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524471884-Curso-Fundamental-Da-Fe-Introducao-Ao-Conceito-de-Cristianismo-by-Karl-Rahner

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Denys Brito

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Teologia sistemática 
Dados de Catalogação na Publicação (CIP) Internacional 
(Câmara Brasileira do Livro, SP, Brasil) 
R128c 
87-1948 
Rahner, Karl, 1904-
Curso fundamental da fé: introdução ao conceito de 
cristianismo / Karl Rahner: (tradução Alberto Costa; 
revisão Edson Gracindo). - São Paulo: Paulinas, 1989 
(Coleção teologia sistemática) 
ISBN 85-05-00841-3 
1. Teologia dogmática 1. Título. II. Título: Introdu-
ção ao conceito de cristianismo. III. Série: Teologia 
sistemática. 
CDD-230 
lndices para catálogo sistemático: 
1. Doutrina cristã: Religião 230 
2. Teologia dogmática cristã 230 
Coleção TEOLOGIA SISTEMÁTICA 
A Trindade como história, Bruno Forte 
Teologia do Batismo, Valter Maurício Goedert 
Curso f uandamental da fé, Karl Rahner 
Teologia do sacramento da penit~ncia, José Ramos-Regidor* 
* No prelo 
KARL RAHNER 
CURSO 
FUNDAMENTAL 
DAFE 
Introdução ao conceito de cristianismo 
EDIÇÕES PAULINAS 
Titulo original 
Grundkurs des Glaubens 
© Herder, Freiburg im Breisgau, 1984 
Tradução 
Alberto Costa 
Revisão 
Edson Gracindo 
U> EDIÇÕES PAULINAS 
TELEX (11) 39464 (PSSP BRI 
Rua Dr. Pinto Ferraz, 183 
04117 SÃO PAULO - SP 
END. TELEGR.: PAULINOS 
Com aprovação eclesiástica 
© EDIÇÕES PAULINAS - SÃO PAULO - 1989 
ISBN 85-05-00841-3· 
ISBN 3-451-20297-2 (Alemanha) 
PRÓWGO 
Para quem escrevemos este livro? Não é pergunta fácil de 
responder nem sequer pelo autor. Considerando a profundida-
de e a incompreensibilidade do mistério a que o cristianismo se 
refere, bem como a variedade imensa de pessoas a que ele dirige 
seu apelo, é claro que não podemos dizer algo sobre o conceito 
de cristianismo a todos ao mesmo tempo. Para algumas pessoas 
uma "introdução ao conceito de cristianismo" há de parecer mui-
to "elevada", muito complicada e muito abstrata, ao passo que 
para outras poderá parecer ainda muito primitiva. O autor gos-
taria de se dirigir a leitores com certa cultura e que não têm me-
do de debater com os conceitos, e espera poder contar com pes-
soas para as quais o livro não seja nem muito avançado nem 
muito primitivo. 
Por isso as reflexões que faremos pretendem situar-se a um 
"primeiro nível de reflexão". Neste prólogo ainda não cabem sutis 
explicações e reflexões epistemológicas sobre o que vem a ser 
isso. O pressuposto para este empreendimento é simplesmente 
o seguinte: não pretendo, por um lado, repetir simplesmente o 
que o cristianismo prega nos catecismos e formulações tradicio-
nais, antes quero tentar entender de maneira nova, tanto quan-
to possível em breve ensaio como o presente, esta mensagem, che-
gando a um "conceito" de cristianismo. Pretendo achegar da me-
lhor maneira possível dos horizontes de compreensão dos ho-
mens de hoje este cristianismo, sem prejuízo do seu caráter sin-
gular e incomparável. Ao fazê-lo, não devemos proceder como 
se o cristão já não soubesse previamente a estas reflexões o que 
seja cristianismo. Mas também não é preciso informar simples-
mente sobre o que se pode achar em qualquer catecismo cristão 
de tipo tradicional sobre a fé já de posse tranqüila de si. No in-
tuito de realizar o que pretendemos, não podemos dispensar as 
fadigas da reflexão e do trabalho intelectual. 
Por outro lado, uma primeira introdução dessa natureza não 
pode afrontar todas as reflexões, problemas e aporias, que em 
5 
si ficam reservados para as respectivas especializações, tais co-
mo a teoria das ciências, a filosofia da linguagem, a sociologia 
da religião, a história das religiões, a fenomenologia da religião, 
a filosofia da religião, a teologia fundamental, a exegese e a teo-
logia bíblicas, e, por fim, a teologia dogmática. Tratar de todos 
os pontos de vista neste vasto leque de referência é impossível 
para um livro do tipo que temos em mente e, hoje em dia, não 
é sequer tarefa para um só teólogo, e também seria inviável para 
o leitor que pode buscar este livro. Exigir isso seria impossibili-
tar dar "razão de nossa esperança" e tornar inacessível uma jus-
tificação intelectualmente honesta da fé cristã para o cristão que 
queremos ter como leitor. Tal leitor só poderia neste caso ser re-
metido ao catecismo da Igreja com o convite a que creia o que 
aí se ensina e assim salve sua alma. 
Este livro parte, portanto, da convicção - que busca con-
firmar por ela mesma - de que entre simples fé de catecismo, 
por um lado, e, por outro, a passagem por todas as ciências men-
cionadas - e várias outras mais - existe uma forma de justifi-
car com honradez intelectual a fé cristã, a saber, a um nível que 
chamamos de "primeiro nível de reflexão". Tal possibilidade deve 
existir porque mesmo o teólogo de profissão pode ser compe-
tente em uma ou outra disciplina na melhor das hipóteses, não 
podendo absolutamente dominar todas. E essas em si só seriam 
necessárias se o teólogo se visse na necessidade de confrontar, 
de maneira explícita e cientificamente adequada, a sua teologia 
com todas as questões e tarefas destas disciplinas. 
Também em outras áreas de sua vida o homem não vive a 
totalidade da sua existência e suas dimensões particulares mui-
to amplas a partir de estudo reflexo de todas as ciências moder-
nas, e contudo pode e deve ser responsável diante de sua cons-
ciência intelectual de forma indireta e sumária por essa totali-
dade de sua existência. A partir dessas observações, este livro 
pretençle expressar a totalidade do cristianismo e dar-lhe hones-
ta justificação racional a um "primeiro nível de reflexão". O pró-
prio leitor é quem deverá decidir se essa meta será alcançada. 
Mas ele também deve ser crítico para consigo mesmo, pergun-
tando-se se acaso a falha em conseguir a meta não procede dele 
mesmo. E isso com certeza não se descarta de antemão. 
Essa tentativa de se mover a um primeiro nível de reflexão 
para tematizar e legitimar o todo do cristianismo em seus tra-
ços fundamentais pode, com certeza, designar-se como "pré-
6 
científico". Mas quem faz isso deve perguntar-se se hoje em dia 
alguém está em condições de refletir sobre o todo de sua exis-
tência de outra maneira que não seja essa forma "pré-científica". 
Deve perguntar-se se teria muito sentido em um empreendimen-
to dessa natureza assumir atitude "científica" segundo os mol-
des das ciências atuais que nenhum indivíduo pode mais domi-
nar. Que também se interrogue se tal reflexão "pré-científica,, 
não exige tanta precisão e tanto esforço de pensamento, que se 
possa colocar confiadamente lado a lado da cientificidade das 
muitas disciplinas particulares científicas. Estas também seriam 
"em si" importantes para uma reflexão da natureza a que nos 
propomos. Mas elas não podem mais ser usadas diretamente pelo 
teólogo ou cristão individual, quando este tenta colocar..;se pe-
rante a totalidade una do cristianismo em época em que todas 
essas ciências particulares devem evidentemente continuar a ser 
intensamente cultivadas, mas que, em virtude de sµa complexi-
dade e do pluralismo de seus métodos, se subtraem corno tais 
do âmbito em que um só indivíduo cristão - inclusive teólog9 
- deve responder de imediato por seu cristianismo. Existe re-
quintada especialização - que em si se justifica inteiramente 
- nas disciplinas teológicas particulares. Mas essa deveria ser 
evitada aqui. 
O tema "Curso Fundamental da Fé" vem ocupando o Au-
tor desde vários anos. Quando professor em Munique e Müns-
ter tratei desta matéria duas vezes sob o título de "introdução 
ao conceito de cristianismo". Em virtude dessa sua procedên-
cia, o livro apresenta várias características que, ao reelaborá-lo 
para publicação, não queríamos eliminar. Por exemplo, as divi-
sões particulares, considerando a maior ou menor importância 
eventual de seus temas e comparando-as entre si, podem não apre-
sentar a extensão que merecem, pois este "ideal" é difícil de al-
cançar nas aulas. Ademais, se começarmos com a questão geral 
e abstrata referente ao que se poderia ou deveria tratar em se-
melhante "introdução ao conceito de cristianismo", aseleção que 
fizemos pode parecer um tanto arbitrária. Mas tal é inevitável. 
A este respeito, alguns poderão de início sentir a falta de 
tratamento mais avantajado da possibilidade de afirmações re-
ligiosas e teológicas em geral sob o prisma da teoria do conhe-
cimento e da teoria da ciência. Alguns poderão ter a impressão 
de que importantes temas dogmáticos foram tratados com ex-
cessiva brevidade, como, por exemplo, a teologia trinitária, a teo-
7 
logia da cruz, a doutrina sobre a vida cristã e sobre a escatolo-
gia, bem como outros tópicos. Outros descobrirão que os as-
pectos sociopolítico e sociocrítico do cristianismo não foram de-
senvolvidos. E para outros, ainda, as seções 8 e 9, na melhor 
das hipóteses, mal esboçam a temática de que tratam. Em refe-
rência a essas e semelhantes constatações dos limites deste livro, 
o Autor só pode dizer para se justificar o seguinte: todo autor 
tem o direito de fazer seleção. Mas ele pode também perguntar 
por sua vez: como se poderia evitar essa ou semelhante seleção 
em livro tão breve, de apenas 500 páginas aproximadamente, o 
que não é tão extenso em vista do tema tratado? E que, de mais 
a mais, constitui tentativa de apresentar uma primeira introdu-
ção a tema tão vasto como a totalidade do conceito de cristia-
nismo? Deveríamos declarar inicialmente que uma tentativa dessa 
seria impossível e inexeqüível, se não pudéssemos nos permitir 
limitações inevitáveis. Sem dúvida alguma, o tema pode ser mais 
bem tratado do que acontece neste livro. Porém mesmo uma exe-
cução mais adequada dessa tarefa não deixaria de topar com 
limites, os quai~ certamente não deixariam de ser percebidos tanto 
pelo leitor como pelo Autor deste livro. 
Tendo em vista a origem deste livro e seu caráter introdutó-
rio, o Autor considerou supérfluo acrescentar notas explicati-
vas de rodapé e referências bibliográficas. No quadro deste li-
vro, isto poderia parecer desnecessária ostentação erudita, algo 
que o Autor não pretende. Ele também decidiu não citar traba-
lhos próprios com temática correspondente, ainda que não poucas 
vezes tivesse a impressão de ter escrito com precisão e amplidão 
maiores em outros lugares sobre determinados tópicos. Assim, 
foram retomados neste livro textos já publicados em outras obras, 
em uma reelaboração bem diferenciada e em nova organização 
de conjunto. Isso inclui o primeiro capítulo da seção segunda 
(cf. Karl Rahner, Gnade ais Freiheit, Friburgo de Brisgóvia, 1968, 
Herderbücherei 322, pp. 11-8) e sobretudo textos mais extensos 
da seção sexta sobre a cristologia que em parte foram retoma-
dos de "Schriften zur Theologie" (cf. sobre os capítulos 1.4 e 
10: Karl Rahner, Schriften zur Theologie, vol. 5, Einsiedeln, 1962, 
pp. 183-221; vol. 4, Einsiedeln, 1962, pp. 137-55; e vol. 12, Zuri-
que, 1975, pp. 370-83) e em parte da Cristologia," que publiquei 
juntamente com Wilhelm Thüsing, Christologie-·systematisch 
und exegetisch, Friburgo de Br., 1972, Quaestiones Disputatae 
55, esp. pp. 18-71. No capítulo de conclusão também reelaborei 
8 
um artigo já antes publicado (cf. Karl Rahner, Schriften zur 
Theologie, vol. 9, Einsiedeln, 1970, pp. 242-56). 
Talvez uma coisa que poderá surpreender à primeira vista 
o leitor seja a ausência quase total de citações bíblicas como pro-
vas do que se afirma. Esse fato explica-se por várias razões, que 
devem ser vistas conjuntamente. Em primeiro lugar, o Autor não 
quer dar a mínima impressão de ser exegeta que trabalha como 
cientista especializado neste campo específico. Mas ele espera 
que no conjunto tenha se informado suficientemente sobre os 
problemas e resultados da exegese e teologia bíblica atuais, que 
aqui se devem pressupor, em vista da natureza e propósito deste 
livro. Além disso, o leitor pode ter acesso ao material exegético 
especializado ou de divulgação. Aqui podemos e devemos pres-
supor este material, se é que este livro não deve ultrapassar seus 
limites ou perder seu caráter introdutório ao conceito de cristia-
nismo. 
O cristianismo é, com certeza, religião que repousa sobre 
acontecimentos históricos bem determinados. A extensão da se-
ção sexta, que constitui quase um terço de toda a matéria, dá 
testemunho à sua maneira do fato de que o Autor está consciente 
da natureza histórica do cristianismo. E, de mais a mais, esses 
acontecimentos históricos devem ser levantados das "fontes". Mas 
essa investigação básica e crítica das fontes pode e deve-se pres-
supor em uma primeira introdução ao conceito de cristianismo. 
Podemos e devemos nos limitar a informar brevemente e da ma-
neira mais conscienciosa que nos seja possível o que este traba-
lho básico sobre as fontes produziu de material para reflexão 
sistemática. Se tentássemos mais do que isto aqui, o resultado 
não seria nenhum trabalho exegético sério, não passando de es-
palhafato pseudocientífico sem proveito para nada. Finalmen-
te, a teologia que trabalha sistemática e conceitualmente não 
constitui mero apêndice das questões problemáticas no campo 
da exegese e teologia bíblica. Se em um só livro é impossível exe-
cutar as duas tarefas, então é melhor e mais honesto evitar tam-
bém a impressão de que se pretendem ambas as coisas de uma 
só vez. 
Se o que aqui se oferece é uma introdução, o leitor não po-
derá esperar que este livro seja como que a síntese final do tra-
balho prévio do Autor no campo da teologia. Não o é nem quer 
sê-lo. Se bem este curso fundamental, em virtude mesma de seu 
9 
tema, tenha caráter mais amplo e sistemático do que as outras 
publicações teológicas do Autor. 
No começo da obra apresentamos breve visão geral dos te-
mas e no fim acrescentamos um índice mais compreensivo do 
conteúdo. A breve visão geral permite ao leitor rápida visão de 
conjunto do livro, e o índice mais amplo detalha o curso das 
reflexões, constituindo-se, assim, também como que índice ana-
lítico. 
Na longa história deste livro desde 1964 o Autor recebeu 
muita ajuda. Ele não pode mencionar nominalmente a todos os 
que durante todos estes anos lhe prestaram auxílio em Munique 
e Münster. Mas, além de meus dois confrades da Companhia 
de Jesus, Karl H. Neufeld e Harold Schõndorf, devo mencionar 
ainda duas outras pessoas: Elisabeth von der Lieth, em Ham-
burgo, e Albert Raffelt, em Friburgo de Brisgóvia, cuidaram de 
grande parte da redação definitiva do texto, ordenando e abre-
viando o texto original das aulas. A eles agradeço com sinceri-
dade e de coração. 
10 
Munique, julho de 1976 
Karl Rahner, sj 
INTRODUÇÃO 
1. REFLEXÕES PRÉVIAS DE CARÁTER GERAL 
Este livro tenta apresentar uma "introdução ao conceito de 
cristianismo". Trata-se, pois, em primeiro lugar, apenas de in-
trodução e nada mais. É claro que um empreendimento desta 
natureza aproxima-se mais de decisão pessoal pela fé do que ou-
tras publicações científicas ou teológicas e do que os cursos aca-
dêmicos. Não obstante, o que se visa aqui é uma introdução no 
quadro da reflexão intelectual e não direta e imediatamente uma 
explanação com propósitos de edificação religiosa, embora seja 
claro que a relação entre uma teologia do espírito e da inteli-
gência e uma teologia do coração, da decisão e da vida religiosa 
coloca problema muito difícil. Em segundo lugar, o que se pre-
tende é uma introdução ao conceito de cristianismo. Pressupo-
mos de início a existência de nossa própria fé pessoal cristã em 
sua configuração normal eclesial, e, em terceiro lugar, tentamos 
obter o conceito dele. Esta palavra "conceito" acrescenta-se pa-
ra que fique claro que aqui se trata, para falar como Hegel, de 
"Anstrengung des Begriffs" ("esforço conceituai"). Quem bus-
ca apenas inspiração religiosa e quer poupar-se este esforço de 
reflexão paciente, trabalhosa e monótona, não deveria aventurar-
se a acompanhar essa investigação. 
Pela própria natureza da coisa, essa introdução é um expe-
rimento. Não se sabe de antemão do êxito final, mal ou bem 
logrado, do experimento. Pois este depende também do leitor 
destas páginas. Nestelivro trataremos não deste ou daquele te-
ma particular da teologia, mas, para alguém que é cristão ou 
quer sê-lo, abordaremos o todo de sua própria existência. É cla-
ro que haveremos de mostrar, e esta será dimensão que vai estar 
presente por toda parte, que uma pessoa pode ser cristã sem ter 
examinado a totalidade de sua existência cristã de maneira cien-
tificamente adequada, sem que por isso se possa questionar sua 
honestidade intelectual, porque ela é incapaz de fazê-lo e, em 
conseqüência, também disso não precisa. 
11 
Para o cristão, a existência cristã é em última análise a to-
talidade de sua existência. E essa totalidade abre-se para os obs-
curos abismos do deserto daquele que chamamos Deus. A pes-
soa, quando empreende algo dessa natureza, coloca-se perante 
os grandes pensadores, os santos, e finalmente Jesus Cristo. Os 
abismos da existência se abrem à sua frente. E vem a saber que 
não pensou o bastante, que não amou o bastante, que não so-
freu o bastante. 
Sempre houve tentativas como essa de se colocar perante 
os próprios olhares como uma totalidade única a estrutura do 
cristianismo, da fé e vida cristã, ainda que apenas em reflexão 
teórica. Toda profissão de fé, a começar pelo "símbolo dos após-
tolos" até o "credo do povo de Deus" do papa Paulo VI, cons-
titui tentativa semelhante de formular a fé cristã e a compreen-
são cristã da vida de forma breve e condensada, ou seja, consti-
tui introdução ao cristianismo ou ao conceito de cristianismo, 
ainda que bastante breve. O Enchiridion de jide, spe· et caritate 
de santo Agostinho, o Breviloquium de são Boaventura, ou o 
Compendium theologiae ad fratrem Regina/dum de santo To-
más de Aquino, no fundo, são também tentativas deste tipo que 
buscam obter visão global relativamente breve do todo e do es-
sencial do cristianismo. 
Mas é preciso que sempre se tente de novo fazer tais refle-
xões sobre a totalidade una do cristianismo. Elas sempre são con-
dicionadas, pois é evidente que a reflexão em geral, e particu-
larmente a teológico-científica, jamais abarca nem pode abar-
car a totalidade implicada na vivência da fé, esperança e carida-
de, e na oração. É precisamente esta constante e inabarcável di-
ferença entre a realização original da existência e a reflexão so-
bre ela que ocupará sem cessar nossa atenção. Intuir esta dife-
rença constitui percepção essencial que é necessário pressupos-
to para introdução ao conceito de cristianismo. 
O que em última análise queremos é apenas refletir sobre 
a simples questão: "Que é um cristão, e como se pode viver essa 
existência cristã hoje em dia com honestidade intelectual?" A 
questão parte do fato do cristianismo, embora este apareça de 
forma bastante diferente em cada indivíduo cristão hoje. Essa 
diferença está determinada por graus diversos de maturidade em 
cada pessoa, pelas situações sociais muito diferentes e, em con-
seqüência, também pelas situações religiosas diferentes, bem co-
mo pelas características peculiares· psicológicas de cada pessoa 
12 
etc. Mas queremos também refletir sobre este fato de nosso cris-
tianismo, buscando justificá-lo perante as exigências da nossa 
consciência de verdade e assim dando "razão de nossa esperan-
ça" (lPd 3,15). . 
2. OBSERVAÇÕES PRÉVIAS DE CARÁTER TEÓRICO-CIENTÍFICO 
A exigência de um curso de introdução 
segundo o .Concílio Vaticano II 
O estímulo para perguntarmos pela natureza e pelo senti-
do de uma "introdução ao conceito de cristianismo", como cur-
so fundamental na teologia, veio-nos do decreto do Concílio Va-
ticano II sobre a formação dos presbíteros, onde se diz: 
Na reestruturação dos estudos eclesiásticos, atenda-se princi-
palmente a que as disciplinas filosóficas e teológicas sejam mais 
bem articuladas entre si. Concorram harmoniosamente para 
abrir, sempre mais, às mentes dos alunos o mistério de Cristo, 
que atinge toda a história do gênero humano, influi continua-
mente na Igreja e opera sobretudo através do ministério sacer-
dotal. 
Para comunicar esta visão aos educandos desde o limiar da for-
mação, os estudos eclesiásticos comecem com um curso intro-
dutório a prolongar-se por tempo suficiente. Nesta iniciação 
dos estudos, apresente-se de tal modo o mistério da salvação, 
que os alunos apreendam o sentido, a ordem e o fim pastoral 
dos estudos eclesiásticos e simultaneamente se sintam ajuda-
dos em consolidar e impregnar toda a sua vida pela fé e con-
firmados na vocação mediante entrega pessoal e espírito ale-
gre (Optatam totius, 14). 
O decreto está a pedir unidade interna entre filosofia e teo-
logia. A teologia assim entendida deve propor-se como tema geral 
a concentração de toda a teologia em torno do mistério de Cris-
to. Este todo da teologia deve ser apresentado ao jovem teólogo 
em um curso de introdução suficientemente longo, um curso em 
que o mistério de Cristo seja apresentado de forma tal que o 
sentido, a estrutura e a finalidade pastoral dos estudos teológi-
cos se tornem claros para os estudantes já desde o início de seus 
estudos de teologia. O curso deverá ajudá-lo a melhor funda-
mentar sua vida pessoal e presbiteral como vida de fé e fazer 
com que esta fé impregne toda sua vida. E assim fica dada a 
13 
importância desta introdução para sua existência cristã, teoló-
gica e presbiteral. 
Surge então a pergunta se existe fundamentação teórico-
científica para semelhante curso de introdução como disciplina 
especial, autônoma e responsável, e que não seja apenas piedo-
sa introdução à teologia em geral. Se existe algo assim e se fa-
lam razões em seu favor, então daí deveriam derivar-se o méto-
do específico e a forma concreta deste curso fundamental, cuja 
importância não se restringiria à tarefa da formação de presbí-
teros. 
A "enciclopédia teológica" no século XIX 
A enciclopédia, tal como foi concebida originalmente no 
século XIX, conserva ainda interesse para este contexto. Ela não 
visava apenas coligir os conteúdos de todo o saber teológico en-
tão conhecido, mas se propunha reconstruir este saber a partir 
de sua origem e em sua unidade. Podemos recordar aqui o teó-
logo de Tubinga, Franz Anton Staudenmaier. De acordo com 
sua Enciclopédia de 1834, essa disciplina apresentaria a "visão 
sistemática de toda a teologia", o "esboço condensado de sua 
idéia concreta em todas as suas determinações essenciais". Ele 
escreve o seguinte: "Pois, assim como o espírito humano é or-
"gânico e sistema de forças vivas, assim também ele quer ver no 
conhecimento científico um organismo, um sistema, e não re-
pousa enquanto não produziu, mediante sua atividade organi-
zadora, um nexo sistemático entre as partes essenciais que cons-
tituem o conteúdo. Este nexo sistemático entre as diversas par-
tes de uma ciência segundo seus conceitos básicos essenciais é 
exposto na enciclopédia". A enciclopédia, segundo ele, desen-
volve o nexo necessário e orgânico de todas as partes da teolo-
gia, e assim apresenta as partes como verdadeira ciência à medi-
da que as compreende na unidade e totalidade de suas ramifica-
ções. Ela é verdadeiro organismo e porta em si seu princípio de 
vida. 
Buscava-se, portanto, entender, a partir da unidade da teo'." 
logia, suas diferentes disciplinas. E, ademais, o enciclopedista 
queria entender a diferença entre teologia e filosofia, entre reve-
lação e razão à luz de seu inter-relacionamento mútuo também 
pensado em sua origem. Procedendo dessa forma, ele visava al-
14 
cançar o conteúdo propriamente dito da própria teologia e as-
sim oferecer adequada introdução. 
Coisa semelhante podemos encontrar em Johann Sebastian 
Drey, por exemplo, ou nas preleções de Schelling de 1802, "so-
bre o método do estudo acadêmico". 
A prática dessa introdução enciclopédica à teologia certa-
mente traiu essa grandiosa concepção de base. Pois o assunto 
de que tratava a teologia era exposto objetivamente e o conteú-
do da revelação era assim assacado a cada uma das disciplinas 
materiais da teologia. E, assim sendo, sobrava para tratar na fun-
damentaçãoformal da teologia apenas a maneira como se ad-
quire o material, como ele se estrutura em ciência e é interpreta-
do subjetivamente. À medida que a enciclopédia fez isso, con-
duziu-se ao absurdo, pois então perdeu todo contato real com 
o seu conteúdo. Basicamente era ela apresentada apenas como 
espécie de introdução a tudo o que se passava na t~ologia, co-
mo visão global e introdução para principiantes. Mas no fundo 
uma enciclopédia deste tipo é supérflua, pois ela fala, por um 
lado, de maneira demasiadamente geral e não vinculante, e, por 
outro lado, não oferece nada que não se deva dizer de novo a 
título de introdução no início de cada uma das disciplinas. 
Em conseqüência, para fundamentar um curso de introdu-
ção podemos apelar legitimamente à intenção original da enci-
clopédia teológica do século XIX. Mas não podemos nos apoiar 
em sua execução de fato. E, de mais a mais, a questão de sua 
fundamentação teórica deverá ser retomada de maneira nova em 
vista da situação hodierna da teologia e do seu destinatário. 
O destinatário da teologia, hoje 
Em média as pessoas que buscam o estudo da teologia ho-
je, e não se trata só dos que se preparam para o presbiterado, 
não se sentem seguras em uma fé que seja tida como coisa ób-
via e seja apoiada por meio ambiente religioso homogêneo e co-
mum a todos. Também o jovem teólogo está de posse de uma 
fé sob desafio e que não se pode tomar de maneira nenhuma 
como algo de óbvio sem mais, uma fé que hoje deve ser sempre 
conquistada de novo, sempre no processo de se constituir. E ele 
não precisa envergonhar-se disso. Pode reconhecer tranqüilamente 
essa situação que lhe é anterior, pois que ele hoje vive em situa-
ção espiritual, e até mesmo procede de tal situação, em que o 
cristianismo não aparece como algo de óbvio e indiscutível. 
15 
Há trinta ou quarenta anos atrás, quando eu mesmo estu-
dava teologia, o estudante de teologia era uma pessoa para quem 
o cristianismo, a fé, sua vida religiosa, a oração, e a firme inten-
ção de servir em uma atitude totalmente presbiteral bem nor-
mal eram coisas óbvias. Podia ter, durante os anos de estudo, 
certos problemas teológicos. Na teologia ele refletia talvez de mo-
do bem profundo, buscando exatidão e penetração em cada ques-
tão teológica. Mas tudo isso acontecia com base na aceitação 
do cristianismo como óbvio, e que existia por meio de educação 
religiosa também tida como óbvia e em meio ambiente cristão 
que também se tinha como óbvio. Nossa fé estava essencialmente 
condicionada em parte por situação sociológica bem determi-
nada que naquele tempo como que nos carregava, e que hoje 
não mais existe. · 
Ora, isso significa que o estudo da teologia deve levar em 
conta esta situação. Que seria um disparate tivessem os profes-
sores de teologia como ideal supremo demonstrar logo de início 
aos jovens teólogos o seu gabarito científico e a problemática 
imediata de suas disciplinas especializadas. Se os estudantes de 
teologia vivem hoje em situação de crise para sua fé, então o 
início dos estudos teológicos deve vir-lhes em auxílio, tanto quan-
to possível, no sentido de que eles possam superar e dominar 
com honestidade intelectual essa situação crítica de sua fé. Se 
considerarmos os dois aspectos mencionados da situação pes-
soal dos jovens teólogos de hoje, se estivermos convencidos de 
que a própria teologia deve responder a essa situação logo de 
início, então deveremos dizer que as disciplinas teológicas con-
cretas, como são apresentadas hoje, não conseguem exercer so-
zinhas esta tarefa. Elas são em demasia ciências por causa de 
si mesmas, elas estão muito dispersas e fragmentadas para po-
derem responder suficientemente à situação dos estudantes de 
teologia hoje. 
A essa razão para "curso fundamental" devida a estímulo 
externo, ou seja, devida a apelo do Concílio Vaticano II, acres-
ce razão ainda mais básica para levar a cabo a um primeiro ní-
vel de reflexão o que um "curso fundamental" deve realizar. Tal 
primeiro nível de reflexão, cuja natureza ainda haveremos de es-
clarecer, é necessário por causa do pluralismo das ciências teo-
lógicas, que não mais podem reduzir-se adequadamente a uma 
unidade integrada. Mas aí topamos com um dilema. Este pri-
meiro nível de reflexão tem a tarefa, em uma espécie de mano-
16 
bra legítima de evasão, de evitar investigação cientificamente exata 
e completa de todas as disciplinas teológicas - empreendimen-
to que é praticamente irrealizável-, e todavia chegar a uma afir-
mação intelectualmente honesta da fé cristã. Mas o rigor inte-
lectual e científico que tal primeiro nível de reflexão exige não 
é menor do que cada disciplina teológica em particular exige de 
seus estudantes. As exigências teórico-científicas de um curso 
fundamental não se podem reconciliar facilmente com o fato de 
que no nível de sua execução prática ele deve ser estruturado tendo 
em vista a situação atual do principiante em teologia. O título 
"curso fundamental" pode facilmente dar a falsa impressão de 
que nos havemos com uma introdução que baratamente liberte 
o teólogo iniciante da busca do rigor de pensamento. Por outro 
lado, porém, o curso deve reconhecer que ele está tentando aju-
dar a um principiante a iniciar seus passos na teologia como um 
todo. E evidentemente é muito difícil realizar ao mesmo tempo 
essas duas exigências. Em todo caso, porém, é a fundamenta-
ção teórico-científica para o curso fundamental e não a peda-
gógica e didática que é decisiva. 
O pluralismo na teologia e filosofia de hoje 
A teologia de fato se fragmentou em uma multiplicidade 
de disciplinas setoriais. Cada uma delas oferece enorme soma 
de material obtido mediante sua metodologia própria muito ma-
tizada e difícil e tendo pouco contato com as outras disciplinas 
teológicas vizinhas e afins. Precisamos reconhecer sobriamente 
esta situação da teologia contemporânea, não nutrindo esperan-
ças de que este estado de coisas possa vir a ser mudado pelo tra-
balho das próprias disciplinas teológicas. Existe na verdade um 
esforço que se faz na teologia no sentido de obter relacionamento 
mais estreito entre dogmática e exegese, por exemplo, ou no sen-
tido de fazer mais teologia no Direito Canônico do que se fazia 
uns vinte anos atrás. É claro que esforços dessa natureza para 
estabelecer contatos são de grande utilidade. Mas eles não estão 
mais em condições de superar o pluralismo vigente na teologia 
hoje. 
E este pluralismo também não se pode superar mediante 
a prática do trabalho em equipe, método tão aplaudido hoje. 
É claro que ainda é pouco o trabalho feito em grupo, trabalho 
sempre necessário e importante. Mas nas ciências humanas to-
17 
do trabalho de grupo encontra limite niuito claro. Nas ciências 
naturais, resultados comprovados exatamente podem se inter-
cambiar entre uma especialização e outra, entre um pesquisa-
dor e outro. Eles podem ser entendidos até certo ponto, e em 
todo caso podem ser utilizados sem que se tenha de avaliar o 
método, a maneira como foram obtidos os resultados e a certe-
za destes. Mas nas ciências humanas a real compreensão de uma 
afirmação e avaliação de sua validade dependem da participa-
ção pessoal de cada um na descoberta do que se afirma. E é pre-
cisamente isto que não mais é possível na teologia para o repre-
sentante de outra disciplina. . 
Um segundo aspecto em toda essa situação resulta de plu-
ralismo semelhante também na filosofia hoje. A filosofia neoes-
colástica, tal como nós os teólogos de mais idade bem ou mal 
aprendemos um dia, já não mais existe. A filosofia se espatifou 
hoje em um pluralismo de filosofias. E este pluralismo irrecu-
perável e invencível da filosofia é fato hoje de que não podemos 
fugir. Toda teologia é certamente e sempre teologia que nasce 
das antropologias e auto-interpretações seculares do homem, que 
como tais nunca entram por completo, mas apenas em parte, 
nestas filosofias explícitas. E, em conseqüência, essa situação 
uma vez mais produz necessariamente enormepluralismo de teo-
logias. 
Além disso, precisamos ter clareza sobre o fato de a filoso-
fia ou as filosofias hoje não mais representarem sozinhas o úni-
co, óbvio e suficiente ponto de contato em que a teologia entra 
em relação com o conhecimento e a autocompreensão do ho-
mem secular. A teologia só é teologia que possa ser genuína pre-
gação somente à medida que logra estabelecer contato com o 
todo da autocompreensão secular do homem em determinada 
época, que logra entrar em diálogo com ela, logra apreendê-la 
e deixar-se enriquecer por ela em sua linguagem e mais ainda 
na própria temática da teologia mesma. Temos, pois, hoje em 
dia, não só fragmentação interdisciplinar da teologia, temos não 
só pluralismo de filosofias que não mais pode ser dominado e 
elaborado por um indivíduo somente, mas além disso estamos 
perante o fato de as filosofias não mais fornecerem as únicas 
auto-interpretações do homem que sejam importantes para ateo-
logia. Pelo contrário, como teólogos hoje devemos necessaria-
mente entrar em diálogo com um pluralismo de ciências históri-
cas, sociológicas e naturais, diálogo não mais mediado pela fi-
18 
losofia. Estas ciências não mais se dobram à pretensão da filo-
sofia de que devam ser filosoficamente mediadas ou explicadas 
pela filosofia, e até mesmo que elas possam ser esclarecidas pe-
la filosofia. 
Desde aí se explica a dificuldade de teologia científica. A 
própria teologia se tornou multidão de ciências particulares, de 
que não se pode mais obter visão geral. Ela precisa estar em con-
tato com um sem-número de filosofias para que possa ser cien-
tífica neste sentido imediato. Mas também deve manter contato 
com as ciências que não mais admitem interpretação filosófica. 
Finalmente, acresce a variada manifestação não-científica da vida 
do espírito na arte, na poesia e na sociedade, multiplicidade tão 
vasta que nem tudo que aí aparece é mediado quer pelas filoso-
fias quer pelas próprias ciências pluralistas, e contudo represen-
ta uma forma do espírito e da autocompreensão humana com 
que a teologia tem que ver de alguma forma. 
A justificação da fé a um primeiro nível de reflexão 
Na teologia dogmática, no tratado dogmático De Jide (so-
bre a fé corno tal), existe urna parte chamada analysis Jidei. Es-
ta análise da fé considera a estrutura interna dos argumentos da 
teologia fundamental em favor da credibilidade da fé, assim co-
mo também a importância que estes têm para a fé e o ato de 
fé. Diz que estas provas ou argumentos de credibilidade, corno 
os entende a concepção católica, não estabelecem intrinsecamente 
a fé em seu caráter propriamente teológico corno assensus su-
per omniafirmus propter auctoritatem ipsius Dei revelantis (como 
assentimento mais firme do que tudo à autoridade do próprio 
Deus que revela). Mas diz também que, não obstante, eles fa-
zem parte da fé e que estes argumentos de credibilidade exer-
cem urna função na fé corno um todo. Mas neste contexto se 
admite que, em certas circunstâncias e para as pessoas que care-
cem de cultura teológica erudita ou para os rudes, urna teologia 
fundamental inteira de nível reflexivo-temático, e mesmo urna 
forma abreviada dela, não é necessária corno pressuposto da fé. 
E por aquela razão a fé não se lhes torna, portanto, impossível, 
porque ela é possível de outras maneiras. A antiga teologia da 
fé sempre teve a convicção de que, para os rudes ou pessoas sem 
educação erudita, chegar à fé através de reflexão sobre todos os 
motivos intelectuais de credibilidade não é possível nem neces-
sária. 
19 
Assim sendo, gostaria de formular a tese de que na situa-
ção de hoje todos nós com todo o nosso estudo de teologia so-
mos e permanecemos rudes em certo sentido, e devemos admiti-lo 
franca e corajosamente perante nós mesmos e perante o mundo. 
Ao afirmar isso não estou a oferecer salvo-conduto para a 
preguiça, a inércia e a indiferença intelectual com referência a 
afirmações da fé ou sua fundamentação na teologia fundamen-
tal. Nenhum salvo-conduto para a preguiça e indiferença diante 
da responsabilidade por nossa esperança e nossa fé que, concre-
tamente, é necessária para todo indivíduo em sua situação par-
ticular e que também, em conseqüência, se lhe impõe. Mas com 
respeito a muitas reflexões teológicas posso muito bem dizer: 
"Não consigo levá-las a termo e conseqüentemente também não 
preciso consegui-lo". Obviamente posso, sem embargo, ser um 
cristão que vive sua fé com a honradez intelectual que se exige 
de toda pessoa. Segue dessa constatação a possibilidade teórico-
científica de dar fundamentação da fé e que seja anterior ao de-
sempenho e método da hodierna pesquisa científica tanto teo-
lógica como secular. Assim, essa justificação da fé implica ateo-
logia fundamental e a dogmática vistas em unidade. Exerce-se 
a um primeiro nível de reflexão na fé que dá razão de si mesma. 
Este nível deve distinguir-se de um segundo nível de reflexão, onde 
as ciências teológicas em seu pluralismo, cada uma em sua área 
e cada uma com o seu próprio método específico, dão razão de 
si mesmas de uma maneira que, no que se refere ao todo da fé, 
não é acessível para todos hoje e com maior razão para os que 
se iniciam na teologia. 
Este cientificamente primeiro nível de reflexão sobre a fé 
e sobre a possibilidade de ela se responsabilizar de maneira in-
telectualmente honrada por si, constitui uma primeira ciência 
de direito próprio. Da forma como as disciplinas teológicas par-
ticulares são entendidas hoje em dia, elas estão de tal sorte cons-
tituídas em seu conteúdo, na amplitude de sua problemática e 
na diferenciação de seus métodos, bem como na dificuldade de 
seu aprendizado, que não mais podem oferecer a uma pessoa 
concreta aquela compreensão básica da fé e o seu fundamento 
que, por um lado, ela necessita e como ser inteligente exige, mas 
que, por outro lado, não pode receber através destas ciências co-
mo tais. Deve haver possibilidade teórico-científica de fundar 
a fé que seja anterior a essa legítima tarefa e metodologia das 
hodiernas disciplinas. 
20 
Essa outra maneira de fundar a fé, que não retoma toda 
a tarefa das disciplinas teológicas, nem examina todos os pres-
supostos metafísicos sobre que se baseia a fé, nem passa pelas 
ciências de introdução, pela exegese, pela teologia do Novo Tes-
tamento etc., não precisa por essa razão deixar de ser científica. 
O caráter não-científico dessa espécie diferente de disciplina por 
nós buscada está no objeto, e não no sujeito e no seu método. 
Reconheço que hoje em dia já não mais posso percorrer a tota-
lidade da teologia que hoje se radica em pluralismo de filoso-
fias e outras ciências e que, em conseqüência, se acha como que 
dispersa de muitas formas. Mas também sei como cristão que 
não preciso percorrer este caminho para refletir intelectualmen-
te sobre a justificação de minha existência cristã. E, assim, re-
flito agora com toda a exatidão e rigor, ou seja, de maneira cien-
tífica, sobre aquela maneira de justificar a fé e, com certeza, tam-
bém sobre o conteúdo da fé, que me poupa de ter de entrar por 
aquele outro caminho que percorre todas as ciências teológicas 
e seculares na busca da primeira justificação intelectual de mi-
nha fé. Poupa-me disso pelo menos provisoriamente no começo 
dos estudos e de maneira permanente quanto à maioria dos pro-
blemas teológicos. 
Existe um "sentido ilativo", para falar com o cardeal New-
man, precisamente naquelas áreas que implicam decisão que atin-
ge toda a pessoa. Existe uma convergência de probabilidades, 
uma certeza, uma decisão honesta e responsável que é conjun-
tamente conhecimento e ato livre. Ela possibilita, para falar em 
paradoxo, caráter científico para a não-cientificidade em ques-
tões vitais desta natureza. Existe um primeiro nível de reflexão 
que deve ser distinguido do nível de reflexão da ciência no sen-
tido atual, porque a vida e a existência o exigem. É este primei-
ro nível de reflexão que se visa em um curso fundamental, o pri-meiro passo nos estudos teológicos. 
Sobre o conteúdo da introdução 
Em uma primeira reflexão sobre a existência pessoal cristã 
e sua justificação, como· o curso de introdução tem o propósito 
de oferecer, situamo-nos sem dúvida a um nível em que há uni-
dade de filosofia e teologia, porque estamos a refletir sobre o 
todo concreto da auto-realização humana de um cristão. E isso 
já é propriamente "filosofia". Pensamos sobre uma existência 
21 
cristã e sobre a justificação intelectual de uma auto-realização 
cristã, e isto já é basicamente "teologia". Justifica-se teórica, prá-
tica e didaticamente que façamos filosofia aqui no seio da pró-
pria teologia. E essa "filosofia" não precisa ter nenhum escrú-
pulo por estar continuamente penetrando nos domínios próprios 
da teologia. 
Essa unidade originária já está dada na vida concreta do 
cristão. Ele é um cristão que crê e é ao mesmo tempo, e na ver-
dade como exigência de sua própria fé, uma pessoa que reflete 
sobre o todo de sua existência. Aí encontramos os dois momen-
tos, a objetividade teológica e a filosófica, e na sua vida pessoal 
ambas as realidades entram desde o início em unidade pelo me-
nos de princípio. Caracteriza essa unidade o fato de que em seu 
devido lugar se faça referência explícita a dados teológicos que 
eventualmente não possam ser alcançados por filosofia secular 
como tal. 
Se quiséssemos formular a unidade entre filosofia e teolo-
gia nesse curso fundamental de forma um tanto diferente, po-
deríamos dizer que no curso fundamental devemos refletir pri-
meiramente sobre o homem como a questão universal que ele 
é para si mesmo, e, em conseqüência, fazermos filosofia no sen-
tido mais próprio do termo. Essa questão, que o homem é e não 
só faz, deve-se considerar como a condição da possibilidade de 
a resposta cristã vir a ser escutada. Em segundo lugar, sobre as 
condições transcendentais e históricas que tornam possível are-
velação deve-se refletir da maneira e nos limites que são possí-
veis no primeiro nível de reflexão, de tal sorte que se veja o pon-
to de mediação entre pergunta e resposta, entre filosofia e teo-
logia. Por fim, em terceiro lugar devemos pensar a afirmação 
fundamental do cristianismo como resposta à questão que o ho-
mem é, e, em conseqüência, deveremos fazer teologia. Estes três 
momentos condicionam-se mutuamente e, conseqüentemente, 
constituem unidade, unidade sem dúvida diferenciada. A ques-
tão cria a condição de ouvir realmente, e somente a resposta le-
va a pergunta à sua existência reflexa. Este círculo é essencial 
e no curso fundamental não se deve buscar dissolvê-lo, mas se 
deve refletir sobre ele como tal. 
Por força de sua própria natureza, o curso fundamental deve 
caracterizar-se necessariamente por peculiar unidade de teolo-
gia fundamental e teologia dogmática. A teologia fundamental 
corrente, que realmente se entende mal a si mesma em sua auto-
22 
compreensão, apresenta característica que neste curso fundamen-
tal enquanto curso fundamental não pode ser praticada. Essa 
característica da teologia fundamental tradicional desde o sécu-
lo XIX até os nossos dias consiste em refletir a faticidade da 
revelação divina como que de maneira meramente formal, e que, 
pelo menos em certo sentido, deve ser demonstrada. Assim co-
mo a teologia fundamental é comumente entendida, ela não con-
sidera nenhum conteúdo teológico particular nem qualquer dog-
ma concretamente, a não ser quando ela já se torna de imediato 
eclesiologia dogmática. Com isso, porém, ela incide em estra-
nha dificuldade, pelo menos desde o ponto de vista do que se 
visa com este curso fundamental. Em nosso curso fundamental 
trata-se precisamente de criar condições para que as pessoas, a 
partir dos próprios conteúdos do dogma, tenham confiança de 
que podem crer com honestidade intelectual. Mas de fato a ver-
dade é que uma teologia fundamental do tipo tradicional, não 
obstante sua clareza, precisão e rigor formais, com muita fre-
qüência permanece estéril para a vida de fé porque a pessoa con-
creta, e sem dúvida com certa razão de natureza teórico-cognitiva, 
tem a impressão de o fato formal da revelação não ser assim pura 
e simplesmente tão claro e certo. 
Em outros termos, se este curso fundamental faz o que de-
ve fazer, é preciso buscar unidade entre teologia fundamental 
e teologia dogmática, entre fundamentação da fé e reflexão so-
bre o conteúdo da fé que seja maior da que se obtinha até o mo-
mento nas disciplinas teológicas e em suas divisões. 
E não vale objetar contra isso afirmando-se que as verda-
des centrais da fé são mistérios em sentido estrito. Com certeza 
o são. Mas não se deve identificar o mistério com afirmação que 
não tenha sentido para nós, sendo-nos assim inatingível. Se, po-
rém, o horizonte da existência humana que funda e abarca todo 
o conhecer humano é de início um mistério, e na verdade o é, 
neste caso o homem possui afinidade positiva, pelo menos da-
da pela graça, com aqueles mistérios cristãos que constituem o 
conteúdo básico da fé. Por outro lado, estes mistérios não con-
sistem em número maior ou menor de proposições particulares 
que infelizmente sejam ininteligíveis. Os únicos mistérios real-
mente absolutos são a autocomunicação de Deus na profundi-
dade da existência, que se chama graça, e na história, que se cha-
ma Jesus Cristo, realidades com as quais já está dado também 
o mistério da Trindade histórico-salvífica e imanente. E este mis-
23 
tério único pode plenamente fazer-se entender pelo homem, ca-
so este se entenda a si mesmo como alguém que está orientado 
e remetido ao mistério a que chamamos Deus. 
Assim sendo, propriamente só resta a pergunta se este Deus 
quis ser apenas o eternamente distante, ou se, além disso, ele quis 
vir a ser o centro mais íntimo de nossa existência na livre graça 
da autocomunicação de. si. Mas toda a nossa existência; porta-
da por essa pergunta, clama pela afirmação dessa segunda pos-
sibilidade como a realizada de fato. Clama pelo mistério que per-
manece mistério. Mas ela não está tão distante deste mistério 
para que este não passe de sacrificium intelectus (sacrifício da 
inteligência). 
Em vista da realidade mesma, portanto, é bem possível uni-
dade intrínseca entre teologia fundamental e teologia dogmáti-
ca. E isso é verdade de modo especial também quando parti-
mos do correto pressuposto tomista de que a teologia fundamen-
tal é feita sob a "luz da fé" e constitui justificação da fé pela 
fé. É em favor da fé e na presença da fé. Mas como poderia ocor-
rer isso sem que a pessoa reflita sobre a própria realidade que 
se crê e não só sobre o fato formal da revelação como tal? 
Outro ponto que parece importante do ponto de vista do 
conteúdo do curso fundamental consiste em mencionar algumas 
advertências e requisitos sobre o que não deve fazer parte de tal 
curso fundamental. Em primeiro lugar requer-se o maior cui-
dado para não cair em uma redução cristológica. O decreto do 
Concílio Vaticano II já mencionado sem dúvida diz que o estu-
dante de teologia deve desde o início ser introduzido no misté-
rio de Cristo. Mas, se ele diz ao mesmo tempo que este mistério 
de Cristo afeta toda a história do gênero humano, em todo tem-
po e lugar, uma concentração demasiado estreita do curso fun-
damental em tomo de Jesus Cristo como chave e solução de to-
dos os problemas existenciais e como o fundamento total da fé, 
seria idéia muito simplista. Não é certo que se deva pregar so-
mente Jesus Cristo e assim se resolveriam todos os problemas. 
Hoje em dia Jesus Cristo é ele próprio um problema. Para 
constatá-lo basta olhar para a teologia demitologizante da era 
pós-bultmanniana. Este problema consiste em perguntar: por que 
e em que sentido uma pessoa pode arriscar sua vida na fé neste 
Jesus de Nazaré concreto c;rido como o Deus-homem crucifica-
do e ressuscitado? Também isso deve receber justificação. Não 
se pode, pois, começar com Jesus Cristo como o dado absolu-
24 
tamente último, mas é precisocomeçar bem antes para chegar 
a ele. É preciso conduzir a ele. Temos várias fontes de experiên-
cia e conhecimento, cuja pluralidade temos de desdobrar e trans-
mitir. Existe um conhecimento de Deus que não se comunica 
adequadamente através do encontro com Jesus Cristo. Não é ne-
cessário nem objetivamente adequado começar neste curso fun-
damental simplesmente pela doutrina sobre Jesus Cristo, ainda 
que este curso fundamental seja designado no decreto conciliar 
Optatam totius como introdução ao mistério de Cristo. 
A mesma coisa vale da redução a uma hermenêutica exclu-
sivamente formal. Existe certamente algo assim como uma teo-
logia formal e fundamental, distinta da teologia fundamental 
clássica, que entra a fazer parte deste curso fundamental, usada 
de maneira correta e sob ponto de vista correto. Mas seria cer-
tamente falso pensar que estamos tratando aqui somente de her-
menêutica formal da linguagem teológica à maneira da teologia 
pós-bultmanniana, ou somente de provar a legitimidade da teo-
logia em geral do ponto de vista da reflexão teórico-científica 
ou da filosofia da linguagem etc. A razão pela qual não pode 
ser assim é que, dada a estrutura do homem de acordo com a 
revelação divina, a experiência concreta e a posteriori da salva-
ção e dos fatos históricos da salvação não podem ser transfor-
mados em estrutura meramente formal e transcendental, sem que 
o cristianismo deixe de ser cristianismo. 
