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1 CÍRCULO DE BAKHTIN B r u n o B a s i l i o C a r d o s o d e L i m a W A L L A C E D A N T A S ( o rgan i z ador e s ) R E L A T O S , E X P E R I Ê N C I A S E R E L A Ç Õ E S D I A L Ó G I C A S P E S S O A I S C O M O C Í R C U L O . 2 3 Bruno Basilio Cardoso de Lima Wallace Dantas (Organizadores) CÍRCULO DE BAKHTIN relatos, experiências e relações dialógicas pessoais com o círculo 4 Copyright © dos autores Todos os direitos garantidos. Qualquer parte desta obra pode ser reproduzida, transmitida ou arquivada, desde que sejam levados em conta os direitos dos autores. Círculo de Bakhtin: relatos, experiências e relações dialógicas pessoais com o círculo / organizadores, Bruno Basilio Cardoso de Lima, Wallace Dantas - São Paulo: Mentes Abertas, 2021. 184 p. : ii. ISBN: 978-65-87069-55-5 DOI: http://www.doi.org/10.47180/978-65-87069-55-5 1. Círculo de Bakhtin. 2. Relatos. 3. Experiências. 4. Dialogia. I. Título. II Lima, Bruno Basílio Cardoso de. III. Dantas, Wallace. CDD 370 Capa: Ivo Di Camargo Junior Diagramação: Déborah Letícia Ferreira de Sousa A Mentes Abertas é associada ABEC. 5 SUMÁRIO PREFÁCIO 11 MIKHAIL BAKHTIN: Um pensador fundamental ao campo das Ciências Humanas Alcione Gomes de Almeida 13 EM BUSCA DE COMPLETUDE, ENCONTREI INACABAMENTO: um professor de línguas e a teoria dialógica Andre Cordeiro dos Santos 19 BAKHTIN: Um encontro pessoal com uma teoria das vozes Francisco Leilson da Silva 25 O MUNDO SOB A ÉGIDE DA SUÁSTICA: relato de uma pesquisa investigativa acerca de partidos, organizações e facções supremacistas brancas e (neo)nazistas Marcos Alexandre Fernandes Rodrigues 31 MEMÓRIA DE FUTURO EM BAKHTIN E A COMPREENSÃO DAS HISTÓRIAS DE VIDA Michell Pedruzzi Mendes Araújo 37 MEUS OBJETOS DE PESQUISA E O CÍRCULO Renata Cristina Alves 45 BAKHTIN E O CÍRCULO: algumas palavras Ida Maria Marins 49 6 A BIBLIOTECA ESCOLAR INFANTIL AOS OLHOS DO CÍRCULO DE BAKHTIN Marina Moreira 55 BAKHTIN VAI AO CINEMA Maria Carolina Silva de Oliveira 61 BAKHTIN E O TEXTO EM SEU STATUS NASCENDI: uma história de dialogia em registro Márcia Helena de Melo Pereira 65 O CÍRCULO DE BAKHTIN: reflexões e usos na análise do discurso da imprensa Thomas Dreux Miranda Fernandes 71 ESCOLHER UMA PALAVRA É TOMAR UMA POSIÇÃO Luiz Bosco Sardinha Machado Júnior 81 A VIDA DA PALAVRA Magno Santos Batista 87 ALTERIDADE E EMPATIA NA EDUCAÇÃO INFANTIL: reflexões para se pensar as relações entre crianças, famílias, professores e formação docente Waleska Maria Costa Betini 91 PRÁTICA: caminhos assertivos em Bakhtin Adriano Julio Nogueira 97 7 ELO DAS TEORIAS BAKHTINIANAS EMBASADAS NA PRÁTICA DOCENTE Adriana Randi Silva 101 BAKHTIN DENTRO DA EDUCAÇÃO FÍSICA Bruno Basilio Cardoso de Lima 107 EXPERIÊNCIA E REFLEXÕES DO PAPEL DO CÍRCULO DE BAKHTIN NA FORMAÇÃO CONTINUADA Joice Castilho Silva Rivera 111 IDEOLOGIA LINGUÍSTICA BAKHTINIANA NO DISCURSO DE INTÉRPRETES DE LIBRAS: tem professor que não tá nem aí Gabriela Serenini Prado Santos Salgado 117 AS CONTRIBUIÇÕES CULTURAIS E LINGUÍSTICAS DE MIKHAIL BAKHTIN Renata Meury Rodrigues Ferrei 123 O FAZER DOCENTE FRENTE AO AUTISMO A PARTIR DA PERSPECTIVA BAKHTINIANA Thacio Azevedo Ladeira 129 UMA JANELA E MÚLTIPLOS MUNDOS PARA O CARNAVAL Marcelo Fecunde de Faria 135 8 A PALAVRA IDEOLÓGICA É O MEU DOMÍNIO SOBRE O MUNDO Wallace Dantas 141 CONTRIBUIÇÕES DE NOÇÕES DOS GÊNEROS DISCURSIVOS NAS PRÁTICAS DE ENSINO Wesley Pinto Hoffmann Betiza Gonçalves Scortegagna 145 BAKHTIN, GÊNEROS DO DISCUSO E ENSINO DE LÍNGUAS ESTRANGEIRAS