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489968280-Tratado-de-Historia-das-Religioes-Mircea-Eliade-pdf

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Tratado de
das
Religiões
JK ' ' r’p̂ \ *tT Mircea Eliade
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TRATADO DE HISTÓRIA 
DAS RELIGIÕES
TRATADO DE HISTORIA 
DAS RELIGIÕES
Mircea Eliade
Tradução
FERNANDO TOM AZ 
NATÁLIA NUNES
Martins Fontes
S&o Paulo 2008
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<• «ui/. <•»« 6f Anj>/,l4«w.mimi!.s'.'"iv.wikWa.-'W>-r
Sumário
Prefácio de Georges D um ézit............................................. IX
Prefácio do a u tor .................................................................. I
I. Aproximações: estrutura c morfologia do sagrado 7
II. O Céu: deuses uranianos, ritos c símbolos celestes 39
III. O Sol c os cultos solares........................................... 103
IV. A Lua e a mística lu n a r ............................................ 127
V. As águas c o simbolismo aquático........................... 153
VI. As pedras sagradas: epifanias, sinais e lo rm as...... 175
VII. A Terra, a mulher c a fecundidade...................... 193
VIII. A vcgctaçào: símbolos e titos de renovaçáo....... 213
IX. A agricultura c os cultos de fertilidade.................. 267
X. O espaço sagrado: templo, palácio, "centto do
mundo” ........................................................................ 295
XI. O tempo sagrado e o mito do eterno recomeço ... 313
XII. Morfologia e função dos m itos............................... 333
XIII. A estrutura dos sím bolos....................................... 355
Conclusões.............................................................................. 373
Ihbliogra/ia ............................................................................ 381
Notas ....................................................................................... 441
/
A memória de Kina
Prefácio de Georges Dumézil
Hão se pode dizer que as ciências envelhecem depressa no 
nosso século, pois têm o privilégio de não correrem para a pró 
pnu morte. S o entanto, como mudam rapidamente de aspecto! 
A ciência das religiões é como a dos números ou a dos astros.
Há uns cinquenta anos, talvez menos, julgávamo-nos muito 
próximos de explicar todas as coisas ao reduzirmos os fenóme­
nos religiosos a um elemento comum, dissolvendo-os numa no- 
(yJ o também comum à qual se dava um nome "pescado "nos ma­
res do Sul: desde as mais sei vagens às mais racionais, as religiões 
ulo a/tenas concretizações variadas do famoso mana, essa força 
mística esparsa, sem contornos próprios mas pronta a encerrar- 
se em todos os contornos', indefinível mas caracterizada por essa 
impotência em que deixa av nossas palavras: essa força presente 
em todos os lugares dos quais se pode falar de religião; e pala­
vras preciosas como sacer e tnimen, hagnos e thambos, tao e até 
a "Graça" do cristianismo, são variantes suas ou seus derivados. 
Uma geração de pesquisadores dedicou -se a estabelecer essa uni­
formidade. /: talvez tivessem razão. Porém, mais tarde, veio a 
peneber-se que não alcançaram grandes resultados: haviam da­
do um nome bárbaro a alg o que sempre fez com que viajantes 
<• exploradores reconhecessem, sem errar, sob o seu caráter espe­
cífico. os atos religiosos que encontravam. E o que nos aparece 
hoje como surpreendente, o que reclama estudo, já não é essa 
força difusa e confusa da qual xc encontra uma noção por todo 
o tudo, mas que só é a mesma pela razão de que acerca dela nada 
se pode diiêt, mas as estruturas, os mecanismos, as equilíbrios 
constitutivos de toda religião e definidos, discursivo ou simboli­
camente. em toda teologia, roda mitologia, toda liturgia. Chegou-
X TRATADO Df. HISTÓRIA DAS M tU O IÔ ES
xe — ou voltou-se — á idéia de que uma religião é um sislema, 
diferenciado de toda a poeira dos seus elementos, um pensamen­
to articulado, uma explicação do mundo. Lm resumo, é sob o 
signo do logos e não sob o do mana que se situa hoje a pesquisa.
Há uns cinquenta anos, talvez menos, qualquer anlropolo- 
gista inglês ou sociólogo francês levantava, solidariamente, dois 
ambiciosos problemas: o da origem dos fatos religiosos c o da 
genealogia das formas religiosas. Memoráveis batalhas se trava- 
ram ü volta do Deus Santo e dos totens. Algumas escolas atam 
os australianos como os últimos testemunhos das formas elemen­
tares da vida religiosa, outras opõem-lhes os pigmeus: se os pri­
meiros são, cm parte, povos paleolíticos, os segundos não serão 
ainda mais arcaicos, pois mal se afastam de uma condição em­
brionária? Discutiu-se sobre a gênese da idéia de deus: ser d inde­
pendente da idéia de alma ou teria saído dela? 0 culto dos mor­
tos precederia o das forças da natureza? Perguntas graves e... vãs. 
lais polêmicas, frequentemente calorosas, inspiraram livros ad­
miráveis e, o que ainda é melhor, provocaram observações e com­
pilações. Mas não foram exaustivas nem de pleno êxito. Hoje, 
a pesquisa afasta-se delas. A ciência das religiões deixa para os 
filósofos a questão das origens, tal como fez. um pouco antes, 
a ciência da linguagem, como fizeram todas as outras ciências. 
Renuncia também a prescrever a posteriori, se assim se pode di­
zer, /saro as formas religiosas do passado uma evolução tipo, urna 
marcha forçosa. Quer nas coloquemos no século ,Y,V ou seus mil 
anos antes, nunca chegamos muito longe na vida de qualquer por­
ção da humanidade: apenas conseguimos encontrar nos diante dos 
resultados de uma maturação e de acidentes que ocuparam deze­
nas de séculos; *• dizemos então que o polinesio e o indo euro/wu, 
o sennia c o chinês chegaram às suas noções religiosas, às confi­
gurações dos seus deuses, por vias mudo diversas, ainda que se 
notem semelhanças nos pontos de chegada.
L m suma. a tendência atual é a de "voltar a sentir", como 
dizia Henri Hubert, de registrar na sua originalidade c com a sua 
complexidade os sistemas religiosos que foram ou são praticadas 
cm todo o mundo. Mas como se exprime essa tendência? Que gê­
nero de estudos a alimenta?
I. Antes de mais. descrições cada vez mais exaustivas. Etnó-
grafas e historiadores, conforme as casas, vâo acumulando ob­
servações e documentos de toda espécie t* tentam compreender 
aquilo que estabelece uma unidade e o caráter orgânico desse in-
1‘Ht'l ACIO P t' aeORC.ES DUMET/JL XI
ventário. relativamente a cada domínio e a cada período. Na ver­
dade, ene esforço tem se realizado, melhor ou pior, mas. no mais 
das vezes, bastante bem, em todas as épocas.
II. Um segundo lugar, se as questões de origem e de genea 
logia foram completamente abandonadas, voltaramno entanto 
a surgir, de modo mais modesto e são. a propósito de cada uma 
das descrições, geográfica e historicamente circunscritas, que aca­
bam de ser mencionadas. Fm matéria de religião, como em ma­
téria de linguagem, todo estado só se explica, ou não se explica, 
por uma evolução, a /sartir de um estado anterior, com ou sem 
intervenção de influências ex teriores. Dai, vários domínios de pes­
quisa e vários tipos de métodos igualmente necessários:
I y Para as sociedades que. há mais ou ha menos tempo, pos­
suem uma literatura, OU pelo menos documentos escritos, o estu­
do da história religiosa não é mais do que um caso particular da 
história da civilização, ou da história em sentido estrito, e, tanto 
na critica como na construção, não emprega outros processos. 
As "grandes religiões”, corno o budismo, o cristianismo, o ma- 
niqueismo, o islanmtno. representam este caso ao máximo, pois 
a sua literatura remonta pouco mais ou menos aos princípios da 
evolução. Alias, todas as religiões um pouco antigas dependem 
dos mesmos métwios em menor grau. a partir de certo ponto do 
seu desenvolvimento, e com a condição de que se lenha obtido 
êxito na interpretação das primeiras formas verificadas.
2'.' Mas esta condição é difícil de cumprir, e enconíra-se a 
mesma dif iculdade em relação às religiões só muito tardia e rc 
centemente consideradas: por razões diversas, tanto o leitor de 
Sirehlow como o leitor dos Vedas sofre de igual deficiênciu de 
visão retrospectiva, /rois ambos se encontram perante urna estru­
tura religiosa completa, e até diante de uma literatura religiosa, 
mas desprovida de qualquer meio de explicação histórica, isto é. 
de explicação /relo anterior. Ora, trata-se do caso mais geral, que 
é o de lodus as religiões exóticas descritas pelos exploradores desde 
o século X VI até o século X X ; e de todas as religiões pagãs da 
l.uropa, incluindo a de Roma c a da Grécia; o caso das religiões 
dos antigos povos semíticos e da China. Neste domínio e sobre 
este ponto, a tarefa da ciência das religiões c múltipla:
a) Fm primeiro lugar, é necessária uma limpeza, pois as es­
trebarias de Au?ias estão atulhadas. As gêroçóés anteriores nos 
deixaram explicações que, de maneira geral, devem ser rejeita­
das, quer sejam absurdas, quer razoáveis. A tendência geral de
XII TRATADO DE HISTÓRIA D AS RELIGIÕES
lodo historiador especializado, no momento em que. remontan­
do o curso dos séculos, chega até a penumbra, depois até as tre­
vas, é a de imaginar urna curta pré-história, que prolonga, com 
0 menor esforço possível, os primeiros documentas até uni hipo­
tético começo absoluto, cx nihilo. Os latimstas explicam a fo r ­
mação da religião romana a partir de vagos numir.a fcentros de 
mana.'/, dos quais somente alguns, que se beneficiam de circuns­
tâncias históricas, se teriam concretizado em deuses pessoais. Mui­
tos indianistas ainda têm dificuldade em se afastar das miragens 
de Max Muller e julgam ouvir os chantres w’dicas exprimir as rea­
ções naturais do homem primitivo perante o grande fenómeno 
da natureza; »• os outros não estão muito longe de verem nos hi­
nos puras fantasias da imaginação e de estilo — outra form a de 
criação cx nihilo. Tudo isso é artificial; temos de reconhecer e 
revelar esse artificio.
b) A seguir, uma tarefa positiva. que equivale a prolongar 
objetivamente a história, (*or processos comparativos, a ganhar 
alguns séculos sobre a pré-história. Comparando o lotemisrtio dos 
urunta com formas análogas, e no entanto diferentes, praticadas 
pelos outros indígenas da Austrália, fo i possível definir um sen­
tido provável de evolução a juirtir de um estado antigo (não pri­
mitivo. certamente), de um estado comum: quer por comunida 
de de origem, quer por interações seculares, os australianos fo r ­
mam dcJato um “circulo cultural", eépossível. mutatix niiitan- 
ilis, aplicar às suas religiões, às suas civilizações, as processos com- 
pararivos que permitem ao linguista, quando este dispõe de um 
grupo de línguas geneticamente aparentadas ou aproximadas por 
uni intenso jogo de contributos, induzir dados certos e precisos 
acerca do seu passado. A PoUnésia. diversas zonas da África Ne­
gra e da América permitem amplamente o emprego desse método.