Em conexão com o que se disse, fazemos advertência con-
tra mero biblicismo. A teologia protestante, por causa do modo 
corno nela são conduzidos os estudos, estruturou em larga es-
cala o todo da teologia a partir da exegese, acompanhada das 
ciências introdutórias, e da teologia bíblica. A filosofia e a teo-
logia sistemática têm sido, com freqüência, interesse muito se-
cundário, superestrutura acessória, sumário da teologia bíblica. 
Se fôssemos seguir essa orientação, que é basicamente obsole-
ta, o curso fundamental viria a ser privado de sua autêntica na-
tureza. O curso fundamental não é urna introdução à Sagrada 
Escritura. É claro que, nas passagens correspondentes e à sua 
maneira adequada, teremos de dar atenção neste curso funda-
mental a algo da exegese e da teologia bíblica. Mas ao refletir, 
por exemplo, sobre a credibilidade histórica da ressurreição de 
Jesus e sobre a autocornpreensão que a teologia dogmática lhe 
atribui, só poderemos fazer uso dos dados da Sagrada Escritu-
ra que, mediante exegese responsável levada a termo nos moldes 
25 
da exegese de hoje, se apresentam como suficientemente segu-
ros. Mas, pela natureza mesma do curso fundamental, enquan-
to se distingue do trabalho posterior e necessário da teologia bí-
blica, da teologia fundamental, da eclesiologia e da teologia dog-
mática, só poderemos acolher no curso fundamental o que seja 
absolutamente necessário da exegese e da teologia bíblica. E pos-
teriormente a exegese e a teologia bíblica especializadas pode-
rão coligir, elaborar e transmitir o resto do material positivo bí-
blico, a que uma teologia na Igreja também não pode renunciar. 
3. SOBRE ALGUNS PROBLEMAS 
EPISTEMOLÓGICOS FUNDAMENTAIS 
Sobre a relação entre realidade e conceito, 
entre autopossessão originária e reflexão 
Denominamos este ensaio de introdução ao conceito de cris-
tianismo a fim de indicar que o nosso interesse nesta obra não 
é fazer uma iniciação mistagógica ao cristianismo. Trata-se, an-
tes, de investigação que se caracteriza pelo esforço intelectual 
no campo da teologia e da filosofia da religião levado a cabo 
a um primeiro nível de reflexão. Buscamos o conceito e não de 
imediato a coisa mesma, porque e ainda que aqui como em ne-
nhuma outra parte o conceito e a realidade estejam distantes entre 
si, e, por outro lado, o conceito, para ser entendido, em nenhu-
ma outra parte como aqui exige tanto que se volte para a reali-
dade mesma. Mesmo que este nosso ensaio viesse a falhar, ele 
deve ser em princípio possível, de acordo com o que pretende 
o cristianismo. Pois, por um lado, o cristianismo existe em um 
indivíduo em sua finitude concreta e historicamente condicio-
nada, somente se este indivíduo o acolhe com pelo menos um 
mínimo de conhecimento que ele adquiriu pessoalmente e que 
está envolvido pela fé, e, por outro lado, este conhecimento é 
que o cristianismo entende como conhecimento que em princí-
pio se pode exigir e se pode apreender por qualquer pessoa. 
Nem todos podem ser teólogos especializados stricto sen-
su. E se, não obstante, o cristianismo deve ser algo que possa 
ser apreendido pessoalmente por todos, em princípio deve ha-
ver uma introdução ao cristianismo a um primeiro nível de re-
flexão. Em outras ciências pode ocorrer que, quanto mais espe-
cializado algo se torna, tanto mais inacessível venha a ser para 
26 
o não-especializado e se torne tanto mais importante e precisa-
mente a verdade mais autêntica daquela ciência. Na teologia não 
pode ser assim, pois no seu caso não é que ela reflita só acesso-
riamente a um nível de especialização sobre um saber salvífico 
para todos. Pelo contrário, ela própria quer continuar sendo es-
te saber salvífico que diz respeito a todos. Pois a reflexão sobre 
a compreensão anterior da existência de uma pessoa faz parte 
de certa forma e em certa medida dessa mesma compreensão 
da existência e não é mero luxo suplementar para o trato de es-
pecialistas. 
Existe no homem inevitável unidade na diferença entre au-
topossessão originária e reflexão. Nega-se isto de diversas for-
mas, por um lado pelo racionalismo teológico, e por outro lado 
pela filosofia da religião do assim chamado "modernismo" clás-
sico. Pois no fundo todo racionalismo repousa sobre a convic-
ção de que uma realidade está presente ao 'homem, em autopos-
sessão espiritual e livre, somente mediante o conceito objetivante, 
que ganha sua realidade genuína e plena na ciência. E, em sen-
tido contrário, o que se chama "modernismo'' na acepção clás-
sica vive da convicção que o conceito ou a reflexão é algo abso-
lutamente secundário e posterior com referência à autoposses-
são original da existência na autoconsciência e liberdade, de tal 
sorte que a reflexão poderia muito bem ser dispensada. 
Mas não existe isoladamente o "em si" puramente objetivo 
de uma realidade, por um lado, e o conceito claro e "distinto" 
dessa realidade, por outro. Existe também unidade originária, 
sem dúvida não para tudo e qualquer coisa, mas para a atuação 
humana da existência, entre a realidade e o seu "ser-em-si-
mesma", que é maior e é mais originária do que a unidade desta 
realidade e do conceito que a objetiviza. Quando amo, quando 
me vejo atormentado por perguntas, quando estou triste, quan-
do sou fiel, quando tenho saudades, essa realidade humano-
existencial é uma unidade, unidade originária da realidade e seu 
próprio estar-em-si que não é mediada adequadamente através 
do conceito cientificamente objetivante que se faz sobre ela. Es-
sa unidade de realidade e originário estar-em-si-mesma dessa rea-
lidade na pessoa já está dada na livre auto-realização do homem. 
Este é um dos lados da questão. 
Todavia devemos acrescentar que neste saber originário mes-
mo entra um momento de reflexão e, em sendo assim, de gene-
ralidade e de comunicabilidade espiritual, ainda que este mo-
27 
mento de reflexão não abarque essa unidade e não a traduza ade-
quadamente em conceitos objetivantes. Essa unidade original que 
estamos traçando entre realidade e seu conhecimento de si sem-
pre existe no homem somente com, em e através do que chama-
mos linguagem, e com isso também reflexão e comunicabilida-
de. No momento em que este elemento de reflexão não estivesse 
mais presente de maneira pura e simples, essa originária auto-
possessão cessaria também de existir. 
A tensão entre saber originário e seu conceito, momentos 
que se inter-relacionam sem contudo ser a mesma coisa, não é 
algo de estático. Tem história em duas direções. A original au-
topresença a si do sujeito na realização emato de sua existência 
busca sempre mais traduzir-se no conceito, no objetivado, na lin-
guagem, na comunicação com outrem. Toda pessoa busca dizer 
a outrem, sobretudo à pessoa amada, o que ela está sofrendo. 
E assim nessa' relação tensa entre saber originário e seu concei-
to, que sempre o acompanha, existe a tendência para a maior 
conceitualização, para a linguagem, para a comunicação e, por-
tanto, também para o saber teórico sobre si mesmo. 
Mas existe também movimento em direção oposta no seio 
dessa relação tensa. Uma pessoa que foi formada por língua co-
mum, foi instruída e doutrinada desde fora, talvez faça somen-
te pouco a pouco a experiência clara do que está falando há bas-
tante tempo. Somos precisamente nós, os teólogos, que sempre 
estamos expostos ao perigo de falar sobre céu e terra, sobre Deus 
e o homem mediante arsenal quase ilimitado de conceitos reli-
giosos e teológicos. Podemos adquirir na teologia extrema ha-
bilidade neste tipo de fala e talvez não ter realmente entendido 
desde a profundidade de nossa existência aquilo de que realmente 
estamos falando. Neste caso a reflexão, o conceito e a lingua-
gem retêm essencial orientação para aquele saber original, para 
aquela experiência originária em que o que é significado e a ex-
periência do significado são ainda uma unidade. 
À medida que o conhecimento religioso também manifesta 
essa tensão entre o autoconhecimento originário, adquirido pe-
lo que fazemos e sofremos, e sua conceitualização, existe tam-
bém no seio da teologia, em unidade e diferença indissolúveis, 
este duplo movimento. Essa relação tensa é relação fluida e não 
dimensão estática. Embora este movimento atinja sua meta ape-
nas assintoticamente, deveríamos adquirir um saber conceituai 
cada vez melhor sobre o que se experimenta e vive antes de tal 
28 
conce1tualização, ainda que não inteiramente sem ela. E, em di-
reção contrária, deveríamos sempre de novo mostrar que todos 
esses conceitos teológicos não tornam a realidade presente ao 
homem desde fora, mas antes são a expressão daquilo de que 
já se fez experiência e por que a pessoa já passou nas profunde-
zas de sua existência. Até certo ponto podemos chegar concei-
tualmente a nós mesmos, ficando presentes a nós mesmos ao 
nível do conceito, e sempre podemos voltar a tentar remeter nos-
sos conceitos teológicos à experiência que lhes deu origem. As-
sim sendo, o ensaio que temos o propósito de fazer neste livro 
não deixa de ser legítimo e necessário. Se vier a falhar, só se po-
deria entender da parte do cristão essa falha como mandato e 
ordem para que o tente uma vez mais e com mais empenho em 
busca de êxito. 
O sujeito como dado implicado no conhecimento 
Freqüentemente imaginamos a natureza do conhecimento 
segundo o modelo de quadro-negro, sobre o qual se inscreve um 
objeto, surgindo este como que vindo de fora e aparecendo so-
bre o quadro. Imaginamos o conhecimento à semelhança de um 
espelho onde se reflete um objeto qualquer. Somente tais mo-
delos imaginativos é que permitem entender o famoso proble-
ma referente ao modo como o "em-si" de alguma coisa pode 
entrar no conhecimento, como um objeto pode como que imi-
grar para o conhecimento. Estes modelos estão sempre presen-
tes na epistemologia como um a priori, sobretudo quando se de-
fende o assim chamado realismo, ou seja, a teoria que entende 
o conhecimento como se fosse a "imagem" ou a "cópia" da rea-
lidade, ou, vale dizer, entende a verdade como a correspondên-
cia de uma proposição com o objeto. Estes modelos se pressu-
põem então como evidentes por si mesmos. Em todos estes mo-
delos imaginativos, o conhecido é algo que vem de fora, é o di-
verso que se apresenta desde fora segundo sua própria lei e se 
imprime na capacidade receptiva de conhecimento. 
Mas na realidade o conhecimento tem estrutura muito mais 
complexa. Pelo menos o conhecimento espiritual de um sujeito 
pessoal não é de tal sorte que o objeto se apresenta vindo de 
fora e é assim "possuído" como conhecido. Trata-se, antes, de 
conhecimento em que o sujeito que conhece possui no conheci-
mento tanto a si mesmo como seu conhecimento. Isso não ocorre 
somente quando o sujeito em um ato segundo posterior reflete 
29 
sobre este estar presente a si mesmo do sujeito no seu conheci~ 
mento, ou seja, quando ele reflete sobre o fato de que ele co-
nheceu algo em um primeiro ato e depois faz deste primeiro ato 
de conhecimento o objeto de seu conhecimento. Ter o conheci-
mento como tal, enquanto distinto de seu objeto objetivado, e 
a autoposse no conhecimento de si mesmo constituem caracte-
rísticas de todo conhecimento. No conhecimento não somente 
se sabe algo, mas também é sabido conjuntamente o próprio sa-
ber do sujeito que conhece. 
No ato simples e originário do conhecer, que se ocupa com 
qualquer objeto que se lhe proponha, o saber que é conjunta-
mente sabido com o objeto e o sujeito que sabe, que também 
é conjuntamente sabido, não são os objetos do conhecimento. 
Pelo contrário, este ser-sabido do saber sobre algo e o ser-sabido 
do sujeito para si mesmo, o estar presente a si mesmo do sujei-
to, estão radicados como que no outro pólo da relação una do 
sujeito que sabe e do objeto sabido. A reflexividade do sujeito 
representa como que o espaço iluminado dentro do qual pode 
se anunciar o objeto particular com o qual a pessoa se ocupa 
em determinado ato primário de conhecimento. Esta condição 
sabedora do sujeito que conhece permanece sempre atemática 
no processo do conhecimento primário de um objeto que se anun-
cia desde fora. É algo que, por assim dizer, se passa por detrás 
do sujeito que conhece, o qual olha desde si para fora, para o 
seu objeto. E mesmo quando este sujeito que conhece, em um 
ato de reflexão, converte este estar-presente-a-si-mesmo do su-
jeito, que é concomitantemente sabido, e o seu saber em obje-
tos de um novo conhecimento, as coisas não deixam de ocorrer 
da mesma forma. Também este novo ato, que, de maneira con-
ceitua! e posterior, toma a consciência do sujeito como objeto 
do ato, volta a ter uma vez mais este original estar-presente-a-si-
mesmo do sujeito e do saber acerca deste segundo ato reflexo 
como a condição de sua possibilidade, como seu pólo subjetivo. 
Este ato reflexivo não torna supérfluo o originário estar-
presente-a-si-mesmo do sujeito que sabe de si e do seu saber. 
O seu objeto no fundo significa apenas este originário e ilumi-
nado estar-presente-a-si-mesmo do sujeito. Mas este conceitua-
lizado e tematizado estar-presente-a-si-mesmo do sujeito e de seu 
saber por si nunca é idêntico com este originário estar-presente-
a-si-mesmo e também jamais alcança adequadamente o seu con-
teúdo. A mesma relação que se dá entre a alegria, o medo, o 
30 
amor, a dor, ou outros sentimentos imediatamente vividos, e o 
conteúdo de idéia reflexa de alegria, medo, amor, dor etc., dá-se 
também, e de forma bem mais originária, entre o necessário estar-
presente-a-si-mesmo do sujeito e de seu saber sobre o que obje-
tivamente sabe, situado no pólo subjetivo do arco do conheci-
mento e a objetivação precisamente deste estar-presente-a-si-
mesmo. O estar-presente-a-si-mesmo refletido sempre remete de 
volta para o originário estar-presente-a-si-mesmo do sujeito, mes-
mo em um ato que se ocupa com algo bem diverso, e jamais 
alcança adequadamente este originário estar-presente-a-si-mesmo 
do sujeito. O arco de tensão entre os dois pólos, "sujeito" e "ob-
. jeto", não se pode superar nem sequer quando o sujeito toma 
a si mesmo como seu próprio objeto. Pois neste caso o objeto 
é o sujeito conceitualmente objetivado, e o conhecimento deste 
conceito volta a ter no pólo subjetivo deste arco de tensão o ori-
ginário saber atemático do sujeito sobre si mesmo como a con-
dição de sua origem. 
Aprioridade e abertura essencial 
Mas a coisa não se passa como se este estar-presente-a-si-
mesmc, - sabido conjuntamente e atemático - do sujeito e do 
seu saber fosse mero fenômeno acessório naquele ato de conhe-cer que apreende um objeto qualquer, a tal ponto que o seu co-
nhecimento fosse, em sua estrutura e seu conteúdo, totalmente 
independente da estrutura do estar-presente-a-si-mesmo do su-
jeito. A estrutura do sujeito é antes ela mesma estrutura aprio-
rística, ou seja, ela constitui lei prévia que regula o que e a ma-
neira como algo pode anunciar-se ao sujeito que conhece. Os 
ouvidos, por exemplo, representam lei apriorística, uma como 
que retícula que determina que aos ouvidos só se podem anun-
ciar sons. Assim ocorre também com os olhos e todos os outros 
órgãos do conhecimento sensível. Eles selecionam, de acordo com 
sua própria lei interna, dentre a multidão de possibilidades do 
mundo que se impõem e oferecem, segundo sua própria lei, a 
essas realidades a possibilidade de se achegar e apresentarem, 
ou então as desligam. Mas isso não implica absolutamente que 
as realidades que se anunciam não possam mostrar-se tais co-
mo são em si. Também um buraco de fechadura constitui lei que 
determina qual chave lhe serve, mas precisamente por isso reve-
la também algo da própria chave. A estrutura apriorística de uma 
31 
faculdade de conhecimento manifesta-se da maneira mais sim-
ples pelo fato de se manter em todo ato singular de conhecimento 
de um objeto que se lhe apresente, mantendo-se inclusive quan-
do este ato é, ou antes quer ser, em seu objeto como tal, a su-
pressão ou a impugnação dessas estruturas apriorísticàs. Para 
sermos breves, não podemos ilustrar esta reflexão com exemplos 
buscados no campo de nosso conhecimento sensitivo referentes 
à multiplicidade de fatos que ocorrem imediatamente no espa-
ço e tempo. Em vez disso, queremos nos voltar logo para a tota-
lidade do conhecimento espiritual do homem, no qual ocorre 
a autopossessão do sujeito que sabe, a reditio completa, o total 
retorno do sujeito a si mesmo, como o diz Tomás de Aquino. 
Se nos perguntarmos quais as estruturas apriorísticas des-
sa autopossessão, devemos dizer que, sem prejuízo de toda me-
diação dessa autopossessão pela experiência espácio-temporal 
de objetos dados sensivelmente, este sujeito é basicamente e por 
sua própria natureza pura abertura para o todo simplesmente, 
para o ser como tal. Isso se evidencia pelo fato de a negação 
de tal abertura ilimitada do espírito para o todo colocar e afir-
mar, implicitamente tal abertura. Pois um sujeito que se reco-
nhece como finito, e não só se acha em seu conhecimento igno-
rando a limitação da possibilidade de seus objetos, já ultrapas-
sou sua finitude, já se desqualificou como meramente finito, di-
ferenciando-se de horizonte subjetiva e atematicamente dado de 
possíveis objetos que é de infinita amplidão. O que diz objetiva 
e tematicamente que não existe nenhuma verdade, afirma essa 
proposição como verdadeira, pois do contrário a afirmação não 
teria absolutamente nenhum sentido. Pelo fato de que em tal ato 
e em seu pólo subjetivo o sujeito necessariamente afirma a exis-
tência da verdade, embora o faça em um conhecimento atemá-
tico, ele já se percebeu como estando de posse de tal conheci-
mento. Assim ocorre também com a experiência da abertura sub-
jetiva e ilimitada do sujeito. À medida que se percebe condicio-
nado e limitado pela experência sensível, limitação que aliás o 
afeta em demasia, ele já transcendeu essa experiência sensível 
e assim se colocou como sujeito de uma pré-apreensão (Vorgriff) 
que não tem nenhum limite interno, pois até mesmo a suspeita 
de tal limite interno do sujeito situa essa pré-apreensão mesma 
acima da suspeita. 
32 
A experiência transcendental 
Chamamos de experiência transcendental a consciência sub-
jetiva, atemática, necessária e insuprimível do sujeito que co-
nhece, que se faz presente conjuntamente a todo ato de conhe-
cimento, e o seu caráter ilimitado de abertura para a amplidão 
sem fim de toda realidade possível. Ela é uma experiência, por-
que este saber de cunho atemático, mas inevitável é momento 
e condição da possibilidade de toda e qualquer experiência con-
creta de qualquer objeto seja. Essa experiência é chamada trans-
cendental porque faz parte das estruturas necessárias e insupri-
míveis do próprio sujeito que conhece, e porque consiste preci-
samente na ultrapassagem de determinado grupo de possíveis 
objetos ou de categorias. A experiência transcendental é a expe-
riência da transcendência, experiência na qual a estrutura do su-
jeito e, conseqüentemente, também a estrutura última de todo 
objeto concebível de conhecimento está presente conjuntamen-
te e na identidade. Evidentemente essa experiência transcenden-
tal não é somente experiência de puro conhecimento, mas tam-
bém da vontade e liberdade. Compete-lhes o mesmo caráter de 
transcendentalidade, de tal sorte que basicamente se pode per-
guntar pela origem e pelo destino do sujeito enquanto sujeito 
que conhece e enquanto ser livre a um só tempo. 
Se nos damos conta claramente da natureza específica des-
sa experiência transcendental, experiência que nunca pode 
representar-se como tal no que possui de genuinamente próprio, 
mas que só se pode representar objetivamente em um conceito 
abstrato acerca dela; se virmos claro que essa experiência trans-
cendental não é constituída pelo fato de falar dela; se nos ad-
vertirmos que devemos falar dela, pois que está sempre presen-
te, e ademais também pode duradouramente passar despercebida; 
se de mais a mais compreendermos que essa experiência por si 
nunca pode apresentar o atrativo da novidade de um objeto que 
nos vem ao encontro de maneira inesperada, se tudo isso ficar 
claro então se compreenderá a dificuldade do que vamos em-
preender: uma vez mais· só poderemos falar de maneira indireta 
do termo para o qual aponta essa experiência transcendental. 
Saber atemático de Deus 
Mais tarde haveremos de mostrar que está presente nessa 
experiência transcendental como que um saber anônimo e ate-
33 
2 - Curso Fundamental da Fé 
mático sobre Deus. Portanto o conhecimento originário de Deus 
não é do tipo de conhecimento em que a pessoa capta um obje-
to que se anuncia direta ou indiretamente desde fora, mas antes 
apresenta o caráter de experiência transcendental. Enquanto es-
sa luminosidade subjetiva, não objetiva, do sujeito está sempre 
orientada na sua transcendência para o mistério santo, está sem-
pre presente o conhecimento atemático. e anônimo de Deus, e 
não somente quando começamos a falar dele. Todo falar sobre 
ele, que necessariamente ocorre, sempre remete para essa expe-
riência transcendental como tal, experiência em cujo seio aque-
le que chamamos de Deus sempre se dirige silenciosamente ao 
homem, dirige-se a ele como o ser absoluto e incompreensível, 
como o Aonde de sua transcendência que não pode propriamente 
vir a integrar-se num sistema de coordenadas, transcendência que, 
como transcendência de amor, percebe esse Aonde precisamen-
te também como o mistério santo. 
Voltaremos a falar com mais detalhe sobre isso, mas uma 
coisa que devemos mencionar aqui no sentido de esclarecer o 
que significa transcendência é que se o homem é ser de trans-
cendência remetido e orientado ao mistério santo e absolutamente 
real, e se o Aonde e o Donde da transcendência, na qual e atra-
vés da qual o homem como tal existe e que constitui sua essên-
cia originária enquanto sujeito e pessoa, é este mistério absolu-
to e santo, então surpreendentemente podemos e devemos acres-
centar: o mistério com sua incompreensibilidade é o que existe 
de mais evidente. Se transcendência não é coisa qualquer que, 
como que de passagem, praticamos, por assim dizer, como luxo 
metafísico de nossa existência intelectual, mas se essa transcen-
dência é a condição mais simples, mais óbvia e mais necessária 
da possibilidade de todo entender e compreender espiritual, en-
tão o mistério santo é propriamente a única realidade evidente 
por si mesma, a única realidade que está fundada em si própria, 
mesmo do nosso ponto de vista. Pois todo outro compreender, 
por mais claro possa parecerà primeira vista, funda-se nessa 
transcendência. Toda compreensão clara funda-se na obscuri-
dade de Deus. 
Portanto este Aonde da transcendência, a um exame mais 
preciso, não é em seu caráter misterioso conceito simplesmente 
contrário a evidente. Em nosso conhecimento só é evidente pa-
ra nós o que em si se entende por si mesmo. Tudo o que enten-
demos torna-se inteligível, mas não propriamente evidente, pelo 
34 
fato de se derivar de algo diferente ou de reduzir-se a algo: num 
caso, pelo fato de se derivar de axiomas, e, noutro, pelo fato de 
se reduzir a dados elementares da experiência sensível. Assim, 
a realidade entendida vem a ser explicada e feita inteligível pela 
recondução ou ao mudo embotamento do meramente sensível 
ou ao claro-escuro da ontologia, ou seja, ao mistério santo e 
absoluto. 
O que se torna inteligível funda-se em última instância na 
única coisa que é evidente por si, no mistério. Mistério é, pois, 
algo que nos é sempre familiar. Nós sempre o amamos, mesmo 
quando, assustados com ele e eventualmente até mesmo irrita-
dos com ele, não quiséssemos dar-lhe atenção. Para a pessoa que 
tomou consciência de suas profundidades, o que temática ou ate-
maticamente pode ser mais familiar e evidente do que o pergun-
tar silencioso pelo mais além do já conquistado e dominado, do 
que a sobrecarga de perguntas a que não foram dadas respos-
tas, aceitas com humildade e amor, que aliás é a única coisa que 
torna sábio? Nas profundidades últimas do seu ser de nada sa-
be, o homem com mais exatidão do que o seu saber, ou o que 
no dia-a-dia assim se chama, não passa de pequenina ilha no 
vasto mar ainda não percorrido, ilha flutuante, que pode ser para 
nós mais familiar do que o oceano, mas que em último termo 
é carregada e somente assim nos carrega por sua vez. E, em con-
seqüência, a pergunta existencial àquele que conhece é se ele ama 
mais a pequena ilha do seu assim chamado saber ou o mar do 
mistério infinito; se a pequenina luz, chamada ciência, com que 
ele ilumina essa ilha, há de ser para ele uma luz eterna, que para 
ele brilhe eternamente (o que seria o inferno). 
É claro que a pessoa, em sua decisão concreta de vida, po-
de querer e acolher a questão da infinitude apenas como agui-
lhão para sua ciência em sua tarefa do conhecer objetivamente 
e dominar, negando-se a ter que haver o mínimo com a pergun-
ta absoluta como tal, a não ser enquanto essa pergunta estimu-
la sem cessar a perguntas e respostas setoriais. No entanto so-
mente quando a pessoa começa a se perguntar pelo perguntar 
mesmo e a pensar sobre o pensar mesmo, somente quando vol-
ta sua atenção para o espaço do conhecer e não só para os obje-
tos do conhecimento, para a transcendência e não só para o que 
é entendido categorialmente no espaço e tempo no interior des-
sa transcendência, somente então é que essa pessoa pisa no li-
35 
miar do homo religiosus. A partir dessas observações, pode-se 
entender com mais facilidade que muitos rião sejam este homo 
religiosus, que talvez não sejam mesmo capazes de sê-lo, que 3in-
tam que está sendo exigido demasiado deles. Mas toda pessoa 
que se colocou uma vez a pergunta acerca de sua transcendên-
cia e do Aonde a que ela remete, não mais a poderá deixar estar 
à deriva sem resposta. Pois, mesmo que dissesse que se trata de 
pergunta que não possa ter resposta, de pergunta a que não se 
deva responder, de pergunta que, por exigir demais, deva ser des-
cartada, já se teria dado resposta a essa pergunta (se certa ou 
errada, no momento ainda não vem ao caso). 
PRIMEIRA SEÇÃO 
O OUVINTE DA PALAVRA 
1. RELAÇÃO ENTRE FILOSOFIA E TEOLOGIA 
A que ouvinte se dirige o cristianismo? Em princípio, que 
ouvinte poderá ouvir sua mensagem última e mais autêntica? 
Eis a primeira pergunta a fazer. Pretendemos entendê-la não np 
sentido moral, mas no sentido ontológico-existencial. 
Se antes de tudo devemos falar do homem que deve ser o 
ouvinte da mensagem do cristianismo, se, neste sentido, falamos 
de pressupostos, o que queremos frisar é a maneira como se en-
trelaçam tais pressupostos e a mensagem do cristianismo. Dizer 
isso não significa, porém, que o cristianismo considere esses pres-
supostos como simplesmente dados e prontos e como se tives-
sem sido já realizados e exercidos por todos os indivíduos de 
forma reflexa e sobretudo livre, de tal sorte que onde esses pres-
supostos não estivessem presentes não houvesse nenhum ouvin-
te potencial da mensagem cristã. 
Se entendermos corretamente a realidade do homem, ha-
veremos de constatar qu~ existe circulação inevitável entre os seus 
horizontes de compreensão e o que se diz, se ouve e se entende. 
Em últimos termos, as duas realidades pressupõem-se recipro-
camente. E, sendo assim, o cristianismo julga que esses pressu-
postos, sempre em seu peculiar entrelaçamento, existem inevitá-
vel e necessariamente no fundamento último da existência do 
homem, mesmo quando esta existência vem a ser explicada de 
maneira diferente ao nível de sua interpretação reflexa, e mes-
mo que também a própria mensagem cristã crie, mediante seu 
apelo, tais pressupostos. Essa mensagem age no sentido de si-
tuar o homem perante a verdade real e profunda do seu ser, ver-
dade a que permanece inevitavelmente preso, ainda que tal pri-
são seja, em última análise, a infinita amplidão do incompreen-
sível mistério de Deus. 
O que acabamos de dizer implica, já a essa altura de nossa 
reflexão, peculiar entrelaçamento entre filosofia e teologia. Os 
37 
pressupostos, que aqui vêm ao caso, referem-se à essência do ho-
mem. Referem-se à sua essência, realidade que se apresenta sem-
pre historicamente e que, em conseqüência, se vê confrontada 
com o cristianismo enquanto graça e mensagem histórica. Refe-
rem-se, pois, a uma realidade a que pode ter acesso qualquer 
reflexão teórica e qualquer auto-interpretação da existência hu-
mana, o que chamamos de filosofia. E esses mesmos pressupostos 
integram, por outro lado, os conteúdos da teologia revelada que 
o cristianismo anuncia ao homem a fim de que essa autêntica 
essência do homem, que de forma inevitável está sempre referi-
da à história, não permaneça escondida ao homem. 
Falando, pois, dessa antropologia como pressuposto da pos-
sibilidade de ouvir e entender a autêntica mensagem do cristia-
nismo, não precisamos nos preocupar com separar filosofia e 
teologia metodicamente da maneira mais precisa possível. In-
clusive a filosofia da existência humana que se caracterize por 
ser a mais originária, fundada em si e a mais transcendental, 
vem a ocorrer somente no seio de experiência histórica. E até 
mesmo constitui momento que integra a história do homem. Em 
conseqüência, jamais podemos filosofar pressupondo que o ho-
mem não tenha feito aquela experiência que é própria do cris-
tianismo ( o que é verdade pelo menos com referência ao que cha-
mamos de graça, embora essa não precise ainda ser refletida, 
entendida e objetivada como experiência da graça). Em nossa 
situação histórica, de forma alguma é possível filosofia absolu-
tamente livre de teologia. A autonomia que em princípio cabe 
a essa filosofia só pode consistir em refletir sobre suas origens 
históricas e em se perguntar se ainda se reconhece obrigada a 
essas origens na história e na graça como algo de válido, e se 
essa experiência do homem consigo mesmo ainda hoje pode vir 
a se realizar, impondo-se como válida e obrigatória. E, em sen-
tido contrário, a teologia dogmática pretende dizer ao homem 
o que ele é e permanece sendo, mesmo quando, na incredulida-
de, rejeita essa mensagem do cristianismo. 
A teologia implica, pois, uma antropologia filosófica que 
possibilita essa mensagem de graça vir a ser aceita e acolhida 
de maneira genuinamente filosófica e racional, e que dela dá ra-
zão de forma humanamente responsável. Avançamos afirmações 
sobre o homem e sobre o que em todo caso é agora sua situação 
ineludível, afirmações sobre o que a mensagem cristã encontra 
38 
no homem ou que ela própriacria no homem corno pressupos-
to e genuíno lugar de sua sintonia com o homem. E a cada qual 
se lhe pergunta então se é capaz de se reconhecer corno a pessoa 
que aí tenta expressar sua autocornpreensão, ou se, em respon-
sabilidade para consigo mesmo e por sua existência, pode vir 
a afirmar corno verdade sua a persuasão de que não é o homem 
tal qual o cristianismo lhe afirma ser. 
2. O HOMEM COMO PESSOA E COMO SUJEITO 
A personalidade como pressuposto da mensagem cristã 
Com referência aos pressupostos requeridos para a mensa-
gem revelada do cristianismo, a primeira coisa que se deve dizer 
acerca do homem é que o homem é pessoa e sujeito. 
Não precisamos explicar com muito detalhe que um con-
ceito de pessoa e sujeito vem a ser de capital importância para 
a possibilidade da revelação cristã e a autocompreensão do cris-
tianismo. Uma relação pessoal do homem para com Deus, urna 
história da salvação genuinamente dialógica entre Deus e o ho-
mem, o acolhimento de sua salvação única e eterna, o conceito 
de responsabilidade do homem perante Deus e seu julgamento, 
todas essas afirmações do cristianismo, ainda que devam ser in-
terpretadas com maior precisão, implicam que o homem é o que 
aqui queremos dizer: ele é pessoa e sujeito. A mesma coisa vale 
quando falamos de revelação ocorrida mediante a palavra no 
cristianismo, quando dizemos que Deus falou ao homem, que 
o chamou à sua presença, que na oração o homem pode e deve 
falar com Deus. Todas essas afirmações são terrivelmente obs-
curas e difíceis, mas, não obstante, constituem a realidade con-
creta do cristianismo. E nenhuma delas seria inteligível, a não 
ser que incluamos em nosso conceito de cristianismo, explícita 
ou implicitamente, o que aqui estamos entendendo por "pessoa" 
e "sujeito". 
O que exatamente significam esses termos só se pode con-
cluir do todo de nossa antropologia. Portanto somente quando 
tivermos tratado da transcendência do homem, da sua respon-
sabilidade e liberdade, de sua referência ao mistério incompreen-
sível, de sua historicidade e necessária inserção no mundo, de 
sua sociabilidade, é que poderemos entender melhor o que seja 
"pessoa" e "sujeito". Todas essas determinações integram a cons-
39 
tituição da verdadeira personalidade do homem. Nosso interes-
se imediato a essa altura, antes de tratarmos particularizadamente 
de cada uma dessas determinações, consiste em dizer, pelo me-
nos de forma preliminar, o que entendemos ao designar o ho-
mem como pessoa e sujeito. 
O caráter misterioso e arriscado da experiência pessoal 
É claro que este tema há de sempre contar com a "boa von-
tade" do ouvinte. Pois o que ele deve ouvir não é o que reside 
imediatamente no conceito como tal. Pela própria natureza da 
coisa, os conceitos aludem à experiência mais originária e bási-
ca da sua subjetividade e personalidade. Aludem a uma expe-
riência básica que certamente não ocorre desacompanhada to-
talmente de palavras e de forma irrefletida, mas que também 
não é algo que simplesmente se possa dizer com palavras ou que 
se possa captar por mero ensino vindo de fora. 
Quer como indivíduo quer como inserido na humanidade 
como um todo, com certeza o homem se percebe como sendo, 
de múltiplas maneiras, produto do que ele próprio não é. Até 
mesmo poderíamos dizer que em princípio todas as ciências em-
píricas, que estudam o homem, visam metodologicamente, ex-
plicar e deduzir o homem desde outras realidades. Visam consi-
derá-lo como o resultado e o ponto de interseção entre realida-
des que, por um lado, ocorrem no seio da experiência empírica, 
mas que, por outro lado, não são o homem mesmo, mas que, 
sem embargo, o estabelecem e determinam em sua realidade e, 
sendo assim, também o explicam. É claro que todas as ciências 
antropológicas empíricas têm o direito de como que dissolver 
o homem, analisá-lo· e deduzi-lo, de tal forma que o que obser-
vam e estabelecem no homem venha a se explicar como produ-
to e resultado de dados ou realidades que não são este homem 
concreto. Que se chamem essas ciências de física, química, bio-
química, genética, p1;1leontologia, sociologia ou como quer se-
ja, todas elas tentam, de maneira plenamente legítima, como que 
deduzir o homem, explicá-lo e dissolvê-lo em certo sentido em 
suas causas experimentais, que se podem analisar e isolar. Em 
princípio, essas ciências são em larga escala plenamente legíti-
mas em seus métodos e resultados. E a dura experiência de cada 
indivíduo em sua própria existência está sempre a demonstrar 
o quanto elas têm razão. 
40 
O homem olha para o seu interior, para o seu passado e 
para o mundo que o rodeia, e constata, com horror ou com alí-
vio, que pode alienar-se de si mesmo com referência a todos os 
dados concretos que constituem a sua realidade, atribuindo de 
certa forma o que ele é ao que ele não é. Constata que veio a 
existir mediante outra realidade que ele próprio não é. E a outra 
realidade, de que proveio, é a natureza implacável e impessoal, 
que abarca também a "história" que, sob este prisma, também 
se pode interpretar como "natureza". Do ponto de vista cristão, 
não existe nenhum motivo para restringir as pretensões de an-
tropologia empírica ao interior de certas áreas, material e regio-
nalmente definidas, da vida humana, passando-se a chamar o 
que se encontra dentro do campo dessas antropologias empíri-
cas de "matéria" ou "corpo" ou algo semelhante, em contrapo~ 
sição a uma dimensão, empírica e claramente separável, que cha-
maríamos de "alma" ou "espírito". 
É claro que uma separação material desse tipo tem certa 
razão de ser na apologética cristã e na antropologia teológica 
corrente que visa buscar compreensão nos moldes de pensamento 
não erudito e popular. Mas basicamente toda antropologia se-
torial~ que se poderia também chamar de "regional", contan-
to não se entenda a palavra em sentido geográfico -, como, por 
exemplo, a bioquímica, a biologia, a genética, a sociologia, e 
outras áreas, aproxima-se do homem sob determinado ponto de 
vista e não pretende ser sozinha a única e total antropologia. 
O sociólogo desenvolverá sua própria antropologia em corres-
pondência aos seus métodos. Mas, se for racional, não dirá que 
uma antropologia biológica ou uma antropologia do compor-
tamento ou outra qualquer careça de sentido: E eventualmente 
poderá até mesmo usar dos resultados dessas antropologias. E, 
fazendo-o, estará reconhecendo efetivamente que existem outras 
antropologias além da sua. E cada uma dessas antropologias pos-
suem os seus métodos específicos, pelo menos provisórios e sob 
reserva última. 
Cada uma delas, porém, pretende dizer algo sobre o homem 
como todo. E, uma vez que o toma como todo, não pode querer 
perder qualquer afirmação que se possa fazer sobre esse todo 
uno. Cada uma dessas antropologias busca explicar o homem 
a partir de dados particulares, mediante decompô-lo em seus ele-
mentos e em seguida reconstruí-lo novamente desde esses dados 
particulares. Agir assim é direito de toda antropologia regional. 
41 
Quase sempre essas antropologias inspiram-se pelo desejo não 
declarado de não somente entender o homem, corno também, 
usando desse conhecimento, vir a dominá-lo realmente. A in-
tenção de toda antropologia, ainda que regional, de explicar o 
homem corno todo é legítima. Pois que o homem é um ser cujas 
origens se inscrevem no interior do mundo, ou seja, lança suas 
raízes em realidades empíricas. O seu ser é de tal índole que es-
sas suas origens no seio do mundo sempre o afetam em sua uni-
dade e totalidade. Em razão disso, as antropologias regionais, 
ainda que particulares, continuam sempre sendo antropologias. 
A peculiaridade da experiência da pessoa 
A filosofia e a teologia não possuem nenhuma área do ho-
mem exclusivamente reservada a elas, corno se zona proibida às 
outras antropologias. Mas, no meio dessas procedências em que 
o homem parece dissolver-se, que parecem converter tudo nele 
em produto do mundo, e das quais nada nele se deve nem podeexcluir, no meio de todos os condicionamentos o homem percebe-
se corno pessoa e sujeito. Ao dizer que o homem é sujeito e pes-
soa, não estamos fazendo afirmação sobre determinada parte 
dele que pudesse vir a ser isolada, de tal forma que se pudessem 
excluir dela todas as outras antropologias regionais e ela pró-
pria viesse a se converter em antropologia regional. Que sempre 
se tenha em mente o caráter específico dessa experiência e, com 
isso, também o caráter específico da maneira concreta em que 
ela é exercida. O homem pode passar por alto do que ele mes-
mo é, ou melhor, pode passar por alto do todo corno tal que 
ele também e sobretudo é, ou seja, o que ele experimenta verda-
deiramente pode também vir a ser reprimido. Não estamos en-
tendendo, aqui, repressão no sentido da psicologia profunda, mas 
no sentido muito mais geral e corrente do dia-a-dia. Urna pes-
soa pode não perceber e deixar de ver algo, mostrando-se desin-
teressada e deixando-o de lado, embora faça parte dela mesma. 
Pode não deixar que a experiência originária aflore. Por um la-
do, dela só podemos falar mediante palavras e conceitos, mas 
o que se diz não é bem o que está contido na linguagem corno 
tal. E também pode ocorrer que a pessoa não queira ou não possa 
traduzir em palavras e levar ao nível de sua objetivação concei-
tual essas experiências secretas e globais, que se mantêm como 
que caladas sem se anunciar em voz alta. 
42 
A essa altura de nossas reflexões ainda não podemos tratar 
dessa peculiaridade da autocompreensão do homem, a saber, do 
aspecto que lhe é próprio e pelo qual o que lhe é mais funda-
mental e originário e mais evidente pode também passar des-
percebido e pode ser reprimido. Basta aqui chamarmos a aten-
ção para a possibilidade de um não-querer-ter-por-verdadeiro 
existencial, para que o que diremos sobre a personalidade e sub-
jetividade do homem não venha a se deparar de início com ati-
tude de não querer ver. 
O homem experimenta-se, pois, como sujeito e pessoa pre-
cisamente à medida que se torna consciente de si como o pro-
duto do que lhe é radicalmente estranho. Essa dimensão, pela 
qual o homem também sabe acerca de sua procedência, não se 
pode explicar por essa procedência. Ao se analisar e reconstruir, 
ainda não se explica por esse processo que é ele mesmo quem 
faz essa análise e reconstrução e sabe disso. Precisamente por 
o homem perceber-se como realidade estranha, produzida e im-
posta a si; precisamente enquanto de antemão abre espaço livre 
a todas as possibilidades pensáveis de análise por parte das an-
tropologias empíricas, análise que reduz e dissolve o homem no 
que ele não é, o que ele faz mesmo quando essa análise ainda 
não se concluiu; precisamente enquanto o homem permite às suas 
antropologias empíricas setoriais que continuem explicando-o, 
reduzindo-o e desmantelando-o e como que o reconstruindo na 
retorta do espírito, e no futuro talvez na realidade, precisamen-
te em tudo isso o homem está fazendo a experiência que é sujei-
to e pessoa. Mas pode passar por alto e deixar de ver esse fato, 
pois que este lhe vem ao encontro aparentemente no seu contrário. 
Ao se colocar analiticamente em questão e abrir-se para o 
horizonte ilimitado de semelhante questionamento, o homem já 
transcendeu a si mesmo, bem como todas as dimensões pensá-
veis dessa análise ou de auto-reconstrução empírica de si. Ao 
fazê-lo, afirma-se como quem é mais do que a soma desses com-
ponentes analisáveis de sua realidade. Precisamente essa cons-
ciência de si, esse confronto com a totalidade de todos os seus 
condicionamentos, o fato mesmo de estar condicionado eviden-
ciam que ele é mais do que a soma dos seus fatores. Pois um 
sistema finito de elementos singulares e distinguíveis entre si não 
pode ter a relação para consigo mesmo tal qual o homem pos-
sui para consigo mesmo na experiência de seu condicionamen-
to múltiplo e de sua redutibilidade. Um sistema finito não pode 
43 
situar-se perante si mesmo como um todo. Desde seu ponto de 
partida, que em última análise lhe é imposto, o sistema finito 
adquire relação para com determinada operação (ainda que es-
sa possa consistir em apenas conservar o próprio sistema), mas 
não possui relação com o seu próprio ponto de partida. Não se 
interroga sobre si mesmo. Não é sujeito. A experiência de radi-
cal problematicidade e a possibilidade de colocar-se em questão 
da parte do homem são coisas que um sistema meramente fini-
to não pode levar a cabo. 
De nosso pressuposto segue evidentemente que este ponto 
de vista acima e fora do sistema dos dados empiricamente de-
termináveis em particular não se pode entender como elemento 
singular que se possa separar da realidade empírica do homem, 
da forma como a teologia escolástica gosta de fazê-lo - de ma-
neira pedagogicamente compreensível, mas em última análise pri-
mitiva -, ao falar do espírito ou da alma imortal do homem 
como se o que se significa com isso fosse um dos elementos dentro 
da totalidade do homem que se pudesse achar imediatamente 
e pudesse ser isolado em si, empiricamente distinto em sua pu-
reza do resto do homem. Se não compartilhamos dessa visão 
dualista ingênua, procedente da filosofia grega, que em última 
análise não é cristã, mas, pelo contrário, percebemos que o ho-
mem uno, como uno, já se confrontou com uma pergunta que 
já ultrapassou todas as possíveis respostas empíricas setoriais..__ 
não no conteúdo positivo, mas na radicalidade da questão -, 
então estamos fazendo a experiência de que o homem é sujeito 
e subjetividade, que é suporte precisamente dessas objetivida-
des plurais com que tem que se haver as ciências empíricas hu-
manas. A capacidade do homem de se relacionar consigo mes-
mo, o fato de ter-se a haver consigo mesmo, não constitui ne-
nhum elemento nele lado a lado de outros elementos nem pode 
constituir, antes é a realidade que constitui o homem em seu ca-
ráter de sujeito enquanto distinto de coisas, que, sem dúvida, 
também existem nele. 
Ser pessoa significa, então, a autoposse de um sujeito co-
mo tal em relação consciente e livre para com o todo. Essa rela-
ção é a condição de possibilidade e o horizonte prévio para que 
o homem, em sua experiência particular e suas ciências empíri-
cas, possa haver-se consigo mesmo em sua unidade e totalida-
de. Pois o fato de o homem ser responsável pelo todo de si mes-
mo é a condição de sua auto-experiência empírica, fato que não 
44 
pode derivar-se inteiramente dessa experiência e de suas objeti-
vidades. Inclusive quando o homem pretendesse desresponsabi-
lizar-se de si, afirmando que seria um ser totalmente condicio-
nado e determinado por fatores externos, ele seria o sujeito que 
o estaria fazendo, sabendo e querendo fazê-lo. Ele seria o sujei-
to que abarcaria a soma de possíveis elementos de semelhante 
declaração, e, assim, se evidenciaria como quem é distinto do 
produto posterior de tais elementos singulares. Na verdade, po-
demos falar de sistemas finitos que se autodirigem e assim man-
têm, em certo sentido, relação para consigo mesmos. Mas um 
sistema que se autodirige assim tem apenas possibilidade finita 
de auto-regular-se. Esse auto-regular-se é um dos momentos do 
próprio sistema e não pode, portanto, explicar o fato de o ho-
mem situar-se perante si como todo, questionar-se e depois vol-
tar a questionar o próprio questionar. 
A consciência que o homem possui de si, consciência na 
qual ele se coloca perante o seu próprio sistema com todas as 
suas possibilidades particulares presentes e futuras, e, sendo as-
sim, coloca-se perante si mesmo em sua totalidade, questiona-
se e dessa maneira se ultrapassa e transcende, essa consciência 
e presença a si mesmo do homem não se pode explicar com a 
ajuda do modelo de representação de um sistema múltiplo auto-
regulado, como no fundo devem fazer por sua própria nature-
za todas as antropologias setoriais. Essa subjetividade mesma 
é dado existencial irredutível que acompanha toda experiência 
particular como suacondição apriorística. Sua experiência é, 
em sentido ainda inteiramente não-filosófico, experiência trans-
cendental. Precisamente em virtude da transcendentalidade dessa 
experiência, o que entendemos por personalidade e subjetivi-
dade sempre se subtrai a um acesso imediato, iso!ado e seto-
rialmente delimitado. Pois o objeto dessa experiência transcen-
dental não surge em seu ser próprio lá onde o homem trata ob-
jetivamente com algo de particular e delimitável, mas lá onde 
ele neste trato é precisamente sujeito e não está tratando de um 
"sujeito" objetivado diante de si. Afirmar, pois, que o homem 
é sujeito e pessoa significa primeiramente que o homem é algo 
de irredutível, que não se pode produzir completamente a par-
tir de outros elementos a nós disponíveis. Ele é o ser que está 
sempre entregue à responsabilidade por si mesmo. Ao se expli-
car, analisar e reduzir à pluralidade de suas origens, ele está a 
se afirmar como o sujeito que está fazendo tudo isso, e aí ele 
45 
se percebe como realidade anterior e mais originária do que es-
sa pluralidade mesma. 
3. O HOMEM COMO SER DE TRANSCENDÊNCIA 
O que vem a ser com mais exatidão a subjetividade, de que 
o homem faz experiência, torna-se mais claro pela afirmação 
de que o homem é ser de transcendência. 
A estrutura antecipativa do conhecimento 
Apesar da finitude do seu sistema, o homem está sempre 
situado perante si mesmo como um todo. Ele pode questionar 
tudo. Em sua abertura a tudo, tudo o que se pode expressar po-
de transformar-se pelo menos em pergunta para ele. Ao afirmar 
a possibilidade de horizonte meramente finito de questionamento, 
essa possibilidade já se vê ultrapassada e o homem se manifesta 
como ser de horizonte infinito. Ao experimentar essa finitude 
radicalmente, ele está atingindo para além dessa finitude e 
percebe-se como ser transcendente, como espírito. O horizonte 
infinito do questionar humano é experimentado como horizon-
te que sempre se retira para mais longe quanto mais respostas 
o homem é capaz de dar-se. 
O homem pode tentar fugir da terrível infinitude, em que 
como interrogante se vê metido. Pode, por medo e inquietude, 
evadir-se e refugiar-se no que lhe é familiar e cotidiano. Mas a 
infinitude a que se sente exposto perpassará também por seu agir 
do dia-a-dia. Ele permanece basicamente sempre a caminho. Toda 
meta que ele possa prefixar-se no pensar e no agir vem a ser sem-
pre de novo relativi:2;ada, será sempre provisoriedade e etapa. Toda 
resposta sempre volta a ser o começo de nova pergunta. O ho-
mem percebe-se como a possibilidade infinita porque, na práti-
ca. e teoria, necessariamente coloca em questão todo resultado 
obtido, sempre volta a colocar esse resultado contra o horizonte 
mais amplo que ímprevisivelmente se abre à sua frente. O ho-
mem é o espírito que se percebe como tal à medida que não se 
experimenta como espírito puro. O homem não é a infinitude 
não-questionada, dada sem problematizações, da realidade. Ele 
é a pergunta que se levanta perante ele, vazia, mas de forma real 
e inevitável, e que ele nunca pode superar nem dar resposta ade-
quadamente. 