Ícaro Luís Fracarolli Vila 151 ALTERIDADE E DIALOGISMO EM BAKHTIN E A COMPREENSÃO RESPONSIVA EM ESTUDOS DE CASO CLÁSSICOS Dirlan de Oliveira Machado Bravo Michell Pedruzzi Mendes de Araújo 157 A TEORIA DE BAKHTIN COMO GUIA PARA AUTOCONSTRUÇÃO DO AUTOR-ESCRITOR Andreiza Aparecida dos Santos Rodrigues 161 UM NOVO OLHAR SOB A TEORIA BAKTHIANA Fabiana Feliciano Zamariolo 169 9 APRENDIZAGEM CRÍTICO-REFLEXIVA NO ENSINO DE LÍNGUAS EM UMA PERSPECTIVA BAKHTINIANA Lucília Teodora Villela de Leitgeb Lourenço 173 CÍRCULO DE BAKHTIN: UM ADVENTO! Ivo Di Camargo Jr. Everton William de Lima Silva Fábio Marques de Souza 181 UM POSFÁCIO OU “PALAVRAS QUE SE CONSTROEM NO TEMPO” 185 10 11 Este livro se propõe a descrever os relatos de alunos e profes- sores de diferentes cursos e formações, envolvidos no grupo de pesquisa “O Círculo de Bakhtin”, revelando histórias, valores e significados a partir de experiências vividas com o filósofo russo Mikhail Bakhtin. Não se pretende fazer nenhum artigo científico ou análise narrativa, embora o material reunido nessas páginas pode ser usado desta forma. Porém, ao constituir-se como um caminho de experiências, valores e reflexões de um processo de formação filosófica e quanto esses conhecimentos nos formaram enquanto seres. Numa época em que tanto se precisa de alterida- de e humanização, torna-se fundamental conhecer estas histórias que vão bem além dos muros da Universidade e escalam a vida de pessoas reais, com sujeitos com os quais a produção de conhe- cimento por Bakhtin pode ser concretizada. Bruno Basilio Cardoso de Lima PREFÁCIO 12 13 MIKHAIL BAKHTIN: Um pensador fundamental ao campo das Ciências Humanas Alcione Gomes de Almeida1 Quando ingressei no curso de doutorado, em 2019, mais especificamente na ocasião em que havia chegado o momento de repensar meu projeto de pesquisa, tive a feliz ideia de embasar a minha escritura também em teses formuladas pelo notório filósofo da linguagem, de origem russa, Mikhail Mikhailovitch Bakhtin, preocupando-me, ademais, com as atividades desenvolvidas pelo Círculo de estudos do mesmo autor. Foi como obter um potente farol, onde antes comandava a insegurança, e que, mal sabia eu, pouco me permitia ver. Compartilho, assim, neste breve texto, alguns fundamentos que são considerados pilares no desenvolvimento do pensamento bakhtiniano, e, que têm contribuído sobremaneira com o desenvolvimento de pesquisas no campo das ciências humanas em variadas regiões do país. Considero de grande importância resgatar algumas considerações pontuais de Fiorin (2008, p. 11), que, desde o início da obra, explicita uma visão positiva e intensa a respeito da figura e das escrituras de Bakhtin. Trata-se de um 1 Doutoranda em Performances Culturais na Universidade Federal de Goiás, Goiânia, Brasil. E-mail: alcionegomes3@gmail.com 14 autor que sustenta uma obra “fascinante, inovadora, rica, mas ao mesmo tempo, complexa e difícil. Várias razões tornam sua leitura árdua e trabalhosa”. O estilo da escrita de Bakhtin revela um autor compromissado com a tradição do pensamento filosófico que analisa os fenômenos, observa e pensa a realidade do ponto de vista da “diversidade, heterogeneidade, vir a ser, inacabamento, dialogismo” (FIORIN, 2008, p. 11). Conforme mencionei, os estudos de Bakhtin são essenciais ao desenvolvimento de minha pesquisa em nível de pós-graduação. De acordo com as ideias do estudioso, destaco as seguintes premissas: a língua materializa-se no discurso como um fenômeno sociocultural, histórico e ideológico, sendo que