Da mesma maneira, ao comfnirarmos as formas de religião 
mais remotomente verificadas entre diversos povos que não se sa­
biam nem sc conheciam como aparentados, desde o começo da 
sua história, mas das quais sabemos hoje, precisamente pela con­
sideração da sua língua, que derivam por dispersão de um mes­
mo povo pré histórico, podemos fazer induções prováveis acer 
ca da religião desse povo pré-histórico c. por consequência, acer­
ca dai evoluções variadas que, a partir desse ponto fixo. recons­
tituído mas não arbitrário, conduziram os povos dele derivados 
até seus respectivos limiares históricos, até os primeiros equilí­
brios conhecidos das suas religiões. É assim que. para os povos
PREFÁCIO DE GEORCVS D L M E /IL XI I I
iemíticos. e hoje para os povos indo-europeus. se reconquista­
ram um ou dois milênios sobre os tempere incógnita. Proveito 
escasso, se o confrontarmos às ambições de um Taylor ou até de 
um Durkheim. mas proveito mais seguro e o qual. se entrevê, se­
rá significativo para construir, enf im, uma história natural do es­
pirito humano.
3° Um terceiro ecncru de pesquisas interfere com as prece­
dentes. Assim como ao lado de uma linguística descritiva, de uma 
linguística histórica /com a sua variedade, a linguística compara- 
tna de cada famíliaj, ha lugar para uma linguística geral, assim 
também é necessário comparar, sem se voltar aos erros de outto­
ra — ja não genealogicamente mas tipologicamente —. nas es­
truturas e nas es oluções mais diversas, aquilo que se afigura com­
parável. as funções rituais ou conceituais que se encontram (*>r 
todo o lado; as representações que se impõem ao homem, seja 
ele qual for; aquelas que. quando coexistem, agem e reagem ge 
ralmente uma sobre a outra.
£ necessário estudar, para se determinar constantes e variá­
veis, o mecanismo do jieiisamento mítico, as relações de mito e 
das outras partes da religião; as comunicações do mito. do con­
to, da história, da filosofia, da arte, do sonho £ necessário 
colocarmo-nos em todos os "observatórios de síntese" que se 
apresentam — e são cm número infinito — e, do alto de cada 
um deles, constituir um re/tertório que. muitas vezes, não irá in­
cidir num problema preciso e ainda menos numa solução, em ge­
ral provisória, esera incompleto como todos os dicionários, mas 
que facilitará, esclarecerá, inspirará as jsesquisadores comprome­
tidos nos estudos históricas, analíticos ou comparativos já defi­
nidos lais empreendimentos proporcionaram ju o conteúdo de 
uma importante literatura, pois se continuam de há muito cm se 
gl/ndo plano, enquanto teorias mais ruidosas oc upam sucessiva- 
mente as atenções. Assim, temos as coleções de dados "agrários" 
de W. Manhardl e de J. (i. trazer, as monografias — cito ao 
acaso — sobre o santuário, o altar, o sacrifício, a soleira da por 
la, a dança, sobre o pacto de sangue, o culto da arvore, dos altos 
cumes ou das águas, sobre o mau-olhado, as cosmogonias, os mais 
variados animais, na mediria em que constituem elementos de re
prcsenlüçófs míticas. sobre a mística dos numeros, sobre as prá­
ticas sexuais e centenas de outras, redigidas por aurores que não 
se prendiam a nenhuma escola. £ certo resultar daí um enorme 
amontoado de escórias, talvez mais constdcrase! do que o ftin-
XIV TRA TA DO DE HISTÓRIA D A S RELIGIÕES
do. realmente valioso: essas investigações tentam consiantcnicn- 
te un tores ma! preparados, ou demasiado apressadas, ou pouco 
conscienciosos, e é a i que o charlatanismo, qualquer que seja o 
seu rótulo, "sociológico” ou outro, se instala, dogmatiza e por 
vezes pontifica corn a maior facilidade. Não importa: cabe ao pro­
fessor de "história das religiões”, corno se diz propriamente, se­
parar o frigo do joio e prévenir os estudantes.Tais são os 1res domínios, ou os très pontos de vista, que 
dividem a história das religiões. Parlemos conservar a esperança 
de que se unam um dia. ainda distante, cm uma síntese harmo­
niosa. formando o quadro cômodo de um saber incontestado. 
Nem sequer os nossos bisnetos virão a ver esses tempos felizes. 
Por muito tempo ainda cada um trabalhará numa das três seções, 
isolado, tanto os historiadores especialistas como os comparons- 
tas dos dois gêneros (genealogistas, apologistas), ignorando-se 
muHtamentc muitas vezes, guerreando-se por vezes e ultrapassan­
do os direitos uns dos outros. Mas, não é assim que se desenvol­
ve qualquer ciência e não se conformando a um "plano '’preten­
samente secular?
Afais uma razáo, portanto, para fazer de tempos em tempos 
um balanço da situação. Ê para isso que. em primeiro lugar, ser­
virá n tratado publicado por Mircea E/iade. O autor, professor 
de história das religiões na Universidade de Bucareste. cedo sen­
tiu a necessidade de um ' 'curso de iniciação ' ’ nessas matér ias ern 
que cada um se julga mestre, e que são difíceis. Ao cabo de sete 
anos. a duração do curso, nasceu este livro. Entusiasta, empreen­
dedor. munido de imensa leitura e de uma formação preciso de 
india nisto, Mircea Eliade fe z já muito pelo nosso estudo: penso 
no seu Yoga. nos três belos volumes da revista romena de histó­
ria das religiões. Zálmoxis, e. mais recenternente ainda, na ma­
gistral revisão dos problemas do xamanismo, que entregou à nossa 
Revue de l'histoire des religions.
A o ver os títulos dos capítulos, ao ver colocados em primei­
ro plano as águas, o céu. o sol, talvez haja os que se lembrem 
de M ax Millier; e esta recordação ser-lhes-á proveitosa: ao des­
cerem dos títulos para o texto, hão de ver como, depois de uma 
reação excessiva contra os excessos de naturalismo, a ciência das 
religiões reconhece hoje a importância dessas representações, que
são a matéria prima mais geral do pensamento mítico: mas ver- 
se-á também que a interpretação é muito diferente: eslas biero- 
fanias cósmicas, como diz Mircea Eliade. não são mais do que
1'K t.rAC tO M : GEORGES DUMÉZIL XV
o aparência exterior de um discurso profundo; esta morfologia 
do sagrado traduz simbolicamente uma dialética do sagrado, de 
que a natureza não é mais do que o suporte. É afina! uma “filo ­
sofia. antes de todas as filosofias” a que nas surge assim que ob 
servamos as mais humildes religiões, resultante de um esforço de 
explicação e de unificação, de um esforço para a teoria em todo 
o sentido da palavra: o presente livro far-nos-á sentir ioda a suo 
coerência e toda a sua nobreza, e também a sua uniformidade 
(que abrange a Europa) — uma uniformidade que, certanientc, 
não devemos exagerar, mas que reduz felizmente a vertigem de 
que sofrem por vezes os principiantes perdidos no labirinto dos 
fatos.
Hem entendido. Mircea Eliade sabe melhor do que ninguém 
que toda a síntese desse gênero comporta e requer uma tomada 
de atitude, vários postulado* que a sua eficácia justifica, mas que 
são /ressoais, jwrtanto provisórios, pelo menos perfectívels. A Hás, 
esse as/recto não é o menos atrativo do livro: acerca da estrutura 
e funcionamento do pensamento mítico, acerca das noções, tão 
gratas ao autor, de arquétipo e de repetição, encontrar se ão idéias 
datas e esclarecedoras, ás quais desejamos não uma longo vida 
(o que não importa), mas uma rápida e rica fecundidade.
Finalmente, este livro presta-nos hoje, em Paris, na França, 
um serviço especial, pois temos de confessar que. se os historia 
dores do cristianismo, do budismo e. de uma maneira geral, das 
diversas religiões siio entre nós numerosos, pouquíssimos distin­
tos pesquisadores (refiro-me aos autênticos) se dedicam aos tstu- 
dos comparativos e gerais, quer porque exigem uma preparação 
mais difícil, quer porque os amadores, alguns muito oficiais, os 
desacreditaram. Sem por isso esses estudos são menos necessá­
rios e promissores. A Sorborme todos os anos atribui urn “certi­
ficado de história das religiões”, com várias especializações, mas, 
por divertido paradoxo, não possui ensino desta matéria. Fsse 
certificado reduz-se prattcamenie a provas de f ilologia, que de­
seja e torna bem restritas; quanto ao mais, em relação à "ciência 
das religiões ” propriamente dita. tal certificado é muito pohre 
c não tenho a certeza de que J. G. Frazer. que. atém do seu in 
glès. do francês e do alemão, apenas dispunha do grego e do la­
tim, tivesse sido aprovado na sua especialidade de "religião dos 
povos não civilizados”. O que lena sido lamentável.
Georges Dumézil
I
Prefácio do autor
A ciência moderna reabilitou um princípio que certas con­
fusões do século XIX comprometeram gravemente: éa escala que 
cria o fenômeno. Henri Poincaré perguntava a si próprio, com 
ironia: “ Um naturalista que só tivesse estudado um elefante ao 
microscópio acreditaria conhecer cornpletamer.te este animal?” 