46 
A possibilidade de fugir à experiência de transcendência 
É claro que o homem pode muito bem sacudir os ombros 
e ignorar essa experiência de transcendência. Pode passar a se 
dedicar por inteiro ao seu mundo concreto, ao seu trabalho, à 
sua ocupação categorial no espaço e no tempo, ao serviço de 
seu sistema, acionando comandos e interruptores de sua reali-
dade. Essa possibilidade pode vir a ocorrer de três maneiras: 
1. A maioria o fará de maneira ingênua. As pessoas vive-
rão como que à distância de si mesmas, naquela parte concreta 
de suas vidas e do mundo que as cerca e pode ser controlado 
e manipulado. Terão muito a fazer aí e, por certo, muita coisa 
interessante e importante. E, ao lhes ocorrer a idéia de algo que 
possa ultrapassar os limites deste mundo, sempre haverão de dizer 
que não vale a pena esquentar a cabeça com esse tipo de coisas. 
2. Fuga semelhante a essa questão e resistência ao caráter 
de transcendência do homem pode vir a ocorrer também na de-
cisão de assumir sobre si a existência categorial e suas tarefas, 
reconhecendo-se o fato de que tudo está envolto por questão de 
ultimidade. É possível que a pessoa deixe essa questão ficar na 
fase de questão. Crê poder suportá-la, silenciosamente, com ce-
ticismo eventualmente razoável. Mas, ao declarar que não se pode 
responder a essa questão, a pessoa está a admitir que em última 
análise essa questão não pode ser descartada. 
3. Há, talvez, uma categorialidade desesperada na existên-
cia humana. A pessoa faz negócios, lê, irrita-se, trabalha, pes-
quisa, consegue algo, ganha dinheiro. E, em desespero último, 
talvez não admitido, diz-se a si mesma que o todo como todo 
carece de qualquer sentido e que se faria bem em abafar a per-
gunta pelo sentido do todo, rechaçando-a como pergunta que 
não pode vir a responder e,. em razão disso, sem sentido. 
Jamais se pode saber claramente qual dessas três possibili-
dades ocorre eventualmente no caso de cada pessoa em concreto. 
A pré-apreensão do ser 
O homem é o ser de transcendência à medida que todo o 
seu conhecimento e ato de conhecer se fundam na pré-apreensão 
do "ser" em geral, em um saber atemático mas sempre presente 
acerca da infinitude da realidade (assim podemos dizer, já ago-
47 
ra com certa ousadia). Pressupõe-se que essa pré-apreensão in-
finita não se funda no fato de o homem poder pré-apreender 
o nada como tal. Devemos pressupor isso, pois que o nada não 
funda nada. O nada não pode ser a meta dessa pré-apreensão, 
não pode ser que atrai, arrasta e movimenta a realidade que 
o homem percebe como sua vida real e não como um nada. 
É também certo que o homem experimenta o vazio, a fragilida-
de interna e - se assim o quisermos chamar para não bagatelizá-
lo - a absurdidade do que se lhe antolha. Mas experimenta 
também a esperança, o movimento para a liberdade que liber-
ta, a responsabilidade que impõe cargas reais, mas também as 
abençoa. 
Se o homem, porém, faz a experiência de ambas as coisas 
e, no entanto, sua experiência é una, experiência em que todos 
os movimentos e experiências singulares são sustentados por mo-
vimento último e primordial, se ele não pode ser um gnóstico 
que reconhece duas realidades primordiais últimas ou admite um 
dualismo no próprio fundamento último e primordial do ser, 
se ele não pode admitir esse gnosticismo porque contradiz à uni-
dade de sua experiência, então resta apenas uma possibilidade: 
o homem pode entender que o ser absoluto estabelece limites 
e fronteiras fora de si, e que ele pode querer algo que seja limi-
tado. Mas lógica e existencialmente não pode pensar que o mo-
vimento de esperança e o desejo em aberto, que sente realmen-
te, não passam de louco engano aliciador. Não pode pensar que 
o todo funda-se ultimamente em um nada vazio, se é que não 
atribui de fato nenhum sentido absolutamente a essa palavra "na-
da" e não a emprega como mera cifra da ansiedade realmente 
existencial que na verdade sente. 
Portanto o que move a pré-apreensão do homem em sua 
absoluta amplidão de transcendência não pode ser o nada, o vazio 
puro e simples. Pois careceria absolutamente de sentido afirmar 
isso do nada. Mas uma vez que, por outro lado, essa pré-
apreensão como mera pergunta não se explica a si mesma, pre-
cisa ser entendida como ação daquilo para que o homem está 
aberto, a saber, do ser puro e simples. Mas o movimento da trans-
cendência não é o sujeito a criar e constituir o seu próprio espa-
ço ilimitado, como se tivesse poder absoluto sobre o ser, antes 
consiste no surgir espontâneo do horizonte infinito do ser. On-
de quer o homem se experimenta em sua transcendência como 
interrogante, como inquietado por esse surgir do ser, como ex-
48 
posto ao inefável, não pode conceber-se como sujeito no senti-
do de sujeito absoluto, mas somente no sentido de alguém que 
recebe o ser e, em última instância,graça. "Graça", na presente 
referência, significa a liberdade do fundamento do ser que dá 
o ser ao homem, liberdade de que o homem faz experiência em 
sua finitude e contingência, e significa também o que denomi-
namos "graça" em sentido teológico mais estrito. 
A pré-apreensão do ser constitui a pessoa 
À medida que o homem se caracteriza por essa transcen-
dência, confronta-se consigo mesmo, é responsável por si, e as-
sim é pessoa e sujeito. Pois unicamente no face-a-face com a in-
finitude do ser, que se desvela e se esquiva, é que um ente se 
situa em uma posição e sobre um ponto de apoio desde onde 
pode assumir-se e responsabilizar-se por si. Um sistema finito 
como tal só pode perceber-se como finito se em razão de sua 
origem existe como ele mesmo pelo fato de, enquanto tal sujei-
to consciente, proceder de algo diverso dele que não é ele pró-
prio e que por sua vez não é apenas sistema particular, antes 
a unidade e plenitude originária, que tudo antecipa em si, de 
todos os sistemas pensáveis e de todos os sujeitos singulares em 
sua multiplicidade. Mais tarde pretendemos demonstrar que é 
a partir disso que podemos obter intuição originária e transcen-
dental do que chamamos de condição de criatura. 
Evidente que essa experiência transcendental da transcen-
dência humana não é a experiência de determinado objeto sin-
gular que se experimenta ao lado de outras coisas, mas é dispo-
sição fundamental que precede e compenetra toda experiência 
objetiva. É preciso que sempre se volte a frisar que a transcen-
dência, como a entendemos aqui, não é o "conceito" tematiza-
do da transcendência, conceito em que se reflete objetivamente 
sobre ela, mas é aquela abertura apriorística do sujeito para o 
ser em geral, que se dá precisamente quando a pessoa se percebe 
envolvida na multiplicidade das preocupações, ocupações, temo-
res e esperanças no mundo do seu dia-a-dia. A transcendência 
propriamente dita está de certa forma como que no fundo do qua-
dro em que o homem vive, na origem indispensável do seu viver 
e conhecer. E essa transcendência propriamente dita nunca é cap-
tada pela reflexão metafísica totalmente e em sua pureza, ou se-
49 
ja, de maneira não objetivada. Quando muito dela se pode apro-
ximar, se é que se pode, de maneira assintótica na experiência 
mística e talvez na experiência da solidão final e na disponibili-
dade para a morte. Essa experiência original da transcendência, 
que se distingue do discurso filosófico sobre ela, normalmente 
só pode dar-se na mediação da objetividade categorial do ho-
mem ou do mundo que o cerca, razão pela qual essa experiência 
transcendental pode passar despercebida. Ela se faz presente de 
certa forma apenas como ingrediente, por assim dizer, oculto. Mas 
o homem é e continua sendo ser de transcendência, ou seja, aquele 
ente ao qual a infinitude indisponível e silenciosa da realidade 
se apresenta continuamente como mistério. Assim o homem tor-
na-se pura abertura para este mistério e precisamente assim põe-
se como pessoa e sujeito perante si mesmo. 
4. O HOMEM COMO SER DE RESPONSABILIDADE E LIBERDADE 
A liberdade não é dado particular 
Enquanto o homem por sua transcendência se encontra em 
abertura total, é também responsável por si. Está entregue a si 
não só quando conhece, mas também quando age. E neste estar 
entregue a si mesmo percebe-se como responsável e livre. O que 
dissemos antes acerca da relação entre o ser pessoa do homem 
e sua origem e determinações intramundanas vale aqui de ma-
neira especial. Em enfoque originário, a responsabilidade e a li-
berdade do homem não constituem dado particular empírico na 
realidade do homem que se possam justapor a outros. Se uma 
psicologia empírica, quanto mais radical, tanto menos liberda-
de é capaz de descobrir, no fundo se trata de algo conseqüente. 
A psicologia escolástica tradicional, ao querer descobrir a liber-
dade imediatamente como dado concreto particular no seio da 
transcendentalidade e personalidade humana, mostra boas in-
tenções, mas está a fazer algo que no fundo contradiz à própria 
natureza da liberdade. E não é de admirar que encontre oposi-
ção da parte da psicologia empírica. Uma psicologia empírica 
deve sempre reconduzir um fenômeno a outro e, sendo assim, 
é claro que não pode descobrir liberdade alguma. Inclusive quan-
do dizemos em nossa vida cotidiana que em tal ou qual ocasião 
fomos livres e em outra possivelmente não o fomos, não se tra-
ta de fenômeno setorial que se possa encontrar claramente no 
50 
espaço e tempo lado a lado com outros fenômenos, mas se trata 
na melhor das hipóteses da aplicação e concretização de expe-
riência transcendental de liberdade, algo bem diverso da expe-
riência com que se ocupam as ciências particulares e setoriais. 
Em seu princípio e origem, a responsabilidade e a liberda-
de do homem não constituem dado empírico particular ao lado 
de outros na realidade do homem. Razão pela qual as ciências 
empíricas antropológicas, entre as quais se situa a psicologia, 
podem dispensar-se de tratar do problema da liberdade. A ques-
tão da liberdade e responsabilidade com certeza é tema do Di-
reito e da filosofia do Direito. E também não se pode contestar 
que as noções de liberdade, responsabilidade, imputabilidade ou 
não-imputabilidade, quer na vida cotidiana normal do homem, 
quer nos negócios da vida civil jurídica, tenham algo a ver com 
o que queremos aqui dizer. Mas, por outro lado, também é cer-
to que, caso não ocorresse essa experiência transcendental da sub-
jetividade e liberdade do homem, também não poderia haver essa 
liberdade no âmbito da experiência categorial humana, quer na 
vida civil quer na vida pessoal. Mas a experiência propriamente 
transcendental da liberdade não precisa ser explicada dessa for-
ma primitiva como a experiência de dado que se possa desco-
brir diretamente dentro da consciência humana, porque em to-
das essas questões "eu" já sempre me percebo como o sujeito 
que sempre está entregue a si mesmo. É nessa experiência que 
algo como a real subjetividade e a responsabilidade por si mes-
mo, não só no conhecer, mas também no agir, está dado como 
experiência transcendental apriorística de minha liberdade. É so-
mente dessa maneira que sei que sou livre e responsável por mim 
mesmo, mesmo quando ponho isso em dúvida, quando o ques-
tiono e não posso descobri-lo como dado particular de minha 
experiência categorial no espaço e tempo. 
A mediação concreta da liberdade 
O que estamos a chamar de liberdade transcendental, ou 
seja, essa responsabilidade última da pessoa por si mesma, não 
só no conhecer e, portanto, não só na sua autoconsciência, mas 
também na auto-realização de si, em última análise, não pode 
permanecer oculta em disposição interior, pelo menos não para 
genuína antropologia que considera o homem concretamente e 
em sua unidade real. A liberdade é sempre mediada pela reali-
51 
dade concreta do espaço e tempo, pela corporalidade e pela his-
tória do homem. Uma liberdade que não pudesse surgir no mun-
do certamente não seria liberdade que nos fosse de algum inte-
resse. Nem seria liberdade como o cristianismo a entende. Mas 
sempre deveremos distinguir entre a liberdade em suas origens 
e a liberdade enquanto se insere no mundo e na história concre-
ta e, assim, fica mediada para si mesma. Por essa polaridade 
entre a liberdade em suas origens e a liberdade em sua objetiva-
ção categorial, a liberdade que reflete sobre si está sempre e ne-
cessariamente oculta a si mesma, porque ela só pode refletir di-
retamente sobre sua objetivação. E essa objetivação sempre per-
manece ambivalente. Neste sentido, podemos distinguir entre li-
berdade originante e liberdade originada, entre liberdade em sua 
fonte e liberdade em sua encarnação concreta no mundo. É cla-
ro que essas dimensões não constituem duas coisas que se pos-
sam separar, antes dois momentos que integram a realidade única 
da liberdade. 
Se as antropologias empíricas constatam elementos parti-
cularesde diversa natureza no homem, reconhecem e estabele-
cem nexos causais ou funcionais entre esses elementos particu-
lares, não podendo então constatar nenhuma liberdade como da-
do particular dentro da realidade que estão a estudar, nada dis-
so justifica que a liberdade e a responsabilidade propriamente 
ditas do homem se sintam ameaçadas. A questão se um dado 
empírico concreto e singular na história de uma pessoa ou da 
humanidade possa interpretar-se como produto e encarnação des-
sa liberdade originária, ou se eventualmente em determinado caso 
particular ocorra o contrário, é questão que ainda não ficou de-
cidida por nossas considerações e, com base em dados teológi-
cos, não se pode decidir de forma definitiva por urna pessoa que 
ainda se encontra no curso de sua própria história. Pois essa li-
berdade última transcendental, enquanto liberdade concretamente 
posta e em suas origens, por sua própria natureza se subtrai a 
urna reflexão inequívoca, sobretudo no que se refere à presença 
ou ausência dessa liberdade na história de outras pessoas. 
Responsabilidade e liberdade 
como realidades da experiência transcendental 
Da mesma forma que a subjetividade e a personalidade, tam-
bém a responsabilidade e a liberdade são realidades da experiência 
52 
transcendental, ou seja, são experiências em que um sujeito se 
percebe como tal, e, portanto, não lá onde ele vem a ser objeti-
vado em ulterior reflexão científica. Quando o sujeito se perce-
be como sujeito, a saber, como o ente que, por sua transcendên-
cia, possui originária e indissolúvel unidade e presença a si mes-
mo perante o ser, quando este sujeito experimenta sua ação co-
mo ação subjetiva (embora não a possa submeter à reflexão na 
mesma maneira), ele está fazendo a experiência da responsabi-
lidade e liberdade no fundo de sua existência. Correspondendo 
à natureza do homem enquanto natureza corpórea inserida no 
mundo, essa liberdade sempre se exerce no meio de multiplici-
dade de atos concretos realizados na diversidade de espaço e tem-
po, no seio de multiplicidade de envolvimentos na história e na 
sociedade. Tudo isso é evidente. Essa ação livre não ocorre so-
mente nas profundezas ocultas da pessoa, fora do mundo e da 
história. Não obstante, a liberdade propriamente dita do homem 
continua sendo una, pois constitui peculiaridade transcenden-
tal do sujeito uno como tal. Podemos, pois, dizer sempre em certo 
sentido: porque e à medida que me percebo como sujeito e pes-
soa, percebo-me como ser livre, dotado de uma liberdade que 
não se refere primariamente a uma ocorrência psíquica isolada, 
mas de uma liberdade que se refere a um sujeito inteiro e uno 
na unidade de sua realização em toda a sua existência. 
A maneira como isso se realiza no espaço e tempo de toda 
uma existência histórica e na variada concretude da vida huma-
na, é questão que não podemos decidir exatamente. Essa liber-
dade não é, pois, faculdade neutra que a pessoa possa ter e car-
regar consigo como algo de distinto de si, mas é propriamente 
básica do existente pessoal, que na ação temporal, já aconteci-
da ou por acontecer, experimenta-se como autopossessão, co-
mo realidade porque é responsável e deve ser responsabilizado, 
até que a resposta pessoal do sujeito àquela infinita incompreen-
sibilidade seja dada por este ser em sua transcendência e como 
tal seja ela acolhida ou rejeitada. 
Assim como o homem pode evadir-se de sua subjetividade, 
assim também pode evadir-se de sua responsabilidade e liberda-
de, passando, assim, a se interpretar como produto do que lhe 
é estranho. Mas mesmo essa auto-interpretação que fazemos, e 
que não devemos confundir com o seu conteúdo, é ato do sujei-
to como tal que se nega a si mesmo ou interpreta sua liberdade 
como condenação à arbitrariedade vazia do que lhe é estranho. 
53 
Agindo assim, uma vez mais está a se comportar como sujeito 
livre e se afirma uma vez mais no "não" a si mesmo. Em outros 
termos: na liberdade está sempre em jogo o homem como tal 
e como todo. O objeto da liberdade em seu sentido originário 
é o próprio sujeito, e todos os objetos com que ele trata na ex-
periência do mundo que o cerca não passam de objetos da li-
berdade, à medida que medeiam este sujeito finito situado no 
espaço e tempo a si próprio. Quando se entende realmente a li-
berdade, compreende-se que ela não é a faculdade de fazer isto 
ou aquilo, mas a faculdade de decidir sobre si mesmo e construir-
se a si mesmo. 
É claro que não se deve entender isso, é preciso que insista-
mos, como se o sujeito estivesse situado fora da história, da so-
ciedade e do mundo, mas se trata da formalidade sob a qual se 
deve pensar e expressar a essência da liberdade. A interpretação 
do conteúdo do que assim dizemos formalmente é, uma vez mais, 
coisa diversa. Se alguém disser que o homem sempre se experi-
menta como determinado e controlado pelo que lhe é estranho, 
como funcional e dependente, como analisável e descomponí-
vel em antecedentes e conseqüentes, dever-se-á então dizer: este 
sujeito, que sabe disso, é ao mesmo tempo e sempre o sujeito 
responsável, que é desafiado a dizer e fazer o que deve fazer com 
essa dependência absoluta, com essa estranheza e com essa pos-
sibilidade de ser decomposto - é desafiado a tomar posição pe-
rante este fato, quer amaldiçoando-o quer aceitando-o, quer per-
manecendo cético quer entregando-se ao desespero, ou de qual-
quer forma que seja. Mas inclusive quando a pessoa renuncias-
se a si mesma, abandonando-se ao que a seu respeito dizem as 
antropologias empíricas, não deixaria de estar entregue a si mes-
ma. Ela não escapa à sua liberdade, e neste caso a única per-
gunta a fazer seria acerca da maneira como se interpreta a si mes-
ma (o que, se note, uma vez mais ocorre livremente). 
5. A QUESTÃO EXISTENCIAL PESSOAL 
COMO QUESTÃO DA SALVAÇÃO 
O enfoque teológico e antropológico 
para compreender a "salvação" 
À medida que o homem como sujeito livre responde por 
si mesmo, à medida que está entregue a si mesmo o objeto do 
54 
ato de sua liberdade propriamente dita, ato que é uno em suas 
origens e afeta o todo de sua existência humana, podemos dizer 
que o homem tem uma salvação e que o problema propriamen-
te dito da existência pessoal é um problema de salvação. Quan-
do não se vê o ponto de partida para compreender a salvação 
originariamente no sujeito e na própria natureza da liberdade, 
a salvação só pode parecer algo estranho e cheirar mitologia. 
Mas no fundo as coisas não são assim, pois o genuíno conceito 
teológico de salvação não se refere a uma salvação futura que 
se precipita como que inesperadamente sobre a pessoa como se 
coisa vinda de fora, felicitando-a ou, no caso de perdição, infe-
licitando-a. Também não significa algo que se atribua à pessoa 
somente com base em juízo moral. Pelo contrário, refere-se à 
definitividade da verdadeira autocompreensão e da verdadeira 
auto-realização da pessoa em liberdade diante de Deus, mediante 
o seu próprio ser autêntico, tal como se lhe manifesta e se lhe 
oferece na escolha da transcendência interpretada livremente. A 
eternidade da pessoa humana somente se pode entender como 
a liberdade autêntica e definitiva que maturou para além do tem-
po. Toda outra coisa só pode ser seguida de mais tempo e não 
eternidade, que não representa o contrário do tempo, mas antes 
a consumação do tempo da liberdade. 
Evidentemente, tendo-se isso em vista, uma de nossas tare-
fas mais importantes e difíceis consiste no renovado esforço no 
sentido de esclarecer que o que o cristianismo diz sobre o ho-
mem, apesar de suas afirmações sobre a história da salvação, 
refere-se ao homem sempre na originariedade primeira do seu 
ser, em sua natureza transcendental. Conseqüentemente, em úl-
tima instância só se pode falar acerca disso de uma maneira em 
que essa transcendentalidade da questão, que é o homem em seu 
transcender para o mistério incompreensível, não se entenda er-
roneamente de maneira categorial. 
Salvação na históriaO homem, porém, enquanto ser pessoal que goza de trans-
cendência e liberdade, é ao mesmo tempo um ser inserido no 
mundo, no tempo e na história. Essa afirmação é fundamental 
para descrever os pressupostos que a mensagem cristã faz acer-
ca do homem. Pois, se o âmbito da transcendência e da salva-
ção não se inserisse de início na própria história do homem e 
55 
no seu existir no mundo e no tempo, a questão da salvação e 
a mensagem da salvação não poderiam acontecer historicamente 
nem se referir a uma realidade histórica. 
Por outro lado não precisamos distinguir aqui com exati-
dão conceitua! os termos mundanidade, temporalidade e histo-
ricidade, sobretudo porque o conceito de historicidade implica 
os outros dois como momentos em si. Mas o que se significa 
com esses conceitos e é decisivo para interpretar corretamente 
o cristianismo é o seguinte: essa mundanidade, temporalidade e 
historicidade são dimensões presentes no homem, dimensões que 
ele não só também tenha - justapostas e acrescentadas à sua 
personalidade livre -, mas, pelo contrário, são dimensões ine-
rentes à própria subjetividade livre da pessoa como tal. O ho-
mem não é só também ser vivo biológico e social, que exerce 
essas suas propriedades no tempo, mas sua subjetividade e sua 
livre auto-interpretação pessoal acontece precisamente na e me-
diante a sua mundanidade, temporalidade e historicidade, ou me-
lhor: no e mediante o mundo, o tempo e a história. Não se pode 
responder à questão da salvação prescindindo-se da historicida-
de e da natureza social do homem. A transcendentalidade e a 
liberdade exercem-se no interior da história. Inclusive a Histo-
rie (relato de fatos) não deixa de ser Geschichte (história inter-
pretada), e, sendo assim, é também já auto-compreensão do ho-
mem a se realizar reflexamente. O homem possui sua essência 
eterna como antecipada e entregue a ele em sua liberdade e re-
flexão, à medida que experimenta, sofre e atua sua história. 
A historicidade designa aquela constituição básica e pró-
pria do homem pela qual está situado no tempo precisamente 
como sujeito livre, e pela qual um mundo lhe está à disposição, 
mundo que ele deve criar e sofrer na liberdade, assumindo-o em 
ambas as alternativas. A mundanidade do homem, seu perma-
nente estar entregue à alteridade de um mundo a ele pré-existente 
e imposto como mundo que o abarca e onde convive com ou-
tros, constitui momentos internos deste sujeito mesmo, que de-
ve entender e realizar-se na liberdade, mas que precisamente as-
sim se torna algo de eternamente válido para este sujeito. O ho-
mem como sujeito não veio parar casualmente neste mundo ma-
terial e temporal como mundo que lhe fosse estranho e contra-
ditório a ele como espírito, mas, antes, a própria auto-alienação 
do sujeito no mundo constitui precisamente a maneira pela qual 
o sujeito se acha a si mesmo e se afirma de forma definitiva. 
56 
O tempo, o mundo e a história medeiam o sujeito para si pró-
prio e para aquela autopossessão imediata e livre, em vista da 
qual está constituído o sujeito pessoal e para a qual está já sem-
pre antecipativamente orientado. 
Se a historicidade do homem - e, em conseqüência, tam-
bém sua história concreta - é dimensão intrínseca e constituti-
va do sujeito espiritual e livre, o problema da salvação, enquan-
to problema que se refere ao sujeito uno e inteiro em sua liber-
dade, não pode deixar de lado a história. É na história que ele 
deve realizar sua salvação, à medida que a encontra ofertada na 
história e nela a acolhe. Se a historicidade é um existencial do 
próprio sujeito, deve haver história da salvação e da não-salvação, 
pois o problema da salvação é uma proposta à liberdade, ou vice-
versa: o que vem a significar o problema da salvação só se pode 
entender a partir dessa natureza da liberdade. Por isso a histó-
ria da salvação e a história em geral devem em última instância 
ser coexistentes, mas, afirmando isso, não queremos excluir ge-
nuína diferença entre as duas. Se o sujeito da salvação é históri-
co, a própria história é a história dessa salvação - ainda que 
ocultamente e sempre a caminho de sua última e definitiva in-
terpretação. Se a intercomunicação entre os sujeitos espirituais 
na verdade, no amor e na sociedade faz parte da realização da 
própria existência, porque se trata de existência histórica, inte-
grando-a como constitutivo interno e não só como material ex-
terno, então a unidade da história de todos os homens e a uni-
dade de uma história da salvação é, de partida, propriedade trans-
cendental presente na história pessoal de todo indivíduo, e vice-
versa, precisamente porque se trata da história de muitos sujeitos. 
6. O HOMEM COMO SUJEIID SOB DISPOSIÇÃO ALHEIA 
Carregado pelo mistério 
Não obstante sua livre subjetividade, o homem experimenta-
se como ser dependente, disponível da parte de outros e do di-
verso dele, sob disposição sobre a qual não mais detém contro-
le. Primeiramente, já a sua constituição como sujeito transcen-
dental é movida e imantada pela referência ao ser como misté-
rio, referência que se desvela e se vela ao mesmo tempo. Já dis-
semos que sua transcendentalidade não se pode pensar como se 
fora transcendentalidade de um sujeito absoluto, o qual de cer-
57 
ta forma experimenta e possui a realidade desvelada corno sub-
metida ao seu próprio poder. Trata-se, antes, de referência que 
não se impõe por própria força, mas que se experimenta como 
posta e disposta por outrem, como fundada no abismo do mis-
tério inefável. 
O homem condicionado pelo mundo e pela história 
Além disso, o homem se experimenta, quer em sua ativida-
de exercida sobre o mundo quer em sua reflexão teórica objeti-
vante, como alguém a quem está de antemão designado um lu-
gar na história do mundo que o cerca e do mundo das relações 
humanas. Este lugar lhe vem designado anteriormente a qual-
quer opção de sua parte, embora apreenda e tenha consciência 
da transcendência mediante sua inserção neste mundo indispo-
nível. O homem sempre tem consciência de sµa finitude históri-
ca, de sua procedência histórica, da contingência de sua posi-
ção de partida. Com isso, porém, ele chega à situação muito pe-
culiar que precisamente caracteriza a essência do homem: ao fazer 
a experiência do seu condicionamento histórico corno tal, ele se 
situa em certo sentido para além deste condicionamento, mas, 
apesar disso, não pode deixá-lo atrás. Situar-se dessa forma en-
tre a finitude e a infinitude é o que constitui o homem e se ma-
nifesta uma vez mais no fato de que precisamente em sua trans-
cendência infinita e em sua liberdade o homem se experimenta 
como imposto a si e historicamente condicionado. 
O homem jamais é pura posição de sua própria liberdade, 
de uma liberdade que pudesse fazer pleno uso ou repelir tran-
qüilamente de si, em absoluta auto-suficiência, o material que 
em todo o caso está dado previamente nesta liberdade. Jamais 
esgota suas possibilidades no mundo e na história. Também não 
pode distanciar-se delas, refugiando-se na pura essencialidade 
de pretensa subjetividade ou interioridade, de sorte que pudesse 
dizer seriamente que se tornou independente da realidade pré-
dada do seu mundo e da sua história. O homem é, em sentido 
último e ineludível, paciente mesmo quando agente, e sua auto-
experiência apresenta-lhe sempre, em unidade não mais anali-
sável adequadamente de maneira objetiva, a síntese entre a pos-
sibilidade dada previamente à sua liberdade e a livre autodispo-
sição, entre o que. lhe é próprio e o que lhe é estranho, entre agir 
e sofrer, entre saber e fazer. À medida, pois, que a reflexão ja-
58 
mais pode controlar, dominar ou alcançar adequadamente o todo 
do fundamento, a partir do qual e em referência ao qual o su-
jeito se realiza, o homem é o ainda desconhecido para si, não 
só neste ou naquele campo de sua realidade conçr.::ta, mas é tam-
bém o sujeito que como tal está subtraídc· a si próprio no que 
se refere à sua origem e ao seu fim. Ele chegaà sua verdade au-
têntica precisamente enquanto com serenidade suporta e aceita 
esse caráter de indisponibilidade de sua própria realidade. 
Todos os conceitos que temos usado hão de se considerar 
aqui, ao nível de reflexão em que conscientemente nos situamos, 
apenas como evocações de uma compreensão da existência, a 
cuja luz o indivíduo, na tentativa concreta de realizar sua pró-
pria existência, deve experimentar ele próprio que no fundo é 
inevitável essa autocompreensão, quer opte por aceitá-la quer 
por protestar contra ela, por mais que os conceitos, as palavras 
e as sentenças não possam ou não pretendam alcançar de for-
ma realmente adequada o dado originário e autêntico da perso.: 
nalidade e liberdade, da subjetividade, da história e historicida-
de, do fato de o homem existir por disposição alheia. etc. 
SEGUNDA SEÇÃO 
O HOMEM PERANTE 
o· i\1ISTÉRIO ABSOLUTO 
Esta segunda seção apresenta uma reflexão conceitual so-
bre aquela experiência transcendental originária, que jamais se 
pode captar adequadamente por essa reflexão, experiência em 
que o homem se confronta com o mistério absoluto que chama-
mos "Deus". O que temos a dizer aqui já foi dito de maneira 
menos explícita na primeira seção. Se o homem é realmente su-
jeito, ou seja, um ser de transcendência, responsabilidade e li-
berdade, que como sujeito está entregue a si mesmo e em suas 
mãos e nas mãos do que lhe foge ao controle, então no fundo 
já dissemos, com isso, que o homem é o ser referido a Deus. 
E essa referência ao mistério absoluto está sem cessar sendo-lhe 
outorgada por este mistério como o fundamento e o conteúdo 
de sua essência. Ao entender o homem nessa chave de compreen-
são, é claro que não queremos dizer que ao usar o termo "Deus" 
nesta proposição saibamos o que o termo significa por outra fonte 
que não seja essa referência mesma ao mistério. A essa altura, 
teologia e antropologia necessariamente se encontram, tornando-
se uma só coisa. O homem só sabe explicitamente o que signifi-
ca "Deus" à medida que permite à sua transcendentalidade, si-
tuada além de tudo o que se possa identificar objetivamente, en-
trar no campo de sua consciência, acolhendo-a e refletindo ob-
jetivamente sobre o que já está dado com essa transcendentali-
dade. 
1. MEDITAÇÃO SOBRE A PALAVRA "DEUS" 
Esta palavra existe 
Convém começar com breve reflexão sobre a palavra "Deus". 
Não só porque, à diferença de mil outras experiências que po-
60 
dem obter audiência mesmo sem palavras, poderia ser que em 
nosso caso a palavra por si só seja capaz de nos dar acesso ao 
que ela significa, mas também por uma razão bem mais simples 
podemos e talvez devamos começar a reflexão sobre Deus com 
a própria palavra "Deus". Pois não temos nenhuma experiência 
de Deus do tipo da que temos de uma árvore, de outra pessoa 
humana ou de outras realidades externas que, embora talvez nun-
ca existam para nós simplesmente sem palavras, contudo por si 
mesmas forçam o nascimento de uma palavra sobre elas porque 
simplesmente surgem no âmbito de nossa experiência em deter-
minado ponto do espaço e tempo e, assim, por si mesmas, elas 
impulsionam imediatamente a que se lhes dê um nome. Pode-
mos, portanto, dizer que o que existe de mais simples e ineludí-
vel para o homem com respeito à questão de Deus é que a pala-
vra "Deus" existe em sua vida espiritual e intelectual. 
Não podemos fugir a este fato simples, ainda que ambíguo, 
perguntando-nos pela possibilidade de um mundo no futuro em 
que na humanidade não mais ocorresse o uso da palavra "Deus", 
em que não mais se levantasse a questão se essa palavra teria 
sentido e se se referiria a uma realidade fora dela mesma, ou 
se então ela não iria surgir uma vez mais como que em lugar 
totalmente novo, onde antes fora a origem dessa palavra volta-
ria a se fazer atual com o uso de um termo novo. Em nosso ca-
so, a palavra existe para nós em nosso meio cultural. E sua exis-
tência é prolongada até mesmo pelo ateu quando ele diz que não 
existe Deus e que algo assim como Deus carece absolutamente 
de sentido; quando ele funda um museu dos sem-Deus, erige o 
ateísmo como dogma de sua militância partidária ou concebe 
outras coisas do mesmo tipo. Também o ateu ajuda a palavra 
"Deus" a continuar a existir. Se quisesse evitá-lo, não só teria 
de esperar que na existência do homem e na linguagem da so-
ciedade essa palavra desaparecesse por completo, mas também 
deveria contribuir para este desaparecimento guardando com-
pleto silêncio, abstendo-se de se declarar ateu. Mas como pode-
ria fazê-lo se outros, com os quais deve falar, de cujo campo 
lingüístico não pode definitivamente emigrar, continuam a fa-
lar de Deus e se preocupam com essa palavra? 
O mero fato de existir essa palavra já merece reflexão. Quan-
do falamos dessa maneira de Deus, é claro que não nos referi-
mos somente à palavra "Gott", na língua alemã. Quer se diga 
"Gott", em alemão, ou "Deus", em latim e línguas neolatinas, 
61 
ou "El", nas línguas semitas, ou "Teotl", no mexicano antigo, 
aqui pouco importa. Seria, porém, um problema sumamente obs-
curo e difícil se com essas palavras tão diferentes se significa a 
mesma coisa ou a mesma pessoa, porque em cada um desses ca-
sos não se pode apontar simplesmente uma experiência comum 
da coisa significada independentemente da palavra mesma. Mas 
deixemos estar por ora este problema referente à sinonímia das 
muitas palavras para designar "Deus". 
Existem evidentemente também nomes de Deus ou de deu-
ses lá onde em culto politeísta se venera um panteão de divinda-
des, ou lá onde, como no Israel antigo, o Deus único e onipo-
tente recebe um nome próprio, o nome de Iahweh, porque se tem 
a persuasão de se ter feito experiências bem determinadas com 
ele na própria história, experiências que, sem prejuízo de sua in-
compreensibilidade e da impossibilidade de lhe dar nome ade-
quado, contudo o caracterizam e assim permitem atribuir-lhe um 
nome próprio. Mas aqui não falamos desses nomes de Deus no 
plural. 
Que significa a palavra "Deus" 
A palavra "Deus" existe. E este fato por si só merece refle-
xão. Todavia pelo menos a palavra não fala mais nada ou abso-
lutamente nada sobre Deus. Se assim foi sempre na história mais 
antiga da palavra, é outra questão. Em todo caso, a palavra 
"Deus" soa hoje em dia como nome próprio. É preciso buscar 
saber por outros meios o que ou quem ela significa. Na maioria 
das vezes não nos damos conta disso, mas assim é. Se chamás-
semos a Deus, por exemplo, de "Pai", ou "Senhor", ou "Celes-
tial", ou expressões semelhantes, como ocorre freqüentemente 
na história das religiões, a palavra estaria expressando por si mes-
ma algo da realidade significada em virtude das origens da pa-
lavra em outras experiências que já teríamos feito e em virtude 
do seu uso secular. Mas no caso da palavra "Deus", a coisa se 
nos apresenta de imediato como se a palavra nos mirasse como 
um rosto cego. Ela não fala nada sobre o que significa ou sobre 
a realidade significada, nem pode exercer sequer a função de ace-
no de mão que apontasse para algo que se encontrasse imedia-
tamente fora da palavra e, por isso, não precisa dizer nada so-
bre este algo, como quando dizemos "árvore", "mesa" ou "sol". 
62 
Contudo, a terrível falta de contornos desta palavra - pe-
rante a qual a primeira pergunta seria: que afinal quer dizer es-
ta palavra? - sem dúvida é bastante adequada para aquilo a 
que se refere, independentemente de já em sua origem a palavra 
ter ou não sido assim "sem rosto". Podemos também prescindir 
da questão se a história da palavra terá começado com outra 
forma da palavra. Em todo caso, a forma atual da palavra re-
flete aquilo a que a palavra se refere: o "Inefável", o "Sem-nome'', 
o que não aparece no mundo designado corno um componente 
dele; o "Silencioso" que está sempre aí e sempre pode passar 
despercebido e não ser ouvido, e, porque significa o todo em 
unidade e totalidade, pode ser descurado como absurdo; aquele 
que propriamentenão pode designar-se por nenhuma palavra 
mais, pois toda palavra adquire seus limites, sua ressonância e, 
em conseqüência, só é inteligível dentro de um campo de pala-
vras ou jogo de linguagem. Assim o que se tomou sem rosto, 
a saber, a palavra "Deus", que não mais se refere por si mesma 
a urna experiência singular definida, está em condições de nos 
falar corretamente de Deus, porquanto é a última palavra antes 
do calar em que, pelo desaparecimento de todo particular deno-
minável, temos de haver-nos com o todo fundante como tal. 
Terá futuro essa palavra? 
A palavra "Deus" existe. Voltamos ao ponto de partida de 
nossa reflexão, ou seja, ao simples fato de no mundo das pala-
vras, pelas quais construímos nosso mundo e sem as quais mes-
mo os assim chamados fatos não existem para nós, ocorre tam-
bém a palavra "Deus". Mesmo para o ateu, mesmo para o que 
declara que Deus está morto, mesmo para eles, como vimos, Deus 
existe pelo menos corno o que eles julgam dever declarar morto 
e cujo espantalho precisam exorcizar, como aquele cujo retomo 
temem. Somente quando já não existisse a palavra mesma, ou 
seja, quando nem sequer se houvesse de colocar a questão acer-
ca dela, somente então é que poderíamos ter sossego quanto a 
ela. Mas essa palavra continua a existir, tem presente. Terá tam-
bém futuro? Já Marx pensou que inclusive o ateísmo viria a de-
saparecer, ou seja, que a própria palavra "Deus" - em chave 
afirmativa ou negativa - deixaria de existir. É pensável este fu-
turo da palavra "Deus"? Tulvez essa pergunta careça de senti-
63 
do, posto que futuro genuíno é o que é radicalmente novo, que 
não pode ser objeto de cálculos antecipatórios. Ou essa pergun-
ta é meramente teórica e na realidade se transforma de imediato 
em interpelação à nossa liberdade no sentido de se amanhã con-
tinuaremos dizendo "Deus", como crentes ou como incrédulos, 
afirmando, negando ou duvidando, em mútuo desafio entre nós. 
O que quer possa ocorrer com a pergunta pelo futuro da pala-
vra "Deus", o crente só pode ver duas possibilidades e nenhuma 
outra mais: ou a palavra desaparecerá sem deixar traços e sem 
retorno, ou ela permanecerá como pergunta de uma ou outra 
maneira dirigida a todos. 
A realidade sem essa palavra 
Consideremos agora essas duas possibilidades. A palavra 
"Deus" terá desaparecido sem deixar pegadas e vestígios, sem 
deixar nenhuma brecha visível atrás de si, sem ser substituída 
por outra palavra que nos interpele da mesma forma. Doravan-
te a palavra "Deus" já não colocará sequer uma pergunta, ou 
melhor, a pergunta por excelência, porque as pessoas não que-
rem dizer ou ouvir essa palavra· como pergunta. Que ocorrerá 
então se levarmos a sério essa hipótese sobre o futuro? Nesse 
caso o homem não mais seria colocado diante do todo uno da 
realidade como tal nem diante do todo uno de sua existência co-
mo tal. Pois é exatamente isso que faz a palavra "Deus" e so-
mente ela, como quer que soe foneticamente ou como quer que 
esteja determinada em sua origem. Se realmente não existisse 
a palavra "Deus", também essas duas coisas não mais existiriam 
para o homem: o todo uno da realidade como tal e o todo uno 
da existência humana como tal na mútua compenetração dos 
dois aspectos. 
O homem se olvidaria de si mesmo simplesmente no meio 
da preocupação por tudo o que é parcial no seu mundo e na 
sua existência. Nesta suposição ele nunca se confrontaria com 
a totalidade do mundo e de si mesmo nem sequer na forma do 
desconcerto, do silêncio e da preocupação e ansiedade. Não mais 
notaria que não passa de um ente particular e não é o ser como 
tal. Não mais notaria que estaria pensando apenas perguntas se-
toriais e não a pergunta pelo próprio perguntar. Não mais nota-
ria que estaria apenas manipulando sem cessar, de diferentes ma-
neiras, aspectos diferentes de sua existência e nunca se confron-
64 
taria com sua existência em sua unidde e totalidade. O homem 
ficaria metido no mundo e em si e não mais realizaria aquele 
misterioso processo que ele mesmo é e no qual, por assim dizer, 
o todo do "sistema" que ele é juntamente com o seu mundo, 
e no qual reflete profundamente sobre si mesmo em sua unida-
de e totalidade, assume livremente responsabilidade por si e, as-
sim, transcende e alcança para além de si mesmo aquele misté-
rio silencioso que se parece com o nada, mas a partir do qual 
retorna a si e ao seu mundo, destacando-se de ambos e assu-
mindo ambos. 
O homem teria esquecido o todo e o seu fundamento, e ao 
mesmo tempo teria esquecido, se é que ainda se poderia falar 
assim, que se esqueceu. Que seria então? Só poderíamos dizer: 
ele deixaria de ser homem. Ter-se-ia reduzido a um animal en-
genhoso. Não podemos mais dizer tão facilmente hoje que já 
existe homem quando um vivente terrestre anda em posição ereta, 
acende fogo e transforma urna pedra em picareta. Só podemos 
dizer que existe homem quando um ser vivo, pensando, usando 
da palavra e agindo livremente, confronta-se com a totalidade 
do mundo e da existência como pergunta e problema, mesmo 
que, ao fazê-lo possa vir a se manter mudo e desconcertado pe-
rante esta pergunta sobre a unidade e a totalidade. Talvez seria 
até mesmo pensável - e quem pode saber disso com certeza? 
- a possibilidade de o gênero humano, mesmo mantendo urna 
sobrevivência biológica e técnico-racional, vir a morrer de mor-
te coletiva e voltar ao estado de térmitas ou a uma colônia de 
animais incrivelmente engenhosos. Seja ou não isso urna possi-
bilidade real, essa utopia não deveria espantar o crente que usa 
a palavra "Deus" corno se fosse desautorização de sua fé. Pois 
ele conhece urna consciência meramente biológica e, se assim 
a quisermos chamar, urna inteligência animal em que a pergun-
ta pelo todo como tal não surgiu e para a qual a palavra "Deus" 
não se tornou parte do seu destino, e não lhe é fácil dizer de 
que seja capaz essa inteligência biológica, sem entrar no desti-
no que se caracteriza pela palavra "Deus". Mas o homem existe 
propriamente como homem somente quando diz "Deus" pelo 
menos corno pergunta, pelo menos na forma de pergunta a que 
se responde negativamente. A morte absoluta da palavra "Deus", 
morte que apagasse até mesmo o seu passado, seria o sinal não 
mais ouvido por ninguém de que o homem mesmo morreu. Con-
forme já dissemos, talvez seja possível pensar essa morte coleti-
65 
3 - Curso Fundamental da Fé 
va. Isso não teria de ser mais extraordinário do que a morte in-
dividual do homem e do pecador. Onde não houvesse mais ne-
nhuma pergunta, onde a pergunta por excelência tivesse morri-
do e desaparecido, é claro que não se deveria dar mais nenhuma 
resposta e tampouco poderia haver resposta negativa. E este lu-
gar vazio, se o pensarmos como possibilidade, também não po-
deria tornar-se argumento de que o que se significa com a pala-
vra "Deus" não existe, pois então já se teria dado de novo uma 
resposta a essa pergunta, ainda que de forma negativa. Portan-
to o fato de que a pergunta pela morte da palavra "Deus" se 
possa levantar mostra uma vez mais que a palavra "Deus" con-
tinua sendo afirmada - mesmo quando se protesta contra ela. 
A palavra "Deus" permanece 
A segunda possibilidade a considerar é que a palavra "Deus" 
permanece. Cada indivíduo em sua existência intelectual e espi-
ritual vive da linguagem de todos. Faz suas experiências exis-
tenciais, por mais individuais e singulares sejam, somente na lín-
gua e com a ajuda da língua do meio em que vive, da qual não 
escapa, assumindo suas associações de palavras, suas perspecti-
vas e seus a prioris seletivos, inclusive quando protesta contra 
eles e quando ele próprio coopera na história sempre em aberto 
da língua. A pessoa necessariamente se deixará dizer algo pela 
língua, pois continua a falar com ela e somente com ela pode 
protestar contra ela. Não lhe podemos, portanto, negar razoa-
velmente uma confiança básica e última, a não ser que queira-
mos permanecer sempre calados ou nos contradizer a nós mes-
mos. Ora,a palavra "Deus" existe na língua em que e de que 
vivemos e assumimos responsavelmente nossa existência. 
Mas essa palavra não é palavra qualquer, meramente ca-
sual, que surge em determinado momento da língua e depois volta 
a desaparecer sem pegadas, como "flogístico" e outras palavras. 
Pois a palavra "Deus" coloca em questão o todo do mundo da 
língua em que a realidade fica presente para nós. Porque ela põe 
de imediato a pergunta acerca do todo da realidade em seu fun-
damento originário, e a pergunta pelo todo do mundo da lin-
guagem existe naquele singular paradoxo que é próprio precisa-
mente da língua porque a própria língua é parte do mundo, e 
ao mesmo tempo é o todo dele como conhecido. Falando de al-
go, a língua se expressa a si mesma como um todo e em relação 
66 
com seu fundamento, que lhe está distante, mas presente em sua 
distância. E para isso exatamente é que se aponta quando dize-
mos a palavra "Deus", ainda que com ela não signifiquemos sim-
plesmente o mesmo que com a língua como um todo, mas antes 
o fundamento que a possibilita. Mas precisamente por essa ra-
zão a palavra "Deus" não é palavra qualquer, mas é a palavra 
na qual a língua - ou seja, a consciência de si do mundo e da 
existência conjuntamente, que se expressa - apreende-se a si em 
seu fundamento. Esta palavra existe, faz parte de maneira espe-
cial e única de nosso mundo lingüítico e, assim sendo, do nosso 
mundo em geral. Ela mesma é uma realidade, e uma realidade 
inevitável para nós. Essa realidade pode estar presente clara ou 
obscuramente, falando em voz baixa ou alta, mas ela está aí. Pelo 
menos como pergunta. 
A palavra original que nos é imposta 
Neste momento e neste contexto não se trata ainda como 
reagimos a este evento da palavra, se na aceitação dela como 
indicando a Deus mesmo, ou na recusa dela no meio do deses-
pero e da raiva por nos extenuar até os limites das forças, por-
que, como parte do mundo lingüístico, ela nos forçaria a nós, 
que somos parte do mundo, a nos confrontar com o todo do 
mundo e conosco mesmos, sem que possamos ser e dominar o 
todo. E também para o momento deixamos inteiramente em aber-
to a questão como essa totalidade original se define e se relacio-
na com o mundo múltiplo e com a multiplicidade das palavras 
do mundo lingüístico. 
A essa altura só podemos chamar a atenção para uma coi-
sa um pouco mais claramente do que o fizemos até o momento, 
porque diz respeito de imediato ao tema da palavra "Deus": se 
entendermos corretamente o que até agora se disse sobre a pa-
lavra "Deus", veremos que as coisas não se passam como se fôs-
semos antes de tudo nós, agindo ativamente como indivíduos, 
a pensar "Deus", e que dessa maneira se introduz pela primeira 
vez a palavra "Deus" no espaço de nossa existência. Pelo con-
trário, ouvimos e recebemos a palavra "Deus'! Ela chega até nós 
na história da língua, na qual, queiramos ou não, estamos en-
carcerados, a qual nos situa e nos questiona como indivíduos 
sem que ela própria esteja sujeita à nossa disposição. Essa his-
tória da língua que se nos impõe a nós e na qual ocorre a pala-
vra "Deus" que nos lança interrogações, é assim uma vez mais 
67 
imagem e semelhança do que ela anuncia. Não devemos pensar 
que, pelo fato de o som fonético da palavra "Deus" depender 
de nós, também a palavra "Deus" seja criação nossa. Pelo con-
trário, é ela que nos cria a nós, porque faz de nós homens. 
A palavra "Deus", em sentido estrito, não se identifica sim-
plesmente com o vocábulo "Deus", que ocorre como que perdi-
do em um dicionário da mesma maneira que milhares de outras 
palavras. Pois a palavra "Deus" do dicionário apenas represen-
ta para nós a palavra genuína que se nos faz presente desde o 
arcabouço sem palavras de todas as palavras, através de seu ne-
xo, sua unidade e sua totalidade, totalidade que está dada, faz-
se presente a nós e nos confronta com a realidade como um to-
do, pelo menos na forma da pergunta. 
Esta palavra existe. Está em nossa história e faz nossa his-
tória. É uma palavra. Ela pode passar despercebida a ouvidos 
que ouvem mas não entendem, como diz a Escritura. Mas nem 
por isso ela deixa de existir. Já a velha intuição de Tertuliano 
relativamente à anima naturaliter christiana, ou seja, sobre a al-
ma que é cristã por sua origem, procede dessa inevitabilidade 
da palavra "Deus". Ela está aí. Procede das origens de que o 
próprio homem procede. Só se pode pensar em seu fim com a 
morte do homem enquanto homem. Ela pode ainda ter histó-
ria, cujas vicissitudes e configuração final não podemos imagi-
nar com antecedência, precisamente porque é ela que mantém 
em aberto o futuro não planejado e indisponível. Ela é a aber-
tura para o mistério incompreensível. Ela exige de nós além de 
nossas forças, quiçá nos irrite por nos perturbar a tranqüilida-
de em uma existência que almeja ter a paz que provém do que 
é controlável, claro e planejado. 