toda interação verbal tem caráter dialógico e, portanto, só tem existência em relação a outros discursos. Por conseguinte, a linguagem teatral e cinematográfica a ser abordada em minha tese, que pode ser verbal e não verbal, será tratada dialogicamente, observando-se elementos vários que corroboram com a apreensão de significados de diferentes discursos, uma vez que o conceito de dialogismo age em diferentes níveis e de forma interdisciplinar –, podendo abarcar elementos culturais, imagéticos, sociais, históricos. Outro conceito proposto por Bakhtin, definido como “reação responsiva”, está relacionado à intervenção crítica do público receptor da obra, que, por sua vez, se constitui de diversas formas 15para atrair de maneira didática a apreciação do(s) “outro(s)” e assim exercer: “influência educativa [sobre os leitores], sobre suas convicções, respostas críticas, influência sobre seguidores e continuadores” (BAKHTIN 2011, [1992] p. 279). Em conformidade com Bakhtin, a linguagem ou enunciação é fundamentalmente dialógica – o enunciado dirige-se a alguém –, é dependente de contexto, e tecida em uma dimensão interativa, social, histórica e cultural que jamais se rompe. Cada locutor produz o seu discurso dentro de um contexto sócio-ideológico, a partir de seu entorno e perspectiva social, pois o direciona a um público social definido. O conceito de dialogismo surgiu no meio literário, podendo ser aplicado a outras mídias, tal qual o cinema, visto que, nessa arte, também aparecem diversas vozes e performances que interpelam ao público – é a resposta desse público que constrói o significado. Nesse contexto, empreender uma análise sobre a ação de enunciação corresponde às linguagens tanto verbal quanto não verbal de uma dada situação. Aplicado ao contexto da obra cinematográfica, é possível pensar o conceito de dialogismo como “multidimensional e interdisciplinar”. Ao ser empregado para a análise de obras cinematográficas, apresenta diversas possibilidades de abordagem, quais sejam, entre as próprias imagens, ou 16 em relação a sons, luz e sombra; em relação ao texto dos personagens, aos cenários, à encenação dos atores, bem como a composição das sequências e das tomadas de um filme (ABDALA JR., LAGE, 2013, p. 6). Diante do exposto, é primário, em meus estudos, considerar a premissa bakhtiniana de que, todo indivíduo experimenta tanto o nascimento biológico quanto o nascimento social. Só é possível pensar a singularidade em sintonia com o coletivo, “[o] eu depende das relações com os outros, mas não é entendido como paciente do agir dessas relações, mas como um agente que é por elas influenciado, mas também as altera, as ressignifica, dá-lhes feição” (BRAIT, 2005, p. 148). Meu corpus de análise inclui, principalmente, o estudo de obras literárias do dramaturgo Plínio Marcos e filmes adaptados dessas fontes em diferentes décadas, cada qual com suas particularidades e abordagens distintas. No decorrer das reflexões a serem tecidas ao longo da tese, considerarei que: [A]s palavras funcionam como agente e memória social; as palavras são tecidas por uma multidão de fios ideológicos, contraditórios entre si, pois frequentaram e se constituíram em todos os campos das relações e dos conflitos sociais. [...] 