, o estado positivo, na verdade, é um conhecimento científico. Neste contexto, o conhecimento científico, por meio da observação, alcançou um alto patamar e por isso serve de modelo para a organização da sociedade. Apesar do avanço do conhecimento científico, este não tinha por objeto os fatos sociais. Com a criação da física social Comte pretendia trazer um caráter positivo para a sociologia, o que já acontecia com as outras ciências. Comte inclui a sociologia no ramo das ciências naturais, assim, sinteticamente, Comte: [...] pretende unir as ciências do homem às ciências da natureza, em uma homogeneização epistemológica. A estabilidade social pretendida decorre exatamente deste ponto, ou seja, a invariabilidade das leis da natureza assegura, no campo econômico e social, a concentração do capital e a supremacia patronal e industrial (OLIVEIRA; GALEB, 2014, p. 4). Desta maneira, Comte busca investigar fenômenos sociais por meio da observância das leis naturais que precisam ser observadas e descobertas pelos cientistas. Tal pesquisa procede do geral para o particular e do estático, que se relaciona à ordem, para o dinâmico, que se refere ao progresso. Comte com sua teoria, influencia o início do século XX as ciências sociais, a partir desta influência, as ciências sociais e isso influenciou Kelsen a estabelecer uma proposta de 9 abordagem científica, positivista para o Direito para a criação de uma ciência jurídica autônoma. 3 POSITIVISMO JURÍDICO Hans Kelsen utilizando o método positivista procurou atribuir ao Direito uma dimensão científica, assim, criando a denominada Teoria Pura do Direito. Na Teoria Pura do Direito, Kelsen conceitua o direito como uma: [...] a técnica social que consiste em obter a desejada conduta social dos homens mediante a ameaça de uma medida de coerção a ser aplicada em caso de conduta contrária (KELSEN, 2009, apud OLIVEIRA; GALEB, 2014, p. 12). Oliveira e Galeb (2014) frisam que Kelsen propunha uma concepção pura do saber jurídico no qual visava separar o discurso jurídico de elementos de cunho moral, político e ideológico. Assim, ao estudar direito, deve ser desvinculado qualquer juízo de valor. Kelsen ainda distingue o ser do dever ser, ou seja, as ciências naturais e humanas. Desta maneira, os fenômenos humanos, em seu aspecto social, são previsíveis apenas no campo do dever ser, pois não há, com exatidão, possibilidade de prever um comportamento social. Pelo Direito ser um fenômeno social, regula a conduta do homem e se relaciona com o princípio da consequência. Desta forma, nesta teoria, o que interessa para os juristas não são os fatos, assim o que estes significam, geram como consequência que se extrai das normas. Salienta-se que a teoria pura de Kelsen, por meio desta concepção, tem por válida qualquer norma jurídica positivada. BITTAR e ALMEIDA (2015) tecem algumas as críticas quanto ao positivismo de Kelsen. Pelo fato deste apenas se preocupar com a norma jurídica devidamente positivada, vigente e eficaz, abre margem para a aplicação de normas tidas como esdrúxulas, imorais, como aconteceu na Alemanha durante a Segunda Guerra Mundial ou até mesmo no Brasil durante a Ditadura Militar. Ademais, salientam que, seguindo esta teoria, o aplicador do Direito fazer um juízo de valor ao caso e segrega o Direito, haja vista não haver qualquer diálogo com outras ciências. 10 4 POSITIVISMO NO BRASIL Em linhas gerais, o positivismo no Brasil manifestou-se inicialmente por volta da metade do século XIX, ganhando notório espaço nas escolas militares. Dentre os principais precursores do movimento nesse período, destaca-se o professorBenjamin Constant como sendo um dos mais relevantes adeptos e propagadores das ideias de Auguste Comte no país. Segundo ensina João Torres (2018, p. 76), as concepções defendidas por Benjamin Constant influenciaram para que Deodoro da Fonseca, ainda que contra sua vontade, depusesse D. Pedro II e instalasse a República no Brasil. Defende ainda que a proclamação da República está diretamente relacionada ao descontentamento de alguns oficiais com o governo imperial, fazendo com que a questão militar adotasse coloração republicana. Impulsionados pelos ideais da liberdade do pensamento propagados fortemente por Benjamin Constant, os líderes do governo provisório adotaram a divisa do positivismo em nossa bandeira, passando a figurar o lema “ordem e progresso” como símbolo da influência do movimento positivista na República. Arantes (1988, p. 187-188) defende que os ideais positivistas no Brasil serviram para assegurar a modernização conservadora, de modo que as elites buscavam a promoção das mudanças sem viabilizar, entretanto, modificações nas estruturas sociais. Esse comportamento, segundo o autor supracitado, demonstra que o sistema positivista no Brasil teve sua função histórica alterada, não servindo como instrumento de produção de mudanças nas estruturas sociais. Em sentido contrário, Luiz Antonio de Castro Santos (1988, p. 196) entende que a filosofia positivista não teve qualquer influência no processo de modernização conservadora. Embora presente o conservadorismo, para o autor, o processo não teve o aludido papel modernizador. Foi, em suas palavras, “ornamental e descartável”, no sentido que não apresentava função específica. Santos (1988, p. 198) procura demonstrar que, ao contrário do que se prega, a aplicação do sistema positivista no Brasil, no que diz respeito à modernização conservadora, não demandou alterações relevantes na estrutura social: 11 [...] o Positivismo no Brasil não pode, salvo erro, ser julgado como um exemplo de doutrina deslocada ou postiça em relação à estrutura social da Província. o ideário positivista, no tanto que municiou a nascente elite agrário-exportadora e industrial com o necessário instrumento modernizador, não padeceu do anacronismo, do "modo de não-ser" (R. Schwarz) característicos de outros modelos culturais importados das matrizes. De modo diverso, os ensinamentos de João Cruz Costa (1956, p. 98) demonstram que os ideais importados são moldados pelas características e circunstâncias próprias do país: Se é certo que a nossa história intelectual tem sido, em grande parte, um variado tecido das vicissitudes da importação transoceânica de idéias, não menos certo é que os dados dessa importação aqui se conformam ou deformam em face das circunstâncias próprias ao ambiente, que é complexo e rico de contrastes. E é para isso que é preciso atender e atentar, pois talvez aí resida a nossa originalidade. A história do positivismo brasileiro é, cremos, sob êste aspecto, das mais curiosas e das mais interessantes. O declínio da influência dos ideários positivistas sobreveio a partir do ano de 1891, após os primeiros momentos do regime republicano. Os ideais positivistas foram substituídos por outras correntes filosóficas de origem europeia gradualmente adotadas pela elite intelectual brasileira. Conjecturando as possíveis causas para o declínio do movimento, Torres (2018, p. 191) aponta como principais fatores: [...] a evolução da ciência pela aplicação dos métodos positivos (positivismo em sentido lato, no qual podemos bem colocar Stuart Mill, Spencer e a corrente empirista anglo- -americana) destruindo os resultados de Comte pela aplicação de seus próprios princípios; a renovação e arejamento dos princípios da metafísica tradicional: neotomismo, neokantismo das escolas de Marburgo e Baden; a revolução operada pela nova metafísica: a fenomenologia, a filosofia existencial, o empirismo metafísico de Bergson e, por fim, o positivismo evoluído da escola de Viena. Nesse período, a história mundial é caracterizada pelo surgimento de pensamentos filosóficos divergentes das convicções positivistas. Os reflexos da adoção das novas concepções – dentre as quais destacam-se o evolucionismo, o novo espiritualismo e o espiritualismo tradicional – impactaram diretamente na decadência do positivismo no Brasil. Outro fator é assinalado por João Cruz Costa (1956, p. 103), para quem: A propaganda a favor de uma República Ditatorial, como a que era feita pelos adeptos de Comte, não podia inspirar simpatia aos políticos liberais da tradição monarquista que se haviam apoderado da jovem República. Os positivistas não atentavam, porém, para isso. Seguiam, serenos, a linha traçada por Augusto Comte. As afirmações do Mestre bastavam-lhes, desatentos que sempre viveram da realidade que os envolvia. 