Ela está sempre exposta ao protesto de Wittgenstein, que 
manda guardar silêncio sobre o que não se pode falar com cla-
reza, mas que infringe essa máxima pelo próprio fato de a ex-
pressar. A palavra mesma, se bem entendida, concorda com es-
sa máxima. Pois ela é a última palavra antes do silêncio que se 
emudece sem palavras em adoração perante o mistério inefável. 
É a palavra que se deve pronunciar no fim de todo falar se, em 
lugar do silêncio na adoração, não deva seguir a morte em que 
o homem se torna animal engenhoso ou pecador eternamente 
perdido. É palavra de sentido sobrecarregado e que exige de nós 
mais do que suportam nossas forças, quase até os limites do ir-
risório. Se nós não a ouvimos dessa forma, estaremos a ouvi-la 
68 
como palavra que diz as coisas óbvias e controláveis do dia-a-
dia, como palavra ao lado de outras palavras. E, neste caso, te-
remos ouvido algo que nada tem a ver com a verdadeira palavra 
"Deus", a não ser quanto ao som fonético. Conhecemos a ex-
pressão latina amor f ati, o amor ao destino. Essa decisão -em 
face do- destino significa propriamente "amor à palavra a nós 
dirigida", ou seja, àquele /atum que é nosso destino. Somente 
este amor ao que 'é necessário liberta nossa liberdade. Este f a-
tum, em última análise, é a palavra "Deus". 
2. O CONHECIMENTO DE DEUS 
Conhecimento transcendental e a posteriori de Deus 
O que estamos denominando conhecimento ou experíên-
cia transcendental de Deus é um conhecimento a posteriori à me-
dida que a experiência transcendental que o homem faz de sua 
livre subjetividade ocorre somente em seu encontro com o mundo 
e sobretudo com outras pessoas. A tradição escolásí:ica enfati-
za, contra o ontologismo, que o único conhecimento que o ho-
mem obtém de Deus é um conhecimento a posteriori a partir 
do mundo. Isso é verdade mesmo havendo a revelação da pala-
vra, porque também essa deve trabalhar com conceitos huma-
nos. Nosso conhecimento ou experiência transcendental tem de 
ser chamado a posteriori à medida que toda experiência. trans-
cendental é mediada por encontro categorial com realidades con-
cretas no âmbito do nosso mundo, o mundo das coisas e o mundo 
das pessoas. Essa afirmação vale também do conhecimento de 
Deus. E neste sentido podemos e devemos dizer que só existe co-
nhecimento a posteriori de Deus que se origina do e mediante 
o encontro com o mundo, do qual, é claro, também somos parte. 
O conhecimento de Deus é, contudo, um conhecimento 
transcendental, porque a referência originária do homem para 
com o mistério absoluto, que constitui a experiência fundamen-
tal de Deus, é um existencial permanente do homem enquanto 
sujeito espiritual. Isso implica que o conhecimento explícito, con-
ceitua! e tematizado, em que comumente pensamos ao falar de 
conhecimento de Deus ou de provas da existência de Deus, é re-
flexão até certo ponto necessária sobre esta referência transcen-
dental do homem ao mistério, mas não é a modalidade originá-
ria e fundante da própria experiência transcendental do misté-
69 
rio. Faz parte da natureza mesmado conhecimento humano que 
o pensamento seja reflexivo, seja pensamento do pensamento, 
que pensemos um objeto concreto no interior de espaço infini-
to e aparentemente vazio do pensamento mesmo, que seja saber 
do pensamento sobre si mesmo. Devemos nos acostumar a no-
tar que, quando pensamos ou exercemos a liberdade, estamos 
tratando com mais e sempre temos a ver com mais do que com 
aquilo sobre que estamos falando com nossas palavras e nossos 
conceitos e aquilo com que estamos eventualmente ocupados co-
mo objeto concreto de nossa atividade. Se uma pessoa não con-
segue perceber a distinção e a unidade nesta bipolaridade do co-
nhecimento e da liberdade - a consciência objetiva e a cons-
ciência subjetiva, ou, para dizer com Blondel, a vontade queri-
da e a vontade que quer -, essa pessoa no fundo nã.o pode en-
tão saber do que falamos: que o falar de Deus é a reflexão que 
remete a um saber de Deus mais originário, atemático e não:... 
reflexo. 
Tornamo-nos conscientes de nós mesmos e das estruturas 
transcendentais que estão dadas com nossa subjetividade somente 
enquanto o mundo se apresenta para nós concretamente e de 
formas bem determinadas, ou seja, enquanto sofremos influên-
cia do mundo e agimos sobre ele. Isso vale também do conheci-
mento de Deus. Neste sentido não é conhecimento que esteja 
fundado inteiramente em si mesmo. Mas também não é mero 
processo místico que ocorra em nossa interioridade pessoal e, 
em conseqüência, não tem também o caráter de auto-revelação 
pessoal de Deus. Mas o caráter a posteriori do conhecimento 
de Deus não seria bem entendido se descurássemos o elemento 
transcendental presente nele e concebêssemos o conhecimento 
de Deus segundo o modelo de conhecimento a posteriori qual-
quer, cujo objeto procede inteiramente de fora e aparece em uma 
faculdade neutra de conhecer. O caráter. a posteriori do conhe-
cimento de Deus não significa que olhamos para o mundo exte-
rior com urna faculdade neutra de conhecer e, em seguida, pen-
samos que podemos descobrir Deus aí no mundo direta ou in-
diretamente entre as realidades que se nos apresentam objetiva-
mente, ou que podemos provar indiretamente sua existência. 
Somos seres referidos a Deus. Essa experiência originária 
está sempre presente e não se deve confundir com a reflexão ob-
jetivante, ainda que necessária, sobre a referência transcenden-
tal do homem ao mistério. Essa não suprime o caráter de apos-
70 
terioridade do conhecimento de Deus, mas também não se deve 
entender de maneira errônea essa aposterioridade no sentido de 
que se possa ensinar Deus como que desde fora e como objeto 
de nosso conhecimento. 
Essa experiência atemática e sempre presente - o conheci-
mento de Deus que sempre temos inclusive quando pensamos 
e lidamos com outras coisas que não Deus - é o fundamento 
permanente do qual emerge o conhecimento temático de Deus 
que exercemos na atividade explicitamente religiosa e na refle-
xão filosófica. Não é nesta última que descobrimos Deus da ma-
neira como descobrimos determinado objeto de nossa experiência 
no mundo, mas naquela atividade religiosa explícita dirigida a 
Deus na oração e na reflexão metafísica estamos apenas tornando 
explícito para nós o que já sabemos implicitamente sobre nós 
nas profundezas de nossa auto-realização pessoal. Assim sen-
do, sabemos de nossa liberdade subjetiva, de nossa transcendência 
e da abertura ilimitada de nosso espírito mesmo quando não as 
tornamos temáticas, mesmo quando não logramos absolutamente 
fazer tematização - em chave conceitua! e objetivante, em pro-
posições - deste saber originário, ou quando nossa tematiza-
ção ocorre ser muito imperfeita e distorcida, e até mesmo quan-
do nos recusamos inteiramente a nos deixar levar por tematiza-
ção desta natureza. 
Por esta razão o significado de todo conhecimento explíci-
to de Deus na religião e na metafísica só é inteligível e realizável 
quando todas as palavras que nele usamos apontam para aque-
la experiência atemática de nossa referência ao mistério inefá-
vel. E, assim, como é da essência do espírito que transcende, por-
que constituído no mundo objetivo, sempre apresentar, por causa 
dessa objetividade mesma, a possibilidade tanto teórica como 
prática de evadir-se dessa sua subjetividade, que lhe está entre-
gue a si mesma na liberdade, assim também a pessoa pode ocul-
tar-se para si mesma sua referência transcendental ao mistério 
absoluto, que chamamos "Deus", abafando assim a verdade mais 
autêntica de si mesma, como diz a Escritura (Rm 1,18). 
As realidades particulares com que lidamos normalmente 
em nossa vida tornam-se claramente inteligíveis, compreensíveis 
e manipuláveis porque podemos distingui-las das outras coisas. 
Essa maneira de conhecer a Deus não existe. Porque Deus é rea-
lidade totalmente diversa de qualquer uma das realidades que 
ocorrem no campo normal de nossa experiência ou que se po-
71 
dem deduzir dele, e porque o conhecimento de Deus tem cará-
ter peculiar bem determinado e não representa apenas um caso 
do conhecer em geral, por essas razões é muito fácil deixar de 
perceber Deus. O conceito "Deus" não é apreensão de Deus pe-
la qual a pessoa domina o mistério, mas um deixar-se apreender 
por mistério que sempre está presente e sempre se subtrai. Este 
mistério permanece mistério, mesmo quando se manifesta ao ho-
mem, e precisamente assim fundamenta sem cessar a possibili-
dade de o homem ser sujeito. Pode então originar-se deste fun-
damento, é claro, o chamado "conceito de Deus", o falar explí-
cito sobre ele, as palavras e o que significamos por meio delas 
tentando dizer reflexamente a nós mesmos, e certamente a pes-
soa não deve fugir ao esforço implicado nessa busca do concei-
to reflexo. Mas, para permanecer verdadeira, toda ontologia me-
tafísica sobre Deus deve sempre retornar à sua fonte, deve retor-
nar à experiência transcendental de sua referência ao mistério 
absoluto, deve retornar à prática existencial do livre acolhimen-
to dessa referência. Esse acolhimento ocorre na obediência in-
condicional à consciência e na franca e confiante aceitação do 
caráter incontrolável da própria existência na oração e no silêncio. 
Uma vez que a experiência originária de Deus não é encon-
tro com objeto particular qualquer ao lado de outros objetos, 
e uma vez que, na experiência transcendental que o sujeito hu-
mano faz de Deus, este está absolutamente alérh de nós em sua 
transcendência, podemos falar de Deus e da experiência de Deus, 
sobre a criaturidade e a experiência da criaturidade somente em 
conjunto, apesar do matiz diverso que se significa em cada uma 
dessas instâncias. 
Poder-se-ia perguntar a esta altura: mas, se essas duas rea-
lidades são assim entrelaçadas, então só poderíamos dizer algo 
sobre o que Deus é para nós e não poderíamos absolutamente 
dizer algo sobre o que Deus é em si mesmo? Mas se tivermos 
entendido o que significa a transcendentalidade absolutamente 
ilimitada do espírito humano, poderemos dizer que a alternati-
va de distinção tão radical entre uma afirmação sobre Deus "em 
si mesmo" e "Deus para nós" não é legítima. O que significa 
a característica mais prÓfunda do sujeito humano em sua liber-
dade e autonomia, e, conseqüentemente em sua criaturidade, e 
o que significa Deus mesmo só se podem entender levando-se 
em conta aquela situação básica em que se acha a existência hu-
mana, situação em que o homem está de posse de si e está radi-
72 
calmente alienado de si pelo fato de o mistério se voltar a ele 
como absoluto e permanecer a distância, distinguindo o homem 
de si. Por essa razão também não podemos formar um conceito 
de Deus em sentido próprio e em seguida perguntar se tal coisa 
está dada também na realidade. O conceito em seu fundamento 
originário e a realidade mesma a que o conceito se refere con-
juntamente emergem para nós ou conjuntamente se nos ocultam. 
As diferentes maneiras de conhecer a Deus 
e sua unidade interna 
Antes de começar a falar do conhecimento de Deus, temosde refletir brevemente sobre outras distinções referentes ao co-
nhecimento de Deus que se mencionam na teologia tradicional. 
Em primeiro lugar, na teologia católica se fala do assim chama-
do conhecimento natural de Deus, doutrina segundo a qual, co-
mo diz o Concílio Vaticano I (cf. DENZ 3004), pelo menos em 
princípio se pode conhecer a Deus pela luz da razão natural sem 
revelação em sentido estrito. Trata-se de conhecimento a poste-
riori, que de mais a mais deve ser bem entendido. Em segundo 
lugar, além do assim chamado conhecimento natural de Deus, 
a teologia escolástica fala de um conhecimento de Deus mediante 
o que chamamos propriamente de revelação cristã pela palavra: 
um conhecimento de Deus que provém da própria revelação de 
Deus. Este conhecimento pressupõe que já se conhece que tal 
revelação divina ocorreu de fato e a seguir se pergunta sobre o 
que Deus terá comunicado por meio dessa revelação sobre si mes-
mo, como, por exemplo, que ele perdoa a culpa humana, que 
tem vontade de salvação universal e sobrenatural para todos os 
homens, que ele criou-se a si mesmo, em favor do homem, uma 
existência historicamente concreta que viemos a chamar de en-
carnação etc. 
Em terceiro lugar, talvez devêssemos falar ainda de um co-
nhecimento de Deus que ocorre mediante seu agir salvífico que 
se revela na história da humanidade e na história de cada indi-
víduo. Neste conhecimento, o agir e a existência de Deus se co-
nhecem conjuntamente, mediante o testemunho efetivo que ele 
dá de si mesmo. Mesmo que a pessoa não tenha nenhum inte-
resse especial por mística e "visões", não pode negar a priori 
que possa haver um conhecimento de Deus que provenha e ocorra 
na experiência coletiva e pessoal do homem, que não se precisa 
73 
identificar nem com o conhecimento natural de Deus nem com 
a auto-revelação universal de Deus mediante a palavra e na his-
tória da revelação entendida como tendo ocorrido somente através 
da palavra em sentido estrito. 
Em sua constituição sobre a revelação divina (Dei Verbum, 
cap. 1), o Concílio Vaticano II tentou associar e vincular entre 
si, da maneira mais estreita possível, a ação histórica na qual 
e pela qual Deus se revela, e a revelação como autocomunica-
ção de Deus na palavra humana. À luz dessa consideração, po-
demos reunir em nossa consideração a terceira maneira de co-
nhecer a Deus há pouco mencionada e a segunda, a que se refe-
re ao conhecimento de Deus mediante sua própria revelação pe-
la palavra na graça. Porém mais tarde deveremos voltar a consi-
derar este aspecto com maior precisão. 
Ao discutir em seguida o conhecimento de Deus, não esta-
remos interessados por enquanto pelas distinções da teologia es-
colástica. Temos em mira antes ver a unidade originária destas 
três formas de conhecer no concreto da existência humana. 
Justifica-se isso também desde um ponto de partida filosófico. 
Se refletirmos sobre o nosso conhecimento de Deus enquanto 
experiência transcendental historicamente constituída, que, pe-
la própria natureza da situação em que o homem conhece, sem-
pre implica um conhecimento filosófico em sentido propriamente 
dito, mas que também não pode em princípio ser apreendido 
totalmente por tal conhecimento, precisaremos então contar tran-
qüilamente com o fato de que ele envolve elementos que uma 
reflexão teológica posterior dirá que são elementos de graça e 
revelação. Tudo o que dizemos aqui do conhecimento de Deus 
diz-se na verdade em palavras, mas se refere a uma experiência 
mais originária. Isso é filosoficamente possível e legítimo. Tam-
bém o filósofo pode reconhecer que sua reflexão filosófica não 
pode captar adequadamente aquele conhecimento originário. 
Aquilo a que nos referimos aqui não é um conhecimento 
filosófico natural de .Deus, ainda que inclua tal elemento. Mas 
pelo menos em princípio o ultrapassa. O que queremos dizer 
refere-se à experiência transcendental de Deus constituída his-
toricamente e que não se pode pensar transpor mediante o nos-
so dizer, em chave metafísica, em sentido estritamente filosófi-
co. Pelo contrário, o nosso dizer somente evocará essa experiên-
cia de Deus. O nosso falar do conhecimento de Deus não só não 
pode substituir a experiência transcendental originária de Deus, 
74 
que contudo está constituída historicamente, como também não 
pretende sequer representá-la de maneira filosoficamente ade-
quada. 
A mencionada unidade das três maneiras de conhecer a Deus· 
em seu fundamento originário é legítima também por razão teo-
lógica. Não existe na ordem vigente da salvação, segundo en-
tende a visão cristã católica, nenhuma realização essencial do 
homem que não ocorra no seio da finalização da existência hu-
mana para a imediatez para com Deus, que chamamos de gra-
ça. E nessa por sua vez está implicada uma dimensão de revela-
ção propriamente dita, ainda que de cunho transcendental. 
Na vivência concreta existencial não existe, portanto, nenhum 
conhecimento de Deus que seja meramente natural, uma vez que 
também o conhecimento teológico é atividade humana exercida 
na liberdade. Em reflexão teológica posterior posso certamente 
especificar elementos que atribuo ou posso atribuir seja à natu-
reza, seja à vivência do homem como tal. Mas o conhecimento 
concreto de Deus situa-se já sempre como questão que é afir-
mada ou negada no interior da dimensão do destino sobrenatu-
ral do homem. Mesmo a recusa de um conhecimento natural de. 
Deus, um ateísmo tematizado ou não tematizado, sempre cons-
titui, sob o prisma teológico, ao mesmo tempo e inevitavelmen-
te um não, pelo menos não tematizado, de autofechamento do 
homem para aquele referir-se da existência humana à imediatez 
para com Deus. A esse referir-se à imediatez para com Deus da-
mos o nome de graça, que constitui inevitável existencial do ser 
inteiro do homem mesmo quando se fecha a ele, rejeitando-o 
livremente. 
Em outros termos, a realização concreta do chamado co-
nhecimento de Deus na forma do sim ou do não sempre consti-
tui, sob o ponto de vista teológico, mais do que conhecimento 
meramente natural de Deus, quer em sua forma não tematizada 
na auto-interpretação realizada na experiência originária da exis-
tência humana, quer em sua forma reflexamtnte tematizada. 
O conhecimento de Deus que visamos aqui é, portanto, aque-
le conhecimento de Deus concreto, originário, historicamente de-
terminado e transcendental, que, quer na modalidade da aceita-
ção, quer na da rejeição, inevitavelmente ocorre na profundida-
de da existência até da mais ordinária vida humana. Simulta-
neamente conhecimento tanto natural como sobrenatural de 
Deus, simultaneamente conhecimento pela razão e conhecimento 
75 
pela fé na revelação. E de tal forma que distinguir seus elemen-. 
tos vem a ser tarefa subseqüente d'a filosofia e da teologia. E 
este conhecimento de natureza reflexa da filosofia e da teologia 
não substitui absolutamente o próprio evento do acontecimen-
to originário deste conhecer. 
O conhecimento transcendental de Deus 
como experiência do mistério 
O conhecimento de Deus, a que nos referimos aqui, repou-
sa sobre aquela subjetividade e livre transcendência e aquela pe-
culiaridade de não estar à disposição de si mesmo, a que tenta-
mos pelo menos aludir. Essa experiência transcendental, sem-
pre mediada pela experiência categorial dos dados singulares e 
concretos de nossa experiência no mundo e no tempo e espaço 
(falamos do todo de nossa experiência, também da assim cha-
mada experiência "profana"), não se deve conceber como fa-
culd.ade neutra pela qual, entre os outros objetos, também Deus 
possa vir a ser conhecido. Ela constitui antes a maneira originá-
ria e fundamental de conhecer a Deus, tanto que o conhecimen-
to de Deus a que nOs referimos aqui simplesmente constitui a 
própria essência dessa transcendência. 
A transcendência, na qual Deus já é conhecido ainda que 
atemática e sem conceitos, não se deve conceber como conquis-
ta, efetuada por próprias forças do homem, do conhecimentode Deus e, em conseqüência, de Deus mesmo. Pois essa trans-
cendência aparece no que é somente através do autodesvelar-se 
daquele termo para o qual marcha o movimento da transcen-
dência. Ela existe mediante o que se dá nessa transcendência co-
mo o outro, o outro que distingue essa transcendência de si mes-
mo e se faz perceber ao sujeito constituído por ela como misté-
rio. A subjetividade já é sempre desde seu ponto de partida a 
transcendência que escuta, que não controla, que é conquistada 
pelo mistério, que é aberta pelo mistério. No meio de sua abso-
luta ilimitação, a transcendência se percebe como infinitude va-
zia, como meramente formal, como necessariamente mediada 
para si mesma pela finitude, e, portanto, infinitude finita. Se não 
quiser enganar-se a si mesma, fazendo-se passar por sujeito ab-
soluto e assim se transformando em ídolo, ela se reconhece co-
mo transcendência que lhe foi ofertada, transcendência que se 
funda no mistério, que é dependente. Em toda sua infinitude 
76 
percebe-se como radicalmente finita. É precisamente em e me-
diante o caráter ilimitado da transcendência que ela é transcen-
dência que pode e deve captar sua própria finitude. 
A transcendência estritamente como tal conhece somente 
Deus e nada mais, embora o conheça como condição que possi-
bilita o conhecimento categorial, a história e a liberdade con-
creta. Ela só se dá no abrir-se de si mesma para além de si e é, 
para usar linguagem bíblica, originariamente e desde seu pri-
meiro início a experiência de ser conhecido por Deus. A palavra 
que tudo fala ao dizer "Deus" é sempre experimentada em sua 
essência originária como a resposta, na qual o mistério, sem dei-
xar de sê-lo, diz-se a si mesmo ao homem. 
A unidade entre transcendência e o Aonde ela remete não 
se pode conceber como unidade entre dois elementos que se re-
lacionam igualmente um ao outro, mas somente como unidade 
entre o que funda e dispõe livremente e o que é fundado, é a 
unidade enquanto unidade entre a palavra original e a resposta, 
que se torna possível pela palavra. Essa unidade pode ser des-
crita de várias maneiras porque ela - tanto o primeiro como 
o último elemento nela - só se pode expressar de maneira ina-
dequada pelo segundo elemento que é condicionado e que ja-
mais abarca realmente o primeiro elemento. Só podemos falar 
da transcendência falando-se do Aonde de sua referência, e só 
podemos fazer entender a natureza específica desse Aonde fa-
lando da natureza específica da transcendência como tal. 
Se quiséssemos entender este conhecimento originário de 
. Deus presente na transcendência somente a partir do seu pólo 
subjetivo, ou seja, se quiséssemos esclarecer a natureza da pró-
pria transcendência para, a partir daí, esclarecermos o que seja 
propriamente este Aonde para o qual essa transcendência sai em 
movimento, então estaríamos na dificuldade de ter de descrever 
a intencionalidade como tal sem falar daquilo a que ela se refe-
re. Teríamos, além disso, o trabalho de ter de buscar uma mista-
gogia existencial que descrevesse e focalizasse a atenção de cada 
indivíduo em sua existência concreta naquelas experiências em 
que ele, precisamente como este indivíduo, fez a experiência da 
transcendência e de ter sido arrancado de si para o interior do 
mistério inefável. Visto que a claridade e a força de persuasão 
das múltiplas experiências singulares desta natureza - por exem-
plo, na angústia, na preocupação que o sujeito possa ter com 
o absoluto, na aceitação livre da responsabilidade no amor, na 
77 
alegria etc. - variam muito de indivíduo para indivíduo em cor-
respondência à diversidade de suas existências históricas, tal mis-
tagogia de iniciação nessa experiência de transcendência vivida 
por cada indivíduo haveria de ser muito diversificada, confor-
me cada pessoa. Tal mistagogia que ajudasse a pessoa a se tor-
nar consciente do fato de que essa experiência de transcendên-
cia ocorre, repetidamente e sem ser denominada, em seu trato 
imediato com o mundo concreto, poderia ser possível para cada 
pessoa em particular somente numa conversa individual, numa 
logoterapia individual. 
Por isso queremos tentar descrever o conhecimento origi-
nário de Deus aqui apontando para onde essa transcendência 
se volta, o que ela ericontra, ou melhor, a partir de que ela se 
abre. Mas a situação é tal que também a denominação deste Aon-
de e Donde da transcendência só se pode entender se ela evocar 
constantemente a experiência transcendental como tal, que de 
tão óbvia pode facilmente passar despercebida. 
Mesmo olhando para o Aonde e o Donde da transcendên-
cia com o intuito de chamar a atenção para o conhecimento ori-
ginário e atemático de Deus, não cessa a dificuldade de trazer 
este conhecimento à nossa consciência. Pois os nomes que fo-
ram dados para o Aonde e o Donde da transcendência na histó-
ria da auto-interpretação reflexa do homem, como espírito que 
transcende, são muitíssimos. E nem todos servem de mediação 
para cada indivíduo em sua experiência concreta de vida, da mes-
ma forma e com igual acessibilidade, para que ele se aproxime 
reflexivamente dessa experiência originária de Deus. 
Para início de conversa, este Aonde e Donde que porta a 
transcendência pode-se chamar de "Deus". Podemos também 
falar do Ser, do Fundamento, da Causa última, do Logos ilumi-
nador e revelador, e ainda podemos lançar mão de milhares de 
nomes para aludir ao que queremos dizer. Quando usamos a pa-
lavra "Deus" ou a expressão "fundamento original" ou o ter-
mo "abismo", certamente tais vocábulos sempre estão envolvi-
dos e carregados de imaginações que vão para bem mais além 
do que as palavras propriamente significam e que nada têm a 
ver com o que propriamente se quer dizer. Cada um desses con-
ceitos carrega a marca da história, também da história indivi-
dual, e a tal medida que dificilmente se pode entender já o que 
propriamente se significa com tais vocábulos. Quando chama-
mos Deus de "pai" com a Bíblia e com Jesus e nos damos conta 
78 
da crítica que este nome provoca hoje em dia, podemos enten-
der como uma palavra como essa, palavra com que Jesus ousou 
expressar sua compreensão última de Deus e sua singular rela-
ção para com Deus, pode ser mal-entendida e não mais se en-
tender absolutamente. 
O filósofo pode levar avante a reflexão específica sobre a 
maneira como a referência transcendental ao que ele denomina 
Ser e a referência transcendental a Deus se correlacionam ou de-
vam se distinguir entre si. 
Uma vez que queremos considerar diretamente apenas o co-
nhecimento transcendental de Deus, que antecede à ontologia 
reflexa e não pode ser adequadamente captado por ela, pode-
mos tomar aqui via mais breve, ainda que menos precavida, por-
que a contida precaução da filosofia não pode dispensar da ou-
sadia da compreensão da existência que é sempre anterior à fi-
losofia. · 
Mas isso ainda não resolve a dificuldade de que nome dar 
a esse Aonde e Donde de nossa experiência originária de trans-
cendência. Seguindo a venerável tradição da filosofia ocidental, 
que certamente também se nos impõe a nós, poderíamos designá-
lo simplesmente de "o ser simplesmente", "o ser absoluto" ou 
"o fundamento do ser" que tudo funda em sua origem. Mas, 
ao falarmos dessa forma de "ser" e "fundamento do ser", nos 
expomos ao risco mortal de que muitos de nossos contemporâ-
neos venham a entender a palavra "ser" como mera abstração 
vazia, posterior e adventícia da experiência da multiplicidade de 
coisas singulares com que diretamente nos encontramos. Por is-
so queremos tentar chamar este Aonde e Donde de nossa trans-
cendência com outro nome, um nome que certamente não pre-
tende ser vara de condão para abrir todas as portas, mas que 
talvez explique o que queremos dizer passando ao lado da pro-
blemática do "ser", a que acabamos de nos referir. Queremos 
chamar o Aonde e o Donde de nossa transcendência de "misté-
rio santo", ainda que este termo deva ser entendido, aprofunda-
do e assim se demonstregradativamente ser idêntico com a pa-
lavra "Deus", e ainda que tenhamos de nos voltar freqüentemente 
a outros termos que se encontram alhures na tradição humana 
e filosófica. Deveremos considerar posteriormente, em reflexão 
específica, porque denominamos este mistério de "santo". 
Estamos a falar de um Aonde da experiência de transcen-
dência e o definimos como mistério santo não com o fito de 
79 
expressá-lo de forma mais ininteligível e complicada, mas por 
outra razão: se falássemos simplesmente que o Aonde de nossa 
transcendência é "Deus'-', deveríamos continuar temendo que 
ocorra o mal-entendido de que estaríamos falando de Deus de 
maneira que ele já fosse explicado, conhecido e entendido de an-
temão no interior de um complexo objetivante de conceitos. 
Se usamos de início a palavra "mistério santo", que é me-
nos corrente e menos definida no intuito de expressar o termo 
a que se volta a transcendência e a origem donde ela procede, 
torna-se menor o perigo de mal-entendido do que quando dize-
mos, por exemplo: "o termo dessa transcendência é Deus". É 
preciso descrever conjuntamente a experiência e o que nela é ex-
perienciado, antes que se possa chamar de "Deus" o que é ex-
perienciado. 
O Aonde da transcendência como o infinito, 
o indefinível e o inefável 
O Aonde de nossa experiência de transcendência, para o 
qual antes de tudo buscamos um nome, já está sempre presente 
como o inominado, o indefinível, o indispensável. Pois todo no-
me define, ou,seja, marca limites e fronteiras. Todo nome dis-
tingue e caracteriza algo dando ao que ele significa um nome, 
escolhido entre muitos nomes. O horizonte infinito (o Aonde 
da transcendência), que nos abre a ilimitadas possibilidades de 
nos encontrar com essa ou aquela coisa singular, não se permi-
te atribuir um nome. Pois este o situaria na seqüência das reali-
dades que são entendidas em sua referência a este Aonde e a 
partir deste Donde. Na verdade podemos e devemos refletir so-
bre o misterioso e incompreensível, que jamais pode entrar em 
nosso sistema de coordenadas, que jamais pode ser definido me-
diante distingui-lo de qualquer outra coisa. Se o fizéssemos, nós 
o estaríamos objetivizando, nós o estaríamos entendendo co-
mo objeto entre outros, nós o limitaríamos ao defini-lo. Na ver-
dade devemos dizer que ele é algo distinto de tudo mais, por-
que, enquanto fundamento absoluto de todos os entes singula-
res, não pode ser a mera soma posterior dessa multidão de se-
res particulares. Mas toda tematização conceituai, que necessa-
riamente precisamos fazer, só se mantém verdadeira à medida 
que, neste ato de definir e expressar objetivamente o Aonde da 
transcendência como condição da possibilidade deste ato, uma 
80 
vez mais sucede um ato de transcendência ao infinito Aonde des-
sa transcendência. A reflexão exerce, uma vez mais, transcen-
dência original, quando pretende apenas refletir sobre ela em 
si mesma e objetivá-la. 
A pré-apreensão da transcendência originária volta-se, pois, 
para o inominado, que originalmente e por sua própria nature-
za é o infinito. Por sua essência, a condição que torna possível 
denominar mediante o distinguir não pode ter nenhum nome. 
Podemos designar essa condição de o inominado, o que se dis-
tingue de todo finito, o "infinito", mas com essas designações 
não atribuímos propriamente nenhum nome a este ·~onde", mas 
apenas o apontamos como o inominado. Teremos entendido es.: 
sa designação somente se a entendemos como mero apontar pa-
ra aquele silêncio da experiência transcendental mesma. 
A transcendência se volta, assim, também para o ilimitá-
vel. O horizonte da transcendência, o seu Aonde - pelo fato 
de se expandir para além do nosso alcance e, assim, oferecer es-
paço aos -objetos singulares de conhecimento e amor -, sempre 
e essencialmente é distinto de tudo o que aparece dentro dele 
como objeto do conhecer. Nesta medida a diferenciação entre 
este Aonde inexprimível e o finito não é apenas distinção que 
obviamente há de fazer, mas essa diferenciação é a distinção ori-
ginária em sua unidade, que é percebida, porque é condição da 
possibilidade de qualquer distinção de objetos quer a partir do 
horizonte da transcendência mesma, quer entre os próprios ob-
jetos. Mas isso significa que este inexprimível Aonde é ele mes-
mo indelimitável, pois, como condição da possibilidade de todo 
distinguir e diferenciar categorias, ele próprio não pode ser di-
ferenciado com os mesmos meios de distinguir. 
É à luz da distinção entre o Aonde transcendental e os ob-
jetos categoriais singulares, por um lado, e da distinção dos ob-
jetos categoriais entre si, por outro lado, que se pode entender 
a falsidade tanto de um panteísmo real como também de um 
dualismo vulgar - que ocorre também no campo da religião 
-, dualismo que situa Deus e o não-divino simplesmente como 
duas coisas lado a lado. 
Ao dizer contra o panteísmo que Deus e mundo são diver-
sos, essa afirmação receberia interpretação equivocada, se en-
tendida nessa chave dualista. A distinção entre Deus e mundo 
é de tal natureza que Deus estabelece e é a diferença do mundo 
para consigo mesmo, e por essa razão ele estabelece a unidade 
81 
mais estreita na diferenciação. Pois se a diferença mesma pro-
vém de Deus, e, se assim podemos falar, ela própria é idêntica 
com Deus, então a distinção entre Deus e mundo deve-se conce-
ber de forma totalmente diversa do que a distinção entre reali-
dades categoriais, às quais antecede uma distinção porque, de 
certa forma, já pressupõem um espaço que as contém e as dife-
rencia, e nenhuma dessas realidades categorialmente distintas en-
tre si estabelece ela própria a distinção com referência às outras 
realidades nem essa distinção. Por isso se poderia chamar o pan-
teísmo de sensitividade para (ou melhor, a experiência transcen-
dental de) o fato de que Deus é a realidade absoluta, o funda-
mento original, o Aonde último a que se volta a transcendên-
cia. Essa é a dimensão de verdade no panteísmo. 
Em sentido contrário, um dualismo religioso que de ma-
neira primitiva e ingênua concebe a distinção entre Deus e a rea-
lidade criada por ele como distinção meramente categorial, no 
fundo é muito a-religioso porque não percebe o que Deus real-
mente é, porque entende Deus como mero momento no interior 
de totalidade maior, como parte da realidade global. 
Deus é o totalmente outro com relação ao mundo. Mas é 
diverso à maneira como essa distinção é percebida em nossa ex-
periência originária transcendental. Nesta experiência, essa dis-
tinção peculiar e única é percebida de tal sorte que se percebe 
a realidade inteira como portada por este Aonde e este Donde 
e somente aí é inteligível, de tal sorte que precisamente a distin-
ção afirma ao mesmo tempo a unidade última de Deus e mun-
do e a distinção toma-se inteligível somente nessa unidade. 
Essas coisas que soam tão abstratas são de fundamental im-
portância para uma compreensão de Deus que seja relevante para 
a vida religiosa hoje em dia. Pois aquele Deus, que opera e fun-
ciona como existente individual ao lado de outros e que, assim, 
de certa forma, esteja presente como parte no interior da casa 
maior da totalidade do real, de fato não existe realmente. A pessoa 
que procurar um Deus deste tipo, estará procurando um Deus 
falso. O ateísmo e também uma forma mais vulgar de teísmo 
padecem sob a mesma falsa noção de Deus. Só que o primeiro 
nega simplesmente essa noção falsa, ao passo que o segundo es-
tá persuadido de que ainda pode pensá-la logicamente. No fun-
do ambos se equivocam. O teísmo vulgar, porque o Deus que 
se imagina não existe; e o ateísmo, porque Deus é a realidade 
82 
. mais radical, mais original e em certo sentido a mais evidente 
por si mesma. 
O Aonde da transcendência é indelimitável porque o hori-
zonte mesmo não pode estar presente dentro do horizonte, por-
que o Aonde da transcendência não pode enquanto tal ser real-
mente trazido para o campo de alcànce da transcendência mes-
ma e,assim, ser distinguido de outras coisas. A medida última 
escapa ela própria a toda medida. O limite, que a tudo dá sua 
"definição", não pode ele mesmo ser definido por limite que es-
teja ainda mais afastado. A amplidão infinita, que tudo abarca 
e pode abarcar, não pode ela mesma ser abarcada. Mas então 
esse inominável e indelimitável Aonde da transcendência, que 
só por si'mesmo se delimita, distinguindo-se de toda outra rea-
lidade e diferenciando de si todo o resto, e que constitui a nor-
ma para tudo e que se situa para além de todas as normas dis-
tintas dele, esse Aonde, dizemos, torna-se o que se situa absolu-
tamente fora de nosso alcance e disposição. Ele está sempre pre-
sente com aquele que dispõe. 
Este Aonde foge não só física como também logicamente 
a toda manipulação da parte do sujeito finito. No momento em 
que o sujeito, valendo-se de sua lógica e ontologia formais de-
terminasse esse inominável, o próprio definir ocorreria median-
te a pré-apreensão do que se pretende definir. A ontologia é o 
misterioso processo em que os critérios primeiros se evidenciam 
como escapando a toda medida, e o homem reconhece aí que 
é ele quem é medido. O Aonde da transcendência não se permi-
te manipular nem que dele se disponha, porque neste caso esta-
ríamos alcançando para além dele e o estaríamos inserindo no 
interior de horizonte mais vasto e mais elevado, o que precisa-
mente contradiz à natureza dessa transcendência e à natureza 
do genuíno Aonde da mesma. É este Aonde infinito e silencioso 
que dispõe de nós. Ele se nos apresenta na forma do auto-sub-
trair-se, do silêncio, da distância, do manter-se permanente em 
sua inexpressividade, de tal sorte que todo falar sobre ele - pa-
ra que possa ser escutado com sentido - requer se ouça o seu 
silêncio. 
Porque fazemos a experiência do Aonde da transcendência 
somente no seio da experiência dessa transcendência, que se apre-
senta como que sem fundo e sem chão e jamais chega a um ter-
mo, estamos evitando toda sorte de ontologismo no sentido vul-
83 
gar. Pois este Aonde não é percebido em si mesmo, mas apenas 
conhecido de maneira não objetivamente na. experiência dessa 
transcendência subjetiva. A presença do Aonde da transcendência 
é a presença de tal transcendência que somente se dá como con-
dição da possibilidade para o conhecimento categorial e não por 
si mesma. Vemos naturalmente por tal afirmação (que faz parte 
das afirmações mais fundamentais de real compreensão de Deus 
e é aproximação genuinamente correta do conhecimento de Deus) 
que a tendência hodierna de não falar de Deus, mas do próxi-
mo, de não pregar o amor a Deus, mas o amor ao próximo, de 
não dizer "Deus", mas "mundo" e "responsabilidade pelo mun-
do", essa tendência aí encontra fundamento absolutamente le-
gítimo, contanto que não se leve ao extremo essas teses, a ponto 
de banir Deus e manter silêncio radical sobre ele, o que é e con-
tinua sendo falso, e atenta contra a genuína essência do cristia-
nismo. 
Mas o correto em todas essas afirmações é o simples fato 
de que não possuímos Deus em si mesmo como objeto entre ou-
tros, mas sempre ~ somente enquanto o Aonde da transcendên-
cia que se vem a conscientizar no encontro categorial (no ato 
de liberdade e de conhecer) com a realidade concreta (que surge 
precis'.lmente como mundo somente contradistinguindo-se des-
te Deus enquanto totalmente outro). Por isso esse Aonde da trans-
cendência füz-se presente somente na forma da distância e da 
reserva. Dele nunca se pode aproximar diretamente. Nunca se 
pode apanhá-io imediatamente. Ele se dá somente à medida que, 
sem palavras e na mudez, aponta para outra realidade, a reali-
dade finita concreta como objeto direto do olhar e da ação ime-
diata. E por isso o Aonde dessa transcendência é mistério. 
O Aonde da transcendência como o "mistério santo" 
Já tivemos a oportunidade de aludir de passagem ao Aon-
de da transcendência chamando-o de mistério santo. A razão pela 
qual devemos chamá-lo de "mistério", como vimos, era o fato 
de que não o podemos absolutamente abarcar e, assim, determi-
ná-lo através de pré-apreensão que alcance para além dele. Mas 
a nossa pergunta agora é: porque o chamamos de mistério pre-
cisamente santo? 
Já frisamos na seção primeira que ao falarmos da trans-
cendência não aludimos só e exclusivamente à transcendência 
84 
enquanto condição da possibilidade do conhecimento catego-
rial, mas também à transcendência da liberdade, da vontade e 
do amor. Essa transcendência, que é constitutiva do sujeito co-
mo sujeito livre e pessoal do agir dentro de espaço ilimitado de 
ação, é igualmente importante e no fundo não passa do outro 
lado da transcendência de sujeito espiritual, que, sendo espiri-
tual, está dotado da faculdade de conhecer e por isso é livre. A 
liberdade é sempre liberdade de sujeito que entra em comunica-
ção interpessoal com outros sujeitos. Por isso ela é necessaria-
mente liberdade perante outro sujeito de transcendência, trans-
cendência que não é primariamente condição da possibilidade 
de conhecer coisas, mas a condição da possibilidade de um su-
jeito estar presente a si mesmo e também estar originariamente 
presente a outro sujeito. Mas para um sujeito que está presente 
a si mesmo e tem consciência de si, a liberdade que afirma ou-
tro sujeito significa amá-lo. 
Quando, pois, refletimos aqui sobre a transcendência co-
mo vontade e liberdade, precisamos considerar também que o 
Aonde e Donde dessa transcendência se caracteriza pelo amor. 
É o Aonde que possui liberdade absoluta, um Aonde que está 
em ação como o indisponível e livre, como o inominado, como 
o que dispõe absolutamente de tudo em liberdade e amor. Mas 
o Aonde da transcendência é sempre e originalmente um Donde 
do mistério que se põe à disposição. Este Aonde abre ele mes-
mo a nossa transcendência, transcendência que não é colocada 
por nós e por nossas forças como se fôssemos sujeitos absolu-
tos. Se, pois, a transcendência move-se em liberdade e amor pa-
ra um Aonde que abre ele mesmo essa transcendência, podemos 
dizer que o próprio indisponível, o próprio inominado que de 
tudo dispõe de modo absoluto, podemos dizer que ele próprio 
age em liberdade e amor, e precisamente a isso é que aludimos 
ao dizer "mistério santo". 
Pois de que outra maneira haveríamos de chamar o inomi-
nado, o que dispõe de tudo, que nos lança em nossa finitude 
e que apesar disso afirmamos em nossa transcendência na liber-
dade e amor, de que outra maneira o haveríamos de chamar se 
não de "santo"? E o. que se poderia chamar de "santo" se não 
a este Aonde, ou a quem conviria mais originalmente o nome 
de "santo" se não a este infinito Aonde de amor, amor que na 
presença do inabarcável e indizível necessariamente se transfor-
ma em adoração? 
85 
Na transcendência habita, pois, o inominado e o infinita-
mente santo, mas à maneira da distância de que não se pode dis-
por e que por sua vez dispõe. E a isso denominamos de mistério 
ou, um pouco mais explicitamente, de mistério santo (para que, 
focalizando o elemento de conhecimento com mais insistência, 
não venhamos a descurar a transcendentalidade da liberdade e 
do amor, mas que os dois elementos fiquem presentes em sua 
unidade originária e pessoal). As duas palavras "mistério san-
to", que se devem entender como unidade, mas que sem embar-
go albergam diferença intrínseca entre si, expressam igualmente 
quer a transcendentalidade do conhecimento, quer a transcen-
dentalidade da liberdade e do amor. 
Toda experiência de transcendência é experiência originá-
ria e não derivada. E este seu caráter de não ser nem poder ser 
derivada provém-lhe precisamente do que se encontra e se ma-
nifesta nela. A designação deste Aonde como "mistério santo", 
portanto, não usa conceitos tomados de outras fontes a serem 
aplicados extrínsecamente para qualificar a este Aonde, mas os 
toma deste "objeto" original mesmo, que é seu próprio funda-
mento e o fundamento e horizonte do seu conhecimento e que 
se dá aconhecer na própria experiência transcendental em si mes-
ma. 
Se assim obtivemos o conceito original de mistério e de san-
tidade, e se é correto designar o Aonde da transcendência com 
esta palavra, é claro que não se trata de definição da essência 
mesma do mistério santo. O mistério é tão indefinível como to-
dos os "conceitos" transcendentais. Estes não são passíveis de 
definição, porque o que neles se expressa só se conhece na expe-
riência transcendental e essa, como já sempre e em toda parte 
pré-dada, não tem nada fora dela por que ela e seu Aonde pos-
sam ser determinados. 
Experiência transcendental e realidade 
Falamos muitas vezes do conceito de Deus. Expressamos, 
portanto, ainda que em segundo tempo, o Aonde original de nos-
sa transcendentalidade atemática em um conceito, em um no-
me. Este fato suscita a pergunta se o que assim se expressa em 
um conceito de essência é algo que existe apenas na mente, ape-
nas pensado, ou também é algo de realidade existente. Com res-
peito a isso digamos de imediato que seria o maior equívoco, 
86 
equívoco que perderia toda conexão com a experiência originá-
ria, se este Aonde viesse a ser interpretado como algo existente 
só na mente, como idéia que o pensamento humano produzisse 
como criação própria. Este Aonde é o que abre e possibilita o 
processo da transcendência. É ele que deslancha esse processo 
e não é criação deste processo. 
O conhecimento originário do que seja ''ser" está dado neste 
envento da transcendência e não se deriva de qualquer ente par-
ticular que nos venha ao encontro. Uma coisa real só pode ter 
acesso a nós pelo pensamento e conhecimento, e afirmar que 
existe uma coisa real que a priori e em princípio seja inacessível 
ao conhecimento é pensamento contraditório em si mesmo. A 
própria afirmação ou enunciado de que uma coisa não possa 
em princípio ser objeto de experiência já insere no campo do 
conhecimento inclusive o que se afirma ser inviável à experiên-
cia (pois que neste caso a pessoa já estaria pensando sobre essa 
coisa), e, em conseqüência, é afirmação contraditória em si mes-
ma. Daí resulta que o ainda não conhecido e o meramente pen-
sado constituem formas deficientes e secundárias de ser objeto 
de conhecimento, formas que por princípio e de antemão se or-
denam ao real como tal, porque sem este pressuposto nem se-
quer se poderia dizer o que significa o real simplesmente. 
Portanto o Aonde da experiência e do conhecimento trans-
cendentais, que, por serem transcendentes, são também origi-
nários e abrangentes, dá-se de antemão nessa experiência como 
o que é verdadeiramente real, como unidade originária de es-
sência e existência. É claro que se pode e se deve dizer que a rea-
lidade do mistério absoluto não se manifesta simplesmente ao 
espírito finito transcendental à maneira do encontro que temos 
na experiência sensível de um ente material singular. Se opinás-
semos que Deus possa vir a ser experimentado dessa maneira, 
é claro que cairíamos no ontologismo, que já tivemos a oportu-
nidade de excluir, ou teríamos. afirmado algo que de fato não 
é verdade. A afirmação da realidade do mistério absoluto funda-
se para nós, que somos espíritos finitos, na necessidade com que 
a atualização da transcendência como ato nosso está dada para 
nós. Com isso voltamos a afirmar sob outro ponto de vista o 
que dissemos sobre o caráter a posteriori do conhecimento de 
Deus, apesar e sem prejuízo da transcendentalidade da experiên-
cia de Deus. Se não nos encontrássemos inevitavelmente presentes 
a nós mesmos, se pudéssemos abstrair do ato da transcendên-
87 
eia, cairia para nós também a necessidade de afirmar a realida-
de absoluta do Aonde da transcendência, mas cairia simultanea-
mente a possibilidade de um ato em que se pudesse negar ou 
duvidar da realidade dessa transcendência. No ato da transcen-
dência afirma-se necessariamente a realidade do seu Aonde, por-
que precisamente neste ato e somente nele é que afinal se faz 
a experiência do que seja realidade. 
O Aonde da transcendência é, portanto, o mistério santo 
enquanto ser absoluto ou enquanto ente que existe em absoluta 
plenitude e posse do ser. 
Algumas observações sobre as provas da existência de Deus 
Falamos conjuntamente do mistério, que é ser absoluto e 
santo, que podemos chamar com o nome de "Deus", que nos 
é familiar, e da transcendência para este mistério santo. Ambos 
os aspectos se iluminam mutuamente na unidade originária dessa 
experiência transcendental. Em conseqüência, não sentimos a 
necessidade de tratar mais expressamente das afirmações que 
constituem elaboração de conhecimento mais originário de Deus 
e que se costuma chamar de "provas da existência de Deus". As-
sim como a ontologia ao nível da original autopossessão de uma 
existência humana que se conhece e livremente dispõe de si se 
relaciona com a ontologia científica e reflexa, assim também a 
nossa experiência originária, que não realizamos com conceitos 
e palavras e à qual apenas podemos apontar por meio da lin-
guagem, relaciona-se com o conhecimento que ocorre numa pro-
va reflexa da existência de Deus. 
A pergunta se devemos chamar o que aí ocorre de "prova" 
da existência de Deus é questão secundária. A ciência reflexa, 
ainda que se apresente com o caráter de algo derivado e secun-
dário que jamais chega a captar sua origem, se justifica e exige 
plenamente. Mas este conhecimento de Deus de nível reflexo, te-
matizado, representado objetivamente e que procede com o au-
xílio de conceitos não constitui o elemento primeiro e originá-
rio e nem pode substituir a este. 
Como dissemos, uma prova reflexa da existência de Deus 
não busca transmitir um conhecimento, em que um objeto até 
o momento simplesmente não conhecido e portanto indiferente 
às pessoas em causa, venha a ser-lhes apresentado exteriormen-
te e a partir de fora, adquirindo importância e peso para elas 
88 
somente secundariamente, mediante ulteriores determinações que 
venham a ser dadas a este objeto. Se entendêssemos assim a prova 
da existência de Deus, poder-se-ia objetar de início que de Deus 
não se sabe nada. E como se poderia explicar para uma pessoa 
que o homem deve ocupar-se com questão dessa natureza? Teo-
logia, ontologia, conhecimento natural de Deus etc., só podem 
surgir com a pretensão de serem levados a sério por todos se e 
à medida que se possa demonstrar ao destinatário que ele já tem 
algo a ver com essa questão. 
Uma prova teórica da existência de Deus somente visa, por-
tanto, transmitir consciência reflexa sobre o fato de que o ho-
mem em sua existência espiritual inevitavelmente tem que haver-se 
com Deus, quer reflita ou não sobre isso, quer aceite livremente 
ou não este fato. A situação peculiar de ter que apresentar os 
fundamentos posteriormente para algo que na verdade consti-
tui o fundamento e já está presente, ou seja, o mistério santo, 
é o que constitui o caráter específico e evidente por si mesmo 
bem como a dificuldade de dar prova reflexa da existência de 
Deus. O que constitui a fundamentação vem a ser de certa for-
ma fundamento, o que está presente no silêncio e sem nome passa 
a ser por sua vez denominado. 