17 O signo verbal não pode ter um único sentido, mas possui acentos ideológicos que seguem tendências diferentes, pois nunca consegue eliminar totalmente outras correntes ideológicas de dentro de si. (BRAIT, 2005, p. 172). Para concluir, em consonância com as perspectivas expostas, é interessante apontar, ademais, que ao “tratamento reificante do homem contrapõe-se o dialogismo, procedimento que constrói a imagem do homem num processo de comunicação interativa, no qual eu me vejo e me reconheço através do outro, na imagem que o outro faz de mim” (BRAIT, 2005, p. 194). Em qualquer investigação, o propósito do investigador, não é o de conhecer a si mesmo, isto é, tomar conhecimento de seu próprio eu com toda a sua complexidade, a ideia, é conhecer o “outro”, o “estranho”, o que ainda não é totalmente conhecido, mas que, sabidamente, na perspectiva bakhtiniana, trata-se do “eu” estranho. 18 REFERÊNCIAS ABDALA JR, Roberto; LAGE, Micheline Madureira. História & Cinema: Performances e Diálogos Audiovisuais. KARPA: Journal of Theatricalities & Visual Culture, n. 6, 2013. Disponível em: http://web.calstatela.edu/misc/karpa/KARPA6.1/Site%20Folder/ abdala1.html. Acesso em: 20 set. 2019. BAKHTIN, Mikhail. Estética da Criação Verbal. 6. ed. São Paulo: WMF Martins Fontes, 2011. BRAIT, Beth (org.). Bakhtin: conceitos-chave. São Paulo: Contexto, 2005. FIORIN, José Luiz. Introdução ao pensamento de Bakhtin. São Paulo: Ática, 2008. 19 EM BUSCA DE COMPLETUDE, ENCONTREI INACABA- MENTO: um professor de línguas e a teoria dialógica Andre Cordeiro dos Santos1 Aos dezoito anos, ingressei na Universidade Federal Rural de Pernambuco, na Unidade acadêmica de Garanhuns, no curso de Letras português-inglês e suas respectivas literaturas. Desde o início do curso, dado o fato de eu ser de origem humilde e ter tido poucas oportunidades até ali, tentei me esforçar o máximo que pude para aprender o máximo possível e, devido a esse esforço, fui convidado, no primeiro ano de curso, por uma professora da instituição, Aliete Rosa, para ser seu bolsista de iniciação à docência. Até esse momento, eu nada sabia a respeito da teoria do chamado Círculo de Bakhtin. Sendo bolsista de iniciação à docência, a professora Aliete Rosa me apresentou ao mundo da pesquisa, pois todo o processo de atuação como bolsista se deu a partir de muito estudo e discussão em grupo, com os demais bolsistas, sobre teorias que nos ajudariam a pensar as nossas práticas de ensino e aprendizagem. Esse estudo e essas discussões me levaram a começar uma relação – que vem crescendo desde então – com a teoria dialógica. Essa 1 Professor de língua inglesa do Instituto Federal de Alagoas, Campus Piranhas. Estrela de Alagoas – Ala- goas, Brasil. E-mail: andre.cordeiro@ifal.edu.br. 20 relação se iniciou com o estudo do texto sobre os gêneros do discurso – Bakhtin (2016), na versão mais recente – e, partindo desse texto, comecei meus primeiros passos de investigação científica com reflexões sobre as práticas de ensino de língua por mim executadas no âmbito do programa de iniciação à docência. Com base nessas primeiras investigações, que deram origem a trabalhos científicos apresentados em formato de painéis e comunicações orais em alguns eventos, comecei a atentar de forma mais específica aos modos como os alunos tomavam os discursos de outrem para a composição de seus enunciados – o que evidenciava o plurilinguísmo de que fala Bakhtin (2015). Naquele momento, considerando as reflexões que vinha fazendo sobre as práticas de ensino e aprendizagem de iniciação à docência, confesso que carregava ainda em mim a crença de que, quanto mais eu aprendesse sobre a teoria dialógica de linguagem, mais preparado e acabado como professor eu estaria. Com esse intuito, adentrei o universo da concepção dialógica de linguagem e, como trabalho de