O microscópio revela a estrutura e o mecanismo das células, es- 
tintura e mecanismo idênticos cm todos os organismos plurice­
lulares. L nâo Itá dúvida dc que o elefante é um animal pluricelu­
lar. Mas não será mais do que isso? Â escala microscópica pode­
mos conceber uma resposta hesitante. Â escala visual humana, 
que tem pelo menos o mérito de nos apresentar o elefante como 
fenómeno zoológico, não há hesitação possível. Da mesma ma­
neira, um fenômeno religioso somente se revelará como tal com 
u condição de sei apreendido dentro da sua própria modalidade, 
isto é, dc ser estudado à escala religiosa. Querer delimitar este 
fenómeno pela fisiologia, pela psicologia, pela sociologia c pela 
ciência económica, pela linguística c pela arte, etc... é traí-lo, é 
deixar escapar precisamente aquilo que nele existe de único e de 
irredutível, ou seja, o seu caráter sagrado. É verdade não existi­
rem fenômenos religiosos ••puros", assim como não há fenóme­
no única c exclusivamemc religioso. Sendo a religião uma coisa 
humana, c também, de fato, uma coisa social, linguística c eco­
nómica — pois não podemos conceber o homem para além da 
linguagem e da vida coletiva. Mas setia vão querer explicar a re­
ligião por uma dessas funções fundamentais que definem o ho­
mem, cm última análise. Seria vâo pretender explicar Sladame 
fíovary por uma serie dc tatos sociais, económicos, políticos — 
que seriam indubitavelmente reais, mas sem consequências para 
a obra literária em si.
2 TRATADO Di. HISTÓRIA D AS R fl .lG IÕ iS
Para não sairmos do nosso âmbito: não pensamos contestai 
que d fenômeno religioso possa ser cm últimu instância encarado 
de ângulos diferentes: mas importa antes considerá-lo em si mes­
mo, naquilo que contém de irredutível c de original. A tarefa náo 
é fácil. Pois, se não se trata de definir o fenômeno religioso, trata- 
se pelo menos de o dreunsetever c situar no conjunto dos outros 
objetos do espirito. E. como nota Roger Caillois na abertuta do 
seu notável livro sobre L'hotnmecl lesocré: "No fundo, acerca 
do sagrado1 cm geral, a única coisa que se pode afirmar valida- 
mente está contida na própria definição do termo: é aquilo que 
se opôc ao que c profano'. A partir do momento em que nos de 
diqutnnos a precisar a natureza, a modalidade desta oposição, es 
barrnmos com os maiores obstáculos. Nenhuma fórmula, ainda 
que dementar, c aplicável à complexidade labiríntica dos fatos.” 
Ora, nas nossas pesquisas, em primeiro lugar são os fatos que 
nos interessam, essa complexidade labiríntica de fatos que se re­
cusam a qualquer fórmula e a qualquer definição. Um tabu, um 
ritual, um símbolo, um demônio, um deus, etc. — ... eis alguns 
dos fatos de religião. Mas seria uma simplificação abusiva a de 
apresentar o processo por esta forma linear. Na realidade, en­
contramo-nos na presença de uma massa polimorfa e, por vezes, 
até caótica de gestos, de crenças e de teorias constitutivas daqui­
lo a que poderemos chamar o fenómeno religioso.
O objeto da presente obra é constituído por um duplo pro 
hlcma:1) o que é a religião? 2) cm que medida podemos falar 
de história das religiões? Céticos que somos sobre a utilidade de 
uma definição preliminar do fenómeno religioso, comentamo-nos 
cm discutir as hierofanias. na acepção mais larga do termo (qual­
quer coisa que torna manifesto tudo quanto c sagrado). Por con­
sequência. só poderemos abordar o problema da historia das for­
mas religiosas depois de examinarmos um número considerável 
destas últimas. Uma exposição do fenômeno religioso que vá do 
“ simples 30 composto" não nos parece de forma nenhuma indi­
cada se atentarmos aos objetivos estabelecidos para esta pesqui­
sa — referimo-nos a uma exposição que comece pelas hierofa­
nias mais elementares (o mana. o insólito, etc...), para passar­
mos cm seguida ao (otemismo, ao feitirismo, ao culto da nature­
za ou dos espíritos, depois aos deuses c aos demônios, t chegar­
mos finalmcntc á noçãss monoteista de Deus. Tal exposição seria 
arbitrária; implica uma evolução do fenômeno religioso, do "sim­
ples ao composto", que nào passa de hipótese ir.dcmonstrável:
l ’K tTA C IO IK) M JOU 3
cm nenhuma parle se encontra uma religião simples, rcdu/ida às 
lilcroíanias elementares; por outro lado, essa exposição iria pre­
cisamente contra a finalidade proposta, que é a de mostrar o que 
si to o s latos de religião c o que eles revelam.
A via que seguimos, se não é a mais simples, é pelo menos 
a mais segura. C omeçamos a nossa pesquisa |>cla exposição sk 
algumas hieroíanias cósmicas, o Céu, as Aguas, a Terra, as Pe­
dras. Se escolhemos estas classes de hieroíanias, não foi porque 
as considerássemos como as mais antigas (o problema histórico 
náo se coloca por enquanto), mas poique a sua descrição expli­
ca, por um lado, a dialética do sagrado e. pelo outro, as estrutu­
ras segundo as quais o sagrado se constitui. Por exemplo, o exa­
me das hieroíanias aquáticas ou celestes prover-nos-á de um ma­
tei ial documental apto a levar-nos à compreensão: IV, do senti­
do exato da manifestação do sagrado nestes níveis cósmicos (o 
Céu e as águas); 2V. da medida em que as hieroíanias uranianas 
ou aquáticas constituem estruturas autônomas, isto c. revelam 
uma série de modalidades complementares c integráveis do sa 
grado. Passaremos ern seguida às hieroíanias biológicas (os rit 
mos lunares, o Sol, a vegetação c a agricultura, a sexualidade, 
etc...), depois às hieroíanias tópicas (lugares consagrados, tem­
plos, etc...), c fmalmcntc aos nulos e aos símbolos.
Depois de revermos uma quantidade apreciável desses do­
cumentos. estaremos em condições de tentar estudar, numa obra 
rutura, os outros problemas da história das religiões: as "formas 
dlvinus” . as relações entre o homem c o sagrado, a manipulação 
do sagrado (os ritos, etc...), a magia e a religião, as idéias sobre 
a alma e a morte, as pessoas consagradas (o sacerdote, o feiticei­
ro. o rei, o iniciado, etc...), as relações existentes entre o mito, 
o símbolo c o ideograma, u possibilidade de fundar uma história 
das religiões, etc.
Isto não significa que iremos expor separadamente cada as­
sunto, como se se tratasse de artigos de dicionário, evitando, por 
exemplo, locar no mito ou no símbolo no capitulo das hicroía- 
lilas aquáticas ou lunares; também não queiemos prometer que 
a discussão das figuras divinas será cxclusivamcntc reservadu ao 
capítulo “ Deuses’’, etc... Pelo contrário, o leitor ficará talvez sur­
preendido por encontrar no capítulo das hieroíanias uranianas 
um número considerável de documentos rclülivOs àos deuses éé- 
Icslcs c atmosféricos, ou de apurar ai alusões, c ate comentários, 
respeitantes aos símbolos, aos ritos, aos mitos e aos ideogramas.
4 TRA TAPO Dl: HISTÓRIA D AS Rl.J.ICIÕES
Foi o próprio assunto que nos impôs esta osmose, obrigando nos 
a interferências permanentes entre as matérias dos diversos capí­
tulos. Era impossível falar da sacralidade celeste conservando cm 
silêncio as figuras divinas que refletem esta sacralidade ou dela 
participam, ou ainda certos mitos uranianos. assim como os ri­
tos aparentados ao sagrado celeste, o> símbolos e os ideogramas 
que o hipostasiam. Cada documento revela nos, à sua maneira, 
uma modalidade da sacralidade celeste e da sua história. Mas, 
ainda que cada problema seja discutido no capítulo que lhe res­
peita, não hesitaremos em nos referirmos ao sentido exato do mi­
to. do rito ou da “ figura divina" no capitulo reservado ao Ccu. 
Da mesma maneira, nas páginas reservadas ao estudo das hiero- 
fanias telúricas, vegetais e agrárias, o interesse incidirá sobre as
manifestações do sagrado nestes uiveis biocósmicos. enquanto a 
análise da estiutura dos deuses da vegetação ou da agricultura 
será transferida para o capítulo consagrado ás “ formas divinas". 
O que de modo nenhum nos impedirá de aludir aos deuses, aos 
ritos e aos mitos ou aos símbolos da vegetação c da agricultura 
na indagaçào preliminar. O objeto destes primeiros capítulos c 
o de destacar o mais possível a estrutura das hrerolamas cósmi­
cas, isto c. mostrar o que nos revela o sagrado manifestado atra­
vés do Ccu, das águas ou da vegetação, etc...
Se fizermos o balanço dav vantagens e das desvantagens que 
apresenta este método, veremos que as primeiras sobi elevam sen­
sivelmente as segundas, e isto por várias razões: l í ) fica-sc dis­
pensado de definir a p r io ri o fenômeno religioso; mas. ao per­
correr os diversos capítulos deste trabalho, o leitor poderá refle­
tir sobre a morfologia do sagrado; 2") a análise de C 3 d a grupo 
de hicrofanias <o Céu. as águas, a vegetação, etc...), ao destacar, 
de maneira natural, as modalidades do sagrado e ao dar a com­
preender como é que se integram num sistema coerente, prepara­
rá ao mesmo tempo o terreno para as discussões finais sobre a 
essência da religião; 3?) o exame simultâneo das forma» religio­
sas "inferiores" e "superiores" porá em evidencia os seus ele­
mentos comuns e assim evitaremos certos erros imputáveis a uma 
óptica “ evolucionista” ou "ocidcntalista” ; 4o) não ficarão ex- 
cessiv amente divididos os conjuntos religiosos. poLs cada classe 
de liicrofanias (aquáticas, celestes, vegetais, etc...) constitui um 
todo, tanto do ponto de vista morfológico (pois se trata de deu­
ses. mitos, símbolos, etc...) como do ponto de vista histórico (a 
pesquisa estender se-à frequentemente a um grande número de
IW -F Â C IO DO AUTOR 5
círculos culturais diferentes no tempo e no espaço); 5?) cada ca­
pítulo porá cm evidência uma modalidade do sagrado, uma série 
de relações entre o homem e o sagrado e. nessas relações, uma 
série de “ momentos históricos".
t neste sentido, e somente neste sentido, que o nosso livro 
pode admitir o titulo de "Tratado de história das religiões” , quer 
di/cr, na medida cm que introduz o leitor na complexidade labi­
ríntica dos fatos religiosos, o familiariza com as suas estruturas 
fundamentais e com a diversidade dos círculos culturais de que 
elas dependem. Procuramos dotar cada capitulo de uma arquite­
tura especial, por vezes ate de um "estilo" próprio, a fim de con­
jurar a monotonia que ameaça qualquer exposição didática. A 
distribuição cm parágrafos teve sobretudo por objetivo simplifi­
car aç. remissões. O alcance deste livro só pode ser apreendido 
ir custa de uma leitura integral, pois nüo se trata, de maneira ne­
nhuma, de um manual apenas para consulta. As nossas biblio­
grafias foram delineadas de modo a encorajar pesquisas prelimi­
nares; nunca são exaustivas; pode até acontecer que sejam insu­
ficientes. No entanto, esforçamo-nos por mencionar os reprevrn 
tuntes do maior nilmero possível de concepções e de métodos.