As provas reflexas da existência de Deus visam indicar que 
todo conhecimento - mesmo na forma da dúvida ou do ques-
tionamento ou até da recusa a entrar em questões metafísicas 
- ocorrem contra o pano de fundo da afirmação do mistério 
santo ou do Ser simplesmente como horizonte do Aonde assin-
tótico e do fundamento questionante do ato e seu "objeto". É 
questão relativamente secundária como venha a ser designado 
este Presente inominadamente ausente: "mistério santo" ou "ser 
absoluto" ou - salientando o aspecto de liberdade dessa trans-
cendência e da estrutura pessoal deste ato - "bem absoluto", 
o "tu pessoal absoluto", o "fundamento da absoluta responsa-
bilidade", o "horizonte último da esperança" etc. Em todas as 
assim chamadas provas da existência de Deus a única,coisa que 
representamos e elaboramos em conceitos reflexose sistemáti-
cos é algo que já ocorreu: no fato de o l:lomem chegar à realida-
de objetiva de sua vida do dia-a-dia no envolvimento na ação 
e na atividade intelectual da compreensão, ele realiza, como con-
dição da possibilidade dessa compreensão conceitua!, uma pré-
compreensão não-temática e não-objetivada da plenitude incon-
cebível e inabarcável da realidade, que na sua unidade originá-
89 
ria é ao mesmo tempo condição do conhecimento e da coisa sin-
gular objetivamente conhecida e, como tal, sempre é afirmada 
atematicamente, mesmo no ato em que o venha a negar temati-
camente. 
É claro que a pessoa singular experimenta essa estrutura bás-
ca e ineludível da melhor maneira nas situações singulares espe-
cialmente carregadas e intensas de sua existência. Se, pois, qui-
ser realmente entender essa reflexão sobre as "provas" da exis-
tência de Deus, o indivíduo haverá de refletir precisamente so-
bre o que constitui a experiência mais clara para ele: haverá de 
refletir sobre a claridade incompreensivelmente iluminada do seu 
espírito; sobre a possibilidade de tudo questionar de maneira ab-
soluta, que o homem realiza com referência a si mesmo, che-
gando ao ponto de como que aniquilar-se, e, ao fazê-lo, lançar-
se para além de si mesmo; sobre a angústia aniquilante, que é 
algo todo diverso de medo perante objeto qualquer e que prece-
de a este como condição de sua possibilidade; sobre a alegria, 
que já não tem nenhum nome; sobre a obrigação moral de na-
tureza absoluta, na qual o homem realmente se ultrapassa a si 
mesmo; sobre a experiência da morte, na qual ele percebe sua 
impotência absoluta. O homem reflete sobre estas e muitas ou-
tras formas da experiência fundamental transcendental da exis-
tência sem que - uma vez que se experimenta como problemá-
tico e finito - possa identificar-se com o fundamento que se 
dá a perceber nessa experiência como o que existe de mais ínti-
mo e ao mesmo tempo de absolutamente diverso. As provas ex-
plícitas da existência de Deus nada mais fazem do que temati-
zar essa estrutura fundamental e o Aonde para que ela aponta. 
A experiência de que todo ato de julgamento ocorre como 
ato que é portado e deslanchado pelo Ser absoluto, que não vi-
ve graças a este nosso pensamento, mas está presente como algo 
pelo qual o nosso pensamento é portado e não como algo pro-
duzido pelo pensamento, é uma experiência que vem a ser te-
matizada mediante o princípio metafísico da causalidade, que 
não deve ser confundido com a lei funcional da causalidade nas 
ciências naturais. Segundo esta última, todo fenômeno como 
"efeito" existe em correspondência a outro fenômeno de igual-
dade quantitativa como "causa". O princípio metafísico da cau-
salidade, corretamente entendido, não é extrapolação da lei da 
natureza entendida pelas ciências naturais, nem é extrapolação 
do pensamento causal de nosso uso cotidiano, mas funda-se na 
90 
experiência transcendental da relação entre a transcendência e 
seu Aonde. O princípio metafísico da causalidade que se em-
prega tradicionalmente nas provas da existência de Deus não 
constitui - ainda que muitos escolásticos assim o entendam -
princípio geral que então se aplica neste caso particular ao lado 
de outros, mas antes apenas aponta para a experiência transcen-
dental onde a relação entre algo de condicionado e finito e seu 
incompreensível Donde está imediatamente presente e por sua 
presença é experimentada. 
Não é o caso de aqui detalhar as provas da existência de 
Deus usuais na teologia e filosofia escolásticas. Não precisamos, 
portanto, falar de prova cosmológica, ou teleológica, ou cine-
siológica, ou axiológica, ou deontológica, ou noética ou moral 
da existência de Deus. Pois todas estas provas nada mais fazem 
que designar certas realidades categoriais da experiência huma-
na e situá-las explicitamente no espaço da transcendência hu-
mana, em cujo interior somente podem ser entendidas como tais, 
visto que em certo sentido todas essas realidades de natureza ca-
tegorial e os atos de seu conhecimento levam a remontar à co-
mum condição de possibilidade de tal conhecimento e de tal rea-
lidade. E, neste sentido, as diversas provas da existência de Deus 
só podem propriamente esclarecer a única prova da existência 
de Deus a partir de diferentes aspectos da mesma experiência 
transcendental. 
3. DEUS COMO PESSOA 
A linguagem sobre Deus é análoga 
Podemos falar acerca da experiência da transcendência so-
mente nos apoiando no que lhe é secundário e subseqüente. Por 
isso sempre deveremos falar dela em linguagem matizada e di-
ferenciada: nos termos "por um lado - por outro lado", bem 
como "não só - mas também". Essa maneira de falar de Deus 
resulta do fato de que, sempre que explicitamos e tematizamos 
a referência originária e transcendental para com Deus, temos 
de falar sobre Deus mediante conceitos secundários e catego-
riais contrários no campo da categorialidade. Quando dizemos 
que Deus é a realidade mais íntima do sujeito infinito e da reali-
dade que lhe antolha, sendo o motor que os porta desde dentro, 
91 
e dizemos ao mesmo tempo que ele existe em absoluta e intocá-
vel autoposse de si e que sua realidade não se restringe a ser fun-
ção e horizonte de nossa existência, este "por um lado - por 
outro lado", essa afirmação dialética e bipolar, que jamais po-
derá vir a ser condensada em síntese superior, não é o elemento 
original, mas provém do fato de a experiência transcendental ori-
ginária haver de ser tematizada, traduzida e como que inserida 
no âmbito próprio do categorial como se fora objeto singular. 
Todas as afirmações que fazemos sobre Deus se entendem 
no sentido de que o que, por um lado, é a realidade que porta 
e funda desde o mais íntimo de toda realidade só se anuncia e 
só se pode expressar, por um lado, a partir da realidade que é 
portada e fundada. Do contrário não se poderia absolutamente 
pensar uma relação entre o fundamento e a realidade fundada. 
Este fundamento, porém, só se dá como fundamento e, em con-
seqüência, não se insere em sistema genérico e anterior lado a 
lado com o que é fundado. Uma relação com este fundamento 
é real e cognitivamente sempre a transcendência para e a proce-
dência deste mistério absoluto. Assim, uma afirmação sobre es-
te mistério é sempre afirmação habitada por tensão original, por 
nós não mais administrável, entre a origem mundana de nossa 
afirmação reflexa e a chegada lá onde essa afirmação propria-
mente visa a chegar, a saber, ao Aonde da transcendência. Trata-se 
de tensão que não é produzida por nós numa posição média, 
logicamente subseqüente entre um "sim" unívoco e um "não" 
equívoco, mas de tensão que originariamente somos como su-
jeitos espirituais em nossa própria auto-realização e que pode-
mos designar com o termo "analogia", com a condição de que 
entendamos o que este termo significa no seu sentido original. 
Não devemos, pois, entender o termo "analogia" como se 
fosse realidade híbrida entre univocação e equivocação. Ao cha-
mar a escrivaninha de "escrivaninha", uso de conceito unívoco, 
ou seja, eu o refiro ao móvel significado por esta palavra sem-
pre no mesmo sentido, porque de antemão deixei de lado ou fiz 
abstração de todas as diferenças individuais. Operei então uma 
predicação unívoca com o mesmo significado exato. Quando, 
porém, chamo de "manga" o fruto da mangueira e com a mes-
ma palavra designo a parte da roupa que veste o braço, a pala-
vra adquire sentido totalmente diverso em ambos os casos, ou 
seja, tem sentido equívoco. Temos aí dois conceitos, que, para 
nossa compreensão, nada têm a ver um com o outro. 
92 
Na filosofia escolástica, a assim chamada "analogia do ser" 
(analogia entis) freqüentemente se apresenta como se constituísse 
algo de intermédio e subseqüente entre univocidade e equivoci-
dade. Como se alguém tivesse de falar algo sobre Deus, mas a 
seguir percebesse que realmente não o pode dizer porque o con-
teúdo da afirmação procede de outra fonte, de algo que nada 
tenhamuito que ver com Deus. E, em conseqüência, devería-
mos formar conceitos análogos, que constituiriam uma coisa in-
termédia entre o unívoco e o equívoco. 
Mas a coisa não se passa assim. A transcendência é algo 
de mais originário do que os conceitos singulares, que são cate-
goriais e unívocos. Pois a transcendência - essa ultrapassagem 
do horizonte ilimitado de todo o movimento de nosso espírito 
- é precisamente a condição, o horizonte, a base e fundamento 
que nos possibilitam comparar e classificar entre si os objetos 
singulares da experiência. Esse movimento transcendental do es-
pírito é o elemento originário, e é precisamente isso que desig-
namos de outra maneira com o termo "analogia". Por isso a ana-
logia nada tem a ver com a idéia de posição intermédia poste-
rior e inexata entre conceitos claros e conceitos que indicam duas 
coisas totalmente diversas mediante o mesmo som fonético. 
Pelo contrário, porque a experiência transcendental é a con-
dição que possibilita todo conhecimento categorial de objetos 
singulares, segue-se de sua natureza que a afirmação analógica 
significa o que há de mais básico e originário em nosso conhe-
cimento, de tal sorte que, por familiares nos sejam as afirma-
ções equívocas e unívocas provenientes de nosso conhecimento 
científico e de nosso trato diário com as realidades de nossa ex-
periência, elas constituem modos deficientes daquela relação ori-
ginal pela qual nos relacionamos com o Aonde de nossa trans-
cendência. E essa relação original é precisamente o que chama-
mos de analogia, oscilando entre um ponto de partida catego-
rial e a incompreensibilidade do mistério santo, Deus. Nós pró-
prios, assim poderíamos dizer, existimos analogamente por es-
tarmos fundados no mistério santo, que sempre se nos ~scapa 
ao mesmo tempo que sempre nos constitui por seu apresentar-
se a nós e seu reenviar-nos às realidades concretas, singulares 
e categoriais do âmbito de nossa experiência, que, por sua vez, 
em sentido contrário, constituem a mediação e o ponto de par-
tida para o nosso conhecimento de Deus. 
93 
Sobre o ser pessoal de Deus 
Afirmar que Deus é pessoa, que-é um Deus pessoal, é parte 
dos dados fundamentais da convicção cristã sobre Deus. Mas 
é enunciado que acarreta especiais dificuldades para o homem 
de hoje e não sem razão. Ao dizermos que Deus é pessoa (em 
sentido que ainda nada tem a ver com a tripersonalidade de 
Deus), a questão do ser pessoal de Deus se nos apresenta sob 
duplo aspecto: podemos nos perguntar se Deus deve ser chama-
do de pessoa em si mesmo, como também podemos nos perguntar 
se ele é pessoa somente com referência a nós, e se no seu pró-
prio ser ele fica oculto para nós em sua distância absoluta e trans-
cendental. Neste caso deveríamos dizer que ele é pessoa, mas 
que por isso não entraria absolutamente na relação conosco que 
pressupomos em nossos atos religiosos, na oração e em nossa 
referência a Deus pela fé, esperança e caridade. Só trataremos 
das reais dificuldades que a afirmação de Deus como pessoa cau-
sa para os homens de hoje ao discutirmos explicitamente a rela-
ção entre Deus e o homem, a autocomunicação de Deus pela 
graça como constituição transcendental do homem. 
Se prescindirmos dessas dificuldades por ora, podemos di-
zer que a afirmação de que Deus é pessoa, que ele é pessoa ab-
soluta que se situa em absoluta liberdade perante tudo o que ele 
estabelece como diferente de si mesmo, esta afirmação, dizemos, 
na verdade é afirmação evidente por si mesma, exatamente co-
mo quando dizemos que Deus é o ser absoluto, o fundamento 
absoluto, o mistério absoluto, o bem absoluto, o horizonte defi-
nitivo e absoluto em cujo interior se realiza a existência huma-
na na liberdade, no conhecimento e no agir. É evidente por si 
mesmo antes de tudo que o fundamento da realidade existente 
deva possuir nele mesmo de antemão e em absoluta plenitude 
e pureza essa realidade que por ele é fundada, porque de outra 
forma este fundamento não poderia ser fundamento da reali-
dade que é fundada, e porque de outra forma o fundamento se-
ria em última análise o nada vazio que, se o termo for levado 
verdadeiramente a sério, não diria nada nem poderia nada fundar. 
É claro que a subjetividade e personalidade que experimen-
tamos como nossa, a unicidade individual e limitada pela qual 
nos distinguimos dos demais, a liberdade que se deve exercer sob 
milhares de condicionamentos e necessidades, tudo isto implica 
uma subjetividade finita marcada por limitações que, com tais 
94 
limitações, não podemos afirmar do seu fundamento, ou seja, 
de Deus. E é evidente que semelhante personalidade individual 
não pode convir a Deus, que é o fundamento absoluto de tudo 
em sua radical originalidade. Se disséssemos, portanto, que nes-
te sentido Deus não é pessoa individual, porque não pode na 
verdade experimentar-se como delimitado com referência a ou-
tra realidade nem limitado por outra realidade, porque ele não 
experimenta nenhuma diferença de si mesmo, mas antes ele pró-
prio é quem estabelece a diferença de si mesmo e, em conseqüên-
cia, ele próprio é em última instância a diferença com respeito 
ao outro, então temos razão em dizer que Deus não pode ser 
chamado de pessoa neste sentido. 
Mas, procedendo assim, poderíamos fazer o mesmo com 
referência a todo conceito transcendental que se aplica a Deus. 
Quando digo que Deus é o sentido originário, o fundamento que 
tudo possibilita, a claridade absoluta, o ser absoluto etc., tenho 
que saber já o que quer dizer fundamento, sentido etc. e só pos-
so fazer todas essas afirmações em sentido análogo, ou seja, na-
quele movimento em que o sujeito que compreende deixa sua 
compreensão como que desaguar no mistério santo, inefável e 
incompreensível. Se é que algo se pode predicar de Deus, deve-
mos atribuir-lhe o conceito de "personalidade". É claro que o 
enunciado "Deus é pessoa" só se pode afirmar e é verdadeiro 
a respeito de Deus quando, ao fazer e compreender esse enun-
ciado, nós o abrimos para a inefável obscuridade do mistério 
santo. É claro que, como filósofos, sabemos o que significa este 
enunciado mais concreta e exatamente somente quando, segun-
do uma máxima fundamental do genuíno filosofar, não preen-
chemos arbitrariamente o a priori filosófo em sua formalidade 
vazia e em seu vazio formal nem o deixamos arbitrariamente va-
zio, mas antes permitimos que esse enunciado formal receba seu 
conteúdo de nossa experiência histórica, permitindo que seja pes-
soa precisamente da forma em que de fato quer encontrar-se co-
nosco e se tem encontrado conosco em nossas histórias indivi-
duais, na profundeza de nossas consciências, e na totalidade da 
história humana. 
Não devemos, pois, transformar esse vazio formal e essa for-
malidade vazia do conceito transcendental de pessoa afirmado 
de Deus um falso deus ou ídolo, recusando de início a permitir 
que o próprio Deus o preencha de sentido mediante a experiên-
cia pessoal de oração, mediante a história pessoal individual na 
95 
qual Deus se aproxima de nós, e mediante a história da revela-
ção cristã. Em vista disso, até certo ponto se justifica certa in-
genuidade religiosa, que -entende a personalidade de Deus em 
sentido quase categorial. 
O fundamento de nossa personalidade espiritual, qae pre-
cisamente na constituição transcendental dessa nossa pessoa es-
piritual anuncia-se sempre, ao mesmo tempo que se esquiva, pre-
cisamente como fundamento de nossa pessoa, com isso exata-
mente já se revelou como pessoa. A idéia de que o fundamento 
absoluto de todas as coisas seja como que uma lei cósmica in-
consciente e impessoal, uma estrutura inconsciente e impessoal 
das coisas, uma fonte que a si mesma se esvazia sem possuir-se, 
fonte que dá origem ao espírito e à liberdade sem que seja ela 
mesma espírito e liberdade, a idéia de um fundamento originá-
rio cego do mundo que não possa nos mirar ainda que o quises-
se, tudo isto não passa de representação cujo modelo se toma 
do contexto do mundo impessoaldas coisas, e não provém da 
verdadeira fonte em que se enraíza a experiência originária trans-
cendental, ou seja, não provém da experiência livre e subjetiva 
que um espírito faz de si mesmo. Em sua própria constituição 
um espírito finito sempre se percebe como tendo origem em ou-
tro e como sendo dado a si mesmo por outro - por outro, por-
tanto, que ele não pode falsamente interpretar como se fora um 
princípio impessoal e como se fora uma coisa. 
4. A RELAÇÃO DO HOMEM PARA COM O SEU FUNDAMENTO 
TRANSCENDENTE: A CONDIÇÃO DE CRIATURA 
Relativamente ao tema da condição de criatura que carac-
teriza nossa relação para com Deus, haveremos de considerá-lo 
aqui apenas em seus traços fundamentais últimos e muito for-
malizados. Porque esta relação para com Deus vem a ser expressa 
cabalmente apenas pelo conjunto de toda a mensagem cristã. 
E, no que diz respeito a essas características e traços fundamen-
tais e muito formais, discutiremos antes de tudo a própria rela-
ção enquanto se pode caracterizar em sua essência última como 
relação de criatura para com o Criador. 
A essa altura, temos, sem dúvida, o direito de prescindir 
da questão se este é enunciado meramente filosófico, em que 
a asserção e o objeto são puramente naturais, ou se estaríamos 
96 
tratando de afirmação filosófica de sujeito filosófico, mas tal 
que o objeto da afirmação seria uma realidade de que a ação 
de Deus na graça seja co-constitutiva, ainda que assim possa vir 
a ser interpretada apenas subseqüente e teologicamente, ou se 
esta afirmação de nossa condição de criatura faz parte inteira-
mente do campo da teologia revelada até no que se refere ao ob-
jeto afirmado e ao sujeito que afirma. Com freqüência surge 
na teologia escolástica a questão se a doutrina do Concílio Va-
ticano I, segundo a qual se pode conhecer a Deus pela chamada 
luz da razão natural, também se refere a Deus enquanto é não 
só fundamento originário do mundo, mas também o criador do 
mundo em sentido estrito, ou seja, se nossa condição de criatu-
ra também é parte dos dados que, segundo o Vaticano 1 (DENZ 
3004), se podem conhecer pela luz da razão natural. O Vaticano 
I não responde a essa questão. Na verdade ensina que Deus é 
criador de todas as coisas, que ele as criou e continua criando 
do nada. Mas nada diz sobre se essa afirmação possa ser afir-
mação meramente filosófica ou possa ser feita somente no inte-
rior da revelação e, portanto, da autocomunicação pessoal de 
Deus. 
A condição de criatura 
não é caso particular de relação causal 
Em todo caso, em nossa experiência transcendental, que ine-
1 udível e necessariamente nos remete ao inefável mistério santo, 
está dado o que venha a ser condição de criatura e na verdade 
como algo que é experimentado imediatamente nessa experiên-
cia. O termo "condição de criatura" interpreta correntemente 
essa experiência original da relação entre nós e Deus. Em ana-
logia e continuando a desenvolver uma afirmação, que já tive-
mos oportunidade de fazer, dizemos que a condição de criatura 
não significa caso particular de relação causal geral entre duas 
realidades, nenhuma relação que se encontre, ainda que de ma-
neira um pouco diferente, também alhures. Em primeira instân-
cia e originariamente, a condição de criatura refere-se a uma re-
lação cuja natureza só podemos descobrir no seio da experiên-
cia transcendental como tal e não no fato de uma coisa fundar-
se em outra do mesmo gênero dela, não no fenômeno empírico, 
que consiste em que um fenômeno no interior de nossa expe-
riência categorial possui conexão funcional com outro fenôme-
no. Se viéssemos a pensar que a condição de criatura não pas-
97 
4 - Curso Fundamental da Fé 
saria da extrapolação dessa relação funcional de duas realida-
des categoriais, que se nos oferecem dentro do campo de nossa 
experiência, de início já teríamos deixado de perceber o que sig-
nifica a condição de criatura. A condição de criatura não cons-
titui um dentre os muitos casos de nexo causal ou funcional en-
tre duas coisas que se apresentem organizadas sob uma unidade 
superior. A condição de criatura é relação absolutamente única 
que só ocorre uma vez e, portanto, tem lugar único, é relação 
que se nos comunica somente no seio da experiência transcen-
dental como tal. Assim como o princípio metafísico da causali-
dade não se pode considerar extrapolação da lei funcional de 
causalidade das ciências naturais, assim também a condição de 
criatura não se pode entender como caso ou extrapolação ou 
mesmo intensificação deste nexo categorial, causal ou funcio-
nal no interior do mundo. 
Portanto, o que propriamente significa procedência de cria-
tura experimenta-se originariamente no proc~so da transcen-
dência. Isso vem a significar também que os termos "relação de 
criatura", "ser criado", "criação" não apontam em primeira ins-
tância a um primeiro momento do tempo em que ocorreu a cria-
ção da realidade de que se trata, mas significam um processo 
que se acha em andamento e é atual, que para todo ser existente 
está ocorrendo agora da mesma forma como ocorreu em um mo-
mento anterior do tempo de sua existência, ainda que essa cria-
ção continuada seja a de um existente que se estende no tempo. 
Criação e condição de criatura em sua primeira intenção de di-
zer não indicam, portanto, evento dado em um momento (o pri-
meiro momento de um existente temporal), mas antes a consti-
tuição desse existente e de seu tempo mesmo, constituição que 
precisamente não entra no tempo, mas que é o fundamento do 
tempo. 
A condição de criatura 
como radical diferença e radical dependência de Deus 
Para vir a compreender o que significa a condição de cria-
tura como a relação básica do homem para com Deus, inicie-
mos uma vez mais pela experiência transcendental. O homem 
como pessoa espiritual implicitamente afirma, em todo o seu 
conhecer e agir, como fundamento real o ser absoluto, e o afir-
ma como mistério. Essa realidade absoluta e inabarcável, que 
98 
é sempre um horizonte, ontologicamente se ocultando, de toc;los 
os encontros espirituais com realidades, sempre é, em conseqüên-
cia, infinitamente diversa do sujeito que compreende. É também 
diversa de toda realidade finita compreendida. Como tal, ela está 
dada em toda afirmação, em todo conhecer e agir. 
Em correspondência a isso, podemos - a partir dessa afir-
mação fundamental - determinar sob suas duas facetas a rela-
ção entre o homem que pensa e a coisa pensada como seres fi-
nitos, e o absolutamente infinito: como o ser simplesmente ab-
soluto e infinito, Deus deve ser absolutamente diverso. Do con-
trário ele seria objeto de conhecer conceitua!, e não o funda-
mento deste conhecer. Ele é e continua sendo este fundamento 
até quando vem a ser denominado e objetivado na reflexão me-
tafísica e conceitua!. E, portanto, não pode precisar da realida-
de finita chamada "mundo", porque de outra forma não seria 
real e radicalmente distinto dela, mas sim peça de um todo mais 
elevado, tal como se pensa no panteísmo. E, por sua parte, o 
mundo deve depender radicalmente de Deus, sem tornar Deus 
dependente do mundo da forma como o senhor é dependente 
do servo. O mundo não pode pura e simplesmente trazer em si 
nada do que seja independente de Deus, tampouco como a to-
talidade das coisas do mundo em sua multiplicidade e unidade 
pode-se conhecer sem a pré-apreensão da transcendência do es-
pírito para Deus. Essa dependência deve ser livremente estabe-
lecida por Deus, porque, como finita e em processo de devir, não 
pode existir necessariamente e a necessidade do que foi estabe-
lecido, se acaso houvesse esta necessidade, só poderia proceder 
de necessidade situada em Deus mesmo e em seu próprio ato 
de estabelecer o mundo, necessidade que faria do mundo uma 
necessidade de Deus e que, portanto, não permitiria a Deus ser 
independente do mundo. Essa radical dependência deve ser per-
manente, não se referindo, portanto, apenas a um momento no 
início, pois o que é finito está sempre referido, nopresente e no 
passado, ao absoluto como seu fundamento. 
A doutrina cristã chama esta singular relação entre Deus 
e o mundo de condição criada do mundo, sua criaturidade, o 
permanente estar-dado-a-si-mesmo do mundo mediante o livre 
estabelecimento da parte do Deus pessoal. Este estabelecer da 
parte de Deus não pressupõe, pois, um material pré-dado e, neste 
sentido, é "do nada". Criação "do nada" no fundo quer dizer: 
criação totalmente a partir de Deus, mas de tal sorte que nessa 
99 
criação o mundo seja radicalmente dependente de Deus, e Deus 
não se torne dependente do mundo, mas pelo contrário, perma-
neça livre com referência ao mundo e fundado em si mesmo. 
Onde quer venhamos a encontrar relação causal de natureza ca-
tegorial e intramundana, o efeito é por definição dependente de 
sua causa, mas esta causa é por sua vez de maneira singular de-
pendente do seu efeito, pois não pode ser tal causa sem causar 
tal efeito. Ora, isso não ocorre no caso da relação entre Deus 
e a criatura, pois de outra forma Deus seria um elemento no âm-
bito de nossa experiência categorial e não o Aonde infinitamen-
te distante da transcendência, em cujo interior compreendemos 
a realidade finita singular. 
Radical dependência de Deus e genuína autonomia 
O próprio Deus é quem estabelece a criatura e a distinção 
dela com referência a si. Mas, pelo fato mesmo de Deus estabe-
lecer a criatura e sua distinção com referência a si, a criatura 
é realidade genuína e distinta de Deus e não mera aparência por 
detrás da qual se esconde Deus e sua realidade. Dependência ra-
dical e genuína realidade do existente que procede de Deus cres-
cem na mesma proporção e não em proporção inversa. Em nos-
. sa experiência humana ocorre que, quanto mais algo é depen-
dente de nós, tanto menos é diferente de nós e tanto menos pos-
sui sua própria realidade e autonomia. No âmbito da realidade 
categorial, a radical dependência do efeito para com a causa e 
a independência e autonomia do efeito crescem em proporção 
inversa. 
Mas quando refletimos sobre a peculiar relação transcen-
dental entre Deus e a criatura, fica claro para nós que aí genuí-
na realidade e radical dependência constituem simplesmente as-
pectos de uma só e mesma realidade e, em decorrência, crescem 
na mesma proporção e não em proporção inversa. Nós e as rea-
lidades existentes do nosso mundo existimos real e verdadeira-
mente e somos distintos de Deus não apesar, mas por causa de 
sermos estabelecidos no ser por Deus e não por outra realidade 
qualquer. A criação é a forma única, irrepetível e incomparável 
que não pressupõe o outro como possibilidade de ativo sair-de-
si-mesmo, mas que precisamente cria o outro como outro en-
quanto o mantém perto de si como fundado e em igual medida 
o entrega à sua autonomia. 
100 
É claro que, em última análise, o conceito de criação só po-
derá vir a ser entendido e assimilado pela pessoa que não só faz 
a experiência de sua própria liberdade e responsabilidade, váli-
da também perante Deus e em relação a ele, na profundeza de 
sua existência, mas que também o acolheu livremente no ato de 
sua liberdade e na reflexão. O que propriamente significa o que 
seja algo de diverso de Deus e, contudo, dele proceder radical-
mente e no mais profundo de si mesmo, o que significa dizer 
que essa procedência radical precisamente funda a autonomia, 
de tudo isso só se pode fazer experiência quando uma pessoa 
espiritual criada faz a experiência de sua própria liberdade co-
mo realidade proveniente de Deus e referida a Deus. Somente 
quando a pessoa se percebe como sujeito livre e responsável pe-
rante Deus e assume essa responsabilidade é que ela entende o 
que seja autonomia e que essa não decresce, mas aumenta na 
mesma proporção que a dependência com referência a Deus. So-
mente então- é que se nos toma claro que o homem é ao mesmo 
tempo autônomo e dependente do seu fundamento. 
A experiência transcendental como lugar originário 
da experiência da condição de criatura 
O lugar originário onde fazemos a experiência da condi-
ção de criatura não é a cadeia dos fenômenos ocorrendo em tem-
poralidade vazia, mas a experiência transcendental onde o su-
jeito experimenta a si e seu próprio tempo como sendo porta-
dos pelo fundamento incompreensível. Por isso a doutrina cris-
tã sempre expressa esta condição de criatura à luz da experiên-
cia - que é adoração de Deus - da própria realidade autôno-
ma e responsável, entregue à disposição indisponível do misté-
rio por excelência e que dessa forma precisamente se toma nos-
sa própria responsabilidade. A condição de criatura comporta, 
pois, tanto a graça como o mandato de preservar e assumir aquela 
tensão da analogia que é o sujeito finito, de pensar-se, entender-se 
e assumir-se como algo verdadeiramente real e entregue a si mes-
mo e precisamente assim como o que é simplesmente proceden-
te e dependente e referido ao mistério absoluto como a seu fu-
turo. Por isso este sujeito marcado pela tensão e pela analogia 
estará sempre correndo o risco e a tentação de perder de vista 
um dos dois momentos dessa unidade indisponível. Ou a pes-
soa se entende como mera aparência vazia mediante a qual a 
101 
divindade leva avante o seu jogo eterno, esquivando-se à sua li-
berdade e responsabilidade, pelo menos no que diz respeito a 
Deus, e jogando a responsabilidade por si e sua existência nas 
costas de Deus de tal sorte que sua carga não permaneça na ver-
dade carga realmente sua, ou - esta é a outra possibilidade deste 
equívoco - a pessoa passa a entender a verdade e a realidade 
verdadeira que somos nós como se ela na verdade não proviesse 
de Deus, mas tivesse peso e significado independentemente de-
le, de tal sorte que Deus viesse a ser considerado parceiro do ho-
mem em falso sentido, que consistiria em pensar que a distin-
ção entre ele e nós e, em conseqüência, a possibilidade de real 
comunhão com ele não seriam estabelecidas por ele mesmo, mas 
lhe seriam anterior a ele e à nossa relação para com ele. 
A experiência da condição de criatura 
como denuminização do mundo 
A doutrina cristã que afirma a condição criada do mundo, 
que primária e originariamente se estabelece pela posição da li-
vre subjetividade de pessoas finitas, não vê aí um caso singular 
estranho e quase não mais explicável. Pelo contrário, essa dou-
trina implica a demitização e denuminização do mundo, ponto 
que é de suma importância para a concepção cristã da existên-
cia e do mundo - e não somente para o moderno sentir acerca 
da existência. 
À medida que o mundo, livremente estabelecido por Deus, 
dele verdadeiramente se origina mas não da forma como Deus 
se possui a si mesmo, na realidade ele não é Deus. Por isso é 
justo considerar o mundo não como "natureza sagrada", mas 
como o material disponível para a atividade criadora do homem. 
Não é na natureza - em sua finitude surda e não experimenta-
da por ela - mas é em si próprio, e no mundo apenas enquanto 
conhecido e administrado por ele na ilimitada abertura de seu 
próprio espírito, que o homem faz a experiência de sua condi-
ção criada e aí se encontra com Deus. 
Esta observação, é claro, não basta para descrever de for-
ma adequada a correta relação do homem para com a "nature-
za" enquanto seu meio ambiente. Essa relação apresenta ade-
mais muitas outras características que não vêm à tona com ape-
nas falar da denuminização do mundo, e tem ela própria sua 
história, cujas possibilidades hoje experimentamos e não só sob 
102 
aspectos positivos. Mas, apesar de sua importância, aqui não 
nos podemos ocupar mais detidamente com esta questão. 
5. A POSSIBILIDADE DE ENCONTRAR DEUS NO MUNDO 
Tensão entre a perspectiva transcendental 
e a religião histórica 
A questão da possibilidade de encontrar Deus e sua ação 
para conosco em nossa concreta experiência histórica no mun-
do apresenta hoje especiais dificuldades. Deus surgiu-nos até o 
momento como o fundamento portador de tudo, que conosco 
pode se encontrar no horizonteúltimo, que ele próprio é e cons-
titui. Como aquele que não pode ser inserido juntamente com 
o que por ele é fundado em um sistema que abranja a ambos, 
ele nos surgiu como o sempre transcendente, como pressuposto 
a tudo que está posto, e, em conseqüência, como alguém que 
não se pode pensar como algum desses existentes categoriais, 
ou seja, compreendido e compreensível para nós. 
Mas eis que precisamente deste dado parece derivar-se co-
mo conseqüência aquela dificuldade que talvez hoje seja adi-
ficuldade fundamental que os homens contemporâneos experi-
mentam com respeito à prática concreta da religião. Enquanto 
pressuposto inefável e incompreensível, enquanto fundamento 
(Grund) e abismo (Abgrund), enquanto mistério indizível, Deus 
não pode ser encontrado em nosso mundo, parece não poder 
entrar no mundo com que nos temos de haver, pois que assim 
se tornaria o que não é, a saber, uma realidade singular lado 
a lado com outra realidade que não ele. Quisesse ele aparecer 
no seu mundo, parece que ele cessaria de imediato de ser ele mes-
mo: o fundamento de todo fenômeno, ele que não é nenhum 
fenômeno. Parece que Deus não pode per definitionem ser in-
tramundano. A pessoa que disser apressadamente que afinal ele 
não precisa disso, pois que sempre há de ser pensado como es-
tando para além do mundo, provavelmente ainda não terá sen-
tido esta dificuldade realmente radical. A dificuldade consiste 
em que Deus per definitionem parece não poder estar onde per 
definitionem nós estamos. Toda objetivação de Deus parece, en-
quanto algo de localizável e determinável no tempo e no espa-
ço, enquanto algo que está aqui e agora, não ser Deus essencial-
mente, mas algo que devemos deduzir como fenômeno de ou-
103 
tros fenômenos que se podem apontar e se devem postular no 
mundo. 
Mas a religião - tal ·como a conhecemos - como religião 
de oração para obter a intervenção de Deus, como religião de 
milagres, como religião de uma história da salvação diferente 
de outra história, como religião em que parece haver certos su-
jeitos com a plenitude de autoridade divina como distintos de 
outros sujeitos, como religião de livro inspirado que procede de 
Deus, como religião que apresenta palavra determinada e que 
se supõe ser a palavra de Deus distinta de outras palavras, co-
mo religião que afirma determinados profetas e portadores da 
revelação como autorizados por Deus, como religião com um 
papa que se diz vigário de Jesus Cristo (a expressão "Jesus Cristo" 
aí soa mais ou menos como a palavra "Deus") - uma religião 
deste tipo e com estas características retém que determinados fe-
nômenos que ocorrem no âmbito de nossa experiência são ob-
jetivações e manifestações características de Deus, e, em conse-
qüência, dessa forma Deus como que aparece dentro do mundo 
de nossa experiência categorial em pontos bem determinados en-
quanto distintos de outros pontos. 
Tal religião parece de início incompatível com a nossa pers-
pectiva e ponto de partida transcendental que, por outro lado, 
não podemos absolutamente abandonar, se quisermos simples-
mente falar de Deus hoje. A religião, tal como concretamente 
é praticada pelos homens, parece sempre e inevitavelmente di-
zer: "Deus está aqui e não lá", "isto está de acordo com sua von-
tade e .não aquilo", "ele se revelou aqui e não lá". A religião da 
forma como é concretamente praticada parece nem querer nem 
poder renunciar a uma categorialização de Deus. A religião que 
a isto renuncia parece diluir-se em névoa, que talvez exista, mas 
com ela praticamente não se pode viver religiosamente. O nosso 
ponto de partida e perspectiva básica parece dizer-nos o contrá-
rio: Deus está em toda parte à medida que é quem tudo funda-
menta, e não está em parte nenhuma à medida que toda a reali-
dade por ele fundamentada é criatura, e tudo o que surge assim 
no âmbito do mundo de nossa experiência é diverso de Deus, 
separado por abismo absoluto existente entre Deus e a relidade 
não-divina. 
Esta constitui - ainda que expressa em linguagem bastan-
te formal - a dificuldade de base para todos nós hoje. Parece 
que todos nós (sem exceção sequer do ateu perturbado e apavo-
104 
rado pela vacuidade dolorosa de sua existência) retemos poder 
ser religiosos no sentido de reverenciarmos o inefável em silên-
cio, sabendo que tal existe. Facilmente temos a impressão de que 
seja indiscrição pouco religiosa, quase de mau gosto, em refe-
rência a este piedoso e silencioso deixar que o mistério santo per-
maneça o que ele é, quando não só falamos do inefável, como 
também na piedade corrente apontamos como que com o dedo 
essa ou aquela coisa determinada no interior do mundo de nos-
sa experiência e dizemos: Deus está aqui. É claro que a religião 
da revelação histórica que é o cristianismo encontra nesta difi-
culdade a ameaça mais radical e geral. Para superar devidamente 
esta dificuldade, deveremos proceder cuidadosamertte e passo a 
passo. 
A proximidade imediata para com Deus 
como proximidade· mediada 
É fácil perceber que um contato imediato com Deus como 
tal - por mais que ainda reste explicá-lo com maior precisão 
- ou não pode haver de fato ou não pode ser impossível por 
ser em certo sentido também mediado. Se existe proximidade ime-
diata para com Deus, ou seja, se realmente podemos nos haver 
com Deus como enquanto tal, essa proximidade imediata não 
pode depender do fato de a realidade não-divina desaparecer sim-
plesmente. É claro que pode existir fervor religioso alimentando-se . 
do sentimento básico que o emergir de Deus faz com que a cria-
tura desapareça. Esse sentir, segundo o qual a pessoa deva co-
mo que desvanecer-se quando Deus quer mostrar-se, é algo in-
teiramente compreensível e é idéia que se acha testemunhada in-
clusive no Antigo Testamento. O religioso ingênuo, que repre-
senta Deus de maneira categorial certamente não sente nenhu-
ma dificuldade quanto a isto, como também não vê dificuldade 
no fato de ser criatura de Deus quanto à sua liberdade, quer co-
mo faculdade, quer como ato. Mas no momento em que perce-
bemos nossa radical procedência de Deus, que dele dependemos 
até a última fibra do nosso ser, então a percepção de que goza-
mos de liberdade com referência a Deus é na verdade algo que 
não é assim tão evidente. 
Se a proximidade imediata para com Deus não pode de an-
temão ser contradição absoluta, não pode depender de que o 
que não é divino pura e simplesmente desapareça ao se aproxi-
105 
mar de Deus. Como tal, Deus não necessita de encontrar um 
lugar que lhe seja cedido por qualquer coisa que não ele. Pois 
pelo menos a presença de Deus enquanto fundamento e hori-
zonte transcendental de todo existente e cognoscente ( e isto cons-
titui também uma chegada de Deus, uma proximidade imediata 
para com ele) ocorre através e no dado do ente finito. 
Mediação e imediatez não são conceitos simplesmente con-
traditórios. Existe genuína.mediação à proximidade imediata para 
com Deus. E onde, segundo a compreensão da fé cristã, é dada 
a nós a autocomunicação de Deus em seu próprio ser, que é a 
comunicação mais radical e absolutamente imediata (a saber, na 
visão imediata de Deus enquanto realização consumada do es-
pírito finito pela graça), esta imediatez radical em certo sentido 
é ainda mediada pelo sujeito finito que dela faz a experiência 
ao fazer a experiência de si mesmo. Nesse manifestar-se de Deus, 
que é o mais imediato que existe, o sujeito finito não vem a 
desvanecer-se nem a ser como que supresso. Pelo contrário, é 
então que ele precisamente atinge sua realização plena e consu-
mada e, assim sendo, sua mais plena autonomia como sujeito. 
Essa autonomia é ao mesmo tempo pressuposto e conseqüência 
dessa absoluta imediatez para com Deus e a partir de Deus. 
Uma realidade finita como tal, à medida que aparece co-
mo essa determinada coisa singular dentro de nosso horizonte 
transcendental, não pode representar a Deus de tal maneira que, 
pelo próprio fato de ela estar dada, também Deus já estivessepresente em si mesmo de forma que ultrapassasse a possibilida-
de de mediação dada pela nossa experiência transcendental. Pres-
cindindo do fato de que a experiência tanscendental e tal refe-
rência a Deus possa ser mediada por qualquer ente categorial, 
devemos reter que determinado ente singular posto no interior 
do horizonte transcendental não pode mediar a Deus de manei-
ra tal que, pelo simples fato que ele existe, esta presença de Deus 
além da transcendentalidade pudesse revestir o caráter que pa-
recemos pressupor em uma interpretação vulgar do fenômeno 
religioso. Isso fica simplesmente excluído pela absoluta distin-
ção que vigora necessariamente entre, por um lado, o mistério 
santo como o fundamento, e, por outro, tudo o que é por ele 
fundamentado. O ente singular como tal pode em sua concretu-
de e limite categoriais mediar a Deus à medida que em sua ex-
periência ocorre a experiência transcendental de Deus. Mas é claro 
106 
que ainda continua obscuro para nós porque e até que ponto 
essa espécie de mediação deveria caber a determinado ente ca-
tegorial antes que a outro. E somente quando podemos dizer 
isso é que pode haver algo como religião concreta e concreta-
mente praticada com seus elementos religiosos categoriais. 
A alternativa: "devoção ao mundo" 
ou verdadeira autocomunicação de Deus 
Continuamos, pois, diante de problema ainda não resolvi-
do, o problema que nos ocupa. Pois, dadas as nossas pressupo-
sições, parece que a religião é o respeito e reverência para com 
as estruturas categoriais do mundo, à medida que essas todas 
conjuntamente possuem referências transcendental para com o 
seu fundamento originário. E nesse tipo de "religião" na verda-
de Deus desempenha apenas papel indireto. Esta é uma das al-
ternativas. Poderíamos chamar esta alternativa de devoção e re-
verência para com o mundo da parte do homem, para com o 
mundo em suas estruturas próprias objetivas, inclusive suas es-
truturas interpessoais, acompanhadas esta devoção e reverência 
evidentemente de certo reconhecimento de que este mundo pos-
sui referência última ao seu fundamento (Grund) e abismo (Ab-
grund) transcendental, que se chama "Deus". O que então res-
taria de religião seria propriamente certa "devoção ao mundo" 
envolta divinamente. Uma pessoa veneraria a natureza como di-
vina, outra consideraria o mundo como palco e material de sua 
própria autolibertação e de sua própria compreensão na ação, 
e uma terceira poderia ser cientista que percebe a beleza da rea-
lidade vista em sua verdade. Tudo isso seria concebível no con-
texto de relação última ao inefável Donde e Aonde de tudo, que, 
com temor e tremor e num calar-se último, se poderia chamar 
de "Deus". Com isso teríamos descrito o que talvez se possa cha-
mar de "religião natural". "Natural", dizemos, porque é muito 
difícil distinguir claramente aí a natureza e a graça sobrenatural 
em sua relação recíproca. 
Ou será que a religião não passa de "devoção ao mundo"? 
não será mais do que isto? existe a possibilidade de contato ime-
diato com Deus, em que ele, sem deixar de ser realmente o que 
é, fazendo-se dele objeto categorial, não apareça simplesmente 
como a condição sempre remota e distante da possibilidade do 
trato do sujeito com o mundo, mas em que ele comunique a si 
107 
mesmo como tal e de tal forma que esta comunicação possa vir 
a ser recebida por nós? Veremos que esta essência "sobrenatu-
ral" da religião e a distinção primeira e essencial desta religião 
com relação ao que há pouco chamamos de "religião natural" 
não se podem subsumir em conceito unívoco de religião. Aí de-
vemos frisar que uma "presença" de Deus como condição e ob-
jeto do que costumamos chamar de religião no sentido corren-
te, pelo menos no cristianismo, pode existir só à medida que a 
representação desta presença divina·na palavra humana, no sa-
cramento, numa Igreja, numa revelação, numa Escritura etc. es-
sencialmente não possa ser outra coisa que indicação categorial 
da presença transcendental de Deus. Se Deus deve continuar sen-
do ele mesmo também ao se comunicar a nós, se ele deve estar 
presente a nós em imediatez mediada como a única realidade 
infinita e como mistério inefável, e se neste sentido a religião 
deve ser possível, então este evento deve ocorrer com base na 
experiência transcendental como tal, haverá de ser uma modali-
dade desta relação transcendental, relação que possibilita con-
tato imediato com Deus. E a manifestação e concretude catego-
rial deste contato imediato não podem estar dadas em sua fini-
tude categorial como tal, mas somente em sua característica de 
apontar para a modalidade desta relação transcendental que dá 
contato direto com Deus. 
Mais tarde haveremos de nos perguntar, em busca de maior 
precisão, pela maneira em que se dá esta modalidade de refe-
rência transcendental para com Deus. Ao responder a esta per-
gunta, ficará claro que a interpretação cristã da experiência trans-
cendental de Deus consiste em que o mistério santo se faz pre-
sente não apenas como distância fria a nos lançar em nossa fi-
nitude, mas também na forma da proximidade absoluta de per-
dão e da absoluta oferta de si mesmo aos homens - embora 
tudo isto venha a ocorrer em virtude da graça e na total liberda-
de de Deus nessa sua autocomunicação. Quando tudo isso vier 
a ficar claro, teremos de nos perguntar por que essa proximida-
de imediata para com Deus não supera já de início toda outra 
presença religiosa concebível de Deus e mediada categorialmente, 
como se concebe, segundo parece, pela religião concreta, por re-
ligião que admite milagre, intervenções do poder de Deus no mun-
do, por religião que admite o atendimento de preces, por reli-
gião que reconhece uma aliança de Deus com os homens, por 
religião que propõe determinados sinais sacramentais etc., pe-
108 
los quais acontece a graça. Teremos de explicar por que todas 
essas coisas que, segundo a autocompreensão corrente da reli-
gião, se reconhecem como presença e anúncio de Deus na histó-
ria são presença real de Deus em si mesmo e, assim sendo, cons-
tituem verdadeiros fundamentos da religião, somente e à medi-
da que todas essas manifestações de Deus em nosso espaço e 
em nosso tempo constituem realizações históricas e concretas da 
autocomunicação transcendental de Deus. De outra forma se-
riam meros portentos e não o milagre da revelação histórica de 
Deus. 
O agir de Deus através de causas segundas 
De mais a mais, que se recorde quanto a isto o que Tomás 
de Aquino dizia quando frisava que Deus age através de causas 
segundas. É claro que se deverá entender esta afirmação em sen-
tido bastante diferenciado. A proximidade imediata para com 
Deus, seu ser mediado, sua presença e sua ausência são de iní-
cio grandezas diferenciadas já pelo fato de o espírito enquanto 
transcendência não ser a característica de todo existente no mun-
do. Mas aí nosso primeiro interesse é a sentença de Tomás de 
Aquino há pouco mencionada. Ela diz, se não a bagatelizarmos, 
que Deus opera o mundo e não propriamente opera no mundo, 
que ele sustenta a cadeia das causalidades, mas não que por sua 
atividade se insira nessa cadeia das causas como um elo, como 
se fosse uma causa entre as outras. A própria cadeia como to-
do, ou seja, o mundo no inter-relacionamento de suas partes e 
não somente em sua unidade abstrata e formal, o mundo em 
suas diferenciações concretas e nas diversidades profundas en-
tre os vários elementos no todo de sua realidade constitui a auto-
revelação do seu fundamento. E este fundamento mesmo não 
se pode encontrar como tal imediatamente nessa totalidade. Pois 
que o fundamento não aparece no seio do que é fundado, se 
ele é realmente o fundamento radical, e, portanto, divino e não 
uma função num entretecido de funções. Se todavia deve existir 
uma proximidade imediata de Deus para conosco, se é que de-
vemos encontrá-lo como é em si mesmo lá onde nos situamos 
em nosso mundo no espaço e no tempo, então essa proximida-
de imediata, emsi e na sua objetivação categorialmente históri-
ca, deve estar de início inserida neste mundo, então a concreta 
proximidade imediata de Deus para conosco, assim como a reli-
109 
gião concreta o pressupõe e vive, deve ser um momento e uma 
modalidade da proximidade imediata para com Deus, que é si-
multaneamente transcendental e historicamente mediada. 
Portanto podemos conceber uma "intervenção" especial de 
Deus somente como concretização histórica da autocomunica-
ção transcendental de Deus que já seja intrínseca ao mundo con-
creto. Tal "intervenção" de Deus sempre acontece, antes de tu-
do, a partir da abertura fundamental de uma matéria finita e 
de um sistema biológico da direção do espírito e de sua histó-
ria, e, em segundo lugar, a partir da abertura do espírito na di-
reção da história da relação transcendental entre Deus e a pes-
soa criada que se caracteriza pela liberdade de ambos os lados, 
de tal sorte que toda intervenção real de Deus em seu mundo, 
embora seja livre e não possa ser deduzida, é sempre e somente 
o tornar-se histórico e o tornar-se concreto da "intervenção", na 
qual Deus, como o fundamento transcendental do mundo, des-
de o princípio se inseriu neste mundo como o fundamento que 
se comunica a si próprio. 
É problema fundamental para a compreensão hodierna do 
cristianismo que se esclareça a maneira como Deus pode real-
mente ser Deus e não mero elemento do mundo, e a maneira 
como, não obstante, em nossa relação religiosa para com o mun-
do devemos entendê-lo como não permanecendo fora do mun-
do. O dilema da "imanência" ou "transcendência" de Deus de-
ve ser resolvido sem que se sacrifique nenhum dos dois pólos 
de interesse. Em nossas considerações até o momento já nos de-
paramos pelo menos duas vezes com a estrutura formal dessa 
peculiar relação entre o estar-além transcendental e a acessibili-
dade categorial. Tanto nossa subjetividade irredutível como nossa 
liberdade responsável se nos depararam como existenciais hu-
manos fundamentais que experimentamos sem cessar e que ob-
viamente sempre se objetivizam no concreto do tempo e does-
paço; mas que, não obstante, não constituem algo de tangível 
que possa ser colhido e delimitado como objeto singular lado 
a lado com outros objetos. 