conclusão de curso, analisei as relações dialógicas que se estabeleciam entre leitores em jornais (SANTOS, 2013), suporte usado como meio ao trabalho docente com alunos do projeto de iniciação à docência. Finalizada essa primeira etapa da minha formação e estabelecidas as primeiras relações com a teoria dialógica, 21 ingressei, para mais uma etapa, no curso de pós-graduação na Universidade Federal de Pernambuco, para realizar meu curso de mestrado em Linguística, com área de concentração na Teoria Dialógica dos Discursos. Durante o mestrado, dei um mergulho profundo nos textos do Círculo de Bakhtin, lendo todos os escritos do Círculo em circulação na época, em português. Esse mergulho me permitiu ter uma visão mais ampla e acurada da teoria dialógica, por meio do estudo dos modos de apropriação do discurso de outrem na composição de enunciados jornalísticos e seus consequentes efeitos ideológicos de sentido, sob a orientação da professora Siane Rodrigues (SANTOS, 2016). O aprofundamento na Teoria Dialógica, apesar de propiciar um bom conhecimento da teoria, fez-me perceber que eu ainda não me sentia um professor pronto e acabado para o enfrentamento das situações de ensino e aprendizagem encontradas nos diferentes contextos escolares. Diante disso, segui estudos, em nível de doutorado, na linha de Linguística Aplicada, com pesquisa sobre os modos de apropriação do discurso de outrem na escrita escolarem língua inglesa, tomando, como ponto de partida, minha própria prática dialógica de ensino de língua (SANTOS, 2020). Esse período de doutorado, foi um momento importantíssimo de revisitação dos escritos do Círculo, por meio da transposição das noções da Teoria Dialógica de Linguagem ao contexto de ensino 22 de uma língua outra-estrangeira (a inglesa). Esse processo de formação, perpassado por algumas produções científicas que deram ao longo dessa jornada, fizeram- me chegar ao ponto no qual estou: como professor-pesquisador que durante toda uma jornada acadêmica buscou a completude como professor, encontrei o inacabamento; compreendo que sou um professor inacabado e em constante processo de reconstituição de si mesmo a partir das vivências da sala de aula. A teoria dialógica me fez ver que, como sujeito, não posso viver do meu acabamento, pois sou sujeito sempre aberto ao processo dialógico de constituição de mim mesmo como ser- evento (BAKHTIN, 2010). Nesse processo, todas as instâncias que perpassam os diferentes contextos de ensino nos quais tenho desenvolvido práticas docentes, condicionam meu agir e, mais que isso, as vozes que trago comigo, como constitutivas de minha consciência, entram em interações com vozes dos contextos imediato (dos sujeitos-alunos, do contexto específico no qual as práticas de ensino e aprendizagem se dão) e mais amplo (vozes sociais de outros contextos que se fazem elos dialógicos às práticas de – ensino de – linguagem em sala de aula). Nesse processo dialógico, faço-me, refaço-me e nunca me vejo acabado. 23 REFERÊNCIAS BAKHTIN, M. Para uma filosofia do ato responsável. Tradução do italiano de Valdemir Miotello e Carlos Alberto Faraco. São Carlos, SP: Pedro & João Editores, [1919/20] 2010. BAKHTIN, M. Teoria do Romance I: a estilística. Tradução de Paulo Bezerra. São Paulo: Editora 34, 2015. BAKHTIN, M. Os gêneros do discurso. Organização, tradução, posfácio e notas de Paulo Bezerra; notas da edição russa de Serguei Botcharov. São Paulo: Editora 34, 2016. SANTOS, A. Análises Textuais e Discursivas: o gênero comentário virtual jornalístico e sua natureza dialógica em foco. 2013. 