12 Diante disso, conclui-se que o progresso das ciências suscitou profundas alterações nos sustentáculos da filosofia proposta por Auguste Comte, enfraquecendo, desse modo, os postulados do positivismo. Conforme já tratado, a doutrina positivista foi muito influente no Brasil até meados do século XIX. Quanto à adaptação do pensamento de Auguste Comte ao direito, discute-se que o positivismo jurídico implementado no Brasil sofreu muitas distorções em razão de uma tendência a se considerar apenas a dimensão científico-positivista do pensamento, afastando assim os fundamentos básicos da sociologia Comteana. É oportuno recordar que para o teórico, a sociologia deveria ser pensada como uma forma de se compreender o desenvolvimento da vida humana em sociedade sempre com o objetivo de proporcionar aos indivíduos a melhor adaptação possível ao ambiente social. (GONZALEZ; GOMES, 2014, p. 09). Ao mesmo tempo em a filosofia positivista serviu de suporte aos republicanos na promoção de mudanças na sociedade, tais ideais influenciaram também o chamado legalismo, evidenciado a partir de uma necessidade de previsão dos comportamentos em um regras escritas que seriam invocadas para a resolução dos conflitos da vida em sociedade. Gonzalez e Gomes (2014, p. 09) ressaltam que Luís Pereira Barreto foi um dos primeiros positivistas que no Brasil a desenvolver estudos na área jurídica, manejando a filosofia de Auguste Comte para fundamentar suas críticas ao direito, aos jurisconsultos e a Academia. Pereira Barreto, segundo apontam Gonzalez e Gomes (2014, p. 10), direcionou suas críticas aos fundamentos do direito no momento de criação dos cursos jurídicos no Brasil, notadamente “a reprodução dos compêndios coimbrãos, as bibliotecas jurídicas importadas, o formalismo que não acompanhava os aspectos histórico-sociais do país e a ausência de aprofundamento dos estudos filosóficos nas Faculdades de Direito (...)” Nesse ínterim, defendia-se a necessidade de reconstrução do direito a partir do reconhecimento da dinamicidade da sociedade. Criticava-se, nesse sentido, os juristas que negavam a incidência dos apontamentos sociológicos durante a elaboração e aplicação das leis, as quais eram apartadas da realidade e firmadas tão somente na razão. (Gonzales e Gomes, 2014, p. 10) 13 Outra importante observação feita pelos autores quanto ao desenvolvimento do positivismo jurídico no Brasil diz respeito ao perfil dos bacharéis em direito à época. No momento do Segundo Reinado, o título de bacharel garantia ao indivíduo uma posição na elite política. Tal fato representava um problema à medida que a formação teórica de tais profissionais era insuficiente, bem como não a formação prática era praticamente ignorada. Desse modo, conforme os autores, não se verificava, nesse momento, o suporte científico necessário à resolução dos problemas sociais existentes. (Gonzales e Gomes, 2014, p. 10) Ademais, a insatisfação com o papel ocupado pelos bacharéis na elite política desagradava em especial os militares, hajavista que nesse período histórico, tais sujeitos eram afastados das funções políticas. Os militares encontraram no positivismo um importante suporte para seu descontentamento. Nesse sentido, Gonzales e Gomes (2014, p. 11) ensinam que: Para os militares, todas as críticas à jurisprudência, ao Direito e principalmente aos legalistas lhes eram convenientes, para desbancar o prestígio intocável dos bacharéis nas mais diversas funções sociais. Dessa forma, a introdução no Brasil da doutrina comteana desfrutou de grande admiração por parte da maioria da população instruída, incluindo os militares que nela se firmavam para destronar os bacharéis dos postos e prestígios alcançados. Instarou-se, então, nesse período de nossa história, uma crise entre o elemento militar e os bacharéis denominada por Sérgio Buarque de Holanda (apud VENÂNCIO, 1977, p. 280) de a batalha entre “a Farda e a Beca”. Tudo que fosse relativo ao bacharelismo passou a ser criticado duramente pelos militares e pelos positivistas formadores de opinião, que destacavam a falta de adequação dos juristas coimbrãos às questões sociais que se apresentavam; pelo despreparo dos lentes contratados pelo Império; pelas obras estrangeiras descompassadas e inúteis ao cenário nacional; pela má-formação dos bacharéis – os quais mais se aplicavam à literatura, ao jornalismo e à política; pela ausência de estudos práticos e atuais; pela falta de vocação jurídica, considerando que ser bacharel era ter um futuro promissor nas carreiras públicas, na política ou até mesmo no meio jurídico. Por fim, interessa expor que, conforme os referidos autores buscam demonstrar, a filosofia Comteana não afastava o direito de seu papel enquanto regulador dos fatos sociais, reconhecendo, nesse sentido a relevância da sociologia na formação dos profissionais da área. O afastamento dos ensinamentos sociológicos na formação jurídica fez com que o positivismo fosse compreendido como cientificismo legalista. (Gonzales e Gomes, 2014, p. 12) Ainda segundo eles, os fatores para que não fosse concretizada a construção do direito social idealizado por Auguste Comte estão relacionados à ascensão do liberalismo no mundo orientado pelo individualismo e crescente teoria da autonomia da vontade. (Gonzales e Gomes, 2014, p. 12) 14 Nesse sentido, o positivismo jurídico no Brasil afastou-se do aspecto sociológico em sua composição, o que limitou a compreensão do direito ao puro exame da norma, sem considerar a realidade fática a qual está inserida. Desse modo, criou-se excessivo formalismo que conduziu à fragilidade da ciência jurídica enquanto mecanismo de solução de conflitos sociais. 5 CONSIDERAÇÕES FINAIS Diante do exposto, infere-se que a teoria positivista não foi desenvolvida no Brasil da forma como foi proposta por Auguste Comte. Na teoria originária, a ideia se baseia em uma sociedade organizada de forma a primar a ciência como forma de conhecimento norteadora da evolução social, inspirando o pensamento progressista. O símbolo da influência do movimento positivista na República brasileira foi adotar o lema “ordem e progresso” em nossa bandeira. Há quem defenda que os ideais positivistas no Brasil funcionavam para tentar promover mudanças sem viabilizar, entretanto, modificações nas estruturas sociais e assegurar a modernização conservadora. Demonstrando que o sistema positivista no Brasil teve sua função histórica alterada, não servindo como instrumento de produção de mudanças nas estruturas sociais. Outros asseveram que a filosofia positivista não teve qualquer influência no processo de modernização conservadora, por não apresentar o aludido papel modernizador, tratando de processo sem função específica. O declínio da influência dos ideários positivistas sobreveio a partir do ano de 1891, após os primeiros momentos do regime republicano. Os ideais positivistas foram substituídos por outras correntes filosóficas de origem europeia gradualmente adotadas pela elite intelectual brasileira. O progresso das ciências suscitou profundas alterações nos sustentáculos da filosofia proposta por Auguste Comte, enfraquecendo, desse modo, os postulados do positivismo. Do estudo, infere-se que os fatores para que não fosse concretizada a construção do direito social idealizado por Auguste Comte estão relacionados à ascensão do liberalismo no mundo orientado pelo individualismo e crescente teoria da autonomia da vontade. Nesse sentido, o positivismo jurídico no Brasil afastou-se do aspecto sociológico em sua composição, o que limitou a compreensão do direito ao puro exame da norma, sem considerar a realidade fática a qual está inserida. Desse modo, criou-se excessivo formalismo que conduziu à fragilidade da ciência jurídica enquanto mecanismo de solução de conflitos sociais. 