Análoga e formalmente, a mesma relação de tensão (e em 
última analise pelas mesmas rezões) vigora quando nos interro-
gamos se Deus_ se anuncia tangivelmente no seu mundo, se, pa-
ra dar exemplos, ele escuta as orações, faz milagres, intervém 
poderosamente na história etc. Se, como pessoas religiosas, res-
pondemos afirmativamente a essas questões, isto não significa 
110 
todavia que o que é imediatamente tangível nessa "intervenção" 
como tal não exista em relação funcional com o mundo ou que 
não se possa explicar causalmente ou que, fora de relação reli-
giosa transcendental para com Deus, em certas circunstâncias 
não se possa inserir nessa conexão funcional pelo fato de que 
venha a ser desconsiderado como algo "ainda não explicado" 
ou como algo justificadamente deixado de lado, mas não excluído 
por princípio das relações causais que ocorrem no mundo. A 
presença categorial de Deus diz apenas que onde o sujeito per-
manece realmente sujeito como sua experiência religiosa trans-
cendental e se realiza como tal, essas objetivações da interven-
ção de Deus adquirem valor no interior dessa experiência trans-
cendental de Deus, valor que de fato convém a tais fenômenos, 
mas precisamente à medida que com toda verdade se situam den-
tro desse contexto subjetivo e que por isso também podem ser 
reconhecidos nesse caráter especial que lhes compete somente 
dentro desse contexto. 
Esclareçamos o que quisemos dizer por meio de exemplo 
que constitui uma das formas mais modestas da intervenção de 
Deus no seu mundo e que, portanto, nem pode nem pretende 
explicar plenamente o modo específico de um tipo mais elevado 
de "intervenção" de Deus no mundo. Sobrevém-me um "bom 
pensamento" que tem como conseqüência uma decisão impor-
tante, que se pode comprovar também intramundanamente e que 
é objetivamente correta. Passo a considerar este bom pensamento 
como iluminação de Deus. Será que posso fazê-lo? Posso ser le-
vado a fazer tal juízo em virtude do caráter repentino ou da im-
possibilidade de encontrar explicação causal ou funcional para 
o surgimento deste bom pensamento; mas meu juízo no fundo 
não se justifica por tal impressão subjetiva. Pelo contrário, te-
nho o direito e até o dever de explicar o surgimento deste pensa-
mento, buscando reconduzi-lo a associações que me sejam in-
conscientes, a uma estrutura fisiológica e psicológica talvez não 
analisável neste momento, considerá-lo como função do meu eu, 
de minha história, do meu meio ambiente e das relações com 
os outros, do mundo simplesmente. Posso portanto explicá-lo, 
ou seja, inseri-lo com todas as peculiaridades concretas e singu-
lares que o caracterizam no todo do mundo que não é Deus. E, 
em conseqüência, neste sentido posso não captar neste "bom 
pensamento" nenhuma presença especial de Deus no mundo, ne-
nhuma "intervenção" de Deus no mundo. 
111 
No momento porém, em que eu, por um lado, me percebo 
e me aceito como sujeito transcendental em minha referência a 
Deus, e, por outro, aceito esse mundo concreto em toda a sua 
concretude, e, apesar de toda interconexão funcional de todos 
os seus elementos, o aceito como o mundo concreto em que mi-
nha relação concreta com o fundamento absoluto de minha exis-
tência se desenvolve historicamente para mim e a realizo na li-
berdade, então dentro dessa relação subjetiva e transcendental 
para com Deus este "bom pensamento" adquire objetivamente 
significado bem definido e positivo, de tal sorte que posso e de-
vo dizer: Deus o quer em seu significado positivo como momento 
do mundo uno estabelecido em liberdade por seu fundamento 
como o mundo de minha relação subjetiva para com Deus, e 
neste sentido constitui uma "iluminação" de Deus. É claro que, 
a partir disso, poder-se-ia objetar que desta forma tudo poderia 
vir a ser considerado como especial providência e intervenção 
de Deus, pressupondo-se apenas que eu aceite a constelação con-
creta de minha vida e do mundo de tal modo que ela se torne 
concretização positivamente salvífica da minha relação transcen-
dental para com Deus na liberdade. Mas a esta objeção pode-
mos responder simplesmente com a contrapergunta: e por que 
não poderia ser assim? 
Quando e à medida que alguma coisa, não só na teoria mas 
na realização concreta da liberdade, se insere positivamente na 
livre relação para com Deus como objetivação e mediação des-
ta, torna-se de fato inspiração, ato, por pequeno que seja, da 
providência de Deus, como costumamos dizer em linguagem re-
ligiosa, trata-se de intervenção especial de Deus. Mas esta mi-
nha reação de fato subjetiva e correta na liberdade a essa ou àque-
la constelação, em si funcionalmente explicável, do campo de 
minha liberdade, que medeia concretamente minha relação pa-
ra com Deus, depende, a despeito da natureza subjetiva de mi-
nha própria decisão e reação, de fatores que podem ser favorá-
veis ou desfavoráveis e que todavia nessa sua diversidade não 
estão pura e simplesmente sujeitos a meu bel-dispor. Mas, neste 
sentido, podemos e devemos com razão considerar determina-
da situação particular que coopera para o bem salvífico - en-
quanto distinta de outra situação, que poderia ser mas não é sal-
vífica - como na verdade providência especial de Deus, como 
intervenção dele, como atendimento favorável de sua parte, co-
mo graça especial, ainda que a situação oposta, manipulada pela 
112 
liberdade do homem mediante resposta correta, pudesse vir a 
se transformar em semelhante ato especial de Deus, mas de fato 
não veio a sê-lo. Porque a própria reação como tal do sujeito 
na liberdade é por sua vez real e verdadeiramente para o sujeito 
mesmo algo que lhe é dado, sem que com isto perca o caráter 
de ação própria e responsável do sujeito, a boa decisão,com tu-
do o que ela pressupõe como sua mediação, reveste-se com ra-
zão do caráter de intervenção de Deus, embora isto ocorra na 
e através da liberdade humana, e em conseqüência, possa explicar-
se funcionalmente à medida que a história da liberdade o pode 
ser, ou seja, à medida que ela se constrói e se baseia em elemen-
tos objetivos no espaço e no tempo. 
113 
TERCEIRA SEÇÃO 
O HOMEM COMO SER 
RADICALMENTE 
AMEAÇADO PELA CULPA 
1. O TEMA E SUAS DIFICULDADES 
Culpa e pecado constituem, sem dúvida, tema central no 
cristianismo. Pois o cristianismo entende-se como religião por-
tadora de redenção, como o evento do perdão da culpa pelo pró-
prio beus em seu agir em nosso favor em Jesus Cristo,. em sua 
morte e ressurreição. O cristianismo entende que o homem é um 
ser cuja ação livre culposa não é "negócio privado" dele, de que 
o próprio homem pudesse depois de perpetrada a culpa purificar-
se por próprio poder e força. Pelo contrário, pecado e culp~, -
apesar de o homem ser responsável por seu pecado e culpa em 
virtude de sua livre subjetividade -, uma vez cometidos, só se 
podem realmente superar por açãode DetJ~. Neste sentido, se-
ria falha qualquer introdução ao conceito de cristianismo que 
não tratasse da culpa e perdição do homem, da necessidade de 
libertação de um mal radical, da redenção e da necessidade da 
redenção. 
Ao usarmos conceitos tais como "necessidade de redenção", 
"redenção", "salvação", "libertação do mal" e semelhantes, con-
vém não começar estabelecendo seqüência cronológica entre estes 
conceitos. Se podemos cair ou caímos no pecado, se a redenção 
é "dimensão existencial" em nossa vida ou processo que se pos-
sa localizar cronologicamente depois de outro processo, a saber, 
o do pecado, tudo isto são questões afinal secundárias. Devere-
mos sempre voltar a dizer que não podemos interpretar cristã-
mente este mundo dizendo que outrora existiu um mundo mau 
e onerado pela culpa e pecado, mas que se teria tornado essen-
cialmenk diferente de forma empiricamente palpável em virtu-
de da redenção operada por Jesus Cristo. Ao falarmos da culpa 
e do pecado do homem, do seu estado de perdição, da necessi-
114 
dade de libertação do mal, da necessidade da redenção e da pró-
pria redenção, que se diga de início, pelo menos metodicamen-
te, que não se deve vincular de antemão estes conceitos entre si 
em seqüência cronológica. 
A obscwj<fqde da questão para o homem de hoje 
O tema do "homem como ser radicalmente ameaçado pela 
culpa", sem dúvida nenhuma, padece hoje de dificuldade espe-
cial: Não podemos dizer que os homens hoje em dia estejam in-
comodados, de maneira imediata e a um nível claro e claramen-
te verificável de sua consciência, com a questão se e como, en-
quanto pecadores, em suas histórias individuais de salvação ou 
de perdição, possam se encontrar com um Deus misericordioso, 
nem se incomodam com a questão de como se tornam justos 
perante Deus e por ação de Deus. Neste sentido preciso, o ho-
mem de hoje não teme a Deus. E a questão de sua justificação 
pessoal, que outrora, na época de Agostinho e mais tarde nos 
tempos da Reforma, tornou-se questão de vida ou morte para 
a Igreja, na verdade não incomoda tanto as pessoas em nossos 
dias e é possível que nem as incomode absolutamente. 
É bem possível, evidentemente, que no fundo da cosnciên-
cia individual e em determinados pontos realmente decisivos da 
história pessoal de um indivíduo as coisas venham a se passar 
diversamente. Mas, a julgar pela primeira impressão, os homen~ 
de hoje não têm consciência clara de que estejam perante I>eus 
em estãd9 déculpa-epecado, -,ie-que nãÕ-se-possamfü,ertar por 
~i ~t!~r11os. Não têm consciência clara de que sejam dignos de 
condenação, de que contudo são salvos pelo incalculável mila-
gre do perdão de Deus, sendo aceitos por Deus somente por sua 
graça imerecida. Assim pensou e sentiu Lutero, assim pensou 
e sentiu Pascal de maneira direta e imediata. Não podemos di-
zer que nós ainda continuemos a sentir assim de maneira ime-
diata. As modernas ciências do social dispõem de milhares de 
meios e métodos para "desmascarar" o sentimento de culpa do 
homem perante Deus e destruí-lo como se fosse falso tabu. 
Na verdade as pessoas hoje em dia não alimentam urna im~ 
pressão particularm,~Ilte posiüva -com respeito às suas p:róprÍas 
disppsições morais e à,s dos outr:Q.~. Também no campo das nor-
mas morais fazem a experiência de toda a sua finitude, fragili-
dade e obscuridade. Mas podem, se quiserem, considerar mui-
115 
tíssimas normas morais como condicionadas e mediadas pela 
sociedade, como tabus que é mister perceber como tais e deles 
se libertar. Contudo não ocorre que com isto desapareça a ex-
periência da moralidade como tal. Não se faz mister denominar 
o que se rejeita de moralidade, nem subsumi-lo sob o conceito 
de moral burguesa. Mas não se pode negar que o homem seja 
responsável, que esteja entregue a si mesmo, que pelo menos eni 
certas dimensões de sua existência ele faça a experiência de po-
der vir a entrar e de fato entrar em conflito consigo mesmo e 
com sua original autocompreensão. Até a pessoa que comba-
tesse todas essas experiências como algo que apenas mergulha 
as pessoas na ansiedade neurótica, fá-lo-ia uma vez mais com 
ardor de algo que afinal ela acha que deve fazer. 
Portanto, por necessidade transcendental o homem.é ser mo-
ral. É perante esta realidade exigente, essa -como que "tábua de 
leis" de sua existência, que o homem vivencia sua finitude, fra-
gilidade e obscuridade. Mas qual é o resultado desta diferença, 
continuamente experimentada, entre o que o homem deve ser 
e o que ele realmente é? Na verdade o homem tem experimenta-
do o mal em dimensões apocalípticas no mundo, e, apetrecha-
do com o olhar agudo do psicólogo, do psicoanalista e do so-
ciólogo, não confia sequer em si mesmo. Mas precisamente por 
causa dessa atitude cética e sóbria ele não mais demonstra em 
face do bem e do mal o mesmo ardor com que se costumava 
pregar a mensagem do pecado e do perdão. Enxerga o que cha-
mamos de culpa como parte das misérias e absurdos universais 
que envolvem a existência humana, diante dos quais o homem 
não é sujeito, mas objeto, e isto tanto mais quanto a biologia, 
a psicologia e a sociologia pesquisam as causas do assim cha-
mado mal moral. E por essa razão o homem de hoje está mar-
cado antes pela impressão de que Deus é quem deve justificàr-
se perante-o tribunal do homem por caúsa do infeliz estado-em 
que se encontra o mundo, que o homem é antes vítima do qiji 
causa da condição em que se acham o mundo e a história do 
gênero humano. Isto é verdade até quando o sofrimento parece 
ser causado de fato pelo homem enquanto sujeito livre, mas es-
te sujeito urna vez mais é pensado corno sendo o produto de sua 
natureza e de sua situação social. 
Portanto, o homem hoje tem antes a impressão de que é 
Deus quem deve justificar-se, e não que o próprio homem seja 
injusto e tenha que ser justificado por ação de Deus e perante 
116 
Deus. Isto significa também que a morte, quando ainda se lhe 
reconhece sentido exi~tencial e religioso sério, dificilmente se veja, 
se é que se vê, como o momento em que a condição boa ou má 
do indivíduo, condição pela qual ele jamais pode negar ser res-
ponsável, venha inexoravelmente à luz. Não se entende l:!, !l:lqrte 
como julgamento, mas ou como o momento em que toda a con-
fusão_ da vida humana venha a se resolve}'. definitivament~. ou 
como o ponto final e nu da manifestação do· absurdo da exis-:-
tência, para o qual _não existe nenhuma solução. 
Mas no fundo a dificuldade, que acabamos de descrever e 
é típica de nossa época, não pode senão ser desafio para que 
a pessoa desconfie seriamente de seus próprios sentimentos, de 
que em média participa com os outros seus coetâneos, sentimen-
tos que por certo não são critérios por si mesmos evidentes para 
tudo, e para que se confronte com a mensagem do cristianismo 
acerca do homem como pecador e se pergunte a siprópria se 
essa mensagem não está dizendo em última análise algo que ela, 
pretextando falsa inocência, não está ouvindo, ainda que deves-
se estar ouvindo no núcleo mais profundo de sua existência. e 
na sua consciência. E também não se obvia à fuga para falsa 
inocência com refugiar-se na idéia de que tudo na existência afinal 
é absurdo, ou com interpretar todas essas situações de opressão 
e alienação como sinais da fricção no processo de evolução que 
no fundo ainda se acha no movimento de marcha ascendente. 
Devemos pelo menos estar abertos para a possibilidade de 
que a mensagem do cristianismo contenha pelo menos tanta ver-
dade acerca da compreensão humana da existência quanta se po-
de perceber ouvindo apenas à voz da própria consciência ou à 
voz de uma interpretação epocal. 
O círculo entre a experiência da culpa 
e a experiência do perdão 
Mas, além desta dificuldade própria de nossa época, existe 
problemática mais fundamental, a saber, se o tema deve ser tra..: 
tado a esta altura de nossa reflexão. Poder-se-ia dizer que não 
é possível compreender a verdadeira natureza da culpa enquan-
to não se tiver tratado da absoluta e indulgente proximidade de 
Deus em sua autocomunicação; ou que a verdade genuína da 
culpa de uma pessoa só pode surgir para ela após experimentar 
o perdão e a libertação dessa culpa. Pois somente em radical par-
117 
ceria com Deus em imediata proximidade para com ele - a que 
chamamos graça ou autocomunicação de Deus - é que a pes-
soa pode perceber e avaliar o que seja sua culpa: fechar-se a es-
sa oferta da absoluta autocomunicação de Deus. Só no proces-
sar do perdão, a que a pessoa se abre e acolhe, é que ela pode 
entender o que seja a culpa que está sendo perdoada, já que é 
parte da culpa o fato de a punição, que traz consigo, consistir 
precisamente em cegar para seu próprio ser desnaturado. 
Com respeito a essa dificuldade básica, devemos dizer que 
persiste círculo indissolúvel entre a experiência da culpa e a ex-
i'>enência do seu perdão. E 'ambas as realidades interdependem 
qúando se trata de chegar ao seu pleno ser e à sua plena com-
preensão. A culpa apresenta radicalidade última por ocorrer em 
face de um Deus que ama e se autocómunica, e somente qµªI)-
do a pessoa está informada sobre isto e assimila esta verdacl~ 
é que está em condições de entender os abismos em que a lança 
a culpa. Neste sentido, subsiste entre ambos, a culpa e o perdão, 
um círculo, de tal sorte que mutuamente se iluminam e se dão 
a entender. Mas por que temos de tratar dos momentos que mu: 
tuamente se condicionam neste círculo em seqüência cronológi-
ca, temos de falar deles um depois do outro, muito embora sai-
bamos que só teremos entendido corretamente o primeiro mo-
mento após discutirmos o segundo. E uma possível seqüência 
é falar primeiro da culpa e depois do perdão. 
2. LIBERDADE E RESPONSABILIDADE DO HOMEM 
A liberdade e a responsabilidade do homem integra os ~xis- _ 
tendais da vida humana. A natureza básica dessa liberdade -
porque-se insere no pólo subjetivo da experiência humana e não 
no seio dos dados categoriais - não consiste em ser faculdade 
particular do homem ao lado de outras, pela qual ele possa fa-
zer ou deixar de fazer isto ou aquilo em escolha arbitrária. Pen-
sando assim, estaríamos apenas interpretando de maneira de-
masiado fácil a nossa liberdade a partir de compreensão pseudo-
empírica dela. Mas, na realidade, a liberdade é antes de tudo 
o estar entregue do sujeito a si próprio, de tal sorte que a liber-
dade em seu ser fundamental tem que ver com o sujeito como 
tal e como todo. Na liberdade genuma, o sujeito sempre visa a 
si mesmo, compreende-se a si mesmo e posiciona-se a si mes-
mo. Em última análise, ele não faz algo, mas se faz a si mesmo. 
118 
A liberdade refere-se ao todo uno da existência humana 
Com isso estão dadas duas coisas. Por um lado, a liberda-
de refere-se ao todo uno da existência humana, ainda que este 
todo uno se exerça na extensão espacial e duração temporal. A 
liberdade, enquanto faculdade de o sujeito decidir sobre si pró-
prio corno todo e uno, não é evidentemente faculdade que se 
situe por detrás da temporalidade meramente física, biológica, 
exterior e histórica do sujeito. Esta seria concepção gnóstica da 
liberdade, e existe motivo muito profundo e objetivo para este 
erro. Mesmo um espírito tão profundo e um cristão tão decidi-
do do porte de Orígenes cedeu em parte a esta tentação e enten-
deu esta nossa vida concreta histórica como reflexo mau e se-
cundário da liberdade que se afirmou e decidiu realmente sobre 
si própria pré-historicamente e em âmbito inteiramente diferen-
te e pré-corpóreo. 
A_ liberdade é a capacidade de o sujeito UIJO cl_eddic~.Ql?.re 
stpróprio corno todo uno. Não pode simplesmente ser dividida 
em partes. Não é a faculdade neutra que ora faz isto e ora faz 
aquilo. Mas, não obstante, enquanto liberdade do sujeito com 
referência a si mesmo, sobre si mesmo e a partir de si mesmo 
corno todo uno, essa liberdade não é liberdade que se exerça por 
detrás da temporalidade meramente física, biológica, exterior e 
histórica do sujeito. Pelo contrário, ela se exerce corno tal liber-
dade subjetiva numa p_assagem pela temporalidade que a pró-
pria liberdade estabelece para poder ser ela mesma. É claro que 
essa concepção da liberdade é muito mais matizada e comple-
xa, muito menos clara do que a concepção primitiva e catego-
rial da liberdade pensada corno a capacidade de fazer isto ou 
aquilo arbitrariamente. E é também mais complexa e mais difí-
cil de entender do que a concepção gnóstica da liberdade. Mas 
ocorre que, numa genuína antropologia ontológica, o que é ver-
dadeiro não é o que é menos complexo e menos difícil, o que 
se possa perceber como radicalmente claro em sua identidade 
e unidade. A liberdade é liberdade na e através da história no 
espaço e no tempo, e precisamente aí e desta forma é a liberda-
de do sujeito com relação a si mesmo. 
A unidade da realização una da existência na liberdade não 
é dado setorial de nossa experiência que se possa identificar em-
pírica e categorialmente. Essa unidade, e, em conseqüência, a 
verdadeira natureza da liberdade subjetiva, precede aos atos e 
119 
eventos singulares da vida humana como condição de sua pos-
sibilidade, da mesma forma que a subjetividade do homem não 
é a mera soma subseqüente das realidades singulares humanas 
de natureza empírica. A liberdade, portanto, não é a capacida-
de de fazer isto ou aquilo, permanecendo neutra a capacidade 
mesma, de tal sorte que os resultados desses atos individuais fos-
sem enfeixados entre si subseqüentemente, uma vez que eles, em 
si passados, continuariam a existir somente na contagem de Deus 
e do homem e assim viriam a ser atribuídos à liberdade uma 
vez mais subseqüentemente. A liberdade não é como uma faca 
que sempre permanece a mesma em sua capacidade de cortar, 
e ao cortar sempre permanece a mesma faca. Muito embora exista 
no tempo e na história, a liberdade possui um único ato,· ou se~ 
ja, a auto-realização do próprio sujeito individual, auto-realiza- . 
ção que sempre e em toda parte deve ser mediada objetivamen-
te por atos singulares realizados no mundo e na história, mas 
que no entanto visa uma só coisa e uma só coisa realiza: o sujei~--
to uno na totalidade singular de sua história. 
A liberdade como a f acuidade 
de realizar o que é definitivo 
Existe ainda outro equívoco que penetra no campo das idéias 
religiosas e acarreta falsos problemas: a liberdade não é a facul-
dade de fazer isto e depois fazer aquilo, de tal sorte que a se-
gunda alternativa seja o oposto como que a desmanchar a pri:_ 
meira, de maneira tal que - se tal processo continuasse em tempo 
físico não interrompido por si mesmo - sua realização pudesse 
somente ser entendida como interrupção extrínseca dessa série 
de atos singulares, assim chamados atos livres, uma série que 
por si se estendesse ao infinito e apenas seria interrompida pelo 
fato de o campo para essaliberdade em eterno andamento e de-
vir ser-lhe retirado extrinsecamente por Deus na morte. 
Mas a liberdade não é a capacidade de continuar eterna-
mente em um processo eternamente novo de dispor e redispor. 
Pelo contrário, a liberdade comporta em si uma necessidade que . 
não se encontra no que é fisicamente necessário no sentido usual 
do termo, porque ela é a faculdade da subjetividade, ou seja, 
do sujeito que não é um ponto acidental de intersecção em uma 
cadeia de causas que se estenda indefinidamente para frente e 
para trás, mas, pelo contrário, é que não pode ser derivado. Por 
isso a liberdade não é a capacidade de fazer algo que sempre 
120 
possa ser revisado, mas. é a capacidade de fazer algo de final e 
definitivo. É a faculdade de um sujeito que por essa liberdade 
deve atingir sua identidade final e irrevogável_. Neste sentido e ----·-·-----.. .. ·- -· .. ···--···--·- ·--. .. . .... .. 
a partir daí, a liberdade é a faculdade do e.terno. Se quisermos 
saber o que é a definitividade, deveremos fazer a experiência da-
quela liberdade transcendental que é realmente eterna, porque 
estabelece precisamente o definitivo, definitivo que por sua pró-
pria natureza não pode mais nem quer mais ser diferente. 
A liberdade não existe para que tudo possa continuamente . 
tornar-se outra coisa, mas -antes para que possa tornar-se ieai.-
mente válido e irradicável. A liberdade é, de certa forma, <Lfa_: 
culdade de estabelecer alg_o de_necessário, algo que perdura, al".' 
go de final e definitivo. É onde quer que não haja liberdade, sem-
pre está dado apenas algo que por sua própria natureza conti-
nua a gerar-se, a transformar-se em outra coisa e a reduzir-se 
a algo de diverso em seus antecedentes e conseqüentes. A liber-
dade é o evento do eterno, evento a que, é claro, não assistimos 
como espectadores externos, pois somos nós próprios que esta-_ 
mos a acontecer na liberdade, mas sofrendo a multipHçidade do 
temporal, realizamos este evento da liberdade, constituí111os a eter-
nidade que nós próprios somos e nos tornamos. 
Liberdade transcendental 
e suas objetivações categoriais 
Essa liberdade enquanto liberdade do acontecer da defini-
tividade do sujeito é libercla,de.transcen.deótal e experiência trans-
cendental da liberdade. Trata-se, pois, c!t!_dimensão ng próprig 
sujeito, que este não pode situar objetivamente dj~pJ~ __ <:i_e si CO_".' 
mo uma coisa, que ele não pode objetivar. Essa liberdade não 
é, pc>rtanto, dado empírico singular que as antropologias a pos-
teriori pudessem indicar lado a lado com outros objetos. Quan-
do começamos a refletir sobre a liberdade, este ato é por sua 
vez liberdade no pólo subjetivo, e neste ato de buscar e refletir 
sobre liberdade anterior, de certa forma, podemos encontrar ape-
nas as objetivizações dessa liberdade. Essas objetivizações co-
mo tais podem ser de novo reduzidas a antecedentes e conse-
qüentes, a princípios e resultados na multiplicidade do mundo 
da experiência objetiva, de tal sorte que a liberdade não mais 
possa ser encontrada. Porém ao mesmo tempo a própria liber-
dade foi exercida uma vez mais no pólo subjetivo deste ato de 
121 
busca da liberdade objetivada. Por sua própria natureza, enquan-
to ato do sujeito, f>ortanto, a liberdade não acontece no campo 
empírico das ciências particulares experimentais, que trabalham 
com o método que procede mediante individualizar e isolar pa-
ra que se possa observar. Pois no fundo nada é livre aí a não 
ser o sujeito que está fazendo a ciência, sujeito ao qual, neste 
tipo de ciência, sempre interessa outra coisa que o sujeito mes-
mo. Já fizemos a experiência de que somos livres e do que signi-
fica liberdade quando começamos a nos interrogar reflexamen-
te sobre isso. 
Com tudo isso evidentemente não negamos, mas, pelo con-
trário, queremos dizer também que o homem é de_ múl_t_iplas Í9J".."'._ 
mas o ser que está sujeito à necessidade. E a afirmação que ele 
é também e sempre ser condicionado, ser procedente e ser ma,, 
nipulado por seu meio não se refere apenas a uma região parti-
cular e determinável de sua existência a cujo lado também hou-
vesse o espaço da liberdade, mas estes dois aspectos não se po-
dem nunca separar em concreto adequadamente no homem. Pois 
quando ajo como sujeito livre, ajo sempre sobre um mundo ob-
jetivo, como que saindo de minha liberdade para o campo das 
necessidades do mundo. E quando conheço, analiso, correlaciQno 
necessidades, faço-o como sujeito da liberdad~- e pelo menos_ 
o ato de conhecer a necessidade é ato subjetivo, que o própriQ 
sujeito põe ativa e livremente, pelo qual se responsabiliza e que _ 
livremente assume. Tudo isso se diz da maneira mais radical quan-
do se frisa que a liberdade não é dado singular da experiência 
humana, dado categorial e observável no espaço e no tempo de 
maneira imediatamente empírica. 
Com respeit~ às ações singulares da_ liberclJtde em ª_llª vi4~...1 
o sujeito jamais possui certeza absoluta acerca de seu caráter___ 
subjetivo e, em conseqüência, também moral, porque essas aç_õ~s. 
enquanto reais e enquanto objetivadas no conhecimento, já sãC> __ 
sempre a síntese não mais adequadamente dissolúvel reflexamente 
da liberdade origin!iria _e da necessidade _imposta e aceita. Em 
conseqüência, o sujeito, em sua experiência originária transcen-
dental subjetiva, com certeza sabe quem ele é, mas jamais pode 
objetivar esse seu saber originário em saber determinado tema-
ticamente expresso em urna afirmação, que seja absolutamente 
certa, para dizer-se a si mesmo e para julgar quem e o que se 
tornou através da mediação concreta de seus atos categoriais. 
122 
O sujeito livre já está sempre junto de si e presente a si mesmo 
na sua liberdade e, ao mesmo tempo, subtraí.do a si mesmo na 
sua liberdade por força dos fatores objetivos pelos quais neces~ 
sariamente ele precisa ser mediado para si mesmo. 
3. A POSSIBILIDADE DE DECIDIR CONTRA DEUS 
Em nossas reflexões acerca da natureza da liberdade subje-
tiva interessa-nos entender que a liberdade de dispor de si é li-
berdade que se refere ao sujeito como todo, liberdade para cons-
truir o definitivo, e liberdade que se exerce em livre e absoluto 
"sim" ou "não" ao Aonde e Donde da transcendência, que cha-
mamos "Deus". E somente a esta altura é que nos aproxima-
mos - à medida que afinal é possível em uma cônsfüerá.ção de 
cunho mais filosófico-antropológico - do que significa a cul-
pa em sentido teológico, · 
Afirmação ou negação 
atemática de Deus em todo ato livre 
Liberdade ou subjetividade, que é o "objeto" da própria li-
berdade, liberdade para algo de validade definitiva e liberdade, 
por ou contra Deus são estreitamente conexas entre si. Pois a 
transcendência para a presença distante do mistério absoluto que 
se oferta a nós é a condição que possibilita a subjetividade e a 
liberdade. Porque este horizonte de absoluta transcendentalida-
de, que chamamos "Deus", é o Donde e o Aonde de nosso mo-
vimento espiritual, é que somos afinal sujeitos e, assim sendo, 
livres. Pois em toda parte onde tal horizonte infinito não existe, 
o ente respectivo é já por isso intrinsecamente limitado e prisio-
neiro de si mesmo, sem que o saiba expressamente, e, por esta 
razão, também não é livre. 
· Ora, é decisivo para nós que essa liberdade, enq11_anto "sim" 
ou "não", implica liberdade em confronto com seu próprio ho-
rizonte. É claro que a liberdade, que é mediada de maneira hu-
mana, histórica e objetiva e na personalidade concreta, sempre 
é também liberdade com referência a um obktQ c_atego_rial. À 
liberdade se exerce através da mediação do mundo do outro e 
sobretudo através da pessoa do outro, mesmo quando ela pre-
tende ser liberdade direta e tematicamente exercida com referência 
a Deus. Mesmo no ato deste "sim" ou "não" temático __ ~Deus, 
123 
este "sim" não se refere imediatamente ao Deus da experiência 
originária e transcendental, mas ao Deus da reflexão temática 
e categorial, a um Deus em conceitos, ou até talvez somente a 
umDeus em falsos deuses, mas não imediata e exclusivamente 
ao Deus da presença transcendental. 
Uma vez, porém, que em todo ato da liberdade que se ocu-
pa categorialmente com determinado objeto, com determinada 
pessoa, está sempre dada, como condição da possibilidade des-
se ato, a transcendência para o absoluto Aonde e Donde de to-
dos os nossos atos espirituais - e, portanto, para o próprio Deus 
-, em todo ato deste tipo pode e deve existir um "sim" ou um _ 
"não" atemático dito a este Deus da experiência transcendental 
originária. A subjetividade e liberdade implica que tal liberda-
de não existe só com referência ao objeto da experiência catego-
rial dentro do horizonte absoluto de Deus, mas que ela é tam-
bém - ainda que sempre de forma mediada - liberdade que 
na realidade se decide perante Deus e com referência a ele. Nes-
te sentido, encontramo-nos radicalmente em toda parte com Deus __ _ 
como questão dirigida à nossa liberdade, encontramo-nos com 
ele de maneira implícita, atemática, não-objetivada e não-expressa 
em todas as coisas do mundo, e, em conseqüência, sobretudo 
i:J.o próximo. Isto não exclui a necessidade de tematização. Mas 
esta não nos oferece a relação para com Deus em nossa liberda-
de originariamente, mas antes torna temática e objetiva a refe-
rência de nossa liberdade a Deus, que está dada conjuntamente 
com a essência originária do sujeito como tal. 
O horizonte da liberdade como o seu "objeto" 
Agora, por que o horizonte transcendental de nossa liber-
dade não é somente a condição da possibilidade da liberdade, 
mas também o seu "objeto" propriamente dito? Por que na li-
berdade não temos que nos ver somente conosco mesmos, por 
que não temos que nos ver somente com o mundo de nossas re-
lações com as coisas e com as pessoas com que convivemos, quer 
de forma objetivamente correta, quer de forma destrutiva da rea-
lidade, sob aquele horizonte infinitamente amplo da transcen-
dência, a partir do qual nos confrontamos livremente conosco 
mesmos, com o mundo das coisas e com o mundo de nossas re-
lações pessoais? Por que, além disso, este horizonte é também 
"objeto" dessa liberdade no "sim" ou "não" a ele? Neste últi-
124 
mo caso, este horizonte é por definição uma vez mais a condi-
ção de possibilidade para o próprio "não" dito a si mesmo, po-
dendo, em conseqüência, este horizonte ser ao mesmo tempo afir-
mado necessária e inevitavelmente como a condição de possibi-
lidade para a liberdade e também negado como "objeto" ate-
mático. Conseqüentemente, o ato em que a liberdade diz "não" 
é habitado por uma contradição real e absoluta pelo fato de Deus 
~ir éÚ negado e afirmado ao mesmo tempo. Como é possível que 
esta monstruosidade extrema venha a ser subtraída a seus pró-
prios olhos e ao mesmo tempo relativizada no tempo, enquanto 
tal realização da própria identidade pessoal no "sim" ou no "não" 
a Deus é necessariamente objetivada no material finito de nos-
sa vida e em sua extensão temporal e objetiva e é mediada por 
tal material? Eis a questão. 
A possibilidade da contradição absoluta 
Devemos afirmar a real possibilidade dessa contradição na 
liberdade. É claro que pode vir a ser contestada e dela se pode" 
duvidar. Essa contestação e dúvida ocorrem na teologia vulgar 
da vida cotidiana sempre que se diz que é inconcebível qualquer 
outra posição a não ser que o Deus infinito em sua realidade 
soberana só poderia avaliar o pequeno desvio de uma realidade 
finita ou a ofensa contra uma estrutura essencial concreta me-
ramente finita como eles, o desvio e a ofensa simplesmente são, 
ou seja, como finitos. A "vontade" contra a qual tal pecado real-
mente seria ofensa seria apenas a realidade finita querida por 
Deus, e uma ofensa contra a vontade de Deus que ultrapassasse 
este nível transformaria de maneira errônea a vontade de Deus 
em realidade singular e categorial ao lado das coisas que ele quer. 
Vendo as coisas desde este ponto de vista, onde encontraríamos 
realmente aquela radical seriedade que a fé cristã reconhece pe-
lo menos para a existência humana tomada em sua totalidade? 
Contudo, nessas ações livres, feitas no interior da realida-
de categorial de nossa experiência, que contradizem à estrutura 
essencial dessa realidade que existe dentro do horizonte da trans-
cendência, há a possibilidade de ofensa contra o último Aonde 
dessa transcendência mesma. Se não houvesse esta possibilida-
de, no fundo não poderíamos sequer falar de subjetividade real 
da liberdade, que se caracteriza pelo fato de ela se referir ao pró-
prio sujeito e não a esta ou àquela coisa. Se a liberdade se refere 
125 
ao .sujeito enquanto este é transcendentalidade, se os entes sin-
gulares, que encontramos no horizonte da transcendência, não 
são eventos dentro de espaço que permaneça intocado pelo que 
está dentro do espaço, se, pelo contrário, estas realidades con-
cretas são a concretude histórica da transcendência pela qual nos-
sa subjetividade é movida, então a liberdade com referência aos 
entes singulares que nos vêm ao encontro sempre é também li-
berdade com referência ao horizonte, ao fundamento e abismo 
que permitem que estas realidades se tornem momento intrínse-
co de nossa liberdade. 
A liberdade de dizer "sim" ou "não" a Deus 
Na medida e pelo motivo pelos quais o Aonde e Donde çlé:!_ 
transcendência não pode ser indiferente ao sujeito enquanto co: __ _ 
nhece, na mesma medida e pelo mesmo motivo também a libe_r-
dade tem originária e inevitavelmente a ver com Deus. A liber-
dade é iiberdade do "sim" ou do "não" a Deus e aí e por aí li-
berdade para consigo mesma. Se o sujeito é movido e animado 
por sua proximidade transcendental imediata para com Deus, 
então liberdade realmente subjetiva que dispõe do sujeito como 
um todo para fazer dele algo de definitivo somente pode ocor-
rer no "sim" ou "não" a Deus, porque somente a partir daí é 
que o sujeito como todo e como tal pode afinal ser atingido. 
Liberdade é liberdade do sujeito com referência a si próprio pa-
ra sua construção definitiva, e, assim sendo, libérdade que se ie;-
fere a Deus, por pouco temático possa ser este fundamento da 
liberdade em um ato singular de liberdade, e por mais temática 
e explicitamente que este Deus, com quem tem que ver nossa 
liberdade, possa ser como que invocado e colimado em palavras 
e conceitos humanos. 
A isto acresce segundo aspecto que aqui só podemos indi-
car à maneira de antecipação: se a concretude histórica de nos-
sa transcendência na.graça implica mais do que até o momento 
dissemos, se ela consiste na oferta da autocomunicação de Deus 
a nós e na absoluta proximidade do mistério santo enquanto se 
comunica e não se recusa a si mesmo, então a liberdade na trãiis; --
cendência e no seu "sim" ou "não" ao seu fundamento recebe 
proximidade direta para com l)eus, pela qual ela se torna, da 
forma mais radical, capacidade de dizer "sim" ou_ "não" a l;)_ç!us, 
de maneira que ainda não estaria dada com o conceito formal 
126 
e abstrato da transcendência para Deus como apenas o horizonte, 
longínquo e frio, da realização da existência, e que em conse-
qüência também não precisa ser deduzido somente deste hori-
zonte como que meramente ausente de nossa transcendência. 
Como ser de liberdade, o homem pode, portanto, negar-se 
a si mesmo de tal maneira que com toda verdade diga "não" 
ao próprio Deus. Dizemos: ao próprio Deus, e não a uma ima-
gem distorcida e infantil de Deus. Ao próprio Deus, e não so-
mente a uma norma qualquer intramundana do agir que com 
ou sem razão consideramos ser "lei de Deus". Semelhante "não" 
a Deus é, de acordo com a natureza da liberdade, originária e 
primariamente, um "não" dito a Deus no exercício e realização 
unitários e totais da existência do homem na sua liberdaçle una 
e singular. Semelhante "não" dito a Deus não é originariamen-
te_-ªP~mas_ a J:I1CIª§OIPª_!l1oral gue obtemos somando as ªçôes 
singulares boas ou más, quer tratemos todas essas ações como 
tendo igual valor, quer creiamos que nessa somao que importa 
é o último ato cronológico de nossas vidas, como se este fosse 
de absoluta importância somente porque é cronologicamente o 
último e não porque e enquanto recapitula em si o ato de liber-
dade de toda uma vida em sua totalidade e unidade. 
O caráter oculto da decisão 
Uma vez que a liberdade é o conteúdo de experiência sub-
jetiva e transcendental e I!ão dado que possa vir a ser isolado 
em nosso mundo objetivo e empírico, em nossa existência indi-
vidual jamais podemos apontar com certeza determinado pon-
to de nossas vidas e dizer: aqui precisamente e não em outro .. 
lugar ocorreu um "sim" ou um "não" realmente radical a Deus. 
Todavia, ainda que não possamos fazer isso, porque não esta-
mos em condições de objetivar a liberdade originária, transcen-
dental e subjetiva, sabemos que o todo da vida do sujeito livre 
é inevitavelmente resposta à questã_Qna qual Deus se nos apre-
senta como o Donde da transcendência. E sabemos que tal res-
posta pode ser também um "não" radical a este mistério santo 
e silencioso, presente-ausente, que se quer dar a nós em proxi-
midade absoluta através da graça. Mas a peculiaridade dessa pre-
sença transcendental de Deus como aquilo de que se ocupa a 
liberdade permite compreender que este "não" pode acontecer 
escondido em algo de muito simples, numa situação em que al-
127 
go de muito insignificante no mundo medeia essa relação para 
com Deus. Em certas circunstâncias é possível que nada esteja 
escondido sob aparentemente o maior dos crimes, porque ele po-
de não passar de fenômeno de situação pré-pessoal, enquanto 
por detrás da fachada de respeitabilidade burguesa pode escon-
der-se um "não" final, amargo e desesperado dito a Deus, um 
"não" realmente dito subjetivamente a Deus e não apenas so-
frido passivamente. 
O ''sim" e o "não" não possuem igual valor 
É claro que o "não" da liberdade com relação a Deus, vis-
to ser ele animado e movido na transcendência por um sim trans-
cendentalmente necessário a Deus e de outra forma não pode-
ria existir - e, portanto, significa livre autodestruição do sujei-
to e contraditoriedade interna do seu ato -, nunca se pode en-
tender como possibilidade da liberdade ontológico-existencial 
igual à do "sim" dito a Deus. O .. n&o" ê uma possibilid_~d-~ __ da 
liberdade, mas se trata de possibilidade da liberdade que ao mes-
-mo tempo sempre representa algo de falho, descarrilado, malo-
grado, algo que, por assim dizer, é autodestrutivo e autocontra-
ditório. Semelhante "não" pode dar a impressão de que o sujei-
to se afirma de maneira realmente radical somente através dele. 
Esta impressão pode provir do fato de o sujeito estabelecer li-
vremente como absoluto uma finalidade categorial, e passar de-
pois a tudo medir absolutamente segundo este critério, em vez 
de se entregar incondicionalmente ao mistério santo e inefável, 
sobre o qual nós não mais dispomos e que dispõe incondicio-
nalmente de nós. Mas semelhante "não", por mais que possa ter 
a aparência de ação absoluta, por mais que, considerado cate-
gorialmente, possa representar melhor do que o "sim" a Deus 
essa absolutez de uma decisão, nem por isso possui o mesmo 
direito e o mesmo valor do sim dito a Deus, porque todo "não" 
sempre toma emprestada do "sim" a vida que possui, porque 
o "não" só se pode entender a partir do "sim" e não o contrá-
rio. Também a possibilidade transcendental do «não" d1t liber-
dade vive de todo ''shn" necessárjQ; todo conhecer e todo agir 
livre vive daquele Aonde e Donde da transcendência. Contudo 
devemos deixar que este "não" comporte semelhante impossi-
bilidade e contraditoriedade real em si: que este "não", fechando-
se, diga realmente "não" ao horizonte transcendental da nossa 
liberdade e, assim fazendo, viva de um "sim" dito a este Deus. 
128 
Sobre a interpretação 
das afirmações escatológicas 
Com isso é claro que não explicamos a possibilidade de um 
"não" subjetivo radical e definitivo contra Deus. Devemos ad-
mitir esta possibilidade como "mistério çlª iniqijjg.acle". Na sin-
gularidade mais radical e existencial, que é ele próprio, o ho-
mem tem de contar com o fato de que este mistério da iniqüida-
de não é somente uma possibilid_ade para ele, mas que Jé:!!!12.~1-!1 
se torna uma realidaqe, e na verdade não enquanto uma potên-
cia misteriosa e impessoal irrompe em sua vida como destino 
deletério. Pelo contrário, essa possibilidade de um "não" ao pró-
prio Deus pode tornar-se realidade nele no sentido de q1.1~_<!!Il 
sua subjetividade, que não pode absolutamente distÍnguir de si 
e de que não pode descarregar-se, ele é realmente mau e entenqç 
este mal como o que ele é e que definitivamente quer ser. Ao 
interpretar e reter a liberdade realmente subjetiva neste sentido 
mais radical, a doutrina cristã sobre a possibilidade de seme-
lhante culpa como "não" a Deus adscreve ao indivíduo uma des-
tas duas possibilidades extremas de sua existência como sendo 
real e verdadeiramente dele próprio. 
Mas esta doutrina cristã - pelo menos em princípio - Qa-
da diz sobre a qt1-estão em qu(em c,:oncretamente e em que m,edi-
da esta possibilidade se tornou real no gênero humano como todo. 
A mensagem cristã não diz nada sobre se em algumas ou em 
muitas pessoas o mal se tornou realidade absolüúi.életern:ifna11-
te da realização última de suas vidas_. Tanto a consciência como 
a mensagem cristã, que impede reduzir o que a consciência nos 
diz, nos ensinam sobre nossas possibilidades e obrigações, 
situando-nos no processo de decidir sobre nossa existência. Mas 
ela não diz ao indivíduo o que se vai tornar sua própria história 
individual nem a história de todo o gênero humano. Até as des-
crições que se acham na Sagrada Escritura sobre o fim dos tem-
pos não precisam ser consideradas como reportagens sobre o que 
um dia acontecerá. Se fizermos correta e exata hermenêutica das 
afirmações escatológicas da Bíblia, as descrições bíblicas do fim 
dos tempos, quer da pessoa individual, quer de todo o gênero 
humano, podem-se entender como afirmações sobre as possibi-
lidades da vida humana e como ensinamento acerca da absolu-
ta seriedade da decisão humana. 
129 
S - Curso Fundamental da Fé 
Em uma teologia real não precisamos quebrar a cabeça pa-
ra saber se e quantas pessoas se perderão eternamente, se e co-
mo muitas pessoas de fato se decidem contra Deus em sua li-
berdade última e originária. Não precisamos saber disso, nem 
precisamos ler a Sagrada Escritura neste sentido. Nem sequer 
em sua revelação sobre a escatologia Deus nos diz o que aconte-
cerá; pelo contrário, essas afirmações escatológicas no fundo são 
afirmações referentes ao homem existente agora enquanto ele .. 
se confronta com essas duas possibilidades no seu futuro. Neste 
sentido, sem dúvida, a mensagem do cristianismo enquanto ra-
dical interpretação da experiência subjetiva da liberdade reveste-se 
de absoluta seriedade de vida ou morte. Ela diz a cada um de 
nós, a mim mesmo e não a outrem: pelo que és no cerne mais 
profundo de ti mesmo e queres ser definitivamente, podes ser 
aquele que se fecha na absoluta e definitiva solidão de morte 
que implica o "não" dito a Deus. E podemos entender todas as 
descrições que a Sagrada Escritura e a tradição fazem sobre a 
natureza do inferno como figuras e representações plásticas desse 
estado último de verdadeira perdição. E não é preciso que bus-
quemos mais do que isso aí, pressupondo-se somente que, ao 
entender assim, não percamos de vista o fato de que por sua pró-
pria natureza um sujeito espiritual está em relação permanente 
com o mundo e não deixemos de perceber a contradição intrín-
seca que isto implica quando a liberdade decide de forma defi-
nitiva contra as estruturas da realidade deste mundo estabeleci-
das por Deus. 
A possibilidade do pecado 
como existencial permanente 
Quando a pessoa começa a refletir sobre si, ela se depara 
como alguém que já exerceu a liberdade e a exerceu até quando 
de forma sumamente reflexa delibera consigo mesma sobre uma 
decisão aindaa tomar. Essa decisão da liberdade já tomada -
ainda quando vem a ser objetivada e refletida - é a síntese, não 
mais adequadamente dissociável mediante a reflexão, da liber-
dade originária e da necessidade imposta pelo material da liber-
dade. E também a decisão seguinte, apesar de todo o seu cará-
ter reflexivo, vem a ser co-determinada pela precedente que é im-
pérvia a uma reflexão subseqüente. Em conseqüência, a real si-
tuação da liberdade não é acessível à reflexão inteiramente, a um 
130 
exame de consciência que fosse entendido como afirmação de-
finitiva de absoluta certeza. A pessoa jamais sabe com certeza 
absoluta se o que é objetivamente culposo de sua ação, que even-
tualmente está em condições de constatar com clareza, é a obje-
tivação da decisão propriamente dita e originária da liberdade 
em um "não" contra Deus, ou se não passa do material - que 
lhe foi imposto e que ela sofre passivamente e, assim sendo, 
apresenta-se com o caráter de necessidade - que manipula sua 
liberdade, cujo caráter último foge à observação de superfície 
e empírica, mas que pode muito bem ser um "sim" dito a Deus. 
Jamais sabemos com certeza última se realmente somos peca-
dores. Mas sabemos com certeza última, ainda que esta possa 
vir a ser abafada, que realmente o podemos ser, até quando a 
nossa vida cotidiana civil e a refletida manipulação de nossas 
motivações parecem dar-nos boa nota. 
Uma vez que a liberdade em sua essência originária tem que 
ver com a realização originária da existência em sua unidade e 
totalidade, e em conseqüência não está definitivamente realiza-
da enquanto não se tiver entregado através do ato da vida à ab-
soluta impotência da morte, a possibilidade do pecado é um exis-
tencial que acompanha insuperavelmente a totalidade da vida 
terrena do homem. 
A ameaça permanente que o sujeito livre representa para 
si mesmo não é característica de determinada fase da vida que 
se possa deixar atrás enquanto perdura a vida terrena, mas ela 
constitui realmente existencial permanente e jamais superável nes-
sa única história temporal. É um existencial que acQmpanha sem-
pre e em toda a realização una, total e não obstante histórica 
da nossa liberdade individual subjetiva. 
A permanente soberania de Deus 
A importância radical da liberdade para a realização defi-
nitiva do homem, posta à luz em tudo o que viemos expressan-
do, não limita, é claro, a soberania de Deus com referência a 
essa liberdade. Pois Deus não é alternativa categorial a essa li-
berdade, como se Deus e a liberdade houvessem de se combater 
mutuamente para obter espaço. A vontade má na verdade se con-
trapõe a Deus no interior daquela diferença que existe entre Deus 
e a criatura em unicidade transcendental, e essa diferença - de 
um lado Deus, e, de outro, o sujeito criado - alcança sua natu-
131 
reza própria e a natureza de um ente subjetivo precisamente no 
ato da liberdade. Por isso todas as outras diferenças existentes 
entre Deus e um ente criado que seja apenas coisa podem-se con-
siderar como modos deficientes desta diferença propriamente di-
ta. Esta diferença é afirmada no ato da liberdade, tanto na boa 
como na má ação, porque também no ato bom (e tanto mais 
nele) estabelece-se algo que deve ter o caráter do livre fundar-se 
em si mesma de uma posição livre em medida igual e até mais 
do que no ato moralmente mau. Mas precisamente este ser-sujeito 
livre e subjetivo, que se coloca a si mesmo de maneira definitiva 
como distinto de Deus, constitui propriamente o caso, que que-
remos apontar,...pe diferença entre Deus e o outro diverso dele. 
Esta não deve ser entendida de acordo com o modelo de dife-
renç_a entre dois entes categoriais. Pelo contrário, constitui aquela 
singular e radical diferença que existe somente entre um sujeito 
dotado de transcendência e o infinito e incompreensível Aonde 
e Donde desta transcendência, que denominamos "Deus". 