Uma boa parte das análises morfológicas c das conclusões 
metodológicas do presente volume constituiram o objeto dos nos­
sos cursos de história das religiões na Universidade de Bucareste 
c das nossas lições na Escola de Altos Estudos de Paris (Rccher- 
ehes sur ta morphologie du sacré, 1946; Rechcrches sur la slruc- 
lure des mylhes, 1948). Somente uma pequena fração dotexto 
foi escrita diretamente cm francês. O restante foi traduzido do 
romeno pela senhora Carciu c por J. Gouillard, A. Juilland, M. 
Sora c J. Soucassc, aos quais exprimo aqui a minha gratidão. A 
tradução foi complctamenie revista e corrigida pelo meu sábio 
amigo c colega Geoiges Dumézil, que teve u gentileza de lhe acres­
centai um prefácio. Quero deixar-lhe aqui o meu profundo reco­
nhecimento pelo interesse que dedicou a esta obra.
Mircea Eliade
Oxford, 1940 
Paris, 1948
Aproximações:
estrutura e morfologia do sagrado
I. “ SaRrado” e “ profano” — Todás as definições dó lértò- 
mcno religioso apresentadas até hoje mostram uma característi- 
iii comum: á sua maneira, cada uma delas opóe o sagrado e a 
vida religiosa ao profano e à vida secular, é quando se trata de 
delimitar a esfera da noção de “ sagrado” que as dificuldades co­
meçam. Dificuldades dc ordem teórica, mas também de ordem 
prática. Pois antes dc se tentar uma definição do fenômeno reli­
gioso convém saber dc que lado será necessário procurar os fatos 
religiosos, c principalmcntc, dentre esses fatos, os que se deixam 
observar cm "estado puro” , isto c. os que são “ simples" e estão 
mais próximos da sua origem. Infelizmente, em parte nenhuma 
esses fatos são acessíveis; nem nas sociedades cuja história pode­
mos seguir, nem entre os “ primitivos” , os menos civilizados. En­
contrarmos emos quase sempre na presença dc fenômenos reli­
giosos complexos, que pressupõem uma longa evolução histórica.
Por outro lado, a reunião da documentação apresenta tam­
bém importantes dificuldades práticas. Por duas razões: I í) ain­
da que nos contentássemos ern estudar uma só religião, a vida 
dc um homem mal chegaria para levar tal investigação a cabo; 
2?) se nos propusermos t> estudo comparativo das religiões, ate 
várias existências seriam insuficientes para se alcançar o objetivo 
proposto. Ora, o que nos interessa c justamente este estudo cotn- 
pat ativo, o único capaz dc nos revelar, por uru lado, a morfolo­
gia inoonstame do sagrado e, pot outro, o seu devir histórico. 
Para nos aproximarmos desse estudo, fomos, pois, obrigados a 
escolher certas religiões entre aquelas que a história registrou ou
8 TRATADO DE HISTÓRIA D AS RO JG ÍÔ ES
que a etnologia nos revelou, e também alguns'dos seus aspectos 
c das suas fases.
Ainda que sumária, esta escolha é sempre uma operação de­
licada. De fato, se quisermos delimitar e definir o sagrado, scr- 
nová necessário dispor de uma quantidade conveniente de "sa- 
cralidadcs” , isto é, de fatos sagrados. Esta heterogeneidade dos 
“ fatos sagrados” começa por ser perturbante e acaba, pouco a 
pouco, por se tornar paralisante, pois se trata de ritos, dc mitos, 
de formas divinas, dc objetos sagrados c venerados, de símbo­
los, dc cosmologias, de tcologúmcnos, de homens consagrados, 
de animais, dc plantas, dc lugares sagrados. E cada categoria pov 
su: a sua própria morfologia, de rique/a luxuriante c frondosa. 
Encontramo-nos assim na presença de um material documental 
imenso c heteróclito, pois um mito cosmogònico mclanésio ou 
um sacrifício bramânico nâo têm menos direito de serem levados 
em consideração do que os textos místicos de uma Santa Tecesa 
ou dc um Nichiren. do que um lotem australiano, um rito primi­
tivo dc iniciação, o simbolismo do templo Barabudur, o traje ce­
rimonial c a dança de um xarnü siberiano. as pedras sagradas que 
s< encontram por quase toda a parte, as cerimónias ajirána». os 
mitos e os ritos das grandes deusas, a instauração dc um rei nas 
sociedades arcaicas ou as superstições cm relação ás pedras pre­
ciosas. Cada documento pode ser considerado como uma hicro- 
íania. na medida cm que exprime à sua maneira uma modalida­
de do sagrado c um momento da sua história, isto é, uma expe­
riência do sagrado entre a> inumeráveis variedades existentes. Aí, 
qualquer documento c para nós precioso, cm virtude da dupla 
revelação que realiza: I ? ) revela uma modalidade do sagrado, cn- 
quanto hicrofania; 2?) enquanto momento histórico, revela uma 
sttuaçào do homem cm relação ao sagrado. Aqui está, por exem­
plo, uttt texto védico que se dirige ao morto: “ Rasteja para a ter­
ra , tua mãe! E possa ela salvar-tc do nada!” 1 Este texto revela- 
nos a estrutura da sacralidade telúrica; a Terra é considerada co­
mo uma Mãe. Tdlus Mater, mas revela nos ao mesmo tempo certo 
momento da história das religiões indianas; o momento cm que 
esta Tellus Mater era valorizada — pelo menos por determinado 
grupo de indivíduos — como protetora contra o nada. valoriza­
ção que virá a tornar-se caduca pela teforma dos Upanishads e 
peia prcgaçàv de Buda.
Para voltarmos ao ponto de partida; cada categoria dc do­
cumentos (mitos, ritos, deuses, supcrstiçóes, etc.) é para nós igual­
Manifestação do sagrado
APROXIMAÇÕES: ESTRUTURA E MORFOLOGIA 9
mente preciosa quando pretendemos compreender o fenômeno re­
ligioso. Fsta intclccçâo realizou-se constantcmcntc no quadro da 
história. Só i»lo simples fato de nos encontrarmos cm presença 
de hierofanias nos achamos cm presença de documentos históri­
cos. É sempre numa certa situação histórica que o sagrado se ma­
nifesta. Até as experiências místicas mais pessoais c mais trans­
cendentes sofrem a influência do momento histórico. Os profetas 
judeus sáo os dispensadores dos acontecimentos históricos que jus­
tificaram e serviram de suporte a sua mensagem: sflo também os 
agentes da história israelita, que lhes permitiu formular certas ex­
periências. Como fenômeno histórico — e nâo como experiência 
pessoal — o niilismo e o ontologismo de certos místicos mahãya- 
nicos nâo eram possíveis sem a especulação dos Lpanishads. sem 
a evolução da língua sânscrita. O que de maneira nenhuma signi­
fica que qualquer hierofania, assim como qualquer experiência re­
ligiosa. seja um momento único, sem repetição possível, na eco­
nomia do espírito. As grandes experiências não se assemelham so­
mente pelo seu conteúdo, mas frequentemente também pela sua 
expressão. Rudolf Otto destacou semelhanças surpreendentes en­
tre o léxico c as fórmulas de mestre Kckaidt e os de Çankara.
O fato de uma hierofania ser sempre histórica (isto c, dc se 
produ/jr sempre em situações determinadas) níto destrói neces­
sariamente a sua ccumenicidade. Algumas hierofanias têm um des­
tino local; há outras que têm. ou adquirem, valores universais. 
Os indianos, por exemplo, veneram cena árvore chamada Açvat- 
tha; simplesmente, para eles a manifestação do sagrado nesta es­
pécie vegetal é transparente, pois só para eles a Açvattha c uma 
hierofania e não apenas uma Jrvore. Por consequência, esta hie­
rofania não somente é histórica (aliás, como toda a hierofania). 
mas também local. No entanto, os indianos também conhecem 
o símbolo de uma árvore cósmica (A.\is Mundi), c esta hierofa­
nia mítico-simbólica c universal, pois as árvores cósmicas 
cncontram-sc por toda a parte nas antigas civilizações. Queremos 
acentuar que a Açvattha é venerada na medida cm que incorpora 
a sacralidadc do universo cm continua regeneração; ou seja, é ve­
nerada porque incorpora, participa ou simboliza o universo re­
presentado pelas árvores cósmicas das diferentes mitologias (cf. 
§ 99). Mas ainda que a Açvattha sc justifique pelo mesmo sim­
bolismo que apartte l.imbém na árvore cósmica, a hierofania que 
transubstancia uma espécie vegetal numa árvore sagrada só é 
transparente aos olhos dos membros da sociedade indiana.
Para Feuebach, em regra, as manifestações religiosas/sagradas de um povo são de âmbito local, só fazem sentido para aquele povo. Contudo, isso não exclui a possibilidade defendida por Mirceia Eliade.
Ou seja, só faz sentido para os indianos.
Isso reforça a tese de Feuerbach de que o ambiente cultural de um povo influencia a projeção de seus deuses.