15 6 REFERÊNCIAS ARANTES, Paulo Eduardo. O positivismo no Brasil: breve apresentação do problema para um leitor europeu. Estudos CEBRAP, no. 21. 1988. BITTAR, Eduardo; ALMEIDA, Guilherme Assis de. Curso de Filosofia do Direito. 11 ed. São Paulo: Atlas, 2015. BRANDÃO, Ana Rute Pinto. A Postura do Positivismo com Relação às Ciências Humanas. In Theoria - Revista Eletrônica de Filosofia. Volume 03 – Número 06 – Ano 2011. CASTRO SANTOS, L. A.. 1988. Meia Palavra sobre a "Filosofia Positiva" no Brasil. Novos Estudos CEBRAP, nº. 22. 1988. p. 193-198. COELHO, Luiza Tângari Coelho. O positivismo jurídico de Hans Kelsen. Disponível em: <https://jus.com.br/artigos/18443/o-positivismo-juridico-de-hans-kelsen>. Acessado em 28 de novembro de 2020 às 20h45. COMTE, Auguste. Filosofia positiva; Discurso sobre o espírito positivo; Discurso preliminar sobre o conjunto do positivismo; Catecismo positivista. Os pensadores seleção de textos de José Arthur Giannotti; traduções de José Arthur Giannotti e Miguel Lemos. – São Paulo: Abril Cultural, 1978. (Os pensadores) COSTA, João Cruz. O Positivismo na República: notas sobre a história do positivismo no Brasil. Cia. Ed. Nacional, São Paulo: 1956. OLIVEIRA. Francisco Cardozo Oliveira; GALEB. Maurício. Positivismo e Leitura Histórica do Direito de Propriedade e da Posse pelos Juristas. Coleção CONPEDI/UNICURITIBA – Vol. 29 – História do Direito – Ano 2014. QUILICI GONZALEZ, Everaldo T.; GOMES, Agostinho Geraldo. A Transposição do Pensamentos de Auguste Comte no Positivismo Jurídico Brasileiro: cientificidade jurídica e exclusão da dimensão sociológica. João Pessoa, 2014, p. 3. RUSSEL, Bertrand. Os Problemas Filosóficos. O valor da filosofia. São Paulo: Almedina, 2008. TORRES, João Camilo de Oliveira. O positivismo no Brasil. Brasília: Câmara dos Deputados – edições. Câmara, 2018. https://jus.com.br/artigos/18443/o-positivismo-juridico-de-hans-kelsen 16 WOLKMER, Antonio Carlos. História do Direito no Brasil. 3. ed. Rio de Janeiro: Forense, 2003. 17 REPENSANDO A HISTÓRIA ÚNICA DO DIREITO LEGALISTA A PARTIR DA TEORIA JURÍDICA FEMINISTA E DA INTERSECCIONALIDADE Andrezza Gabrielli Silveira Menezes1 Juliana Carolina da Silva Lima 2 Juliana Fabrícia Correia Orihuela 3 RESUMO O Direito é contado por meio de normas supostamente gerais, abstratas e imparciais, explicadas pelo Positivismo Jurídico Legalista. No entanto, faz-se necessário ressaltar que tais características são transmitidas por quem conta a história, fazendo-o, muitas vezes, de forma a desconsiderar o gênero, a raça e a classe como lentes necessárias para se pensar a ciência jurídica. Nesse sentido, tem-se como objetivo demonstrar como as premissas de conhecimento pretensamente avalorativo e neutro, postuladas na forma de se enxergar os direitos, mascara a forma com que estes atingiram e continuam a atingir as diversas mulheres em suas corporalidades, violentando-as. Outrossim, demonstra-se como a incorruptibilidade do Direito à outros âmbitos como a religião, a história e a medicina nãopode ser considerada absoluta quando se pensa na forma com que tais discursos de poder influenciaram a lei no tratamento de inferiorização postulado às mulheres. A pesquisa foi realizada a partir de uma abordagem da teoria jurídica feminista e da interseccionalidade, utilizando-se da metodologia crítica-reflexiva, por meio da análise de artigos, livros e legislação considerados pertinentes à temática proposta. Defende-se que, para que realmente não se conte uma histórica única do Direito é necessário compreender como este atuou e atua contrário as pretensões que postula, a partir das reflexões trazidas pelos feminismos. Somente dessa forma é que se torna possível compreender como as leis positivadas, na verdade, refletem o ponto de vista do homem e são instrumento para a subjugação das mulheres. Palavras-chave: Feminismos; Interseccionalidade; Positivismo Legalista. 1 INTRODUÇÃO O Direito Positivista é ensinado como avalorativo, tendo o seu surgimento enquanto ciência necessitado da abdicação de juízos de valor, devendo reter-se aos juízos de fato. Nesse sentido, são abandonados ditames em relação aos valores morais e à justiça, atrelados à busca por um direito ideal, própria do Juspositivismo (BOBBIO, 1995). Tem-se, portanto, a negação da subjetividade, com o intuito da busca por um conhecimento neutro. Deve-se ressaltar que a necessidade de buscar por objetividade também 1 Acadêmica de Direito na Universidade Federal de Roraima (andrezzagabriellim@gmail.com). 2 Acadêmica de Direito na Universidade Federal de Roraima (julianasilvarr@gmail.com). 3 Acadêmica de Direito na Universidade Federal de Roraima (julianaorihuela@gmail.com). 18 passa a ser ideário de outras ciências humanas como, por exemplo, a história, pois “mesmo o historiador se esforça em ser objetivo, em reconstruir os fatos, despojando-se de suas paixões […] de modo a explicar os eventos e não julgá-los […]”( BOBBIO, 1995, p. 136). Essa construção de cientificismo, própria da Modernidade, replicada nos conhecimentos das áreas humanas, foi responsável por justificar diversas violências. Sob esse prisma, Chimamanda Ngozi (2009) questiona os perigos de uma história única. A análise feita por ela, atrelada ao pensamento decolonial, questiona como a realidade objetiva é apresentada sob o ponto de vista do colonizador, considerada a mais racional, a mais avançada, enquanto a visão do colonizado, considerada como inferior, seria subjetiva. De maneira análoga à construção de Ngozi, tem-se como objetivo questionar o perigo de uma história única do Direito, ou seja, aquela que é contada por meio de normas supostamente gerais, abstratas e imparciais, explicadas pelo Positivismo Jurídico Legalista. Tal questionamento será realizado a partir das perspectivas feministas, que, por muito tempo, foram excluídas do âmbito acadêmico por pautarem-se sob o ponto de vista do grupo excluído, frisa- se, não homogêneo, das mulheres. Nesse sentido, utiliza-se dos feminismos, pois tais movimentos contestam de maneira assertiva as premissas de conhecimento avalorativo e neutro postuladas pela ciência jurídica na forma com que estes atingiram e continuam a atingir as diversas mulheres em suas corporalidades. A utilização de Feminismo no plural se dá pelas diversas correntes desse pensamento, como o Radical, Liberal, Negro, Decolonial etc, que realizam as críticas a partir da própria definição do termo feminismo enquanto categoria hegemônica. Dessa forma, somente a partir das óticas feministas, por meio de juízos de valor, é que se torna possível compreender como as leis positivadas, na verdade, refletem o ponto de vista do homem e são instrumentos para a subjugação das mulheres. A pesquisa foi realizada a partir de uma abordagem da teoria jurídica feminista e da interseccionalidade, utilizando-se da metodologia crítica-reflexiva, por meio da análise de artigos, livros e legislação considerados pertinentes à temática proposta. Por fim, ressalta-se que a maioria dos ensinos jurídicos brasileiros desconsidera a relação dos feminismos com o Direito, pois, pautando-se somente na letra fria da lei, ocultam as formas com que os movimentos feministas lutaram por direitos e para a desconstrução de machismos e moralismos legalizados. 