Mas mesmo esta diferença é posta pelo próprio Deus. E por 
isso o ser autônomo, que precisamente realiza esta diferença ra-
dical entre Deus e a criatura, não significa nenhuma limitação 
da soberania de Deus. Pois ele não sofre esta diferença, mas an-
tes é ele que a torna possível. Ele a estabelece, ele a permite, dá-
lhe em certo sentido a liberdade da própria auto-realização co-
mo ser distinto. E por isso Deus pode muito bem - e isto sem 
contradição, pelo menos do nosso ponto de vista - em sua ab-
soluta soberania colocar a liberdade como boa ou como má, sem 
com isto destruir a liberdade mesma. 
O fato de nós, enquanto sujeitos de liberdade ainda em de-
vir, não sabermos se Deus pôs ou não - pelo menos definitiva-
mente - toda liberdade em uma decisão boa, é fato constatável 
na experiência a ser aceito na obediência, assim como também 
na obediência aceitamos a nossa própria existência. 
O que é mais próprio da liberdade em sua relação para com 
Deus nós o experimentamos já na experiência de nossa existên-
cia em geral: nós a percebemos como contingência essencial e 
ao mesmo tempo como uma necessidade para nós. O homem 
não tem nem a possibilidade nem o direito de devolver o bilhete 
de entrada na existência, que utiliza e não deixa expirar nem se-
quer quando, na tentativa de suicídio, busca apagar-se. E essa 
curiosa e singular relação de contingência e necessidade para nós 
só chega ao seu clímax propriamente na colocação de nossa dis-
132 
tinção com respeito a Deus, sendo inteiramente nós mesmos e 
precisamente assim postos por Deus. 
Mas se a liberdade é querida e posta por Deus, e assim a 
subjetividade existe sem limitar a soberania de Deus, então ine~ 
ludivelmente existe também a possibilidade e a necessidade da 
livre decisão com referência a Deus, pois que esta constitui pre-
cisamente a essência da liberdade. Se e de que maneira tal liber-
dade possa vir a ser percebida ou não nos casos limites da exis-
tência puramente biológica do homem, em que nós-não reco-
nhecemos nenhuma possibilidade concreta de percepção da sub-
jetividade (como, por exemplo, no caso dos deficientes mentais 
que, pelo menos segundo nossos critérios correntes, parecem nun-
ca chegar ao uso da razão), é questão de que não nos podemos 
ocupar aqui. Não devemos conceber a realidade fundamental 
que experimentamos no centro da existência a partir de seme-
lhantes casos limites. A cada um de nós nos foi atribuída nossa 
própria liberdade e, nesta situação, a afirmação da teologia cristã 
sobre o homem como sujeito dotado de liberdade assume para 
nós concretamente importância ineludível e radical seriedade. 
4. O "PECADO ORIGINAI;' 
O mundo das pessoas 
como espaço da realização da liberdade 
Para que a doutrina cristã sobre a possibilidade de culpa 
radical na existência do homem seja realmente compreendida, 
devemos também levar em conta que o homem enquanto sujei-
to livre, e não meramente além disso, é um ser inserido no mun-
do, na história e na trama das relações interpessoais. Ora, isso 
quer dizer que sempre e inevitavelmente ele realiza sua ação li-
vre pessoal - pela qual é responsável e que lhe é própria - nu-
ma situação que já encontra feita e criada, que se lhe impõe e 
que, em última análise, é o pressuposto de sua liberdade, quer 
dizer que ele se realiza em situação que sempre é determinada 
pela história e pelas ações dos outros. 
~ssa situação _I_],ão é meramente extrínseca, não é situação 
que no fundo não entra na decisão da liberdade como tal. Não 
é material externo com o qual uma intenção, uma atitude, uma 
decisão viria a se realizar, mas apenas de tal maneira que o ma-
133 
terial dessa decisão depois como que desaparecesse dessa deci-
são. Pelo contrário, a liberdade inevitavelmente assume o mate-
rial com que se realiza como momento intrínseco, constitutivo 
e por si mesma originariamente co-determinado no definitivo 
da existência que se possui a si mesma livremente. 
A validade eterna do sujeito livre, que se realiza através de 
sua liberdade, é a validade de sua própria história terrena e por 
issoela é também sempre co-determinada internamente pelos 
momentos impostos que constituíram a situação temporal do su-
jeito da liberdade, co-determinada pela história da liberdade _d_e 
todos os outros que entram no mundo concreto de suas relações __ 
pessoais. A interpretação cristã dessa situação do sujeito da li~ __ 
herdade diz - sem absolutamente minimizar o papel de nossa 
livre decisão histórica - que essa situação determinada pelo _ 
mundo das relações sociais é inevitavelmente plasmada também, 
para o indivíduo em sua livre subjetividade e em sua decisão his- ____ _ 
tórica particular, pela história da liberdade de todos os outros 
homens. E, sendo assim, está implicado que, no espaço dessª 
situação individual da liberdade determinado pelo todo do mun::-
do das relações sociais, também a culpa alheia desempenha pa::-
pel permanente. 
A corporalidade e a objetivação da decisão originária de 
cada pessoa participam da natureza da decisão originária da li-
berdade, sendo de imediato indiferente se essa foi boa ou má. 
Mas ela não é simplesmente a originária bondade ou malícia des-
sa originária decisão subjetiva da liberdade. Dela apenas parti-
cipa e por isso se acha inevitavelmente sob o signo da ambigüi-
dade: para nós, no interior da história em devir, parmanece sem-
pre obscuro se ela é de fato objetivação histórico-corporal de 
determinada decisão boa ou má da liberdade pessoal ou se ela 
apenas tem aparência de sê-lo porque na verdade essa objetiva-
ção surgiu apenas por pressão de necessidades pré-pessoais. 
Essa objetivação da decisão da liberdade existe, ademais, 
na forma de ulterior determinabilidade ainda aberta. Pois essa 
objetivação da decisão da liberdade de uma pessoa que teve efeito 
sobre a objetividade de uma situação participada em comum da 
liberdade pode se tornar momento interno da decisão livre de 
outra pessoa, decisão em que tal objetivação pode adquirir ca-
ráter inteiramente diverso sem que, por essa razão, deixe de ser 
o resultado da primeira ação livre. 
134 
Existem objetivações de culpas alheias 
Segundo a doutrina cristã, objetivações de culpas alheias 
integram esses elementos já existentes de antemão para a situa-
ção da liberdade individual. Esta asserção parece soar de ime-
diato como algo perfeitamente óbvio. Pois toda pessoa tem a 
impressão de que decide sobre si mesma e de que tem de se en-
contrar consigo e com Deus num mundo que se acha co-
determinado pela culpa e pela falha culposa de outros. A pes-
soa sabe, a partir de sua própria experiência transcendental, que 
existe liberdade, e que essa liberdade se objetiva no mundo 
espácio-temporal e histórico. Sabe muito bem que essa liberda-
de porta em si também a possibilidade da d.eci_~ão radicalmente 
má. E admite que neste mundo, sem dúvida cheio de falhas e 
sofrimentos, encontram-se objetivações de decisões subjetivamen-
te más de fato acontecidas. 
Esta opinião é fácil de ter. Mas, a uma observação adequa-
da e cauta, além da experiência da possibilidade do próprio mal 
que praticamos pessoalmente e que todavia se objetiva no mun-
do, este alvitre não pode pretender mais do que foros de proba-
bilidade. Pois poder-se-ia admitir de imediato que no mundo sem-
pre existiu a possibilidade e a forte propensão para o mal subje-
tivo, mas que esta possibilidade nunca se tornou realidade. Poder-
se-ia reter que as situações desfavoráveis para a liberdade, que 
criam dificuldades e que devem ser sempre combatidas no de-
senvolvimento da humanidade, nunca procedem de decisão má 
realmente subjetiva, mas que são as primeiras fases de evolução 
que começa muito embaixo em seu movimento ascendente e que 
ainda não terminou. Poder-se-ia admitir que quiçá tenha havi-
do necessariamente decisões más da liberdade que se objetivam 
no mundo, mas que depois foram melhoradas e transformadas 
por ulterior mudança na própria liberdade subjetiva, de tal sor-
te que não mais tenham qualquer significado negativo e contrá-
rio à natureza de uma decisão da liberdade para outros. 
Todas essas possibilidades podem parecer bastante impro-
váveis. À pessoa que, num juízo subjetivamente leal, se depara 
não só como possível, mas como realmente pecadora, poder pa-
recer absurdo admitir que ela seja a única pecadora em toda a 
história da humanidade, unicamente pelo fato de poder julgar 
assim só com referência a si mesma e não pode emitir um juízo 
ou pelo menos um juízo menos claro e menos seguro com refe-
135 
rência aos outros. Pode parecer absurdo para essa pessoa, que 
já realmente fez a experiência de sua própria culpa subjetiva, 
pensar que somente ela tenha introduzido algo de adverso no 
mundo através de suas ações livres, algo que ela não mais pode 
inteiramente interceptar e desfazer começando tudo de novo desde 
o início. 
Toda a experiência do homem aponta no rumo da afirma-
ção de que no mundo realmente existem objetivações de culpas 
pessoais, que, enquanto material da decisão livre de outras pes-
soas, constítuem ameaça para elas, influenciam tentadoramen-
te sobre elas e tornam penosa a decisão da liberdade. E, visto 
que o material da decisão da liberdade se torna sempre um mo-
mento interno do ato livre, também a boa ação finita da liber-
dade, à medida que não consegue totalmente reelaborar e trans-
formar este material, em virtude dessa situação culposamente 
co-determinada permanece por sua vez sempre ambígua, carre-
gada de repercussões que propriamente não podem ser visadas, 
porque conduzem a trágicos impasses e mascaram o bem visa-
do na própria liberdade. 
A originária e permanente 
co-determinação pela culpa alheia 
Ora, essa experiência do homem, por si evidente, é protegi-
da de possíveis minimalizações pela mensagem do cristianismo 
que afirma que essa co-determinação da situação de todo ho-
mem pela culpa alheia é dado universal, permanente, e, em con-
seqüência, também original. Para o indivíduo humano não exis-
tem ilhas, cuja natureza já não esteja co-determinada pela cul-
pa de outros, direta ou indiretamente, próxima ou remotamen-
te. Como também não existe para a humanidade na história con-
creta deste mundo nenhuma possibilidade real, ainda que como 
ideal assintótico, de algum dia superar de forma definitiva essa 
determinação da situação de liberdade pela culpa. A humani-
dade pode e haverá de se preocupar com mudar essa situação 
de culpa em sua história de maneira sempre nova, visando tam-
bém a. resultados muito reais, e essa obrigação de tal forma se 
lhe impõe que infringir esse dever seria uma vez mais incidir em 
radical culpa perante Deus. Mas a situação deste nosso mundo 
sempre seguirá sendo, conforme ensina o cristianismo, situação 
136 
co-determinada pela culpa. E a tal ponto que mesmo a ação mais 
ideal e moralmente boa da liberdade de uma pessoa surge tragi-
camente na concretude de sua realização como manifestação tam-
bém do seu contrário, porque tal concretude é co-determinada 
pela culpa. 
Por rejeitar o otimismo quanto ao futuro, otimismo de 
cunho, quer idealista, quer comunista, o cristianismo crê que não 
somente está dando testemunho da verdade como também está 
prestando da melhor forma possível um serviço em prol de um 
"mundo melhor" aqui na terra. Crê ter oferecido ao mundo ade-
quados imperativos e obrigações morais, baseados até na res-
ponsabilidade perante Deus, até sob o risco de culpa eterna. Crê 
que o seu pessimismo histórico constitui também o melhor ser-
viço que se possa prestar para a melhoria do mundo aqui na 
terra, porque a utopia de que um mundo funcionando em per-
feita harmonia possa vir a ser criado pelo próprio homem ine-
vitavelmente conduz a violência e crueldade maiores do que as 
que o homem quer banir do mundo. É claro que semelhante pes-
simismo pode transformar-se em escusa para que nada se faça, 
para consolar os homens com apontar-lhes a vida eterna, e para 
oferecer a atitude religiosa não somente como ópio do povo, mas 
também como ópio para o povo. Mas isto em nada muda o fato 
de o realismo radical,que se expressa no pessimismo cr~stão, tal 
como o formulamos, quanto à situação de nossa liberdade, ser 
verdadeiro e, em conseqüência, não se possa camuflar. 
O discurso cristão sobre o "pecado original" 
Essa co-determinação geral, permanente e in_superáyel da 
situação de toda liberdade individual humana pela culpa e, em 
conseqüência, também de toda sociedade, só é pensáv~ se essa 
irradicável co-determinação da situação de liberdade pela culpa 
é também original ou seja, sempre inserida na origem da histó-
ria - à medida que essa origem da única história da humani-
dade há de ser pensada como posta humanamente. A universa-
lidade e a insuperabilidade da determinação pela culpa por par-
te da situação de liberdade na única história da humanidade im:.. 
plica determinação original, já dada nos inícios, pela culpa, da 
situação da humanidade, implica um "pecado original". 
O "pecado original" evidentemente não significa que o ato _ 
pessoal original de liberdade do primeiro início da história tenha-
137 
se transmitido às gerações subseqüentes em sua qualidade mo-
ral. A concepção de que o ato pessoal de ''Adão" ou do primei-
ro grupo humano se imputa a nós como que nos sendo transmi-
tido biologicamente nada tem a ver com o dogma cristão do pe-
cado original. 
Chegamos ao conhecimento, à experiência e ao sentido do 
que venha a ser pecado original em primeiro lugar a partir de 
interpretação existencial-religiosa de nossa própria situação, a 
partir de nós mesmos. Dizemos antes de tudo: somos pessoa_s 
que inevitavelmente temos de exercer nossa liberdade subjetiva-
mente metidos em situação que se acha co-determinada por ob-
jetivações da culpa, e de forma tal que essa co-determinação é 
parte permanente e inevitável de nossa situação. E isto se pode 
ilustrar por meio de exemplos bastante banais: ao comprar uma 
banana, a pessoa não reflete sobre o fato de que seu preço está 
vinculado a muitos pressupostos. Entre estes pode eventualmente 
estar a sorte miserável dos que colhem a banana, sorte que pode 
ter sido co-determinada pela injustiça social, pela exploração ou 
por secular e iníqua política comercial. A pessoa que compra 
a banana passa a participar aqui e agora dessa situação de cul-
pa em seu próprio proveito. Onde termina a responsabilidade 
pessoal pelo aproveitamento dessa situação co-determinada pe-
la culpa? onde começa? Trata-se de questões difíceis e obscuras. 
Para obter real compreensão do pecado original, partimos 
do fato de que nossa própria situação pessoal de liberdade acha-se 
co-determinada de forma insuperável por culpa alheia. Esta afir-
mação implica, porém, que essa co-determinação pela culpa com 
sua universalidade e inevitabilidade não é concebível se ela não 
estivesse dada já desde o início da história da liberdade huma-
na. Pois, se assim não estivesse dada, não poderíamos defender 
e reter essa radicalidade do reconhecimento de uma co-determi-
nação pela culpa de nossa situação de liberdade. Precisamos pen-
sar essa determinação pela culpa da situação, dentro da qual o 
homem usa sua liberdade, como já inserida na própria origem 
da história. A universalidade e insuperabilidade da determina-
ção pela culpa da situação da liberdade na única história huma-
na implica neste sentido um "pecado original", como diz sua 
expressão tradicional. 
138 
"Pecado original" e culpa pessoal 
O "pecado original", como o entende o cristianismo, não 
quer dizer absolutamente que a ação pessoal original do primeiro 
homem ou dos primeiros homens se tenha transmitido a nós co-
mo qualificação moral nossa. No "pecado original" não nos é 
imputado o pecado de Adão. Uma culpa pessoal de um ato qrj'.:" 
ginário de liberdade não pode vir a ser transmitida, pois ela cons-
titui o "não" existencial da transcendência pessoal dito em fa-
vor de Deus ou contra Deus. Ora, este é por sua própria nature-
za intransmissível, da mesma maneira como a liberdade formal 
de um sujeito não pode ser transmitida a outrem. Esta liberda-
de é precisamente aquilo pelo que alguém se torna indivíduo in-
substituível e único, que numa análise não pode vir a ser reduzi-
do nem a antecedentes nem a conseqüentes, como também não 
pode vir a ser reduzido ao seu meio ambiente, descarregando-se 
assim da responsabilidade por si próprio. Segundo a teologia ca-
tólica, o "pecado original" não significa, portanto, que a quali-
dade moral das ações do(s) primeiro(s) homem(ns) tivesse pas-
sado pa.ra nós, seja mediante imputação forense da parte de Deus, 
seja mediante herança biológica, como quer isto venha a ser pen-
sado. 
A este respeito, é de antemão evidente que a palavra "peca-
do" quando, por um lado, se usa para dizer a decisão moral má 
de um sujeito e quando, por outro, se emprega para dizer a si-
tuação de não-salvação que procede de decisão alheia, não é ab-
solutamente termo unívoco, mas se trata de emprego da palavra 
"pecado" em sentido análogo. Seria então de perguntar critica-
mente à teologia e pregação cristã por que então e_mpregam pa-
lavra assim tão exposta a equivocações. A este respeito, pode-
ríamos responder de imediato que é muito bem possível expres-
sar o que há de válido e permanente e o sentido existencial do 
· dogma do pecado original até sem o emprego desta palavra. Por 
outro lado, há de se levar em conta também o fato de que existe 
e deve existir certa normalização da linguagem usada na teolo-
gia e na pregação e que a própria história da formulação da ex-
periência da fé decorreu de fato de maneira a dar existência a 
esta palavra e que não pode ser abolida por arbítrio privado do 
indivíduo. 
Considerando-se isto, na pregação e na catequese não se de-
veria partir imediatamente.desta palavra, que posteriormente as 
139 
pessoas precisarão modificar penosamente, mas antes se deve-
ria elaborar uma teologia suficiente de sorte tal que, começando-
se com a experiência e com a descrição da situação existencial 
humana, se consiga falar mais ou menos da coisa mesma sem 
de início usar a palavra "pecado". E somente subseqüentemente 
e como que por acréscimo é que se deveria indicar que esta rea-
lidade muito verdadeira de nossa vida e situação pessoal é de-
signada na linguagem eclesiástica com a expressão "pecado ori- -
ginal". 
Assim seria de imediato compreensível que "pecado origi-
nal", pelo que diz respeito à liberdade, à responsabilidade, à pos-
sibilidade e maneiras de expiação, da cogitabilidade das conse-
qüências da culpa - o que se chama de punição -; em todo 
caso é coisa essencialmente diversa do que significamos aó fa-
lar de culpa e pecado pessoais, percebendo-os como possíveis 
ou como reais a partir da experiência transcendental em nós pró-
prios. 
O "pecado original" 
à luz da autocomunicação de Deus 
A natureza do pecado original deve ser entendida correta-
mete a partir da compreensão do resultado que a culpa de de-
terminado homem ou determinados homens acarreta para a si-
tuação da liberdade de outras pessoas. Porque, dada a unidade 
do gênero humano, o fato de o homem achar-se metido no mun-
do e na história e, por fim, a necessidade de toda situação origi-
nária de liberdade estar mediada no mundo, dá-se necessaria-
mente tal resultado. 
Pressuposta essa estrutura básica do ato de liberdade _en-
quanto situada no mundo e co-determinante da situação de li-
berdade de outros, o específico da doutrina cristã do pecado ori-
ginal consiste em duas coisas: 
1. A determinação de nossa própria situação pela culpa é 
elemento da história da liberdade do gênero h11mano, elemento 
que se insere nos inícios desta história, pois que de outra forma 
não se explicaria a universalidade desta determinação da situa-
ção da liberdade e da história da liberdade de todos os homens 
pela culpa. 
140 
2. A profundidade desta determinação pela culpa, que de-
termina o campo em que se exerce a liberdªd.~ - e não a liber-
dade como tal imediatamente -, há de se medir pela essência 
teológica do pecado, em que essa éÕ-deterini:riaçao-da situação 
humanapela culpa teve suas origens. · 
Se essa culpa pessoal nos inícios da história do gênero hu-
mano é rejeição da absoluta oferta que Deus faz de si mesmo 
para a absoluta autocomunicação de sua vida divina (sobre a 
qual falaremos expressamente mais tarde), então as conseqüên-
cias como determinação de nossa situação pela culpa são diver-
sas do que seriam se houvesse sido meramente a livre rejeição 
de uma lei divina - ainda que no horizonte da referência ao 
próprio Deus. A autocomunicação de Deus (que denominamos 
"justificação") é o que de mais radical e profundo existe na si-
tuação- existencial em que o homem exerce sua liberdade. Ela 
precede, enquanto graça divina, à liberdade como condição da 
correta possibilidade de. sua ação. A autocomunicação do Deus 
absolutamente santo designa qualidade que santifica o homem 
antes de boa decisão livre de sua parte. E, em conseqüência, a 
falta de semelhante autocomunicação divina santificante assu-
me o caráter de algo que não deveria ser e não constitui apenas 
diminuição das possibilidades da liberdade, como pode existir 
em outros casos na forma de "taras hereditárias". 
Uma vez que par~ o homem enquanto "descendente de 
Adão" está dada essa falta em sua situação de exercício da li-
berdade, pode e deve-se falar, ainda que em sentido análogo, de 
pecado original, embora se trate de momento na situação de exer-
cício da liberdade e não da liberdade do indivíduo como tal. A 
maneira como esse indivíduo responde a essa situação co-
determinada pela ação culposa :rios inícios da história, por amea~ 
çadora e perniciosa seja essa situação, é uma vez mais questão 
posta à sua liberdade, liberdade que afinal se exerce no espaço 
dentro do qual Deus se oferta a si mesmo. Essa auto-,oferta de 
Deus permanece sempre válida e não é revogada, não obstante 
a culpa dos inícios da humanidade, e se mantém propter Chris-
tum e em vista dele, ainda que não esteja mais presente por cau-
sa e a partir de ''Adão" e, portanto, não mais a partir de um 
início sem culpa da humanidade. Mesmo em semelhante situa-
ção co-determinada pela culpa, essa auto-oferta de Deus persis-
te como existencial radical na situação em que o homem exerce 
141 
sua liberdade, tanto quanto o que chamamos de "pecado origi-
nal". -
O que significa "pecado original" sabe-se, portanto, com 
base em dois fatores. Em primeiro lugar, o fator da universali-
dade da determinação pela culpa da situação em que todo ho-
mem exerce sua liberdade e do fato, reconhecido a partir daí, 
que essa determinação pela culpa abarca toda a história huma-
na desde suas origens. Em segundo lugar, temos o fator da in-
tuição reflexiva, que se aprofunda com a história da revelação 
e salvação, sobre a natureza da relação entre Deus e o homem, 
bem como o fator da natureza específica das condições de pos-
sibilidade para essa relação, nesta implicadas, e da profundida-
de da culpa, quando e onde esta existe, e, se existe culpa, impli-
ca um "não" à auto-oferta que Deus mesmo faz de si ao ho-
mem. 
A respeito da hermenêutica das afirmações b1ôlicas 
O fato e a natureza do que chamamos de "pecado origi-
nal" podem-se perceber a partir da experiência que o homem 
faz de si na história da salvação - à medida que esta história 
atingiu seu clímax definitivo em Cristo. Desde esta perspectiva, 
pode-se compreender também que o ensinamento do Antigo e 
do Novo Testamento acerca do pecado original representa fases 
claramente distintas entre si. Somente através da radicalização 
do conhecimento reflexo da imediatez para com Deus numa re-
lação positiva com ele é que se pode chegar, a partir da univer-
salidade das conseqüências do pecado, ao conhecimento do pe-
cado original. A narrativa bíblica sobre o pecado do(s) primei-
ro(s) homem(ns) não precisa absolutamente ser entendida co-
mo se fosse reportagem. A descrição do pecado dos primeiros 
homens é antes a conclusão etiológica que infere, a partir da ex-
periência da situação existencial e histórico-salvífica do homem, 
o que deve ter ocorrido "nos inícios", se a atual situação da li-
berdade é assim como se apresenta e vem a ser admitida sem 
rebuços. Se assim é, fica também claro que tudo o que não se 
pode obter mediante essa conclusão etiológica, partindo-se da 
atual situação para sua origem, na descrição plástica desses acon-
tecimentos no primeiro início da humanidade, não passa de ins-
trumentais para descrever, maneiras de expressar, e não consti-
142 
tuem conteúdos de afirmação. A expressão pode ocorrer na for-
ma do mito, pois que este é meio plenamente legítimo no senti-
do de descréver experiências humanas de ultimidade, meio de 
descrição que não pode absolutamente substituir-se por outro. 
Até a mais abstrata metafísica ou filosofia da religião necessita 
trabalhar com representações imaginosas, que não passam de 
formas abreviadas e pálidas de linguagem mitológica. 
O pecado original nada mais expressa do que a origem his-
tórica da atual situação, universal e insuperável, de nossa liber-
dade enquanto é co-determinada pela culpa, e isto à medida que 
esta situação possui história na qual, por causa de sua determi-
nação universal pela culpa, a autocomunicação de Deus aos ho-
mens pela graça não provém de "Adão", não dos inícios da his-
tória do gênero humano, mas de sua meta, do Deus-homem Je-
sus Cristo. 
As ''conseqüências do pecado original" 
À medida que essa situação de nossa liberdade se acha ine-
vitavelmente co~determinada pela culpa e esta culpa é também 
um dos fatores que marcam tudo o que se apresenta como ele-
mentos singulares nessa situação de liberdade, fica também cla-
ro que a totalidade do encontro do homem com o seu meio am-
biente e com o mundo de suas relações sociais, que o determi_-
nam, seria diferente se sua situação não estivesse co-determinada 
por essa culpa. Neste sentido, Q trabalho, a ignorância, a doen:-
ça, o sofrimento, a morte - tal como concretamente nos vêm 
ao encontro - sem dúvida nenhuma, constituem característi-
cas de nossa existência humana que não estariam presentes em 
urna existência sem culpa tais como os experimentamos de fato. 
Neste sentido, podemos e devemos afirmar que estes exis-
tenciais são conseqüências do pecado original. Mas com isto não 
se diz, em sentido contrário, que tudo o que se nos depara nes-
sas características da história humana individual e coletiva não 
passa de pura conseqüência do pecado, ou que possamos fazer 
idéia concreta dos existenciais contrários, tais como se manifes-
tariam em âmbito de existência livre de culpa. É claro que tam-
bém o homem sem culpa teria vivido sua vida na e mediante 
a liberdade voltado para algo de final e definitivo, e, neste senti-
do, teria "morrido". É claro que não podemos imaginar concre-
tamente esse modo de existência a se mover para o estado de 
143 
sua consumação sem ser tocado pela culpa. Todas as afirma-
ções da Escritura sobre isso são e permanecem sendo tentativas 
assintóticas de indicar como seria a existência sem a culpa, si-
tuação que ninguém jamais viveu concretamente, mas que te-
mos de postular se não quisermos jogar a culpa por nossa peca-
minosidade e pela co-determinação de nossa situação pelo pe-
cado no próprio Deus. 
Se a essência do pecado é exercício da liberdade transcen-
dental no "não" contra Deus, então ela pode vir a ser realizada 
também onde a mediação teórica e prática dessa liberdade trans-
cendental é bastante modesta. Assim como no primeiro ato em 
que o homem surge como homem - talvez quando fez fogo ou 
manuseou um utensílio e pareceu ficar absorvido por completo 
nessa ocupação - ele já era um ser transcendente, do contrário 
não podia chamar-se homem, assim também nas mais primiti-
vas condições culturais devemos reconhecer a possibilidade do 
"sim" ou do "não" a Deus, que a doutrina cristã reconhece com 
relação ao(s) "primeiro(s) homem(ns)". Visto que este "não" a 
Deus há de se pensar a partir da origem da liberdade humana 
como ato de auto-interpretação originária, e não como um atoentre muitos outros, não há nenhuma necessidade de se conce-
ber o homem inocente como se tivesse vivido durante longo pe-
ríodo de tempo num paraíso histórico, nem de rejeitar como puro 
mito o que realmente se quer dizer no livro do Gênesis. 
144 
QUARTA SEÇÃO 
O HOMEM COMO EVENTO 
DA LIVRE E INDULGENTE 
AUTOCOMUNICAÇÃO DE DEUS 
Somente na quarta seção de nossas reflexões é que nos ca-
be tratar pela primeira vez do que propriamente é peculiar da 
mensagem cristã. O que tivemos a oportunidade de dizer nas 
três primeiras seções constitui os pressupostos sem os quais se-
ria impossível a mensagem cristã sobre o homem. Mas por si 
mesmos não se tratava de algo tão especificamente cristão, que 
toda e qualquer pessoa que aceite as afirmações que fizemos co-
mo expressivas de sua autocompreensão já se possa chamar de 
cristã ao nível de profissão de fé explícita e reflexa. 
Mas eis que agora atingimos o núcleo mais íntimo da com-
preensão cristã da existência com a afirmação de que o homelll _ 
é evento de absoluta, livre, gratuita e indulgente autocomunica-
ção de Deus. 
1. OBSERVAÇÕES PRELIMINARES 
Sobre o conceito de ''autocomunicação" 
Ao falarmos de "autocomunicação" de Deus, que não se 
entenda esta palavra no sentido de que Deus, em uma revela-
ção, falasse algo sobre si mesmo. O termo "autocomunicação" 
visa propriamente a significar que Deus se toma ele mesmo em 
sua realidade mais própria como que um constitutivo interno 
do homem. lrata-se, pois, de autocomunicação ontológica_ de 
Deus. Mas que não se entenda o termo "ontológica" em sentido 
apenas objetivante, como se se tratasse de algo concebido intei-
ramente à maneira de coisa ou objeto. Este seria o outro lado 
de possível equivocação. Uma autocomunicação de Deus, co-
145 
mo mistério pessoal e absoluto ao homem enquanto ser de trans-
cendência, implica inicialmente uma comunicação a ele enquanto 
ser espiritual e pessoal. Queremos, portanto, evitar de imediato 
qois eqµívocos: primeiramente, que se entenda a autocomuni-
cação de Deus como se mero falar sobre Deus, ainda que talvez 
suscitado por Deus; e, em segundo lugar, que se entenda a mes-
ma como se mera coisa ou objeto. 
O ponto de partida da mensagem cristã 
Poder-se-ia objetar contra a possibilidade de falar sobre a 
livre e indulgente autocomunicação de Deus a esta altura, 
dizendo-se que esta idéia é conseqüência somente da história da 
salvação e revelação que atinge seu clímax no Deus-homem Je-
sus Cristo. Na verdade sobre este ponto falaremos nas seções 5 
e 6 de nossa reflexão. Não obstante, não carecemos de razão pa-
ra considerar já a origem e centro propriamente ditos do que 
o cristianismo realmente é, transmite e significa, a saber, a ab-
soluta e indevida auto-comunicação de Deus, e, acrescente-se, 
em inteira consonância com a seção 6, que se caracteriza tam-
bém pelo fato de ser oferta de perdão. Pois quando nós como 
seres históricos chegamos à compreensão· de nós próprios, 
fazemo-lo percebendo o nosso passado a partir do acontecer de 
nosso presente. 
Para ver o que significa a afirmação principal desta nossa 
quarta seção, começaremos, um tanto diversamente do que fi-
zemos antes, pela mensagem cristã explícita. Esta é, com certe-
za, resultado de longa evolução da história do gênero humano 
e do espírito. O cristão interpreta justificadamente a história como 
história da salvação e revelação progressiva de Deus e que atin-
giu seu clímax em Cristo. Mas precisamente nesta última fase, 
na qual, segundo convicções cristãs, essa história alcançou sua 
mais elevada autocompreensão e seu ponto de irreversibilidade, 
· é que chega até nós essa mensagem, e ninguém pode negar que 
nossa situação histórica seja tal que temos o dever, se na verda-
de somos seres históricos, de dar ouvidos a essa mensagem e, 
em seguida, ou pôr-nos de acordo com ela ou rechaçá-Ia expressa 
e responsavelmente. 
146 
2. QUE SIGNIFICA 
''AUTOCOMUNICAÇÃO" DE DEUS 
Graça santificante e visão beatífica 
No tratado da graça santificante, mas sobretudo no trata-
do da escatologia quando se fala da realização plena e total do 
homem na visão de Deus, a mensagem cristã diz que o homem 
é evento da absoluta e indulgente autocomunicação de Deus. En-
tendemos "autocomunicação" aqui em sentido estritamente on-
tológico, em correspondência à natureza do homem, do homem 
cujo ser é estar presente a si mesmo, ter responsabilidade pes-
soal por si mesmo na consciência de si e na liberdade. 
A autocomunicação de Deus significa, portanto, que a, rea: 
lidade comunicada é realmente Deus em seu próprio ser, e desta 
forma é comunicação que tem em mira conhecer e possuir a Deus 
na visão imediata e no amor. Esta autocomunicação significa 
precisamente aquela objetividade do dom e da comunicação que 
é o ponto alto da subjetividade da parte do que comunica e do 
que recebe a comunicação. 
Para entender nossa afirmação central nesta reflexão, faz-
se mister considerar, dentro da dogmática cristã, a doutrina da 
graça e a doutrina da visão definitiva de Deus na mais estreita 
unidade entre si. Pois os temas do tratado da graça - a própri~ 
graça, o processo da justificação, a divinização do homem -
só se podem entender em sua peculiaridade a partir da visão so-
brenatural imediata de Deus, visão que, de acordo com a dog-
mática cristã, constitui o fim e a consumação do homem. E vice-
versa: a natureza ontológica da visão imediata de Deus só se pode 
entender em sua total radicalidade, se ela constitui a consuma-
ção co-natural daquela divinização do homem, nele internali-
zada e realmente ontológica, tal como se expressa na doutrina 
segundo a qual o homem se santifica e justifica mediante a co-
municação do Espírito Santo a ele. Que significam graça e vi-
são de. Deus? Não passam de o anverso e o reverso de um só 
e mesmo evento, duas fases nele, condicionadas pela livre histo-
ricidade e temporalidade do homem. Não passam de duas fases 
interligadas e sucessivas da única autocomunicação de Deus aos 
homens. 
147 
As duas modalidades 
da autocomunicação de Deus 
A esta altura já deve estar claro, a partir de nossa antropo-
logia geral, que esta autocomunicação de Deus ao homem en-
quanto ser livre que exerce sua existência no interior da possibi-
lidade de absoluto "sim" ou "não" a Deus, dá-se ou se pode 
pensar em duas modalidades: na modalidade da situação ante-
cendente da oferta, do apelo à liberdade do homem, por um la-
do; e na modalidade, por outro lado, da tomada de posição com 
referência a essa oferta da autocomunicação de Deus como per~ 
rnanente existencial do homem, ou seja, na modalidade da au-
tocomunicação de Deus acolhida ou rejeitada pela liberdade do 
homem. 
Que o acolhimento da autocomunicação de Deus deve ser 
movido e é movic;lo por essa mesma oferta de Deus, e que, em 
conseqüência, a aceitação da graça é também por sua vez even-
to da graça, é enunciado conseqüente da relação última entre 
à transcendência humana enquanto conhecimento e liberdade, 
de uma parte, e, de outra, o Aonde e Donde que abre e movi-
menta essa transcendência. Segue-se ademais e essencialmente 
que o ato criado de aceitar a autocornunicação de Deus possibi-
lita que o que é aceito permaneça realmente divino e não seja 
rebaixado a algo de criado somente se este ato subjetivo criado 
urna vez mais é movido por Deus que se comunica e é acolhido. 
E segue-se ainda que a ação concreta da liberdade precisamente 
em sua bondade concreta e em sua retidão moral uma vez mais 
se deve pensar como proveniente e potenciada pela origem de 
toda a realidade, ou seja, pelo próprio Deus. 
A autocomunicação de Deus 
e a permanência do mistério 
Que significa mais exatamente esta autocomunicação de 
Deus? Para explicá-la é mister que voltemos a considerar a es-
sência do homem que originariamente está presente na experiên-
cia transcendental. Nesta, o homem faz a experiência de si co-
mo ente finito e categorial, como ente estabelecido pelo Ser ab-
soluto e em distância e distinção com referênciaa Deus, como 
ente que provém do Ser absoluto e se funda no mistério absolu-
to. '.Permanente procedência de Deus e radical distinção com res-
148 
peito a ele constituem, conjuntamente e em relação de mútuo 
condicionamento, existenciais fundamentais do homem. 
Ao dizermos agora que "o homem é evento da absoluta e 
indulgente autocomunicação de Deus", queremos dizer a um só 
tempo que, por um lado, Deus está presente para o homem em 
sua absoluta transcendentalidade não só como o absoluto, sem-
pre distante e radicalmente remoto Aonde e Donde de sua trans-
cendência que o homem capta· apenas assintoticamente, mas tam-
bém que ele se doa a si mesmo em sua própria realidade. O Aonde 
transcendental da transcendência e o seu objeto, o se-u "em si", 
coincidem entre si de sorte a subsumir a ambos - o Aonde e 
o objeto - bem como sua distinção em unidade mais originá-
ria e última em que não mais se podem distinguir adequada-
mente mediante conceitos. E ao dizermos que Deus está presen-
te para nós em absoluta autocomunicação, queremos por outro 
lado, dizer que esta autocomunicação de Deus está presente na 
forma da proximidade e não só na forma do estar presente-
ausente enquanto Aonde de transcendência, proximidade em que 
Deus não se torna coisa singular e categorial, mas está, sem em-
bargo, presente como quem se comunica a si próprio, e não so-
mente como o longínquo, inabrangível e assintótico Aonde da 
nossa transcendência. 
A autocomunicação divina significa, portanto, que Deus po-
de comunicar sua própria realidade a uma realidade não-divina, 
sem que deixe de ser a realidade infinita e o mistério abs9luto 
e sem que o homem deixe de ser o ente finito e distinto de Deus 
que é'. Mediante esta autocomunicação não se suprime nem se 
nega o que antes dissemos quanto à presença de Deus como o 
mistério absoluto que, por natureza, não se pode abranger por 
meio de conceitos. Até na graça e na visão imediata de Deus, 
Deus permenece Deus, ou seja, o primeiro e último critério que 
por nada pode ser medido. Permanece o mistério, o único que 
é evidente em si mesmo. Permanece o Aonde da ação mais ex-
celsa do homem, o Aonde que possibilita e move esta ação. Deus 
permanece sendo o santo somente acessível na adoração. Per-
manece como quem é pura e simplesmente o Deus inominado 
e indizível, que jamais pode ser compreendido, nem sequer por 
sua autocomunicação na graça e na visão beatífica imediata, que 
jamais se torna sujeito ao homem, que jamais pode entrar em 
uma classificação dentro de sistema humano quer de conheci-
mento, quer de liberdade. 
149 
Pelo contrário, neste próprio evento da absoluta autocomu-
nicação de Deus, a divindade de Deus como mistério santo se 
torna a realidade radical- e insuperável para o homem. A ime-
diatez para com Deus em sua autocomunicação é precisamente 
o manifestar-se de Deus como o mistério absoluto e permanen-
te. Mas que isto possa acontecer, que o horizonte originário possa 
vir a ser objeto, que o fim inatingível pelo próprio homem seja 
contudo o real ponto de partida da auto-realização plena e aca-
bada do homem: eis o que diz a doutrina cristã, segundo a qual 
é vontade de Deus doar-se ao homem em imediata visão de si 
mesmo, como realização plena e acabada da existência espiri-
tual dele. É o que se afirma na doutrina cristã quando assevera 
Que na graça, ou seja, na comunicação do Espírito Santo de Deus, 
o evento da imediatez para com Deus, como a realização plena 
do homem, é preparada de tal sorte que já agora podemos dizer 
que o homem participa da natureza divina, que lhe foi outorga-
do o pneuma divino que sonda as profundezes de Deus, que ele 
é já agora filho de Deus e só resta ainda manifestar-se o que 
já é aqui na terra. 
O doador é o próprio dom 
Para compreender esta autocomunicação de Deus aos ho-
mens, é decisivo entender que o doador é na sua própria reali~ 
dade o dom, que o doador se doa-a si próprio em seu próprio 
ser à criatura como sua realização plena e acabada. · 
É claro que essa autocomunicação divina, na qual Deus se 
torna ele próprio como que princípio constitutivo do ente cria-
do, sem com isto perder sua absoluta independência ontológi-
ca, acarreta efeitos "divinizantes" no ente finito que recebe esta 
autocomunicação, efeitos que, enquanto determinações de um 
sujeito finito, se devem conceber como finitos e criados. Mas 
o que há de mais próprio nesta autocomunicação divina é a re-
lação entre Deus e o ente finito, que se pode e se deve entender 
em analogia com uma causalidade em que a "causa" se torna 
ela própria princípio constitutivo da própria realidade causada. 
O modelo da causalidade formal 
Se o próprio Deus em sua própria e absoluta realidade e 
glória é o próprio dom, devemos talvez falar de relação formal 
150 
de causalidade enquanto distinta de causalidade eficiente. No 
caso da causalidade eficiente, o efeito ou a realidade causada 
é, pelo menos no âmbito da nossa experiência categorial, sem-
pre distinto da causa eficiente. Mas conhecemos também uma 
causalidade formal, em que determinado ente, um princípio de 
ser, é momento constitutivo em outro sujeito, enquanto se co.:: 
munica a si própria a este e não produz algo distinto de si. E 
neste caso o princípio constitutivo interno situa-se na realidade 
que experimente essa causalidade. Podemos aduzir essa causa-
lidade formal no sentido de explicar o que aqui queremos dizer. 
No que chamamos de graça e visão imediata de Deus, este é real-
mente princípio constitutivo no homem enquanto pessoa que se 
encontra na salvação ou no estado de sua realização plena e con-
sumada. 
Essa causalidade formal interna há de se pensar, para que 
se distinga das causas internas constitutivas da essência que co-
nhecemos comumente, de tal forma que a causa interna consti-
tutiva mantenha em si mesma sua própria natureza em absoluta 
intocabilidade e liberdade. A essência ontológica dessa autoco-
municação de Deus ou mesmo a possibilidade dela permanece 
obscura por sua singularidade. A possibilidade dessa autocomu-
nicação é absoluta prerrogativa de Deus, pois o ser absoluto di-
vino, ele somente, não só pode estabelecer o diferente de si mes-
mo na realidade, sem ficar sujeito à diferença relativamente a 
ele, mas também pode comunicar-se a si próprio em sua pró-
pria realidade, sem que se perca a si mesmo nesta comunicação. 
Por isso a natureza ontológica dessa autocomunicação só 
se pode pensar reflexamente e ser levada a conceitos mediante 
modificações dialética e análoga de outros conceitos que nos se-
jam familiares desde alhures. Se, pois, afinal queremos fazer uso 
de conceitos ônticos, apresenta-se-nos para este tipo de afirma-
ção análoga da autocomunicação de Deus a noção da causali-
dade intrínseca e formal enquanto distinta da causalidade efi-
ciente que está como que voltada para o exterior. Mediante este 
conceito podemos então dizer que Deus nessa sua autocomuni-
cação de seu ser absoluto comporta-se dentro dos parâmetros 
da causalidade formal com referência ao ente criado, ou seja, 
ele não causa nem produz originariamente na criatura algo de 
diverso dele mesmo, mas antes, ao comunicar sua própria reali-
dade divina, faz-se constitutivo da realização consumada da cria-
tura. 
151 
A inteligibilidade intrínseca e a legitimação ontológica pa-
ra entender a autocomunicação, como a apresentamos, acha-se 
na experiência transcendental da referência de todo ente finito 
ao ser e mistério absoiutos de Deus. Já na transcendência em 
si, o set absoluto é o elemento constitutivo mais íntimo pelo qual 
este movimento transcendental é movido em sua direção, e não 
apenas um Aonde extrínseco ou um fim extrínseco de um movi-
mento. Precisamente por isso este Aonde não é um momento 
do próprio movimento transcendental, de tal sorte que ele só ti-
vesse existência e sentido neste movimento. Pelo contrário, mes-
mo sendo o que há de mais íntimo nesse movimento, ele perma-
nece sendo excelso e intocável por esse movimento transcendental.Autocomunicação de Deus 
em vista do conhecimento imediato e do amor 
Entendida desta maneira, a natureza e o sentido dessa au-
tocomunicação de Deus ao sujeito espiritual consiste em Deu_s 
tornar-se imediato para o sujeito enquanto espiritual, ou seja, 
na unidade fundamental do conhecimento e do amor. De início 
há de se entender a autocomunicaçãÓ ontológica como condi-
ção para conhecer e amar a Deus de maneira imediata. Mas até 
esta proximidade a Deus no conhecimento e amor imediatos, a 
Deus que permanece mistério absoluto, não se deverá pensar co-
mo fenômeno estranho e adventício a uma realidade pensada 
como coisa. Pelo contrário, é ela a essência propriamente dita 
do que constitui a relação ontológica entre Deus e a criatura. 
Em conexão com a cristologia a ser exposta mais tarde, ha-
veremos de estabelecer ulteriormente que a criação como cau-
salidade eficiente, ou seja, como livre estabelecimento por Deus 
da realidade diversa dele precisamente como diversa, há de se 
pensar como o pressuposto que possibilita a livre autocomuni-
cação e como o seu modo deficiente de realização, embora se 
possa conceber por si só. Na cristologia poderá ficar ainda mais 
claro que essa autocomunicação de Deus à realidade não-divina 
implica a produção, por causa eficiente, de realidade diversa de 
Deus como sua condição. Mais tarde teremos de mostrar que 
no fundo essa causalidade eficiente e criadora de Deus deve ser 
entendida apenas como modalidade ou modo deficiente de rea-
lização daquela absoluta e enorme possibilidade de Deus que 
consiste no fato de que ele, que é ágape em pessoa, que em si 
152 
mesmo é sujeito absolutamente feliz e realizado, pode, e preci-
samente por esta razão, comunicar-se a si mesmo a outrem. 
Se ser é estar presente a si mesmo, se a essência de um ente 
à medida que ele possui ser é a interna luminosidade e autopos-
sessão pessoal, se todo grau mais remisso de existência só se po-
de entender como forma deficiente, reduzida e despotenciada 
da existência do ser, então a autocomunicação ont()lógica à cria-
tura é por definição comunicação em vista do conhecimento e 
amor imediatos, e, vice-versa, é claro que ucorre também o que . 
corresponde a isto, ou seja, que o verdadeiro e imediat9 c9nhe'-
cimento e amor de Deus em si mesmo necessariamente implica 
esta realíssima àutocomunicação de Deus. 
A absoluta gratuidade 
da autocomunicação de Deus 
Isto significa também que essa autocomunicação de Deus 
à criatura deve necessariamente se entender como ato da mais 
alta liberdade de Deus. Ato de ele abrir-se em sua intimidade 
última e em amor absoluto e livr<!. Por isso a teologia cristã en-
tende que essa autocomunicação é absolutamente graciosa, ou 
seja, "indevida", e graciosa e indevida com referência a todo en-
te criado, e anterior a todo fechamemto eventual do sujeito fi-
nito na culpa para com Deus, de tal sorte que a autocomunica-
ção de Deus enquanto vitória sobre a rejeição pecaminosa da 
criatura deve-se entender não somente como dom de perdão, mas 
também anteriormente a isto, como o milagre indevido do livre 
amor de Deus que faz o próprio Deus ser o princípio interno 
e "objeto" da realização da existência humana. 
Por isso, a autocomunicação de Deus na graça e na realiza-
ção· consumada na visão imediata de Deus é designada na teo.., 
logia católica como "sobrenatural". Emprega-se este conceito para 
expressar que essa autocomunicação divina é ato do mais livre 
amor, e isto também com referência ao ente finito espiritual já 
estabelecido no ser pela criação. Até com referência ao sujeito 
criado pressuposto como já existente, a autocomunicação de Deus 
é um milagre a mais de seu livre amor, que é a realidade mais 
evidente por si mesma, mas que ao mesmo tempo não se pode 
deduzir logicamente de qualquer outra coisa. 
153 
Gratuidade não significa exterioridade 
A doutrina sobre a ~obrenaiuralidade da graça e da reali-
zação consumada do homem na visão imediata de Deus não sig-
nifica que a "elevação" sobrenatural da criatura dotada de espí-
rito venha a ser acrescentada extrínseca e acidentalmente à na-
tureza e estrutura do sujeito espiritual de ilimitada transcendên-
cia. Na ordem concreta em que nos achamos em nossa experiên-
cia transcendental - interpretada pela revelação cristã -, a cria-
tura espiritual é estabelecida de antemão como possível desti-
natária dessa autocomunicação divina. A natureza espiritual do 
homem é criada de início por Deus porque Deus quer comunicar-
se a si mesmo: a criação de Deus pela causalidade eficiente ocorre 
porque ele quer doar-se a si mesmo no amor. Na ordem concre-
ta, a transcendência do homem é querida de antemão como o 
espaço de autocomunicação de Deus, somente na qual esta trans-
cendência encontra sua realização absoluta e consumada. Na or-
dem em que vivemos e que é a única real, o vazio da criatura 
transcendental existe porque a plenitude de Deus cria este vazio 
com a intenção de comunicar-se a si mesmo a ela. Mas precisa-
mente por isso esta comunicação não deve ser entendida de ma-
neira panteísta ou gnóstica, como se fosse processo natural de 
emanação de Deus. Pelo contrário, há de se entender como o 
mais livre dos amores, porque ele podia ter deixado de criar e 
ser feliz por si mesmo. Esse amor libérrimo é de tal sorte que, 
por pura benevolência, ele cria o vazio que livremente ele quer 
preencher. 
Por isso essa autocomunicação de Deus à sua criatura es-
piritual pode e deve chamar-se sobrenatural, indevida e gratui~ 
ta, mesmo sem levar em consideração o pecado, sem com isto 
introduzir na realidade una do homem qualquer espécie de dua-
lismo como que dois andares. Na ordem una e unicamente real 
da existência humana, o que é mais íntimo e intrínseco ao ho-
mem é a autocomunição de Deus, pelo menos enquanto oferta-
da e dada anteriormente à liberdade do homem, como a condi-
ção de sua mais alta e obrigatória realização. E esta mesma rea-
lidade, que é a mais. íntima e a mais evide!_lte por si, é Deus, o 
mistério, o livre amor de sua divina autocomunicação, e, em con-
sequência, o sobrenatural. Assim é porque, na ordem concreta, 
o próprio homem é ele mesmo através do que ele não é. Porque 
o que ele é inevitável e ineludivelmente a ele é dado como pres-
154 
suposto e condição da possibilidade para o que em toda verda-
de lhe está dado em amor absoluto, livre e inexplicável: Deus 
em sua autocomunicação. 