10 TRA TAPO DE HISTÓRIA D AS RRU O H lES
Para citar ainda um exemplo — desta vez o de uma hicrofa- 
nia ultrapassada pela própria história do povo em que se reali­
zou —. os semitas adoraram cm certo momento da suahistória 
o par divino do deus da tempestade e da fecundidade, Baal, e da 
deusa da fertilidade (sobretudo da fertilidade agrária). Bclit. Os 
profetas judeus consideravam estes cultos como sacrilégios. Do 
seu ponto de vista — isto é, do [xrnto de vista dos semitas, que, 
pot intermédio da reforma mosaica, tinham chegado a uma con­
cepção mais elevada, mais pura e mais completa da divindade — 
esta critica era plcnamentc justificada. No entanto, o culto |>a 
leosjcmítrco de Baal e de Belit nem por isso deixava de ser tam­
bém uma hicrofania; revelava — até a exacerbação e ao mons­
truoso — a sacralidade da vida orgânica, as forças elementares 
do sangue, da sexualidade e da fecundidade. Tal revelação con­
servou o seu valor, sc não durante milênios, pelo menos durante 
numerosos séculos. Esta hicrofania continuou a ser valorizada 
ate o momento cm que foi substituída pot uma outra que — rea­
lizada na experiência religiosa dc uma elite — sc afirmava mais 
perfeita c mais consoladora. A “ forma divina” de Javé levava 
a melhor sobre a “ forma divina” dc Baal; revelava a sacralidade 
dc uma maneira mais integral, santificava a vida sem desenca­
dear as forças elementares concentradas no culto dc Baal. reve­
lava uma economia espiritual cm que a vida do homem e o seu 
destino sc atribuíam novos valores, assim como facilitava unia 
experiência religiosa mais rica. uma comunhão divina simulta­
neamente mais “ pura" e inals completa. Ale que. fmaimente, esta 
hicrofania javeista triunfou; c. na medida cm que representava 
uma modalidade universal do sagrado, cra por sua própria natu­
reza acessível ás outras culturas; através do cristianismo tornou- 
se um valor religioso mundial. De onde se conclui que certas hic- 
rofanias (ritos, cultos, formas divinas, símbolos, etc.) sJo ou 
tornam-se assim multivalcntes ou universalistas; outras perma­
necem locais e “ históricas” ; inacessíveis às outras culturas, caí­
ram cm desuso durante a própria história da sociedade em que 
se tinham produzido. 2
2. Dificuldades metodológicas — Mas voltemos à grande di­
ficuldade material já apontada, ou seta. a exirema heterogenei­
dade dos documentos teiigiosos. O dominio quase ilimitado em 
que se recolheram milhões de documentos veio agravar essa hc-
Judeus e Árabes
O que Feuerbach vai chamar de momento em que o homem se compreendeu enquanto gênero, e não apenas enquanto indivíduo ou povo isolado.
Nesse momento, ganham destaque as chamadas religiões do espírito, em detrimento das religiões da natureza.
APROXIMAÇÕES; EST H V IV R A E MORFOLOGIA 11
terogcneidade. Por um lado (é aliás o caso de lodos os documen­
tos históricos), aqueles de que dispomos foram conservados mais 
ou menos ao acaso (não se irata apenas de texios mas lambem 
de monumentos, de inscrições, de tradições orais, de costumes). 
Por outro lado. estes documentos conservados ao acaso provém 
de meios muito diferentes. Se. para reconstituir a história arcai­
ca da religião grega, por exemplo, temos de nos contentar com 
os textos pouco numeiosos que nos restam com algumas inscri­
ções. alguns monumentos mutilados e alguns objetos votivos, para 
reconstituir as icligiõcs germânicas ou eslavas somos forçados a 
chamar cm nosso auxílio os documentos folclóricos, aceitando 
o.s riscos inevitáveis que comportam o seu manuseio e u sua in­
terpretação. Uma inscrição rúnica. um mito registrado vários sé­
culos depois tic vigente, algumas gravuras simbólicas, alguns mo­
numentos proio-lmtóricos, uma quantidade de ritos c de lendas 
populares do ultimo século — haverá alguma coisa mais heteró­
clita do que o material documental ele que dispõe o historiador 
das religiões germânicas ou eslavas? Embora aceitável no estudo 
de uma só religião, tal heterogeneidade torna-se grave quando se 
irata de nos aproximarmos do estudo comparativo das religiões 
e de pretendermos atingir o conhecimento de um grande número 
das modalidades do sagrado.
Essa é exatamente a situação do critico que tivesse por obri­
gação escrever a história da literatura francesa sem mais docu­
mentação que os fiagmentos de Racine, uma tradução espanho­
la de La Bruyère, alguns textos citados por um critico estrangei 
ro, as recordações literárias de alguas viajantes e diplomatas, o 
catalogo de uma livraria de província, os resumos e os temas de 
um colegial e mais algumas indicações do mesmo gênero. Fis. cm 
suma, a documentação de que dispõe o historiador das religiões: 
alguns fragmentos de uma vasta literatura sacerdotal oral (cria­
ção exclusiva de certa classe social), algumas referências encon­
tradas nas notas dos viajantes, os materiais recolhidos pelos mis­
sionários estrangeiros, as reflexões extraídas da literatura profa­
na. alguns monumentos, algumas inscrições e as recordações con­
servadas nas rradiçóes populares. Também as ciências históricas 
estão constrangidas a uma documentação deste gíncro. fragmen­
tária c contingente. Mas a empresa do historiador das religiões 
é muito mais ousada do que a do historiador que se propõe re­
constituir um acontecimento ou uma série de acontecimentos à 
custa dos escassos documentos conservados, pois não só tem de
12 TRATADO DE HISTÓRIA D AS RELIGIÕES
traçai a história de determinada hierofania (rito, mito, deus ou 
culto), como, em primeiro lugar, tem do compreender c tornar 
compreensível a modalidade do sagrado revelada através dessa 
hierofania. Ora. a heterogeneidade c o caráter foiluito dos d o ­
cumentos de que dispomos agravam 3 dificuldade que o historia­
dor experimenta sempre para interpretar corrctamcntc o sentido 
de uma hierofania. Imaginemos a situação dc um budista que para 
compreender o cristianismo dispusesse de apenas alguns fragmen­
tos dos Evangelhos, dc um breviário católico, dc um material ico­
nográfico heteróclito (ícones bizantinos, estátuas dos santos da 
épo^a hiiitoca. vestimentas dc um padre ortodoxo), mas que. em 
troca, tivesse a possibilidade dc estudar a vida religiosa dc uma 
aldeia européia. Sem dúvida o observador budista havia dc esta­
belecer urr.a nítida distinção entre a sida religiosa dos campone­
ses c ar concepções teológicas, morais c místicas do sacerdote da 
aldeia. Vias, embora piocedcsse razoavelmente ao estabelecer esta 
distinção, cairia em erro se considerasse o cristianismo a partir 
das tradições conservadas pelo indivíduo único que é o sacerdote 
e só considerasse como "verdadeira" a experiência representada 
pela comunidade da aldeia. Fm resumo, as modalidades do sa­
grado revelado pelo cristianismo são mais rigorosamente conser­
vadas na tradição representada pelo padre (ainda que fortemen­
te colorida pela história e pela teologia) do que as crenças da al­
deia. Ora, o que interessa ao observador não í o conhecimento 
de certo momento da historia do cristianismo, cm certo setor da 
cristandade, mas a própria religião cristã. () fato de um único 
indivíduo, cm toda a aldeia, conhecer o ritual, o dogma c a mís­
tica cristã, enquanto o resto da comunidade os ignora e pratica 
um culto elementar imbuído dc superstições (isto é, de restos das 
hierolanias decaídas), não assume, pelo menos aqui. importân­
cia nenhuma. O importante é apercebermo-nos dc que e«e indi­
víduo conserva dc maneira mais completa, se não a experiência 
original do cristianismo, pelo menos os seus elementos fundamen­
tais e as suas valorizações místicas, teológicas c rituais.
Esse trio dc método é muito frequente em etnologia P. Ra- 
din julga-se autorizado a rejeitar as conclusões das pesquisas do 
missionário Gusinde porque os seus inquéritos incidiram num vó 
indivíduo. Esta atitude só se justificaria no caso em que o objeti­
vo da pesquisa fosse estritamente sociolóyço: a vida rcli&iJSQ dc 
uma comunidade fueguina num dado momento histórico. m:is 
quando trata dc apreender as capacidades de cxpericncialira-
APROXIMAÇÕES. ESTRUTURA E MORFOLOGIA 13
çâo <la sacralidade pelos fueguinos a situação é complctamente 
diferente. Ora. um dos problemas mais importantes da historia 
das religiões cjustamenic essa capacidade de conhecer as dife­
rentes modalidades do sagrado dos primitivos. De fato, se fosse 
possível demonstrar (aliás isso foi realizado nas últimas décadas) 
que a vida religiosa dos povos mais primitivos 0 verdadeiramente 
complexa, que núo pode ser redu/ida ao "animismo” , ao "tote- 
mismo", nem ao culto dos antepassados, mas que conhece tant- 
Win os seres supremos providos de todos os prestígios do deus 
criador e todo-poderoso, a hipótese cvolucionista, que priva os 
primitivos do acesso às "hicrofanias superiores” , ficaria assim 
imediatamente invalidada.
3. Variedade das hierofanias — As comparações a que re­
corremos para demonstrar como c precário o material documen­
tal de que dispõe o historiador das religiões sào imaginárias, e 
somente assim devem ser consideradas. A novsa prctvupaçào prin­
cipal c a dc justificar o método a que vai obedecer a obra presen­
te. Fm que medida estamos nós autotuados — dada a heteroge­
neidade c a precariedade do material documental — a falar das 
"modalidades do sagrado” ? O que nos assegura a existência real 
dessas modalidades é o íato de uma hicrofanÍ3 ser difcrentcmcn- 
te vivida e interpretada pelas “elites” religiosas em relação ao resto 
da comunidade Para o povo que no principio do outono vem 
até o templo de Kâhghat. cm Calcutá, Durga é uma deusa terrí­
vel, à qual é preciso sacrificar bodes; mas para uns tantos skah- 
tas iniciados Durga é a epifania da vida cósmica cm continua c 
violenta palingenesia. I: muito provável que entre os adoradores 
do linga dc Shiva grande número nào veja nele rnais que o arqué­
tipo do órgilo gerador; mas há outros que o consideram como 
um animal, um ” icone” da criaçào c da destruição rítmicas do 
universo, que se manifesta nas formas e sc reintegra periodica­
mente na unidade primordial, prc-fortnal, a fim dc sc regenerar. 