2 CONTRAPONDO UMA HISTÓRIA ÚNICA DO DIREITO 19 As críticas feministas “se apresentam como um contraponto à tradição científica positivista, que busca a verdade absoluta a partir de uma concepção de ciência marcada, de um lado, pela neutralidade e, de outro, por uma metodologia imune às influências sociais” (MENDES, 2017, p. 84). Ao analisar tal crítica ao positivismo, pode-se observar a negação de pressupostos do Direito baseado em tal corrente, que postula ser neutro, imparcial, geral e abstrato. Nesse sentido, pontua-se que, em uma análise rasa, o âmbito jurídico poderia ser visto unicamente como protetor, garantidor de direitos e instrumento de justiça social, considerando nesse recorte, sobretudo, os direitos concernentes ao grupo diverso que se constitui o termo mulheres. Evita-se partir de uma concepção homogênea do termo mulher, considerando que não se pode considerá-la de maneira a ignorar multiplicidades e complexidades concernentes ao gênero, raça, classe e etnia. Para fugir de tais concepções Alda Facio (1999, p. 25) destaca a importância de se conhecer o feminismo, não só pela popularidade do Movimento, mas “para compreender el rol que ha desepeñado el derecho en la mantención y reproducción de la ideologia y estructuras que confirman el patriarcado” (Tradução livre: “para compreender o papel que o direito desempenhou na manutenção e na reprodução da ideologia e estruturas que confirmam o patriarcado”). O Movimento Feminista questiona, desde a Revolução Francesa, a suposta igualdade da ciência jurídica. A francesa Olympe de Gouges foi uma das principais representantes a questionar a universalidade da Declaração dos Direitos do homem e do cidadão, que claramente pressupunha como intrínseco à qualidade de humanidade o gênero masculino, branco e detentor de subsídios. Partindo desse pressuposto, as mulheres não eram consideradas cidadãs e, portanto, não existiam como sujeitos de direito. Como Cusicanqui ressalta (2010, p. 204) “el derecho y la formación histórica moderna […] tienen en Europa un anclaje renacentista e ilustrado a través del cual renace el ser humano como Sujeto Universal (y masculino) de la noción misma de ‘derecho’” (Tradução livre: “O Direito e a formação histórica moderna […] tem na Europa um enclave renascentista e ilustrado através de qual renasce o ser humano como sujeito universal (e masculino) de noção mesma de direito”). Apesar disso, quando cita-se a relação entre mulheres e Direito, em grande parte das abordagens, tem-se o intuito de enfatizar a atuação do Direito não como criador de disparidades, mas como salvador, acentuando aspectos concernentes, por exemplo, ao combate à violência doméstica, utilizando-se da Lei Maria da Penha, ao homicídio em razão do gênero, utilizando- se da qualificação do Feminicídio e, mais recentemente, contra os atos que caracterizam a Importunação Sexual, tipificada pelo Código Penal. 20 No entanto, todas essas temáticas supracitadas são apresentadas de forma ineficaz e sob à ótica do conhecimento hegemônico, tratando-se de tais direitos de forma a ocultar a sua história, como se tivessem surgido magicamente da boa vontade do legislador. Utiliza-se, dessa forma, da pretensiosa perspectiva da objetividade, distanciando-se completamente da realidade de que foram direitos que surgiram da dor das violências praticadas contra às mulheres, que os reivindicaram por meio dos diversos movimentos feministas. Tratando-se da Lei Maria da Penha, Fabiana Severi (2018) demonstra como a forma em que a história da Lei é contada tende a omitir a atuação das feministas brasileiras que,por muito tempo, lutaram para ter a violência doméstica reconhecida além do âmbito privado. Também cita a propensão das obras concernentes a tal dispositivo legislativo citarem o movimento feminista simplesmente com a finalidade de acusá-lo de punitivista, sendo que o propósito do movimento nunca foi simplesmente a criminalização, mas a busca por outras medidas que não foram adotadas pelo Estado. 3 A INFERIORIZAÇÃO DA MULHER PELOS DIVERSOS DISCURSOS E A IMPLICAÇÃO NO DIREITO Faz-se necessário ressaltar o fato de não se pontuar como o posicionamento do Direito, enquanto Teoria Pura e avalorativa, “parte del punto de vista masculino [...] da respuesta exclusivamente a los intereses de los hombres y trata dichas necesidades como universales al ser humano y no como próprias de una mitad de los sujetos del derecho (FACIO, 1999, p. 27. Tradução livre: “parte de um ponto de vista masculino […] dá resposta exclusivamente aos interesses dos homens e trata de tais necessidades como universais ao ser humano e não como próprias da metade dos sujeitos de direito”). Portanto, oculta-se que o âmbito jurídico foi influenciado por diversos discursos de poder que circundam a sociedade responsáveis por solidificar a dominação do homem sobre a mulher. Nesse sentido, Silvia Chakian (2019) demonstra em âmbitos como a religião, a história e a medicina foram responsáveis por consolidar o tratamento dado às mulheres pelo Direito. No mesmo plano expõe Beauvoir (2016, p. 19), “legisladores, sacerdotes, filósofos, escritores e sábios sempre se empenharam em demonstrar que a condição de subordinação da mulher era desejada no céu e proveitosa na terra”. Dessa forma, visa-se atrelar tal construção a como a legislação brasileira, calcada nos ideais positivistas, relegava às mulheres uma posição de subordinação e inferiorização. Outrossim, busca-se demonstrar como, além de não se falar sobre a luta feminista pelos direitos 21 conquistados, não se fala na maneira em que o Direito atuou/atua como mecanismo de violência contra as mulheres, mesmo partindo de uma concepção legalista. 3.1 Mística cristã A religião é um dos âmbitos que mais estabelece papéis de gênero dentro do meio social. Ao fugir de tais normas comportamentais, a figura feminina é considerada, por vezes, diabólica por ser um instrumento de tentação e pecado que corrompe o homem. É interessante ressaltar como a visão bíblica é responsável por atribuir às mulheres que decidem não seguir as orientações do poder divino pressupostos de serem corruptíveis, ludibriáveis e maldosas. Pode-se perceber tais constatações ao analisar as representações das mulheres na Bíblia, como expressa Chakian (2019, p.9), citando Maíra Zapater:, “[...] enquanto a mulher é representada por duas figuras centrais: Eva e a Virgem Maria: a primeira, responsável pelo ‘pecado do mundo’, e a segunda, por conceber o filho de Deus ‘sem pecado’”. Nesse sentido, a mulher considerada valorosa e digna de respeito é aquela que se adequa às normas de castidade, de submissão, de passividade e de obediência. Essa percepção de separar as mulheres em grupos diversos, considerando valores morais postulados pela religião, sobretudo quanto às ideias de que uma “pureza sexual” feminina atrelada à honestidade enquanto ser humano, é absorvida pelo âmbito jurídico na Codificação Penal de 1940. O referido código “excluía de proteção jurídica toda aquela cuja reputação não correspondesse aos padrões morais de recato, pudor e submissão da época” (CHAKIAN, 2019, p. 233). A proteção apenas à “mulher honesta” ainda foi alvo de tentativa de explicação, anos depois, por Nelson Hungria, presidente da Comissão Revisora do Anteprojeto do Código Penal de 1969, quando declarou: Como tal se entende, não sòmente aquela cuja conduta, sob o ponto de vista da moral sexual, é irrepreensível, senão também aquela que ainda não rompeu com o minimum de decência exigida pelos bons costumes. Só deixa de ser honesta (sob o prisma jurídico-penal) a mulher francamente desregrada, aquela que inescrupulosamente, multorum libidini patet, ainda não tenha descido à condição de autêntica prostituta. Desonesta é a mulher fácil, que se entrega a uns e outros, por interesse ou mera depravação (cum vel sine pecúnia accepta) (DA SILVA, 2019, p. 229-230). Nesse sentido pode-se perceber o histórico sexista em que o Código Penal brasileiro classificava as mulheres entre honestas e não honestas. Como exemplo, o anterior caput do art. 215: “ter conjunção carnal com mulher honesta mediante fraude”; sendo o termo “honesta” suprimido da redação atual. Na visão de Chakian (2019) a situação poderia ser enxergada até 22 mesmo como uma forma de classificação atinente à mulheres estupráveis e não estupráveis. Tal fato só foi alterado na letra da lei com o advento da Lei n.