Observações sobre a doutrina da Igreja 
O que dissemos até agora sobre a autocomunicação de Deus 
acha-se na Bíblia e no magistério da Igreja, quando dizem que 
o homem justo torna-se verdadeiramente filho de Deus; que ne-
le habita como que em seu templo o Espírito de Deus como dom 
propriamente divino; que ele participa na natureza divina; que 
verá face a face a Deus tal como ele é em si, sem nenhuma me-
diação de espelho, comparação ou enigma; que já agora está de 
posse do que um dia será, muito embora apenas de forma es-
condida na graça santificante que é penhor e germe vivo do que 
será. 
Todas estas e semelhantes afirmações não devem ser enten-
didas como se fossem descrições hiperbólicas de estado qual-
quer de salvação e felicidade. O que é decisivo na mensagem do 
Novo Testamento é, antes, que o círculo dos poderes e forças intra-
mundanos foi estourado por ação do único Deus vivo, que é 
Deus, e não algum poder numinoso, e ele o estourou para abri-
lo para a real imediatez para consigo mesmo. Em termos bíbli-
cos, já nada mais temos a ver com principados e potestadesº"-' 
com deuses falsos ou com anjos, nem com o vasto pluralismo 
de nossas raízes e origens, mas com o Deus único, vivo e verda-
deiro, que transcende radicalmente todas essas outras realida-
des. Temos a ver com aquele que unicamente pode ser chamado 
pelo nome de "Deus", que contudo nem sequer é propriamente 
nome. Enquanto distinto de todos os poderes e forças por nu-
minosos sejam, ele está presente para nós em imediatez no Es-
prito Santo que nos foi dado e no que é chamado de "Filho" 
emsentido absoluto porque estava com Deus no princípio e é 
Deus ele próprio. 
O cristianismo como a religião da imediaticidade 
para com Deus em sua autocomunicação 
O cristianismo pode representar a relação para com Deus 
que seja distinguível e distinta de todas as demais religiões, rela-
ção que ultrapassa radicalmente todas as outras, somente se ele 
155 
é a profissão de fé nessa imediatez para com Deus, que permite 
ser Deus realmente Deus mesmo em sua autocomunicação ver-
dadeira, que não oferece dom numinoso e misterioso qualquer 
que seja distinto dele, mas que se doa a si mesmo. 
Na verdade, a afirmação de que temos que ver com Deus 
em sua própria realidade de forma absolutamente imediata 
impõe-nos, a nós, que nos entreguemos incondicionalmente ao 
inominado, à luz inacessível que nos pode parecer como que tre-
vas, ao mistério santo que surge e permanece tal quanto mais 
ele se aproxima. Na verdade esta afirmação nos impõe ver to-
dos os caminhos como levando aonde não há mais caminho al-
gum, a fundar todas as razões no abismo sem fundo, a entender 
todos os argumentos como indicação da incompreensibilidade, 
e que nunca pensemos podermos um dia estabelecer de vez para 
sempre algum ponto em torno do qual pudéssemos organizar 
sistema de coordenadas que tudo incorporasse. Na verdade esta 
afirmação nos impõe que nos entreguemos ao mistério inefável 
e santo e que o aceitemos na liberdade, que como tal se torna 
tanto mais radical para nós quanto mais ele se comunica e quanto 
mais nos permitimos dar essa autocomunicação no que chama-
mos de fé, esperança e caridade. Mas nesta afirmação da abso-
luta autocomunicação de Deus, em que ele é doador e dom e 
fundamento da acolhida do dom a uma só vez, também se diz 
que o que se perde a si mesmo completamente encontra-se a si 
mesmo na presença do amor infinito, diz-se que quem toma o 
caminho infinito chega e sempre já chegou a seu termo, e que 
a pobreza absoluta e a morte, para os que se entregam a elas 
e a todo o seu horror, nada mais são do que o começo da vida 
eterna. 
O que podemos dizer para explicar a graça e a visão ime-
diata de Deus não é, portanto, discurso categorial sobre deter-
minada coisa que exista ao lado de outras, mas antes tentar afir-
mar o Deus inominado como alguém entregue a nós. O que se 
expressa, portanto, apenas repete, de maneira bem determinada 
e que permanece sendo transcendental, a indicação de Deus e 
a referência muda à nossa experiência transcendental. Mas o faz 
de forma tal que agora podemos também dizer não só que essa 
experiência tem sua mais radical possibilidade à sua frente, mas 
também que ela a atingirá, e até que no movimento para atingi-
la já está sempre animada pela autocomunicação do futuro pa-
ra o qual esse processo está em movimento como sua realização 
156 
absoluta. A doutrina sobre essa graça e sua consumação signi-
fica, portanto, ordem a nós dada para que permaneçamos radi-
calmente abertos na fé, esperança e caridade para o futuro indi-
zível, inimaginável e inominado de Deus como advento absolu-
to, ordem a nós dada para que não nos fechemos antes que na-
da mais haja para fechar, porque nada será deixado fora de Deus, 
pois nós estaremos inteiramente em Deus e ele estará inteiramente 
em nós. 
3. A OFERTA DA AUTOCOMUNICAÇÃO 
COMO "EXISTENCIAL SOBRENATURAI..:' 
Até o momento temos partido do ensino explícito da fé cris-
tã. Mas ainda que estejamos de acordo sobre o fato-tema que 
discutiremos na próxima seção - de a pessoa receber a verdade 
última e claramente formulada acerca de sua existência do ensi-
namento explícito da revelação formulado pelo magistério da 
Igreja que a pessoa ouve como que proveniente "desde fora" em 
palavras humanas, e que ela não cria por si mesma esta inter-
pretação de sua existência e nem por explicação particular de 
sua experiência privada, alguém poderia, contudo, ter a impres-
são de que a proposição segundo a qual o homem é evento da 
absoluta autocomunicação de Deus lhe seja endereçada desde 
fora apenas ao nível conceituai, e que realmente não transmite 
para ele na explicidade de palavras reflexas o que o próprio ho-
mem é realmente e o que ele próprio experimenta nas profunde-
zas de sua existência. Mas as coisas na verdade não são assim. 
O enunciado da autocomunicação de Deus 
como enunciado ontológicQ 
A afirmação "o homem é evento da absoluta autocomuni-
cação de Deus" não significa nenhuma objetividade de uma coisa 
no homem. Esta afirmação não constitui nenhuma afirmação 
categorial e ôntica, mas é afirmação ontológica que expressa o 
sujeito como tal e, em conseqüência, as profundezas de sua sub-
jetividade, ou seja, as profundezas de sua experiência transcen-
dental. A doutrina cristã, que se torna refletida e conceituai e 
expressa em palavras humanas na profissão de fé da Igreja, não 
informa simplesmente o homem sobre o conteúdo de sua pro-
fissão de fé desde fora e somente em conceitos. Pelo contrário, 
157 
o que ela faz é suscitar a realidade, que não apenas é dita, mas 
também comunicada, dada e experimentada realmente na expe-
riência transcendental da pessoa humana. Expressa, portanto, 
para o homem a sua própria autocompreensão, sempre exerci-
damente realizada, ainda que irrefletidamente. 
No sentido de obter compreensão desta tese que levanta-
mos, devemos antes de tudo considerar que a tese aqui proposta 
sobre a mais íntima e última característica de nossa afirmação 
básica - que o homem é evento da absoluta autocomunicação 
de Deus - não significa afirmação que valha apenas para estas 
ou aquelas pessoas enquanto distintas de outras, como, por exem-
plo, somente para os batizados ou para os justificados enquan-
to respectivamente se distinguem dos pagãos ou dos pecadores. 
A tese que afirma que o homem como sujeito é evento da auto-
comunicação de Deus é - sem absolutamente prejudicar o que 
se trata de graça livre, gratuita e indevida, de portento do amor 
livre de Deus para com a criatura espiritual - afirmação que 
diz respeito a todos os homens, afirmação que expressa um exis-
tencial de toda e cada pessoa humana. Este existencial não se 
torna merecido ou devido e, nesta acepção, "natural", pelo fato 
de estar dado a todos os homens como elemento permanente 
de sua existência concreta e pelo fato de estar previamente dado 
à sua liberdade, à sua autocompreensão e à sua experiência. O 
caráter gratuito de uma realidade nada tem a ver com a questão 
se está dada a muitas ou poucas pessoas. O que dissemos sobre 
o caráter sobrenatural e gratuito da autocomunicação de Deus 
não se vê ameaçado ou posto em questão pelo fato de esta auto-
comunicação estar dada a todo e a cada homem pelo menos na 
modalidade da oferta. O amor de Deus não se torna portento 
menor pelo fato de se comunicar a todos os homens pelo me-
nos como oferta. E, acrescente-se, somente o que é dado a to-
dos é que realiza radicalmente a natureza propriamente dita da· 
graça. Uma coisa gratuita e indevida que é dada a essa pessoa 
e negada a outra, propriamente, é por sua própria natureza al-
go que cai no âmbito da possibilidade de todos os homens, por-
que vem a ser dada a um e negada a outrem, a quem também 
poderia ser dada. Esta maneira de entender apenas percebe o 
conceito do sobrenatural que supera essencialmente o "natural". 
O sobrenatural não deixa, portanto, de ser sobrenatural se, 
pelo menos na forma de oferta à liberdade do homem, é dado 
a todo ente dotado de ilimitada transcendência como realidade 
158 
que supera essencialmente o "natural". Neste sentido, todo e cada 
homem há de se entender real e radicalmente como evento de 
absoluta autocomunicação de Deus, ainda que não no sentido 
de que todo e cada homem acolha na liberdade esta autocomu-
nicação de Deus aos homens. Da mesma forma que a essência 
do homem, a sua personalidade espiritual, apesar de ser e con-
tinuar a ser dado ineludível para todo sujeito livre, está no en-
tanto entregue à sua liberdade de tal sorte que o sujeito livre po-
de possuir-seou perder-se na forma do "sim" ou do "não" na 
forma da tranqüila e obediente aceitação ou na forma do pro-
testo contra essa essência que lhe foi entregue à sua liberdade, 
assim também o existencial da absoluta imediatez do homem para 
com Deus mediante a autocomunicação divina como permanen-
temente ofertada à liberdade pode existir na forma de pura e 
simples oferta antecedente ou na forma, quer do acolhimento, 
quer da rejeição. 
Essa maneira de a autocomunicação de Deus estar presen-
te à liberdade humana não eJimina a presença real dessa auto-
cornunicação como realidade ofertada. Pois até uma oferta me-
ramente feita anteriormente ou recusada pela liberdade não de-
ve ser entendida como comunicação que poderia exisfa, mas não 
existe. Pelo contrário, há de se entender como comunicação que 
realmente ocorreu e com a qual a liberdade se vê e permanece 
realmente confrontada de maneira ineludível. 
A autocomunicação 
como condição da possibilidade de seu acolhimento 
A autocomunicação de Deus apresenta-se dada não somente 
como dom, mas também como necessária condição dipossibÍ--
lidade da acolhida deste dom que permita que o próprio Deus 
seja realmente o dom, sem que este, ~m sua acolhida, de certa 
forma converta Deus em dom meramente finito e criado, que 
apenas represente Deus, mas que não seria realmente o próprio 
Deus. Para que se possa acolher a Deus, sem que nesta acolhida 
ele venha a ser rebaixado ao nível de nossa finitude, é mister que 
esta acolhida seja animada pelo próprio Deus. A a:t!_toçol)111_ni:. 
cação de Deus é, portanto, como 9ferta, também a condição _ne-
cessária da possibilidade de seu acolhimento. 
Se é que o homem deve ter a ver com o próprio Deus tal 
como é em si mesmo; se é que deve abrir-se ou fechar-se a essa 
159 
autocomunicação de Deus, sem que sua reação reduza Deus ao 
nível dos homens, então a autocomunicação de Deus deve sem-
pre estar presente ao homem como a condição prévia da possi-
bilidade de sua acolhida. Isto é verdade à medida que o homem 
deve ser entendido como sujeito capaz de tal acolhida e, em con-
seqüência, a ela obrigado. E vice-versa: sem prejuízo de sua gra-
tuidade, a autocomunicação de Deus deve estar dada em cada 
pessoa humana como condição que possibilita que ela a aco-
lha. Isto pressupõe apenas que em princípio se reconheça para 
o homem a possibilidade dessa aceitação pessoal de Deus, por-
que este em sua vontade salvífica universal ofertou e destinou 
essa realização consumada não somente para alguns, mas para 
todos os homens, realização que consiste no pleno acolhimento 
da autocomunicação de Deus. 
A transcendentalidade 
do homem sobrenaturalmente elevada 
Do que viemos dizendo deduz-se que essa auto-oferta de 
Deus ocorre para todos os homens e constitui característica da 
transcendência e transcendentalidade do homem. Portanto, a au-
tocomunicação de Deus como oferta e como algo dado antece-
dentemente à liberdade do homem como tarefa e condição da 
mais alta possibilidade da liberdade, apresenta também as ca-
racterísticas que possuem todos os elementos presentes na cons-
tituição transcendental do homem. 
Este elemento presente na constituição transcendental do 
homem não é objeto de experiência a posteriori e categorial par-
ticular do homem ao lado dos outros. objetos que povoam o cam-
po de sua experiência. Originariamente o homem não encontra 
esta constituição sobrenatural como objeto. Esta constituição 
sobrenatural da transcendentalidade do homem devida à oferta 
que Deus faz de sua autocomunicação constitui modalidade de 
sua subjetividade originária e não-tematizada. E por essa razão, 
esta modalidade pode - se é que pode - no máximo vir a ser 
tematizada posteriormente em uma reflexão ou objetivada em 
um conceito. Essa transcendentalidade sobrenatural pode cha-
mar tão pouco a atenção, passar tão despercebida e ser tão con-
testada e mal interpretada como em geral ocorre com toda rea-
lidade espiritual transcendental do homem. Essa autocomuni-
cação de Deus que está dada previamente à liberdade do homem 
160 
nada mais significa que o movimento transcendental do espíri-
to voltado, pelo conhecimento e liberdade para o mistério abso-
luto é movido e animado pelo próprio Deus em sua autocomu-
nicação, de tal sorte que este movimento tem por termo e fonte 
não o mistério santo enquanto eternamente longínquo e somente 
atingível assintoticamente, mas o Deus da absoluta proximida-
de e imediateZ. 
A experiência 
da graça e seu caráter misterioso 
A autocomunicação graciosa de Deus, enquanto modifica-
ção da transcendência na qual o mistério santo, aquele mistério 
pelo qual a transcendência é intrinsecamente aberta e movida, 
está presente em sua própria realidade e absoluta proximidade 
e imediatez, não pode por simples reflexão particularizada ou 
por introspeção psicológica ser distinguida daquelas estruturas 
fundamentais da transcendência humana que tentamos repre-
sentar na segunda seção de nossas reflexões. A transcendência 
absolutamente ilimitada do espírito natural no conhecimento e 
liberdade, juntamente com o seu Aonde, o mistério santo, signi-
fica já por si tal ilimitação do sujeito que a posse de Deus em 
sua absoluta autocomunicação não cai propriamente fora dessa 
infinita possibilidade da transcendência, ainda que ela perma-
neça gratuita e indevida. Por isso a experiência transcendental 
dessa possibilidade abstrata, por um lado, e a experiência de sua 
radical realização pela autocomunicação de Deus, por outrÓ la-
do, não se podem distinguir com clareza e sem ambigüidades 
somente mediante introspeção direta de um indivíduo, enquan-
to a história da liberdade na aceitação ou recusa ainda está em 
devir e, conseqüentemente, a realização do homem pela autoco-
municação de Deus ainda não atingiu sua consumação no esta-
do final e definitivo que costumamos chamar de visão de Deus. 
A experiência transcendental, inclusive sua modalidade co-
mo graça, e a reflexão sobre a experiência transcendental não 
são mais a mesma coisa conceitualmente, da mesma maneira que · 
a consciência que a pessoa tem de si e o conhecimento objetiva-
do e tematizado desta consciência não são mais a mesma coisa. 
Em nosso caso existem duas razões especiais pelas quais a auto-
comunicação de Deus na graça, enquanto modificação de nos-
sa transcendentalidade, não é reflexiva nem pode tornar-se re-
161 
6 - Curso Fundamental da Fé 
flexiva: em primeiro lugar, desde a perspectiva do destinatário 
dessa autocomunicação, por causa da natureza ilimitada do es-
pírito subjetivo em seu estado natural; e, em segundo lugar, desde 
a perspectiva da autocomunicação de Deus, por causa do esta-
do ainda não vindo a seu termo dessa autocomunicação, ou se-
ja, porque ela ainda não se tornou visão de Deus. 
Podemos descrever a experiência transcendental da autoco-
municação de Deus na graça, ou, em outros termos, a dinâmica 
e a finalização do espírito enquanto conhecimento e amor para 
a imediatez para com Deus, dinâmica que é de tal natureza que, 
em virtude da autocomunicação de Deus, o próprio fim é a ver-
dadeira força do movimento (que comumente chamamos de gra-
ça), podemos descrever, repetimos, essa experiência e a essência 
dessa dinâmica espiritual dizendo apenas: o espírito na graça 
movimenta-se no interior do seu fim (mediante a autocomuni-
cação de Deus), caminhando para seu fim (a visão beatífica), 
e por isso, em conseqüência, não se pode concluir da impossibi-
lidade de identificá-lo diretamente e com certeza em uma refle-
xão particularizada que essa autocomunicação de Deus esteja 
absolutamente além do sujeito e sua consciência e que seja pos-
tulado somente por teoria dogmática imposta ao homem desde 
fora. Trata-se na verdade de experiência transcendental que se 
faz observável na existência do homem e aí se exerce e é operativa. 
Aqui somente podemos aludir às experiências que a pessoa 
tem e pode ter da autocomunicação de Deus, experiências que 
não se podem identificar com certeza e sem ambigüidadesna 
esfera da experiência do indivíduo (prescindindo de possíveis ex-
ceções), mas que não são simples e absolutamente não-existentes 
para uma reflexão. 
Ainda que uma pessoa, mediante simples introspeção e te-
matização de sua experiência originária transcendental, não pu-
desse descobrir essa experiência transcendental da graciosa au-
tocomunicação de Deus ou não conseguisse expressá-la pessoal-
mente com certeza e sem ambigüidades, pode, não obstante, re-
conhecer sua propria experiência na interpretação teológica e dog-
mática dessa experiência transcendental tal como é apresentada 
pela história da revelação ou pelo cristianismo. Ela pode encon-
trar ·nessa interpretação coragem e confiança para interpretar em 
conformidade com ela o indizível de sua própria experiência, para 
aceitar a ilimitação de sua própria experiência obscura sem re-
servas e limites. Pode sentir a legitimidade de sua decisão exis-
162 
tendal de entregar-se tranqüila e corajosamente a essa síntese 
não mais dissolúvel de maneira adequadamente reflexa, mas sem-
pre já exercida, de sua experiência originária transcendental e 
sua respectiva interpretação a posteriori feita pelo cristianismo. 
Neste sentido, podemos dizer tranqüilamente: a pessoa que 
se abre à sua experiência transcendental do mistério santo faz 
a experiência de que este mistério não somente é o horizonte in-
finitamente longínquo, o julgamento indisponível que julga a 
distância sobre o seu mundo de coisas e de pessoas e sobre sua 
consciência, não é somente algo de misterioso que o espanta e 
afugenta para os estreitos confins de sua vida cotidiana, mas tam-
bém faz a experiência de que esse mistério santo é proximidade 
acolhedora, a intimidade que perdoa, o seu próprio lar, que ele 
é o amor que se comunica, algo de familiar em que se pode bus-
car abrigo na fuga à estranheza vazia e ameaçadora de sua pró-
pria vida. É a pessoa que, na perdição da culpa, se volta, toda-
via, confiante para o mistério de sua existência, que está silen-
ciosamente presente, e se entrega como alguém que até em sua 
culpa não mais quer entender-se de maneira auto-suficiente e 
centrada em si mesmo, é essa pessoa que se experimenta corno 
alguém que não perdoa a si mesmo, mas que é perdoado, e ex-
perimenta esse perdão que recebe corno amor indulgente, redentor 
e libertador do próprio Deus que perdoa à medida que se doa 
a si próprio, porque somente assim pode haver realmente per-
dão definitivo · 
As outras questões: quanto essa experiência da absoluta pro-
ximidade de Deus em sua autocornunicação radical possa ser forte 
e localizada em determinados pontos do espaço e do tempo da 
história individual de urna pessoa, ou incolor e difusa em urna 
disposição de ânimo mais geral e básica; em que medida possa 
vir a ser a experiência de cada indivíduo independentemente de 
outrem, ou se o indivíduo somente a atribui a si porque vê e par-
ticipa da experiência religiosa de pessoas mais fortes e mais santas, 
todas estas questões são de importância secundária. 
O ponto que está a nos interessar aqui é o seguinte: a expe-
riência particular da pessoa e a experiência religiosa coletiva da 
humanidade, ambas conjuntamente e numa espécie de mútua 
unidade e mútua compenetração, dão-nos o direito de interpre-
tar o homem, quando faz a experiência de si nas mais variadas 
formas corno sujeito de ilimitada transcendência, corno evento 
da absoluta e radical autocornunicação de Deus. 
163 
A experiência a que aludimos aqui não é primária e ulti-
mamente a experiência que a pessoa faz quando decide explíci-
ta e deliberadamente fazer uma atividade religiosa, como, por 
exemplo, orar, prestar um ato de culto, ou ocupar-se reflexiva 
e teoricamente sobre temas religiosos. Mas se trata da experiên-
cia que está dada a toda pessoa previamente a essas atividades 
e decisões religiosas reflexas, que talvez possa ocorrer até mes-
mo em formas e conceituação que aparentemente nada têm de 
religioso. Se a autocomunicação de Deus é modificação última 
e radicalização de nossa transcendentalidade como tal, pela qual 
somos sujeitos, e se nós, como sujeitos de infinitude transcen-
dental, nos apresentamos como tais nas mais ordinárias ocupa-
ções de nossa existência do dia-a-dia, no trato secular com quais-
quer realidades de caráter individual, então isso implica que a 
experiência original de Deus até em sua autocomunicação pode 
ser tão universal, tão atemática e tão "arreligiosa", que ocorra, 
sem nome, mas realmente, onde quer venhamos a exercer nossa 
existência. 
Quando a pessoa, conhecendo teórica ou praticamente ou 
agindo como sujeito, se vê confrontada com o abismo de sua 
existência, abismo que é a única realidade a dar base a tudo, 
e quando essa pessoa tem a coragem de olhar para dentro de 
si e achar nas próprias profundezas a sua verdade última, aí ela 
poderá fazer também a experiência de que esse abismo a acolhe 
como sua verdadeira e indulgente segurança, e dá-lhe legitima-
ção e ânimo para a fé, para perceber que a interpretação dessa 
experiência daqa na história da salvação e revelação da huma-
nidade (a saber, a interpretação dessa experiência como expe-
riência do evento da radical autocomunicação de Deus) expres-
sa a profundidade última e a verdade última dessa experiência 
aparentemente tão banal. É claro que tal experiência tem tam-
bém seus momentos especiais, como, por exemplo, na experiên-
cia da morte, da radical validade do amor etc. Aí mais clara-
mente do que alhures o homem percebe que ele transcende o sin-
gular banal e vem à sua própria presença e à presença de misté-
rio santo de Deus. E, ao interpretar e explicar esse aspecto, a 
verdade última do cristianismo sobre a autocomunicação de Deus 
diz apenas que esse movimento não vos leva somente à presença 
de uma distância longínqua, friamente infinita e incompreensí-
vel, mas, pelo contrário, que este mistério se nos comunica a si 
mesmo. 
164 
À medida que a pessoa está vivendo na situação da liber-
dade ainda em devir; à medida que a situação de sua liberdade 
é sempre situação co-determinada pela culpa, pelo que chama-
mos de "pecado original"; à medida que a pessoa, ao começar 
a refletir, jamais se coloca em sua reflexão diante da pura possi-
bilidade de liberdade prévia completamente neutra, mas sempre 
se situa perante uma liberdade que jâ foi livremente exercida; 
à medida que a pessoa finalmente jamais pode julgar reflexiva.: 
mente sobre essa liberdade que já foi exercida, segue-se que a 
experiência transcendental é sempre ambivalente e nunca pode 
ser abarcada adequadamente pela reflexão humana. b homem 
faz a experiência de si como sujeito que jamais sabe exatamente 
como em sua liberdade entendeu e manipulou as objetivações 
no âmbito de sua liberdade que foram co-condicionadas pela 
culpa: como sujeito que nunca sabe exatamente se fez delas a 
manifestação de sua própria decisão culposa original ou o so-
frimento crucificante implicado na superação da culpa. 
O homem faz a experiência de si simultaneamente como su-
jeito do evento da absoluta autocomunicação de Deus, como su-
jeito que já respondeu na liberdade com um "sim" ou um "não" 
a esse evento, e que jamais pode refletir adequadamente sobre 
a maneira concreta e real dessa sua tomada de posição. Assim, 
nessa fundamental questão de sua existência, à qual já deu res-
posta subjetivamente, ele sempre permanece ambíguo para si mes-
mo em sua reflexão, sempre permanece o sujeito que realiza a 
subjetividade de sua tra11scendência, gratuitame11te elevada pe-
la graça, em seu encontro a posteriori e histórico com o mundo 
de suas relações com as coisas e as pessoas, encontro que nunca 
lhe está inteiramente à disposição, e no encontro com um tu hu-
mano no qual a história e a transcendência encontram sua rea-
lização una em conjunto e unidade, e no qual ele se encontra 
com Deus como Tu absoluto. 
4. ACERCA DA COMPREENSÃO 
DA DOUTRINA DA TRINDADE 
Esperamos ter a oportunidade de retornar à doutrina da 
Trindade ao tratarda encarnação. Contudo tentaremos já ago-
ra, a partir do que acabamos de dizer, ganhar uma primeira com-
preensão da doutrina cristã da Trindade. 
165 
O problema dos conceitos usados 
Com todo o respeito para com as fórmulas oficiais do Ma-
gistério e para com as expressões clássicas da doutrina cristã da 
Trindade, e dando por suposta a aceitação na fé do que se signi-
fica com essas formulações, não obstante devemos admitir que 
as afirmações referentes à Trindade ao nível de suas formula-
ções catequéticas são quase ininteligíveis para o homem de hoje 
e não deixam de suscitar equivocações quase inevitáveis. Quan-
do dizemos, com o catecismo cristão, que no único Deus exis-
tem três "pessoas" na unidade e unicidade de uma só natureza, 
na ausência de ulteriores explicações teológicas é quase inevitá-
vel que o ouvinte atribua ao termo "pessoa" o mesmo conteú-
do que em outros campos associa com tal termo. 
O vocabulário que a Igreja usou nos inícios em uma teolo-
gia extraordinariamente vigorosa e no esforço de compreensão 
conceitua! continuou tendo sua história, história que não de-
pende simplesmente da Igreja. Essa história não é comandada 
somente por ela, mas também por outras histórias, tais como 
a história do pensamento humano, a história dos conceitos e da 
linguagem. E, sendo assim, pode muito bem ocorrer de deter-
minada palavra vir a assumir conteúdo que no mínimo acarreta 
o risco de, ao ser empregada nessas formulações antigas, que 
são muito corretas em si mesmas, insira sub-repticiamente nelas 
um sentido falso e mitológico e não mais aceitável. 
Este estado de coisas não deve causar espanto, pois quan-
do a doutrina cristã emprega os termos "hipóstase", "pessoa", 
"essência", "natureza", não está usando termos que já sejam cla-
ros em si mesmos e sem nenhuma ambigüidade e que sejam apli-
cados neste campo com toda clareza. Pelo contrário, com o fito 
de expressar o que se pretendia, estes conceitos passaram por 
processo de depuração e de delimitação de outros termos e con-
ceitos no seio da linguagem da Igreja, e somente com muito va-
gar e trabalho puderam se fixar como norma da linguagem ecle-
sial, embora a própria história dessa progressiva fixação tam-
bém evidencie que teria havido outras possibilidades de expres-
sar assintoticamente o que se pretendia dizer. Quando hoje, no 
uso secular da linguagem, falamos de "pessoa" enquanto dis-
tinta de outra, dificilmente podemos evitar a idéia de que, para 
que sejam pessoas e sejam distintas, haja em cada uma dessas 
pessoas um centro de atividade livre que disponha de si e se dis-
166 
tinga de outras pelo conhecimento e pela liberdade, sendo pre-
cisamente esse aspecto o que constitui pessoa na acepção mo-
derna do termo. Ora, é precisamente esse aspecto que se exclui 
na doutrina dogmática sobre a única natureza divina. A unida-
de de natureza implica a unicidade de uma só consciência e de 
uma só liberdade. Ainda que, é claro, esta unicidade da presen-
ça a si mesmo na consciência e liberdade na Trindade divina per-
maneça determinada por aquele misterioso ser três que profes-
samos com respeito a Deus quando falamos balbuciando da trin-
dade das pessoas em Deus. 
A problemática de "teoria psicológica" 
para explicar a Trindade 
No que respeita às grandiosas especulações em que, desde 
a época de Agostinho, a teologia cristã vem tentando pensar a 
vida interna de Deus em autoconsciência e amor, de tal sorte 
que se presuma seguir-se daí certa compreensão da tripersonali-
dade de Deus, compreensão que, contudo, pretende descrever a 
vida interna de Deus como que sem nenhuma relação para co-
nosco e nossa existência cristã, podemos dizer que no fundo não 
são de muito proveito. Uma "teoria psicológica de explicação 
da Trindade" - por geniais possam ser as especulações feitas 
desde Agostinho e que se continuaram a fazer até os nossos dias 
-, chegada a seu termo, não explica o que pretende explicar, ou 
seja, por que o Pai se expressa na Palavra, e juntamente com 
o Logos espira um Espírito que seja diverso dele. Pois essa ex-
plicação deve já pressupor o Pai como conhecedor de si mesmo 
e que não se pode permitir-lhe que se constitua como conhece-
dor e amante somente mediante a expressão do Logos e a espi-
ração do Espírito. 
Mesmo prescindindo de todas essas dificuldades, continua 
verdade que essa especulação psicológica sobre a Trindade apre-
senta em todo caso a desvantagem de, na doutrina da Trindade, 
não explorar suficientemente o seu ponto de partida na história 
da revelação e do dogma, ponto de partida que se encontra na 
experiência histórico-salvífica do Filho e do Espírito como a rea-
lidade da autocomunicação de Deus para nós, a fim de, a partir 
daí, buscar entender o que a doutrina trinitária em si significa 
propriamente. A teoria psicológica para explicar a Trindade ne-
gligencia a experiência da Trindade na economia da salvação em 
167 
favor de especulação, na aparência como que gnóstica, sobre o 
que acontece nos abismos da intimidade de Deus, e, em conse-
qüência, esquece-se propriamente que o rosto de Deus, tal co-
mo se voltou para nós em sua autocomunicação, no sentido que 
entendemos aqui, na natureza trinitária deste voltar-se é exata-
mente o "em si" ou o ser próprio de Deus mesmo, e deve sê-lo 
se na verdade a autocomunicação divina na graça e na glória 
é a comunicação de Deus em sua própria realidade para nós. 
A 1rindade ''econômica" 
ou histórico-salvífica é a Trindade imanente 
Mas se, em sentido inverso, pressupomos e retemos radical-
mente que a Trindade na história da salvação e revelação é a 'Irin-
dade "imanente", visto que, na autocomunicação de Deus ~ sua 
criatura pela graça e encarnação, Deus realmente se doa a si mes-
_mo e surge realmente como é em si mesmo, então, tendo em vis-
ta o aspecto histórico e econômico-salvífico presente na histó-: 
ria da auto-revelação de Deus no Antigo e no Novo Testamen-
to, podemos dizer: na história da salvação, quer coletiva quer 
individual, vêm ao nosso encontro imediato não quaisquer for-
ças numinosas que representem a Deus, mas nos vem ao encon-
tro e nos é dado na verdade o próprio Deus único, que em sua 
absoluta singularidade - que nada pode substituir ou representar 
- advém ele próprio onde nos achamos e onde o recebemos a 
ele próprio e como ele próprio em sentido estrito. 
À medida que ele adveio como salvação divinizante no cer-
ne mais íntimo da existência de uma pessoa individual, nós o 
chamamos realmente e na verdade de "Santo Pneuma'' ou "Santo 
Espírito". À medida que este mesmo Deus uno está presente pa-
ra nós em Jesus Cristo na história concreta de nossa existência 
como ele próprio em sentido estrito - ele próprio e não uma 
representação dele -, nós o chamamos de "logos" ou "Filho" 
simplesmente. À medida que este Deus, que como Espírito e Lo-
gos vem a nós, é e sempre se mantém como o inefável, o misté-
rio santo, o fundamento e origem inabarcáveis de sua vinda no 
Filho e no. Espírito, nós o chamamos de o Deus uno,. o Pai. À 
medida qiJ.e no Espírito, no Logos-Filho e no Pai se trata de que 
Deus mesmo se doa a si próprio e não outra realidade distinta 
dele, devemos dizer em sentido estrito do Espírito, do Logos-
Filho e do Pai da mesma maneira que eles são o único e mesmo 
168 
Deus na ilimitada plenitude da única divindade, na posse de uma 
só e mesma essência divina. À medida que a maneira de estar 
presente para nós de Deus como Espírito, Filho e Pai não signi-
ficam a mesma maneira de estar presente, ou seja, à medida que 
realmente na maneira de estar presente para nós estão dadas ver-
dadeiras e reais distinções, essas três maneiras de Deus estar pre-
sente para nós devem ser distinguidas em sentido estrito. "Para 
nós", o Pai, o Filho-Logos e o Espírito não são de imediato os 
mesmos. E à medida, porém, que essas maneiras de estar pre-
sente de um só e mesmo Deus para nós não devem suprimir a 
real autocomunicação de Deus como o único e mesmo Deus, 
as três maneiras de estar presentedo único e mesmo Deus de-
vem caber a ele próprio como o único e mesmo Deus, devem 
caber-lhe a ele em si e por si mesmo. 
Portanto a afirmação que o único e mesmo Deus nos é da-
do a nós como Pai, Filho-Logos e Espírito Santo, ou: o Pai se 
nos dá a si próprio em absoluta autocomunicação mediante o 
Filho no Espírito Santo, é enunciado que se deve entender e fa-
zer em sentido estrito como referentes a Deus como ele é em si 
mesmo. Pois do contrário no fundo não seria nenhuma afirma-
ção acerca da autêntica autocomunicaçãb de Deus. Não deve-
mos duplicar essas três maneiras de Deus estar presente para nós, 
postulando pressuposto diferente para elas em Deus ao desen-
volver uma teoria psicológica explicativa da Trindade que seja 
diferente dessas maneiras de ele estar presente. Na Trindade da 
história da salvação e revelação já fizemos a experiência da Trin-
dade imanente como ela é em si mesma. Pelo fato de Deus se 
revelar a si mesmo a nós nas maneiras que indicamos como sen-
do trinitárias, já fizemos a experiência da Trindade imanente do 
mistério santo como ele é em si mesmo, porque sua comunica-
ção livre e sobrenatural a nós na graça no-lo comunica em seu 
ser mais íntimo, e porque sua absoluta identidade consigo mes-
mo não significa homogeneidade sem vida e vazia, mas, pelo 
contrário, essa identidade enquanto divina vitalidade implica em 
si mesma aquilo com que nos encontramos na trindade de seu 
voltar-se para nós. 
Aqui nos devemos contentar com uma aproximação inicial 
da compreensão da doutrina cristã da Trindade. Apesar de seus 
problemas, essa aproximação talvez nos ajude a evitar muitas 
equivocações acerca dessa doutrina e a mostrar positivamente 
que a doutrina àa Trindade não é um jogo teológico sutil e es-
169 
peculativo, mas, pelo contrário, um enunciado que não se pode 
evitar. É somente com a ajuda dessa doutrina que estamos em 
condições de tomar a sério e reter sem restrição a singela afir-
mação - que é a uma vez tão incompreensível e tão evidente 
por si mesma - segundo a qual o próprio Deus enquanto mis-
tério santo e permanente, enquanto o fundamento inabarcável 
da existência transcendente do homem, é não somente o Deus 
da infinita distância, mas também quer ser o Deus da absoluta 
proximidade em verdadeira autocomunicação, e dessa maneira 
está presente nas profundezas espirituais de nossa existência, bem 
como na concretude de nossa história no espaço e tempo. Aqui 
já está o real sentido da doutrina da Trindade. 
170 
QUINTA SEÇÃO 
HISTÓRIA DA SALVAÇÃO 
E DA REVELAÇÃO 
1. OBSERVAÇÕES PRELIMINARES 
A RESPEITO DO PROBLEMA 
A transcendentalidade divinizada do homem, que exerce sua 
essência na história e somente assim pode assumi-la na liberda-
de, também ela possui uma história no homem, uma história 
individual e coletiva. Essa transcendentalidade enquanto porta-
da, dotada de energia e realizada consumadamente pela divini-
zante autocomunicação de Deus, acontece, não existe simples-
mente. Em razão disso, dissemos também que o homem é o even-
to da livre, gratuita e indulgente autocomunicação de Deus pa-
. ia que goze com referêncíai-eie"cleahsoluta proximídade e ime-
dfatez. Tal é o fundamanto, a temática, o princípio e o firnâã 
história do homem. 
O cristianismo não é ensinamento sobre condições, fatos, 
realidades que sempre se apresentam iguais, mas é a proclama-
ção de uma história da salvação, de um agir salvífico e revela-
dor de Deus para o homem e com o homem. E ao· mesmo tern--
pÕ lporque esse agir de Deus se dirige ao homem como sujeito 
livre) é também a proclamação de uma história da salvação e 
não-salvação, da revelação e sua interpretação, que é feita tam=-
bérri pêlo próprio homem, de tal sorte que-essahistória singular 
da revelação e salvação, portada pela liberdade de Deus e do ho-
mem ao mesmo tempo, forma uma unidade. 
Fundamentalmente o c;rjstianismo pretende ser a salvação 
e reve_!ª-çª_<;?___par_ª- :t_oq9~_.9s homens, a religião de absoluta vali-
dez. Entende-se como salvação e revelação não só para deter-
minados grupos de pessoas, para determinados períodos da his-
tória do passado ou do futuro, mas para todos os homens até 
o fim da história. Essa pretensão de absoluto, porém, não se deixa 
harmonizar sem mais com a outra auto-afirmação do cristia-
171 
nismo segundo a qual ele se entende como grandeza histórica. 
A história parece per definitionem não ter condições de ter ne-
nhuma pretensão de absoluto. Donde surge a pergunta sobre a 
maneira como essa historicidade do cristianismo, que ele pró-
prio afirma de si como propriedade radical e essencial, poâerá -
-vlr a"se--coadlliiai cõiii"süà"i:i"i"éiensã6""de""sei "àbsolüi"o~ c"oin seu 
envio em m1ssao-para todos,- com sua· pretensãó de umversah-
dade. Se em última análise sópoderiiós falar de Deus-ein senti-
do acessível e que deva ser levado a sério à medida que nossa 
relação para com ele vem a ser concebida como realmente trans-
cendental, então somente é que se torna candente a pergunta acer-
ca da razão pela qual pode haver algo como uma história da 
salvação e revelação, que, contudo, pressupõe que Deus - o seu 
agir salvífico e revelador - ocupa posição espacial e temporal 
bem determinada no interior de nossa experiência. Poder-se-ia 
objetar: o que é histórico não pode ser Deus, e o que é Deus 
não pode ser histórico. Pois o histórico apresenta-se seinpre-cõ:.. 
mo algo de concreto e singular, algo que. se acha situado como 
individual em contexto mais amplo. Deus, porém, iro-funda-
mento primordial (Urgrund) e o abismo (Abgrund) de toda-reà.::-
lidade, sempre situado para além de tudo o que se possa conce-
ber e abarcar. 
Sendo assim, que ainda pode vir a suceder como história 
da salvação e revelação, se sempre e em toda parte e desde o pri-
meiro início Deus em sua absoluta realidade já se comunicou 
a si próprio para ser o centro mais íntimo de tudo o que afinal 
pode ser história? Se já nos achamos sempre a nos mover no 
interior de nosso fim, que mais pode suceder realmente nessa 
história enquanto divina história da salvação e revelação além 
da manifestação de Deus na visão beatífica? Falando em ter-
mos bíblicos, poderíamos dizer: se Deus como é em si mesmo 
já se comunicou no Espírito Santo sempre e em toda parte e a 
todo homem como o centro mais íntimo de sua existência -
quer o queira ou não, quer reflita sobre o tema ou não, quer 
o aceite ou não - e se toda a história da salvação já é portada 
por uma autocomunicação do próprio Deus ao nível da criação, 
então não parece haver algo mais que possa suceder da parte 
de Deus. Pois toda a história da salvação e revelação, como a 
pensamos mediante termos categoriais e singulares de tempo e 
espaço não parece poder ser algo mais do que o processo de li-
mitar, mitologizar e reduzir ao nível humano algo que já estava 
172 
presente em sua plenitude desde o início. Em conseqüência, a 
questão se e em que sentido possa haver uma história da salva-
ção e revelação passa a ser uma das mais difíceis e fundamen-
tais questões com que se confronta o cristianismo. (Breve ob-
servação deve ser feita aqui: as páginas seguintes da seção 5 coin-
cidem - talvez mais do que o usual alhures - com formula-
ções do capítulo 1: "Fundamentale Theologie der Heilsgeschich-
te" de A. Darlap, in J. Feiner-M. Lõhrer [eds.], Mysterium Sa-
lutis, t. 1, Einsiedeln, 1965. Dada a estreita colaboração teológi-
ca e o constante intercâmbio entre nós dois, resulta compreensí-
vel essa coincidência.) 
2. MEDIAÇÃO HISTÓRICA 
ENTRE TRANSCENDENTALIDADE E TRANSCENDÊNCIA 
História como evento da transcendência 
Ao tratar de nossa problemática da história da revelação 
e salvação, partimos de um enunciado de antropologia metafí-
sica segundo o qual o homem enquanto sujeito e pessoa de tal 
sorte é ser histórico que precis.amente càmo sujeito eia transcen-
dência é que é histórico, o seiúer subjeti:vo de ilimitada trans-
cendentalidade é mediado historicamente para ele próprio no que 
respeita ao seu conhecimento e livreexercício. Portanto, o ho-
-mem não realiza sua subjetividade transcendental nem a - his-
toricamente em experiência meramente interna de sua subjetivi-
dade que permaneça sempre a mesma, nem capta essa sua sub~ 
jetividade transcendental mediante reflexão e introspeção pos-
sível sempre da mesma maneira em qualquer ponto do tempo. 
Se de fato o exercício da transcendentalidade ocorre historica-
mente, e se, por outro lado, historicidade verdadeira, que não 
deverá confundir-se com espaço e tempo físicos e com o fluir 
cronológico de fenômenos físicos ou biológicos nem com uma 
seqüência de atos livres que permaneçam em sua particularida-
de - encontra na própria transcendentalidade do homem seu 
fundamento e a condição de sua possibilidade, então a única 
possibilidade de reconciliar estes dois dados é entender que a 
história é precisamente em última análise a história da própria 
-transcendentalidade. E, vice-versa, não se pode entender trans: 
éendentalidade do homem como faculdade que seja dada, vivi-
da e experimentada e refletida independentemente da história. 
17~ 
Partimos, portanto, do fato de a própria transcendência pos-
suir uma história e que a própria historia sempre éoºevenfo-des-:·· 
sa transcendência. Pois por um lado deveremos dizer que a cons-
dêncfa moderna, que leva radicalmente a sério a história - tanto 
em retrospectiva para o passado como em prospectiva para o 
futuro -----, sem dúvida não pode conceber uma transcendentali-
dade do homem que fosse por completo a-histórica. E, por ou-
tro lado, de acordo com toda a grande tradição, válida ainda 
hoje, deveremos dizer: no momento em que a história - em seu 
voltar-se para o passado ou para o futuro - já não percebe sua 
profundidade transcendental como a condição de possibilidade 
da autêntica historicidade, essa história mesma passa a ser cega 
em si. Há de se conceder plenamente que a transcendência só 
se pode ter em relação mediadora para com o passado e o futu-
ro, mas igualmente há de se dizer que essa história e essa rela-
ção histórica só chega a experimentar a própria historicidade e 
a verdadeira história, se sempre se pensam conjuntamente coni 
as condições transcendentais de possibilidade dessa história. E 
que se diga ademais: o último dessa história mesma é precisa-
mente a história dessa transcendentalidade do homem. Isso im-
plica que essa transcendentalidade do homem, com seu Aonde 
e Donde, não se alcança à margem da história, de tal sorte que 
a história viesse a ser degradada em espetáculo qualquer, ao qual 
o homem também ainda estaria exposto, embora pudesse encon-
trar o que é propriamente eterno de sua realidade independen-
temente e à margem de sua história. A própria transcendência 
tem sua história, e a história, em última instância e em seu mais 
profundo, é o evento dessa transcendência. Isto vale tanto para 
a história individual de cada pessoa como tarri6ém pa.,ra, a, hJ~t<f· 
ria das unidades sociais, dos povos e c:lo gênero humano Ul},Q. 
Ao dizer isto, pressupomos que ()S homens formam uma unida-
de na origem, no decurso e no fim da história. Por sua vez esta 
unidade mesma dos homens não é grandeza rígida e imutável 
no decorrer do tempo, mas tem ela própria sua história. O pró-
prio "existencial sobrenatural" tem sua história. Se o homem 
é.dessa forma õ ser que se catatterizá pela subjetividade, pela 
transcendência, pela liberdade e pela orientação a entrar em co-
munhão de aliança com o mistério santo, que chamamos Deus; 
se ele é o evento da absoluta autocomunicação de Deus, e tudo 
isso sempre e inevitavelmente e desde o início; se ele, porém, ao 
mesmo tempo, como tal ser de transcendência divinizada, é o 
174 
ser da história individual e coletiva, então esse existencial sem-
pre presente e sobrenatural da referência ao mistério santo e à 
absoluta autocomunicação de Deus como oferta à liberdade do 
homem, possui, ele próprio, uma história coletiva e individual, 
e esta a um só tempo é história da salvação e revelação. 
Essa história da salvação é, em razão disto, história já a partir 
de DeuiAiesfrutúrãs dessa história singular de c"a.cia indivíduo 
e da humanidade una são já históricas, enquanto tambérri.eni" 
_seu caráter pérmarieiúé e inévitável se fundam na livre autoco-
munícãção péssoaldeDeus.· Essa histôrfa é livre a partir de Deus 
também no sentido de que o seu desenlace, inclusive enquanto 
posto pela liberdade do homem dé acordo com a relação funda-
mental entre o Criador e a criatura, uma vez mais é evento da 
liberdade de Deus, que se doa a si mesmo ou se subtrru:-Enquaiú:o. 
essa liist<'.irfa f a-Jiístórta da liberdade .de Deus e do homem e en-
quanto se realiza na história individual e coletiva uma dialética 
concreta entre a presença de Deus como quem se doa em abso-
luta autocomunicação e a presença de Deus como mistério san-
to que se mantém sempre como tal na história individual e cole-
tiva, expressa-se o autêntico da história da salvação e revelação. 
Essa historicidade da história da salvação a partir de Deus e não 
só a partir do homem - de uma história que é realmente a ver-
dadeira e uma história do próprio Deus, na qual a imutável in-. 
tangibilidade de Deus se manifesta precisament_e em seu poder 
de entrar no tempo e na história fundados por ele, o eterno -; 
essa história vem a ser experimentada e aparece com a maior cla-
reza no dogma fundamental do cristianismo que afirma a en-
carnação do Logos eterno em Jesus Cristo. 
Essa história da salvação é história também a partir da li-
berdade do homem, uma vez que a auiocomünTcaçao pessoã1 
de Deus enquanto fundamento dessa história didge-se precisa- ···· 
mente à pessoa criada em sua liberdade. Essa história da salva-·· 
ção a partir de Deus e a partir.dÕ homem, precisamente quando 
se trata da história da salvação e não da perdição, não se pode 
distinguir adequadamente para a nossa experiência em seus dois 
pólos. Não há ação salvífica de Deus no homem que não seja 
ao mesmo tempo ação salvífica do homem. Não há nenhuma 
revelação que possa ocorrer de outra forma que na fé do ho-
mem que ouve a revelação. Neste sentido fica claro que a histó-. 
ria da salvação e revelação sempre é simultaneamente a síntese 
já dada ~a ~ção histórica_de_]::>_~1!~--~ cl~ ação histó"ika-do liõ·,=-·--
175 
mem, pois a história divina e humana da salvação não se pode 
concéber de maneira sinergética. Deus é a um só tempo o fun-
damento da ação livre do homem e o que com seu próprio agir 
energiza o homem precisamente com a graça e a responsabili-
dade por sua própria ação, que não pode rechaçar. Por isso a 
ação salvífica divina manifesta-se sempre na história humana 
da salvação, a revelação manifesta-se sempre na fé, e, vice-versa, 
ou seja: o que o homem experimenta como de mais próprio seu, 
acolhe como precisamente algo que lhe é próprio, mas enquan-
to ofertado à sua transcendência pelo Deus ao mesmo tempo 
longínquo e próximo. Essa transcendência: do homem que, pela 
historicidade subjetiva deste, existe necessariamente da maneira 
histórica e que pela autocomunicação de Deus vem a ser consti-
tuída em sua concretude, significa tanto história da salvação como 
história da revelação. 
3. A HISTÓRIA DA SALVAÇÃO E DA REVELAÇÃO 
ENQUANTO COEXTENSIVA 
COM TODA A HISTÓRIA UNIVERSAL 
Hist6ria da salvação e hist6ria universal 
O fato de hoje a história da salvação cobrir toda a história 
da humanidade (o que não implica seja idêntica com ela, pois 
que nessa história ocorrem também não-salvação, culpa e recu-
sa de Deus) não constitui nenhum problema especial para a in-
terpretação normal do cristianismo. A pessoa que não se fecha 
para Deus em um último ato de sua vida e liberdade por pecado 
livre e pessoal, pelo que seja real e subjetivamente culpada e de 
cuja responsabilidade rião pode esquivar-se, essa pessoa encon-
tra a salvação. 
A história universal do mundo significa, portanto, história 
da salvação. A auto-oferta de Deus, em que ele __ se coml111ica ab- __ 
solutamente à totalidade do homem,

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