Qual c a verdadeira hierofania dc Durga e Shiva: a que os " in i­
ciados” decifram ou a que é apreendida pela massa dos "cren­
tes"? Tentaremos mostrar, nas páginas seguintes, que ambas sào 
válidas, que o sentido estabelecido entre as massas, tal corno a 
inicrprctaçáo dos iniciados, represema uma modalklade real. au­
tentica, do sagrado manifestado por Durga ou Shiva. E podere­
mos mostrar que as duas hicrofanias sào correntes, isto é, que
14 TRATADO Dl: HISTÓRIA DAS RELIGIÕES
as modalidades do sagrado reveladas através delas não são de ma­
neira nenhuma contraditórias, rnas integráveis c complementa­
ras. Ficamos assim autorizados a conceder uma "validade'* igual 
a um documento que registra unta experiência popular c a utn 
documento que reflete a experiência de uma elite. As duas cate­
gorias de documentos são indispensáveis — e não apenas para 
descrever a história de uma hicrofania, mas, em primeiro lugar, 
|K>rque ajudam a constituir as modalidades do .sagrado revelado 
através desta hicrofania.
listas observações — amplamentc ilustradas nos estudos deste 
livro — devem ser aplicadas à heterogeneidade das hieroíanias 
acima referidas. Pois — como acabamos de di/er — estes docu­
mentos não só são heterogéneos em relação à sua origem (uns 
dimanam dos sacerdotes ou dos iniciados, outros das massas; uns 
apenas oferecem alusòes, fragmentos ou vagas referências, ou­
tros tcxlos originais, etc.), mas também quanto ã sua própria es­
trutura. Por exemplo, as hieroíanias vegetais (isto c, o sagrado 
revelado através da vegetação) encontram-se tanto nos símbolos 
(a árvore cósmica) ou nos mitos metafísicos (a árvore da vída) 
como nos ritos "populares" (o "cortejo da árvore de maio'*, as 
fogueiras*, os titos agrários), nas crenças ligadas à ideia de uma 
origem vegetal da humanidade, nas relações místicas existentes 
entre certas árvores c certos indivíduos ou sociedades humanas, 
nas superstições relativas à fecundação pelos frutos ou pelas 
flores**, nos contos em que o herói, covardcmcnle assassinado, 
se transforma numa planta, nos mitos c nos ritos das divindades 
da vegetação e da agricultura, etc. Estes documentos diferem não 
só pela sua história (comparar, por exemplo, o símbolo da árvo­
re cósmica entre os indianos e entre os altaicos com as crenças 
de algumas populações primitivas, a respeito da descendência do 
gênero humano a partir de uma espécie vegetal) mas também pe­
la própria estrutura (Juais são os documentos que nos vão servir 
de modelo para compreendermos as bierofanias vegetais? Os sím 
bolos, os ritos, os mitos ou as “ formas divinas"?
O método mais seguro é evidentemente o que considera e uti­
liza todos estes documentos heterogêneos, sem excluir nenhum 
tipo importante, e atenta simultaneamente para a questão dos con­
• Por exemplo, at ••fnjiieir.*; de SSo loSo”. (N.T.)
•• f-, cm Mima. »o ku rodei icgcneradot. como sejam m vlnvdct dos ' > 0» 
de mulo” . tN.T.)
APROXIMAÇ-ÔES tS T R V T V R A S MORFOLOGIA 15
teúdos revelados por todas as hierofanias. Obteremos assim um 
conjunto coerente de notas comuns que — como veremos mais 
tarde, aliás — permitem organizar um sistema coerente das mo­
dalidades da sacralidade vegetal. Poderemos assim notar que ca­
da hicrofania pressu/tòe Ial sistema; que um costume popular, de 
certo modo relacionado com o "cortejo cerimonial da árvore de 
maio” , implica a sacralidade vegetal formulada pelo ideograma 
da árvore cósmica; que algumas hierofanias sâo pouco "abertas” , 
são ames quase “ crípticas” , no sentido de só revelarem parcial- 
mente e de maneira mais ou menos cifrada a sacralidade incor­
porada ou simbolizada peta vegetação, enquanto outras hicrofa- 
nias. verdadeiramcntc "fànicas” , deixam transparecer as moda­
lidades do sagrado no seu conjunto. Poderemos assim conside­
rar como hierofania críptica, insuficientemente "aberta", ou " lo ­
cal". o costume de desfilar cerimoniosamente* •• um ramo verde 
no começo da primavera*4: c como hicrofania "transparente” 
o símbolo da árvore cósmica. Mas tanto uma como outra reve­
lam a mesma modalidade do sagrado incorporado na vegetação: 
a regeneração rítmica, a vida inesgotável que está concentrada 
na vegetação, a realidade manifestada numa criação periódica, 
etc (5 124) O que devemos desde já sublinhar c que todas as hie­
rofanias conduzem a um sistema de afirmações coerentes, a uma 
"teoria" da sacralidade vegetal, teoria implicada tanto nas hie­
rofanias insuficiciitcmente "abertas" como nas outras.
As conseqücitcias teóricas dessas observações serão discuti­
das no final desta obra. quando tivermos examinado uma quan­
tidade suficiente de fatos. Por agora contentar-nos-emos em mos­
trar que nem a heterogeneidade histórica dos documentos (uns 
emanados das "elites” reJigiosas, outios das massas incultas, ou­
tros ainda o produto de uma civilização refinada, outros final- 
mente criação das sociedades primitivas, etc.), nem a sua hetero­
geneidade estrutural (mitos, ritos, formas divinas, superstições, 
etc.) constituem obstáculo para a compreensão de uma hieroía- 
tiia. Apesar das dificuldades de ordem prática, só esta mesma he­
terogeneidade c capaz de nos revelar todas as modalidades do sa­
grado, visto que um símbolo ou um mito tornam cvidcntcmcntc 
transparentes as modalidades que um rito não pode manifestar,
• Im o t, numa (erimOnUr, por exemplo, tm protistâo. ÍN.T.)
•• O “domirtíO de Ramos" pode ver comider&do como mod«ll<tude deste 
tilo. (N.T.)
16 TRATADO Dt: HISTÓRIA DAS RELIGIÕES
mas tão-só implicar. A diferença entre o nível de um símbolo, 
por exemplo, c o de um rito é de tal natureza que jamais o rito 
poderá revelar tudo o que o símbolo revela. Mas, repitamo-lo, 
a hicrofania ativa num rito agrário pressupõe a presença de todo 
o sistema, isto é, o conjunto das modalidades da sacralidade ve­
getal que revelam, de maneira mais ou menos global, as outras 
hierofanias agrárias.
Essas observações preliminares compreender-se-áo no mo­
mento cm que o problema for retomado num pomo de vista di­
ferente. O fato de a feiticeira queimar uma boneca de cera, pro­
vida de uma madeixa de cabelos da sua “ vítima” ,sem se aisercc- 
bcr. de maneira satisfatória, da teoria pressuposta por um ato 
mágico como esse nüo tem a mínima importância para a com­
preensão da magia simpática. O que importa para compreender 
essa m agia t saber que tal ato só foi possível a partir do momen­
to cm que certos indivíduos se convenceram (por via experimen­
tal) ou afirmaram (por via teórica) que as unhas, os cabelos ou 
os objetos usados por um ser humano conservam relações inti­
mas com este após a sua separaçáo. Tal crença pressupõe a exis­
tência de um “espaço-rede” que liga entre si os objetos mais afas­
tados. efetuando tal ligação á custa de uma simpatia dirigida por 
leis especificas (a coexistência orgânica, a analogia formal ou sim­
bólica , as simetrias funcionais). O feiticeiro (o que atua como ma­
go) só pode acreditai na eficácia da sua ação na medida em que 
tal “ espaço-rede” existe. Conheça ele ou nào este “ espaço-rede” , 
tenha ou náo conhecimento da "simpatia” que liga os cabelos 
ao indivíduo, è coisa sem importância. É muito provável que mui­
tas das feiticeiras atuais não possuam uma representação do mun­
do de acordo com as práticas mágicas que exercem. Mas, consi- 
deradus em si mesmas, essas práticas podem revelar nos o mun­
do de onde vem. ainda que os seus executantes náo lhes tenham 
acessa por via teórica. O universo mental dos mundos arcaicos 
nào chegou até nós dialeticamente nas crenças explicitas dos in­
divíduos, mas conservou-se nos mitos, nos símbolos c costumes 
que, apesar de todo gênero de degradação, deixam ver ainda cla- 
ramente o seu sentido original. Em certo sentido, representam 
"fósseis vivos” e por vezes basta um só "fóssil” para que possa­
mos reconstituir o conjunto orgânico de que ele c o vestígio. 4
4. Multiplicidade das hierofanias — Os exemplos que aca­
bam de ser citados serào retomados c reforçados na presente obra.
A HROXIMAÇ fiFS: ESTRU TVRA E MORFOLOGIA 17
Até agora serviram-nos de primeira aproximação, não para deli­
mitar a noção do sagrado, mas para nos familiarizar com os do­
cumentos de que dispomos. Chamamos hierofanias a esses do­
cumentos porque cada am deles revela uma modalidade do sa­
grado. As modalidades desta revelação, assim como o valor on 
tológico que se lhes atribui são duas questões que sò poderão ser 
discutidas no fim da nossa pesquisa. For ora consideremos cada 
documento — rito. mito. cosmogonia ou deus — como consti­
tuindo uma hierofania; ou, por outras palavras, tentemos 
considerá-los como uma manifestação do sagrado no universo 
mental daqueles que o receberam.
Ceilamente tal exercício nem sempre é fácil. Para o ociden­
tal, habituado a relacionar espontaneamente as noções dc sagra­
do, dc religião, c ate de magia, com certas formas históricas da 
vida religiosa judaico-cristã, as hierofanias estranhas surgem-lhe, 
cm grande parle, como aberrantes. Ainda que esteja predisposto 
a considerar com simpatia certos aspectos das religiões exóticas 
— e cm primeiro lugar os das religiões orientais — só dificilmen­
te poderá compreender a saeralklade das pedras, por exemplo, 
ou a erótica mística. E supondo ainda que tais hierofanias excên­
tricas possam encontrar algumas justificações (considerando-as, 
por exemplo, como “ fctichismos” ) c quase certo que um homem 
moderno permanecerá refratário em relação a outras, que hesi­
tará em conccdcr-lhcs o valor dc hierofania. isto é, de modalida­
de do sagrado. Walter O tto notava, no seu Die Götter Grieche­
lands, como é difícil para os modernos apreender a sacralidadc 
das “ formas perfeitas” , uma das categorias do do mo de uso cor­
rente entte os antigos helenos. Esta dificuldade agravar-sc-á quan­
do chegar a hora dc considerar um símbolo como uma manifes­
tação do sagrado, ou dc sentir que as estações, os ritmos ou a 
plenitude das formas (quaisquer que sejam) são outras tantas mo­
dalidades da sacralidadc. Tentaremos mostrar nas páginas seguin­
tes como elas eram consideradas assim pelos homens das cultu­
ras arcaicas. E na medida etn que nos desembaraçarmos dos pre­
conceitos didáticos, cm que nos esquecermos de que essas atitu­
des foram por vezes tachadas dc panteísmo, dc feitiçaria, dc m- 
fantilismo. etc., é que conseguiremos compreender o sentido pas­
sado ou atual do sagrado nas culturas arcaicas, e simultaneamente 
aumentarão as nassas probabilidades de compreendermos igual- 
mente os modos e a história da sacralidadc.
Precisamos nos habituar a aceitar a existência das hierofanias
Considerar como expressão sinônima para "período infantil da humanidade", "povos incultos", "homem/cultura primitiva".