º 11.106/05, que passa a retirar o termo “honesta” da tipificação penal. No entanto, deve-se ressaltar que, apesar da alteração legislativa, não necessariamente houve câmbio na mentalidade da sociedade e dos juristas, uma vez que ainda tende-se atrelar tais condutas para qualificar às vítimas de estupro como passíveis ou não de serem acreditadas. Como exemplificação, pode-se citar o caso da influencer Mariana Ferrer, que teve parte da audiência divulgada na qual é possível observar como o advogado de defesa utiliza-se dos comportamentos da vítima para tentar descaracterizar que esta era virgem, pois na concepção da defesa ela não era “pura” o suficiente (THE INTERCEPT BRASIL, 2020), trazendo à tona o mesmo pensamento de Nelson Hungria. 3.2 A Idade Média e a Era das Bruxas No imaginário coletivo existe a imagem construída da bruxaria da Idade Média, responsável por levar muitas mulheres à fogueira por seus feitiços, pactos com o demônio, heresias e pecados. No entanto a historiadora Silvia Federici (2017, p. 299) demonstra que a bruxa era a que “praticava sua sexualidade fora dos vínculos do casamento e da procriação. Por isso, nos julgamentos por bruxaria, a má reputação era prova de culpa” Importante destacar o Malleus Maleficarum ou Martelo das Feiticeiras, um manual de inquisidores da época, no qual “constam afirmações relativas à perversidade, à malícia, à fraqueza física e mental, à pouca fé das mulheres, e, até mesmo, a classe de homens que seriam imunes aos seus feitiços” (MENDES, 2017, p. 21). Dessa forma, justificando judicialmente a caça às bruxas em razão da mulher ter intrinsecamente uma conduta desviante. Essa construção que passa a caracterizar as mulheres como seres que deveriam ser temidos e, após, aniquilados, ultrapassou a chamada Idade Média. Nesse sentido, as mulheres que não seguem as normas prescritas pela sociedade, por exemplo, por não aceitarem a maternidade compulsória ou, sobretudo, os ditames da moral sexual, continuam a ser mal vistas: [...] ainda que tenha passado a ser reconhecida como sujeito passivo, a prostituta continua sofrendo, não só com as consequências físicas, psíquicas, econômicas e sociais do fato típico (vitimização primária), mas também com a falta de prepara e o descrédito das instituições no que diz respeito à sua palavra (vitimização secundária) (CHAKIAN, 2019, P. 235). Dessa forma, observa-se que a figura das bruxas, claramente, faz-se persistente, tendo em vista que, a mulher que decide não seguir a conduta prescrita pela sociedade machista e 23 patriarcal, não é vista da mesma forma pelos julgadores. Portanto, é possível entender que o âmbito jurídico não é incorruptível quanto à concepção social pautada, como demonstra Chakian (2019), em uma dupla moral sexual, na qual se repudia no comportamento sexual feminino o que se aprova no masculino. 3.3 A literatura médica Do século XIII ao século XIX a mulher passa a ser categorizada por um discurso biológico e patologizante que tem como intenção justificar a sua inferioridadede forma científica. Nesse plano, Chakian (2019, p. 21) citando Laqueur, demonstra que até mesmo utilizavam-se dos fluidos corporais das mulheres contra elas, “os humores frios e úmidos considerados dominantes no corpo da mulher eram relacionados com as características de “mentira, mutação, instabilidade”. Tais discursos eram utilizados para determinar o lugar da mulher na sociedade, muitas vezes utilizando do seu sexo para relegá-la a um lugar inferior e transformá-la em um ser menos confiável, mentiroso e atribuir-lhe a loucura, retirando-lhe o estado de sanidade mental. A influência de tais ideias fica bastante evidente quando analisamos que até o Estatuto da Mulher Casada, Lei n.º 4.121, de 1962, no qual as mulheres eram consideradas relativamente incapazes ao se casarem. Nesse sentido, o casamento as fazia perder a capacidade, que, como se sabe, no Direito Civil está atrelada ao desenvolvimento mental do sujeito. Dessa situação jurídica, decorriam importantes limitações: Entre 1916 e 1962, a chefia masculina permaneceu assim definida, competindo ao marido a representação legal da família, a administração dos bens comuns, o direito de fixar domicílio e o dever de ‘prover a manutenção da família’. A lei de 1962 avançou ao retirar do código o direito do marido de ‘autorizar a profissão da mulher e sua residência fora do teto conjugal’ (BIROLI, 2018, p. 120). Dessa forma, o próprio Direito legitimava a infantilização da mulher, que perdia a habilidade de tomar as próprias decisões e se autodeterminar. Concepções que ainda perpetram o tratamento institucional dado às mulheres que vão em busca da tutela jurisdicional: […] a reação vai questionar não apenas os fatos que a mulher afirma, mas também a sua capacidade de falar e seu direito de falar. Gerações de mulheres já foram chamadas de delirantes, confusas, manipuladoras, malévolas, conspiratórias, congenitamente desonestas [...] (SOLNIT, 2017, p. 134). Nesse sentido, pode-se observar, sobretudo no campo processual penal, como o discurso médico se cristalizou, pois muito se fala da mulher mentirosa, sendo incontáveis os 24 depoimentos em casos de violência de gênero que já foram descredibilizados por não acreditarem na palavra da vítima, principalmente, quando se está à frente de um agressor que não se encaixa no estereótipo, por ser considerado um homem de família e um cidadão do bem, rico, branco e heterossexual. 4 A IMPORTÂNCIA DA INTERSECCIONALIDADE Apesar das alterações legais quanto às violências legitimadas contra as mulheres no plano jurídico, como pôde-se observar no tópico anterior, e da criação de direitos que tendem a caracterizar o Direito como um instrumento de justiça social, faz-se necessário fazer ressalvas. Nesse sentido, mesmo que esses direitos se apresentem positivados nas diversas leis e códigos, não são todas as mulheres que podem exercê-los de forma equânime e igualitária. Alda Facio (1999) demonstra como a maioria das correntes dos feminismos não se preocupa somente com a elaboração de mais leis para as mulheres, simplesmente considerando um aspecto formal, mas também considera quem vai conseguir exercer tais direitos, possibilitando um exercício substancial. A autora aponta que, muitas vezes, o feminismo apoia as mudanças legislativas, apesar de ter consciência que atingirão em grande parte somente as mulheres de classe média alta, com a esperança de talvez haver certa mudança nas estruturas de poder. Nesse viés, Sueli Carneiro (2003) relata diversas conquistas do movimento feminista brasileiro, mas, também, demonstra como, por muito tempo, tal movimento foi pautado por uma visão homogênea, que invisibilizava as pluralidades e as diferenças das diversas mulheres. Tal fato pode ser visto nas importantes conquistas pelo chamado Lobby do Batom, que liderou diversas conquistas quanto aos direitos das mulheres na Constituinte. No entanto, nos direitos conquistados, não se falava na realidade da mulher negra ou indígena. Dessa forma, é válido ressaltar que, essa mesma visão de que existe uma figura de mulher homogênea, é adotada pelo Direito. Desconsiderar as multiplicidades que circundam o gênero é uma forma de ocultar a diferença que sempre existiu entre as mulheres de diferentes classes e raças. Isto posto, é necessário ressaltar que “enquanto […] mulheres brancas lutavam pelo direito ao voto e ao trabalho, mulheres negras lutavam para serem consideradas pessoas” (RIBEIRO, 2016, p. 100). O Movimento Feminista Negro enfatiza que, apesar do âmbito jurídico prever formalmente direitos relacionados ao gênero, substancialmente não são todas as mulheres que usufruem deles. Há de se observar que parte da classe feminina está subordinada a sistemas de 25 opressão simultâneos ao machismo, como o racismo e a classe social, o que torna mais complexo o exercício material de direitos, haja vista a maior vulnerabilidade. Assim, considerando a desigualdade histórica do exercício de direitos, sobretudo no Brasil, em que há uma fortíssima hierarquia social, faz-se relevante ressaltar o conceito de “Interseccionalidade”, que apresenta a forma com que “o racismo, o patriarcalismo, a opressão de classe e outros sistemas discriminatórios criam desigualdades básicas que estruturam as posições relativas de mulheres, raças, etnias, classes e outras” (CRENSHAW, 2002, 277). Em analogia, enquanto a mulher branca e rica está firme no combate ao machismo, a preta pobre tem que defrontar com o sexismo e preconceito contra a raça diariamente enquanto desempenha o papel de trabalhadora. Por esse motivo, há necessidade de compreensão da questão de gênero como um fenômeno complexo. Observa-se nele a existência de diferentes formas de desigualdade, que não apenas a desigualdade entre homem e mulher. Através da interseccionalidade há o estudo e contribuição para que mulheres negras, indígenas, imigrantes, transgêneros, homoafetivas, com deficiência, pobres, com baixa escolaridade e mulheres brancas, classe média e escolarizadas, tenham diferentes experiências que devem ser consideradas motivo pela esfera jurídica. 5 CONCLUSÃO A partir do que foi exposto é possível perceber que os ideias positivistas quanto à neutralidade e à imparcialidade não são observados quando se analisa a história jurídica por outra ótica. Nesse sentido, mesmo pautando-se na legislação, observou-se um tratamento que visava regular e reprimir determinado gênero, raça e classe, sendo o critério generalista da norma inobservado para se alcançar tais fins. Ademais, a pretensa proibição da adequação à valores é rechaçada quando se analisa as formas com que o Direito replicou convicções que inferiorizam as mulheres, advindos de diversos círculos, como a religião, a história e a medicina. Observou-se, através da presente pesquisa, que estas crenças foram responsáveis por solidificar características negativas continuamente atribuídas às mulheres de forma a inferiorizá-las. Apesar da esfera jurídica ter legitimado por muito tempo a submissão feminina através das leis e códigos, atualmente há uma ênfase ao papel dos direitos ligados ao combate à violência de gênero. Contudo, as normativas omitem que tal cambio de perspectiva se deu como fruto das mobilizações dos diversos feminismos e não resultou de uma curta batalha. 26 Nesse sentido, deve-se destacar que apesar das mudanças legislativas, a esfera jurídica continua a violentar as diversas mulheres na substancialidade do exercício de direitos. Dessa forma, para não contar uma história única do Direito é importante, além de entender como o âmbito jurídico subjugava as diversas mulheres por meio das leis, pensar a partir das lentes da interseccionalidade. A partir desse pensamento, será possível, então, possibilitar a equidade na garantia e segurança dos direitos à multiplicidade feminina existente no mundo, deforma que as necessidades de mulheres mais vulneráveis sejam atendidas tais quais são as de mulheres brancas, ricas, e escolarizadas. 6 REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BEAUVOIR, Simone de. O segundo sexo. Trad. Sérgio Miller. 4. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2016. 2 v. BIROLI, Flávia. Gênero e desigualdades: limites da democracia no Brasil. São Paulo: Boitempo Editorial, 2018. BOBBIO, Noberto. Positivismo jurídico: lições de filosofia jurídica. Tradução Márcio Pugliesi. São Paulo: Cone, 1995. CARNEIRO, Sueli. Mulheres em movimento. Estudos avançados, v. 17, n. 49, p. 117-133, 2003. 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O presente artigo pretende realizar uma análise das questões levantadas pelo filme Pantera Negra, utilizando-se de um estudo filosófico e jurídico, refletindo sobre como essas críticas impactam o cenário mundial. Utilizando-se o método dedutivo aliado ao método crítico-reflexivo e realizando pesquisa bibliográfica doutrinária, tem-se como resultado a comprovação de que a película desempenha imprescindível papel na militância antirracista, contribuindo com o cenário acadêmico. Palavras-chave: Pantera Negra; Antirracismo; Direito; Filosofia. 1 INTRODUÇÃO Pantera Negra (2018) é um filme do Universo Marvel e retrata a história do começo do reinado do príncipe T’Challa no país africano fictício Wakanda, que é um grande segredo para o mundo. Para a sociedade mundial, trata-se de um país de terceiro mundo. No entanto, Wakanda é, na verdade, um grande centro de desenvolvimento, cultura e fartura, onde os avanços tecnológicos são inimagináveis. Com o novo status real, T’Challa enfrenta um grande 1 Acadêmica em Direito da Universidade Federal de Direito (danybeatriz15@gmail.com). 2 Acadêmica em Direito da Universidade Federal de Direito (risabelly980@gmail.com). 3 Acadêmica em Direito da Universidade Federal de Direito (mariaclarinha.rr@gmail.com). 29 problema: os vilões Ulysses Klaue e Erik Killmonger estão roubando o grande metal “Vibranium”, típico de Wakanda e um dos principais garantidores do desenvolvimento do país. Por ser o primeiro filme que conta a história de um super-herói negro nos cinemas, a obra cinematográfica se tornou um marco no que se refere a representatividade para a população negra. O filme gerou grande repercussão ao retratar não apenas um super-herói em posição de poder, mas uma sociedade onde há respeito mútuo e os negros não são discriminados, não passam dificuldades e têm suas origens e cultura valorizadas. A história representa não apenas os negros no geral, mas também a comunidade feminina, pois o país fictício de Wakanda tem as mulheres como principais guerreiras e defensoras da terra, além da personagem adolescente Shuri, irmã do príncipe T’Challa, que coordena e idealiza toda a produção tecnológica do país. Em agosto de 2020 o Atlas da Violência, em estudo feito pelo Ipea (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada), juntamente com o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, tendo como base de dados os números indicados pelo Sistema de Informação sobre Mortalidade, do Ministério da Saúde (SIM/MS), apontou que a taxa de homicídio de negros cresceu 11,5% e a de não-negros caiu 12% no período de 2008 a 2018. Ainda segundo a pesquisa, os negros contabilizam 75,9% dos brasileiros assassinados no período estudado, destacando o estado de Roraima com a taxa de 87,5 mortos para cada 100 mil habitantes. Diante dos fatos mencionados e das recentes manifestações antirracistas que ocorreram no mundo, como o movimento “Black Lives Matter”, surgiu a necessidade de analisar como o filme impactou a sociedade ao acender uma chama de esperança de dias melhores, com mais respeito, igualdade e oportunidade para os grupos que se encontram em situação de vulnerabilidade social. Tendo em vista essa justificativa e por usufruto do método dedutivo em conjunto com o método crítico-reflexivo, realiza-se este artigo com objetivo de construir uma análise das críticas feitas pelo longa. Para tal, se faz presente um estudo filosófico e jurídico em que ocorre uma reflexão sobre como é impactado o cenário mundial mediante repercussão do filme. 