18 TRATADO D lí HISTÓRIA D AS RFUOIÕES
onde quer que seja. em qualquer setor da vida fisiológica, eco­
nômica. espiritual ou social. Fm suma, nós não sabemos se exis­
te alguma coisa — objeto, gesto, função fisiológica, ser ou jogo, 
etc. — que nunca tivesse sido transfigurada, em qualquer parte, 
no decurso da história da humanidade, em hieiofania. Questão 
muito diferente é a de procurar as razões que fizeram com que 
essa alguma coisa se tornasse uma hicrofani3 ou deixasse de o 
ser cm dado momento. Mas é ceito que tudo quanto o homem 
manejou, sentiu, encontrou ou amou pode tornar-se uma hicro- 
faniu. Sabemos, por exemplo, que no seu conjunto os gestos, as 
danças, as brincadeiras das ci ianças, os brinquedos tèm uma ori­
gem religiosa: foram, no tempo, gestos ou objetos cultuais. Sa­
bemos, do mesmo modo, que os instrumentos de música, a ar­
quitetura, os meios de transporte (animais, carros, barcos, etc.) 
começaram por ser objetos ou atividades sagradas. Podemos pen­
sar que não existe nenhum animal ou planta importante que não 
tenha participado da sacralidade no decurso da história. Sabe­
mos da mesma maneira que todos os ofícios, artes, indústrias, 
técnicas têm origem sagrada ou se revestiram, no curso dos tem­
pos, ck valores cultuais. Lsta lista poderia continuar com os ges 
tos cot idianos (o levantai -se depois da noite dormida, o caminhar, 
o correr), pelos diferentes trabalhos (caca. pesca, agricultura), por 
todos os atos fisiológicos (alimentação, vida sexual), provavel­
mente também pelas palavras essenciais da língua, e assim por 
diante. Evidcntemcnte, não devemos imaginar que ioda a espé­
cie humana tenha passado por iodas essas fases, que cada agru­
pamento humano tenha conhecido sucessivamente iodas essas íuç- 
rofanias. Essa hipótese cvoliidonista, talvez aceitável algumas gc- 
laçôes atrás, está hoje completamente excluída. Mas, em qual­
quer lugar que fosse, num dado momento histórico, cada j*rupo 
humano tranxubstanciou, pela parte que lhe tocava, certo núme- 
to de objetos, de animais, de plantas, de gestos em hierofanias, 
c c muito provável que. no fim de contas, nada tenha escapado 
a esta transfiguração, prosseguida durante dezenas de milénios 
da vida religiosa 5
5. Dialética das hierofanias — Relembramos no princípio des- 
le capitulo què tòdis is dcImiÇòcs do fénòmcnò rcligioSó dádás 
ate o presente colocavam cm oposição o sagrado c o profano. 
O que acabou de se dizer acima, isto é. que em qualquer moinen-
APROXIMAÇÕES; ESTRUTURA E MORFOLOGIA 19
lo toda c qualquer coisa pode tornar-se uma hierofania. não con­
tradirá esta definivâo-tipo do fenómeno religioso? Se qualquer 
coiui pode incorporar a saeralidadc. ern que medida permanece 
válida a dicotomia sagrado pioíano? Esta contradição é só apa­
rente. porque, se é verdade que qualquer coisa pode torr.ar-se uma 
hierofania. c que. provavelmente, não existe nenhum objeto, ou 
ser. ou planta que em certo momento da história e em certo lu­
gar do espaço não tenha assumido o prestígio da sacralidade, nem 
|>or isso deixa de continuar a scr verdade que não se conhece ne­
nhuma religião ou raca que tenha acumulado, ao longo da sua 
história, todas estas hierotanias. Por outras palavras, ao lado dos 
objetos ou dos seres profanos sempre existiram, no quadro de 
qualquer religião, objetos ou seres sagrados. (Não é possível di­
zer o mesmo dos atos fisiologicos. dos ofis-ios, das técnicas,dos 
gestos, etc., mas voltaremos a esta distinção.) Temos de ir mais 
longe: ainda que certa cl3ssc de objetos possa receber o valor de 
uma hierofania. há sempie objetos, nesta classe, que não são in­
vestidos desse privilegio.
Por exemplo, quando se fala r.o "culto das pedras", isso náo 
quer dizer que todas as pedras sejam considctadas como sagra­
das. Encontraremos sempre certas pedras veneradas em virtude 
da sua forma, do seu tamanho ou das suas implicações rituais. 
Veremos, alias, que não se trata de um culto das pedras, que cs 
sas pedras sagradas somente são veneradas na medida cm que não 
sào apenas simples pedias, mas hicroíanias. isto é, algo que ul­
trapassa a sua condicão normal de "objetos” . A dialética da hic 
rofania picssupôe uma escolha mais ou menos manifesta, cm que 
incorpora (isto é, revela) algo ftara além dc si mesmo. Por ora 
não interessa muito que este “ algo para além” se deva muito sim­
plesmente à sua foi ma singular, à sua eficiência ou á sua "fo r­
ça" — ou que se deduza a partir da "participação" do objeto 
cm qualquer simbolismo, que seta atribuído por um rito de con­
sagração ou adquirido pela inserção, voluntária ou involuntária, 
do objeto numa região saturada de saeralidadc (uma zona sagra 
da. um (empo sagrado, um "acidente” qualquer — a queda de 
um raio. um crime, um sacrilégio, etc.). O que acabamos dc pôr 
em evidencia c que uma hierofania pressupõe uma escolha, uma 
nítida separação do objeto hicrofánico relativamcntc ao inundo 
restante que o rodeia. Este mundo restante existe sempre, ate 
quando se trata dc uma TCgiáo imensa que se torna hierofânica: 
por exemplo, o Céu. ou o conjunto do "ambiente” familiar, ou
20 TF ATADO DE HISTÓRIA DA S FEJ.IG/ÕES
a “ pátria'*. Em qualquer caso, a separação do objeto hierofàni- 
co faz se pelo menos perante ele mesmo, pois só se torna uma 
hicrofania no momento cm que deixou de ser um simples objeto 
profano, cm que adquiriu uma nova dimensão: a da sacralidadc.
Essa dialética c complctamcntc clara no plano dementar das 
hierofanias fulgurantes, tão comuns na literatura etnológica T udo 
o que é insólito, singular, novo. perfeito ou monstruoso torna-se 
receptáculo para as forcas mágico-religiosas c. segundo as eiienns- 
tãncias. um objeto de veneração ou de temor, em virtude do sen­
timento ambivalente que o sagrado provoca constantemente. 
“Quando um cão tem sempre êxito na caça", escreve A. C. Kr uyt, 
" í porque existe ai rneasa (mau-olhado ou agouro). Demasiado 
êxito na caca é coisa que inquieta o rotadja. A força mágica, 
graças ã qual o animal c capa/ de apanhar a caça, acabará neces­
sariamente por se tornar fatal para o seu dono: ou este morrera 
cm breve, ou a colheita de arroz falhará, ou, o que c o mais fre­
quente. uma epizootta se declarará nos búfalos ou nos porcos. 
Esta crença é geral cm todo o centro das Celebes.": Seja cm que 
domínio for. a perfeição assusta, e é neste valor sagrado ou m á­
gico da perfeição que será necessário procurar a explicação do 
receio que até a mais civilizada das sociedades manifesta perante 
o santo ou o gênio. A perfeição nâo pertence a este inundo. £ 
uma coisa diferente deste mundo, embora venha ate ele.
Este mesmo receio ou esta mesma reserva timorata existe a 
respeito de tudo quanto é do estrangeiro, ou estranho, ou novo 
— pois tais presenças surpreendentes são os sinais de uma força 
que. se bem que venerável, pode ser perigosa. NasCclebcs, “quan­
do o fruto de uma bananeira nasce, nâo no topo do caule, mas 
no meio, trata se de rneasa... Diz-se geralmcntc que isso terá co 
rno consequência a morte do dono de tal árvore... Quando uma 
aboboreira dá dois frutos numa só haste (caso idêntico uo de um 
nascimento de gêmeos), trata-se de rneasa, o que causará a morte 
de urn membro da família daquele que possui o campo onde essa 
planta cresce. E torna-se necessário arrancar a planta que dá tais 
frutos azaremos, que ninguém podetá comer"1. Como diz Edwin 
W. Smith. "as coisas estranhas, insólitas, os espetáculos inusita­
dos, as práticas inabituais. os alimentos desconhecidos, os novos 
ptocessos de fazer as coisas, tudo isso é encarado como manifesta­
ção das forças ocultas”4. Em Tanxa. nas Novas Híbridas, todos 
os desastres eram imputados aos missionários brancos que acaba­
vam de chegar-'. A lista desses exemplos pode crescer facilmente4.
Trecho bom para citação na monografia.
ARROMMAÇÕEÜ- ESTRUTURA F. UORFOI.OGIA 21
6. C) tabu c a ambivalência do sagrado — Veremos mais tar­
de em que medida tais fatos podem ser considerados como hie- 
roianias. De toda a maneira sáo cratofanias, manifestações da 
força c, por consequência, são temidas c veneradas. A ambiva­
lência do sagrado não é exclusivamente de ordem psicológica (na 
medida cm que atrai ou causa repulsa) mas também de ordem 
axiológica: o sagrado è ao mesmo tempo “ sagrado” e “ macula­
do” . Ao comentar as palavras de Virgílio, auri sacra /ames, 
Servius7 faz notar, muito justamente, que sacer pode significar 
ao mesmo tempo “ maldito" e “ santo” . Eustaihius* observa a 
mesma dupla significação de bagios. que pode exprimir ao mes­
mo tempo a noção dc “ puro” c dc “ poluido” 9. E essa mesma 
ambivalência do sagrado aparece no mundo paleossemitico10 e 
egípcio'
Todas as valorizações negativas das “ impurezas” (o conta­
to com os mortos, os criminosos, etc.) se devem a esta ambiva­
lência das hicrofanias c das cratofanias. Tudo quanto i ’‘impu­
ro” c por consequência “consagrado" distingue-se. na esfera do 
ontológico, de tudo quanto pertence à esfera profana. Por isso. 
tanto os objetos como os seres impuros estão praticamente proi­
bidos à experiência profana, assim como as cratofanias e as hie- 
rofanias. L nào c sem risco que todo aquele que pertença à esfe­
ra profana, isto c, nào preparado ritualmenie. se aproxima de 
um objeto impuro ou consagrado. Aquilo a que se dã o nome 
dc tabu — segundo uma palavra polinesia 3dotada pelos etnó- 
grafos — é precisamente essa condição dos objetos, das ações ou 
das pessoas “ isoladas" c ■’interditas" cm virtude do perigo que 
comporta o seu contato. Dc uma maneira geral é ou transforma- 
se cm tabu todo objeto, a-cão ou pessoa que. cm virtude do seu 
próptio modo de ser. ou por uma ruptura dc nível ontológico, 
se torna portadora ou adquire uma força de natureza mais ou 
menos incerta. A morfologia do labu c dos objetos, pessoas ou 
ações tabúticas c muito rica. Basta folhearmos o tomo III do 
Rameau d'or dc Frazci, Tabou et les périls de l'âme'7, ou o vas­
to repertório de Webster11, para nos convencermos disso. Vamos 
contentar-nos com alguns exemplos recolhidos na monografia de 
Van Gcnncpu . O termo corresjiondente a tabu, em malgache, c 
fady.fu ly , palavra que designa o que c "sagrado, proibido, in- 
lerdiio. incestuoso, dc mau augúrio15, ou seja, cm últim a análi­
se, o que é perigoso16. Assim, foram fady “ os primeiros cavalos 
importados para a ilha, os coelhos trazidos por urn missionário.