2 PARTICULARIDADES DE PANTERA NEGRA É possível notar, com a sinopse e o enredo, que o filmeé uma verdadeira aventura e fantasia que, em princípio, não se adequaria como objeto de um estudo filosófico e jurídico. 30 Entretanto, a obra utiliza referências reais que representam a população negra de todo o mundo. O presente tópico tem por objetivo analisar esses traços que fazem a película se tornar rica para ser estudado. É relevante citar que o elenco é majoritariamente composto por pessoas negras. O protagonista é homem negro que é rei de um país extremamente desenvolvido. Além disso, a maioria das personagens coadjuvantes, que estão em volta de T’Challa, são mulheres negras, que são retratadas como guerreiras, rainhas e gênias superdotadas. Com essa observação, pode- se constatar que há uma preocupação em desconstruir estereótipos muito comuns do imaginário social, em que se coloca um homem negro em uma posição de destaque e a mulher negra em uma função que, em uma sociedade não fictícia, seria ocupada por um homem. A ideia do filme é contrária ao que Djamila Ribeiro (2019) ilustra ao citar casos brasileiros: A escrava Isaura, por exemplo, uma adaptação de Gilberto Braga do romance homônimo de Bernardo Guimarães (1875), apesar de no livro a personagem-título ser uma mulher negra, a atriz que a interpretou foi Lucélia Santos, uma mulher branca. O diretor apresenta muitos casos de racismo e critica o lugar subalterno a que personagens negros são relegados: para além da reivindicação justa por representatividade, também se deve questionar o modo como estamos sendo retratados. Muitas vezes atores negros são contratados para atuarem como “bandido” ou “bêbado”, no caso dos homens, ou como empregada doméstica ou a “gostosa”, no caso das mulheres. (RIBEIRO, 2019, p. 73 e 74) Além disso, é interessante compreender a construção social e cultural do país Wakanda. A nação fictícia é pautada em uma forte tradição baseada na espiritualidade, o que se expressa nas cenas dos rituais e da coroação do rei. Uma clara referência à cultura dos povos tradicionais africanos. Mediante essa reflexão, todavia, pode surgir a dúvida se a utilização dos aspectos no filme caracterizaria a existência de uma apropriação cultural, uma vez que se trata de uma produção lucrativa. O antropólogo Rodney William (2019) traz o seguinte conceito: Apropriação cultural é um mecanismo de opressão por meio do qual um grupo dominante se apodera de uma cultura inferiorizada, esvaziando de significados suas produções, costumes, tradições e demais elementos. Tomando como exemplo a sociedade de consumo, onde tudo se transforma em produto(...) (WILLIAM, 2019, p. 29) 31 Djamila Ribeiro, escrevendo sobre o assunto, disse: É importante que se tenha uma preocupação real em não desrespeitar os símbolos de outra culturas. Para isso, deve-se nutrir empatia pelos diversos grupos existentes na sociedade, um processo intelectual que é construído ao longo do tempo e exige comprometimento: quando eu conheço outra cultura, eu a respeito. Então é essencial estudar, escutar e se informar. (RIBEIRO, 2019, p. 72) A partir desses discursos, pode-se constatar que o filme utiliza a tradição africana, por meio do veículo do entretenimento, para atingir a massa mundial, trazendo representatividade para a comunidade negra. Não se trata de uma opressão, nem ignora as mazelas vividas pelo povo africano (RIBEIRO, 2019). Na verdade, essa é uma das reflexões que o filme faz. O povo wakandano vive em um país extremamente desenvolvido e repleto de recursos, enquanto a população negra de todo o resto do mundo sofre com a escravidão, o racismo e a fome. Em face desse fato, é possível compreender a demonstração de que não há lugar perfeito e que Wakanda tem uma política extremamente isolacionista proveniente do medo de serem dominados, e de se aproveitarem de suas riquezas. Em consequência dessa política, a sociedade wakandana é muito preconceituosa com quem é de fora do país e tal traço se revela na figura do antagonista principal: Erik Killmonger. Na história do filme, se descobre que Erik é o primo renegado do rei T’Challa que cresceu às margens da sociedade estadunidense. Sendo um reflexo do sistema (MACHADO, 2018), ele se revolta com a política exclusivista wakandana e busca tomar o país para si para que possa vingar o povo oprimido. Sobre o vilão Ayana Medeiros reflete: Considerando que o mesmo, foi criado fora de Wakanda, o seu essencialismo se igualava ao essencialismo europeu, através da sua experiência de vida no ocidente. O mesmo, por não respeitar a hierarquia espiritual própria do essencialismo africano acaba se tornando o vilão, no mais seus atos visavam a tornar Wakanda uma nação imperialista , assim como alguns países historicamente são. (MEDEIROS, 2018) Diante de tudo, é claro que que o filme traz muitos pontos importantes, que merecem uma ponderação filosófica mais profunda. 3 PANTERA NEGRA, A MODERNIDADE E A PÓS-MODERNIDADE 32 Uma passagem muito marcante do filme é a cena em que Killmonger é derrotado e T’Challa demonstra misericórdia, não querendo matá-lo. O antagonista diz que prefere a morte e diz a seguinte frase: “Jogue-me no oceano com meus antepassados que pularam dos navios, porque sabiam que a morte era melhor do que a escravidão”. Com essa frase, a personagem lembra de como era feito o processo de escravização da população africana, que era levada pelos países dominantes para as colônias em navios negreiros. A partir dessa consideração, é imprescindível ponderar sobre a formação da sociedade moderna mundial e de suas influências. A modernidade (LOPES, 2011) surge após eventos como a Reforma Protestante e a chegada dos europeus à América, baseada nas correntes ideológicas advindas de pensadores como Immanuel Kant (1724-1804) e Georg Wilhelm Friedrich Hegel (1770-1831), os quais pregam ideais de liberdade e emancipação (CÂNDIDO; JESUS; NEGRI, 2018), no plano filosófico. Contraditoriamente, percebe-se que a modernidade se forma a partir de uma influência exclusivamente europeia. No entanto, o mundo não é formado apenas pela Europa. O que dizer das outras culturas como a da população negra? Elas foram diminuídas e escravizadas, resistindo aos colonizadores através de muita luta. Dessa forma, tem-se: Sendo assim, aquelas formas de pensar e de viver que não se identificavam com as formas de pensar e viver europeias eram consideradas como não-humanas, bárbaras ou selvagens. E isso justificaria um processo supostamente civilizador e modernizante dessas populações e culturas, mesmo que realizado de forma violenta e gerando sacrifícios humanos. (CÂNDIDO; JESUS; NEGRI, 2018) O filme é, portanto, muito eficaz ao abordar essa construção social. Com isso, a Revista Movimento (2018) aponta Pantera Negra como uma produção com características fundamentais pós-modernistas. Segundo Terry Eagleton: Pós-modernidade é uma linha de pensamento que questiona as noções clássicas de verdade, razão, identidade e objetividade, a ideia de progresso ou emancipação universal, os sistemas únicos, as grandes narrativas ou os fundamentos definitivos de explicação. Contrariando essas normas do iluminismo, vê o mundo como contingente, gratuito, diverso, instável, imprevisível, um conjunto de culturas ou interpretações desunificadas gerando um certo grau de ceticismo em relação à objetividade da verdade, da história e das normas, em relação às idiossincrasias e a coerência de identidades. Essa maneira de ver, como sustentam alguns, baseia-se em circunstâncias concretas: ela emerge da mudança histórica ocorrida no Ocidente para uma nova forma de capitalismo — para o mundo efêmero e descentralizado da tecnologia, do consumismo e da indústria cultural, no qual as indústrias de serviços, finanças e informação triunfam sobre a produção tradicional, e a política clássica de classes cede terreno a uma série difusa de “políticas de identidade”. (EAGLETON,2011, p.7) 33 Em razão dessa explanação, a revista classifica o filme nessa categoria, uma vez que ele retrata as consequências de um sistema neoliberal, como a desigualdade e a pobreza, que se relaciona com a sociedade capitalista. Além disso, a obra também discute como seria se Wakanda, um país tão avançado tecnologicamente, dominasse o mundo, o que também se encaixa na ideia pós-moderna. Tal fatos demonstram que as críticas da obra contribuem para o cenário acadêmico e bombardeiam a massa com extremas reflexões. 