22 TUA TA DO d í: h is t ó r ia D AS REJ.IGIOES
os gcncros novos, incluindo os remédios europeus” (o sal, o io- 
deto de potássio, o rum, a pimenta, ctc.)|T. Encontramos por­
tanto a-qni as cratoíanias do insólito e do novo. de que já fala­
mos mais acima. A sua modalidade c fulgurante, pois de manei­
ra gera! todos estes tabus não duram muito tempo; a partir do 
momento cm que são conhecidos, manipulados, integrados no 
cosmos- autóctone, perdem a sua capacidade de destruir o equilí­
brio das forças. Outro termo malgache é loza, que os dicionários 
definem nos termos seguintes: "tudo o que está fora ou é contra 
a lei natural, um prodígio, uma calamidade pública, uma dew aça 
extraordinária, um pecado contra a lei natural, um incesto*'"'.
Evidentemente os fenômenos das doenças c da morte se asm 
pam também nas categorias do insólito e do terrível. Entre os mal- 
gachcs, como por toda a parte, aliás, várias "interdições" sepa- 
ráni nitidamente os doentes e os mortos do resto da comunida­
de. C proibido tocar num morto, olhá-lo,pronunciai o seu no­
me. Outra serie de tabus refere-se à mulher, á sexualidade, ao 
nascimento ou a determinadas situações <é proibido ao soldado 
comer galo mono cm combate, ou qualquer outro animal morto 
pot uma azagaia; nào se deve matar um animal macho numa ca­
sa cu.io dono anda envolvido em querelas ou na gueiia. e tc .1'1). 
Em todos esses casos se trata de uma interdição provisória que 
se explica por uma concentração fulgurante de forças em deter­
minados centros (a mulher, a morte, a doença) ou pela situação 
perigosa cm que se encontram algumas pessoas (o soldado, o ca­
çador. o pescador). Mas existem tabus permanentes: o do rei ou 
o do santo, o do nome ou o do ferro, o de certas regiões cósmi­
cas (a montanha de Ambondmmo, de que ninguém ousa 
aproximar-se3-1. os lagos, os tios, ilhas inteiras)2’. Nestes casos, 
as interdições são devidas à maneira de ser específica das pessoas 
c dos objetos (abúlicos. Devido á sua própria situação real, o rei 
é um reservatório pleno de forcas e. conseqúememcme, só é pos­
sível uma aproximação da sua pessoa tomando certas precauções; 
o rei não deve ser tocado nem olhado dirctamente, assim como 
também não se lhe deve dirigir a palavra. Em certas regiões o so­
berano não deve tocar a terra, pois poderia assim torná-la estéril 
devido às forças em si acumuladas; portanto, torna-se necessá­
rio que seja trampoitado. ou então deverá caminhar sobre um 
lapete. As prcçauçôcs tomadas com os santos, com os sacerdotes 
ou con» os curandeiros explicam-se pelos mesmos receios. Quan­
to ã "tabuticaçào” de certos metais (o fetro, por exemplo) ou
APROXIMAÇÕES: ESTRUTURA E MORFOLOGIA 23
dc certas regiões (as ilhas, os montes), são múltiplas as causas 
determinantes: a novidade do metal, ou o fato dc ser utilizado 
por grupos secretos (fundidores, feiticeiros), a majestade ou o mis­
tério de certas montanhas» o fato de não serem integráveis ou não 
estarem integradas no cosmos indígena.
No entanto, o mecanismo do tabu é sempre o mesmo: algu­
mas coisas, pessoas ou regiões participam de um sistema ontoló­
gico muito diferente e. por consequência, o seu contato produz 
uma ruptura de nível antológico que poderia ser fatal. O temor 
perante tal ruptuia — necessariamente imposta pelas diferenças 
de sistema ontológico existente entre a situação profana e a si­
tuação hicrofánica ou cratofãnica — verifica-se ate nas relações 
do homem com os alimentos consagrados ou com os alimentos 
que yí SupõC conterem certas forças mágico-religiosas. "Alguns 
alimentos a tal ponto sào santos que mais vale nunca os comer, 
ou come los apenas em pequenas quantidades."1- C por isso que, 
cm Marrocos, os visitantes dos santuários ou os participantes dc 
uma festa comem pouquíssimo dos frutos ou dos pratos que sc 
lhes oferecem. Fazem-se tentativas para aumentar a "força" {ba- 
raka) do trigo enquanto ele permanece na eira; mas, concentra­
da cm grande quantidade, esta força pode tornar-se nociva21. Pe­
la mesma razão o mel rico etn buraku é perigoso24.
i;.sia ambivalência do sagrado — que ao mesmo tempo atrai 
e causa repulsa — será discutida mais pioíundamcntc no segun 
do volume desta obra. Aquilo que desde já pixlemos notar c a 
tendência contraditória manifestada pelo homem perante o sa­
grado (considerando este termo na acepção mais geral). Por um 
lado. o sagrado proema assegurar c aumentar a sua própria rea­
lidade por um contato tão frutuoso quanto possível com as hie- 
rofanias e as cratofanias; por outro, arrisca-se a perder defmiti- 
vamente esta "realidade" pela sua integração num plano onto­
lógico superior ã sua condição profana; embora a deseje ultra­
passar, não pode entretanto abandoná-la completamente. A am­
bivalência da atitude do homem perante o sagrado não só se ve­
rifica nos casos das hicrofanias e das cratofanias negativas (me­
do dos mortos, dos espíritos, dc tudo quanto é "impuro” ), mas 
também nas formas religiosas mais evoluídas. Até uma leofania, 
como a que nos é revelada pelas místicas cristãs, inspira à grande 
maioria dos indivíduos não somente álfãÇâo mas também repul­
sa (qualquer que seja o nome dado a esta repulsa: ódio, desdém, 
temor, ignorância voluntária, sarcasmo, etc.).
Aparente contradição, pois o próprio autor afirma, nesta obra, que a visão evolucionista da religião está superada, atualmente.
24 TRATADO DE HISTÓRIA D AS RELIGIÕES
Vimos acima que as manifestações do insólito c do extraor­
dinário provocam geralrr.cntc o medo c o afastamento. Alguns 
exemplos de tabus c de ações, de seres ou objetos tabúticos 
revelaram-nos através de que mecanismos as cratofanias do in­
sólito. do funesto, do misterioso, etc. estão separadas do circui­
to das experiências notmais. Esta separacüo tem por vezes efei­
tos positivos: não se limita a isolar, também valorizo. Por isso, 
a fealdade c a disformidade, embora singularizem aqueles que a 
manifestam, ao mesmo tempo também os consagram "Assim, 
entre os indianos ojibway. muitos são chamados feiticeiros, sem 
que eles próprios se considerem peritos na aite da feitiçaria, mas 
simplesmente porque são feios ou disformes. Entre estes india­
nos. todos os que são olhados como feiticeiros têm geialmcnte 
aparência exterior miserável e aspecto repugnante. Rcadc afirma 
que no Congo todos os anões c todos os albinos sc tornam sacer­
dotes. Não podemos pôr cm dúvida que o respeito geialmcnte 
inspirado por este gênero de homens tenha a sua origem na idéia 
de que são dotados de um poder misterioso.” 15
O fato de os xamás, os feiticeiros e os curandeiros serem pre- 
fereniememe recrutados entre os ncuropatas, ou entre os que apre­
sentam equilíbrio nervoso instável, é devido ao mesmo prestigio 
do insólito e do extraordinário. Esses estigmas denotam uma es­
colha: aqueles que os possuem nào têm outro caminho senAo o 
de se submetei em à divindade ou aos espíritos que assim os dis­
tinguiram, tornando-se sacerdotes, xamàsou feiticeiros. Evidcn- 
temente essa escolha nem sempre se efetua por intermédio desse 
gênero de marcas exteriores naturais (fealdade, enfermidade, ner­
vosismo excessivo); a vocação religiosa aparccc frequentemente 
por ocasião dos exercícios rituais a que. de boa ou má vontade, 
se submete o candidato, ou de uma seleção efetuada pdo 
feiticeiro26. Mas trata-sc sempre de uma escolha.
7 .0 mana — O insólito c o extraordinário são epifanias per­
turbadoras: indicam a presença de algo diferente do natuiul: a 
presença, ou pelo menos o apelo, ou cm sentido predestinado, 
desse also. Um animal hábil, assim como um objeto novo ou um 
fato monstruoso singularizam-se dc maneira tão nitida como um 
indivíduo extremamente feio. muito nervoso ou isolado do resto 
da comunidade por qualquer estigma (natural ou adquirido em 
consequência de uma cerimónia realizada com o fim dc designar
APROXIMAÇÕES: ESTRUTURA E MORFOLOGIA 25
o "eleito"). Os exemplos nos ajudarão a compreender o concei­
to mclancsio dc mana, de onde certos autores julgaram poder de­
rivar todos os fenômenos religiosos. Para os melanésios, mana 
é a força misteriosa e ativa que possuem alguns indivíduos e ge- 
ralmcntc as almas dos mortos e todos os espírito$:T. O ato gran­
dioso da criação cósmica só foi possível pelo mana da divindade; 
lambem o chefe do clã dispõe da sua dose dc mana. c sc os ingle­
ses submeteram os maoris foi porque o seu mana era mais fone, 
assim como o oficio do missionário cristão possui mana superior 
ao dos ritos autóctones. Apesar de tudo, também as latrinas pos­
suem o mana, graças ao caráter dc “ receptáculo de força” que 
abrigam não só os corpos humanos como as suas excreções-'*.
Mas os objetos c os homens têm mana porque o receberam 
de determinados seres superiores, ou seja. porque participam mis- 
ticamente do sagrado e na medida em que dele participam. "Se 
sc verifica que uma pedra encerra uma força excepcional é por­
que qualquer espírito a cia sc associou. Ura osso de um morto 
possui mana porque a alma do mono ai sc encontra; determina­
do indivíduo pode manter uma relação

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