4 QUESTÕES JURÍDICAS LEVANTADAS A PARTIR DA ANÁLISE DO FILME Conforme já exposto, toda a produção e execução do filme “Pantera Negra” nos faz refletir sobre o papel que os negros têm ocupado não só no cinema, como também nos diversos setores da sociedade. O filme apresenta um país africano extremamente rico com pessoas negras exercendo funções de destaque como reis e heróis, muito diferente do que nos é comum em grandes produções cinematográficas. Se tornou natural, no âmbito desse meio artístico, retratar esse segmento sempre em posição de inferioridade e submissão ou até mesmo como o “mau” que deve ser eliminado. O que se observa é como produções artísticas reforçam os estereótipos e o racismo estrutural presente na sociedade. Ao assistir o longa-metragem ora analisado pode-se questionar: quem exerce as posições de poder na nossa sociedade? Todos os segmentos estão igualmente representados? O direito à igualdade é uma realidade? Cumpre destacar que o tema em questão possui muitos desdobramentos a serem discutidos, no entanto, tendo em vista os objetivos delimitados no presente artigo, atém-se a uma abordagem meramente jurídica. 5 O DIREITO NA LUTA CONTRA O RACISMO 34 No contexto internacional, vemos que o direito à igualdade se tornou uma preocupação das nações principalmente após às Segunda Guerra Mundial, quando em 1948 é celebrada a Declaração Universal dos Direitos Humanos que em seu artigo primeiro dispõe: Todos os seres humanos nascem livres e iguais em dignidade e em direitos. Dotados de razão e de consciência, devem agir uns para com os outros em espírito de fraternidade. A partir daí surgiram vários tratados e resoluções importante com o objetivo de pôr fim às diversas discriminações incluindo a racial. Destacamos a Convenção Interamericana de Direitos Humanos (Pacto de São José da Costa Rica) de 1969, ratificada pelo Brasil por meio do Decreto n° 678/1992, cujo art. 24 assim nos apresenta: “Artigo 24. Todas as pessoas são iguais perante a lei. Por conseguinte, têm direito, sem discriminação, a igual proteção da lei.” No Brasil nossa Constituição Federal em seu art. 5° dispõe: Todos são iguais perante a lei, sem distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: (...) XLI – a lei punirá qualquer discriminação atentatória dos direitos e liberdades fundamentais; XLII – a prática do racismo constitui crime inafiançável e imprescritível, sujeito à pena de reclusão, nos termos da lei. Como pode se observar no campo das normas qualquer tipo de discriminação é intolerável, sendo que todos devem ser tratados igualmente, entendendo-se que os lugares de poder de uma sociedade podem ser exercidos por qualquer cidadão. Mais uma vez nos deparamos com o dilema do mundo jurídico de trazer para a realidade da população o disposto na norma, tarefa muito árdua e que muitas vezes é dificultada pelo Direito quando observamos, por exemplo, o sistema penal e sua seletividade. O que se vê, ao contrário do disposto na lei, é o poder de representatividade concentrado nas mãos de apenas um segmento da sociedade. No entanto, isso não significa afirmar que o Direito seja dispensável na luta por um tratamento igualitário. Sobre a relação do direito com o racismo Silvio Luiz de Almeida em seu livro Racismo Estrutural, apresenta duas visões: 35 1. o direito é a forma mais eficiente de combate ao racismo, seja punindo criminal e civilmente os racistas, seja estruturando políticas públicas de promoção da igualdade; 2. o direito, ainda que possa introduzir mudanças superficiais na condição de grupos minoritários, faz parte da mesma estrutura social que reproduz o racismo enquanto prática política e como ideologia. (ALMEIDA, 2019) Muito embora seja possível afirmar que o direito como instituição pode, de alguma forma, reproduzir o racismo presente na ordem social, entendemos que ele ainda é uma ferramenta importante na luta antirracista empreendida por diversos movimentos sociais. 6 HISTÓRICO LEGISLATIVO BRASILEIRO SOBRE QUESTÕES RACIAIS No ordenamento jurídico brasileiro, a legislação vem tratando da temática racial há muitos anos. Em 1951 foi promulgada a Lei Afonso Arinos, Lei 1.390/51, que tornou contravenção a prática da discriminação racial. A Constituição de 1988 tratou de forma mais eficiente o assunto, no âmbito penal tornou o crime de racismo inafiançável e imprescritível como já exposto, tal disposição serviu de base para a Lei n° 7.716/89, lei dos crimes de racismo, também conhecida como Lei Caó em homenagem ao parlamentar que propôs o projeto de lei, Carlos Alberto de Oliveira, Em 1997 a Lei n° 9.459 acrescentou o §3° ao art. 140 do Código Penal instituindo o tipo penal da injúria racial ou qualificada. Vale destacar a Lei 10.639/2003, que determina o ensino de história da África e cultura afro-brasileira em todas as escolas nacionais, e a Lei 12.288/2010, que é também chamada de Estatuto da Igualdade Racial. Recentemente no dia 25 de novembro de 2020, foi aprovado no Senado Federal um projeto de lei (PLS 787/2015) que altera o Código Penal e inclui a previsão de agravantes aos crimes praticados por motivo de racismo. O texto inclui no Código Penal Brasileiro a possibilidade de inserir agravante “por motivo de discriminação e preconceito de raça, cor, etnia, religião, procedência nacional ou orientação sexual”. O projeto seguiu para a aprovação na Câmara dos Deputados. 7 REPERCUSSÃO DO FILME NO ATUAL CENÁRIO RACIAL 36 As manifestações antirracistas têm sido cada vez mais frequentes em vários países, seja através de protestos nas ruas ou nas redes sociais. Em 2020, tais manifestações ganharam mais força e visibilidade após o caso de George Floyd, que foi assassinado em uma abordagem policial nos Estados Unidos. Com a repercussão do caso, o movimento Black Lives Matter veio à tona e levou várias pessoas às ruas em protestos contra o racismo mesmo diante da pandemia de Covid-19. No Brasil, só em 2020, houve vários casos de racismo que resultaram em mortes circulando nos meios de comunicação. Como por exemplo, o recente caso de João Alberto da Silva, homem negro que faleceu na véspera do Dia da Consciência Negra após ser espancado por dois seguranças brancos em uma das filiais de uma grande rede de supermercados do país. Ocorrências como essa se tornaram rotineiras e desencadearam a necessidade de frequentes protestos contra o racismo estrutural que ainda predomina em muitos lugares. Nesse sentido, é de extrema importância que haja representatividade de negros em todos as áreas da sociedade, seja na política, na universidade, na arte, na saúde, na segurança e entre outras. A boa notícia é que, mesmo enfrentando muitas dificuldades, o número de negros e pardos tem aumentado em alguns desses setores. O IBGE (BRASIL, 2018) divulgou dados da Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios Contínua (PNAD), que apontou a taxa de 50,3% de pretos e pardos nas universidades públicas brasileiras enquanto brancos e outros compõem 49,7% do total. Em 2019, uma foto com 12 formandos negros da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia (UFRB) viralizou nas redes sociais ao mostrar a primeira
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