47f. Trabalho de Conclusão de Curso (Licenciatura em Letras português/inglês e suas respectivas literaturas) – Unidade Acadêmica de Garanhuns, Universidade Federal Rural de Pernambuco, Garanhuns. SANTOS, A. O enunciado como zona de diálogo entre vozes e valores: uma abordagem da relação entre fazer jornalístico e valorações sócio-ideológicas. 2016. 172f. Dissertação (mestrado em Letras-Linguística) – Centro de Artes e Comunicação, Universidade Federal de Pernambuco, Recife. SANTOS, A. Processos de apropriação do discurso de outrem em enunciados escola- res escritos em língua inglesa. 2020. 183f. Tese (mestrado em Linguística) – Facul- dade de Letras, Universidade Federal de Alagoas, Maceió. 24 25 BAKHTIN: Um encontro pessoal com uma teoria das vozes Francisco Leilson da Silva (PPGEL-UFRN) O meu processo de conhecer a análise dialógica do discurso (ADD) começou por eu ser um professor responsável que assumiu algumas aulas de Língua Portuguesa. Esse acidente de percurso promoveu um desejo de buscar conhecimento para bem ensinar, para realizar com afinco meu trabalho. Foi umas das poucas vezes que me senti adequado, porém, estava lá como pedagogo e escutava sempre que o profissional de Letras era quem lidava adequadamente com o texto. Uma esperança leve e boba levantou-se em meio ao caminho perdido e sem sentido no qual eu estava. Assim, as palavras ganharam minha vida, ganhei identidade e forma; como no vale dos ossos secos, ao ouvir as palavras do profeta, eu também ganhei carnes e vida. Conheci uma professora doutora chamada Maria da Penha Casado Alves, que falou de um teórico chamado Bakhtin e uma concepção de língua/linguagem que aponta para o uso dos sujeitos na constituição do discurso, que possui uma organização que não fica estagnada. Apresenta-se, assim, de forma atualizada com as teorias, não podendo ser entendida de forma acabada, vinculada à 26 rigidez de uma sistematização, uma vez que é transformada pelas falas do uso cotidiano, logo corroborado pela seguinte afirmação: Os indivíduos não receberam a língua pronta para ser usada; eles penetram na corrente da comunicação verbal; ou melhor, somente quando mergulham nessa corrente é que sua consciência desperta e começa a operar [...] Os sujeitos não adquirem sua língua materna: é nela e por meio dela que ocorre o primeiro despertar da consciência. (BAKHTIN, 2010, p. 108). Dessa forma, a linguagem é compreendida numa perspectiva de totalidade, deixando à parte a ideia de um sistema linguístico abstrato e sendo entendida como um fenômeno social fruto das interações entre os sujeitos e o diálogo interpessoal. Por isso, todo tipo de comunicação ganha status de diálogo, na relação das conversas entre as pessoas; no decorrer da leitura de um livro; nas mais variadas produções de comunicação. Esse uso da língua/linguagem está diretamente relacionado à comunicação em todas as suas formas, pois tudo o que está na dimensão do uso para o entendimento torna-se linguagem. Por isso, a produção do texto (oral ou escrito) é resultado de situações concretas que se realizam por meio da manifestação do verbo, 27 que é enunciado a partir do contexto social do sujeito, tornando- se real expressão de quem utiliza a linguagem em sua comunidade linguística, sendo descrita da seguinte forma: [...] o uso da língua se efetua em forma de enunciados (orais e escritos, concretos e únicos “proferidos” pelos participantes de uma ou outra esfera da atividade humana que o enunciado não se repete, pois é um evento único (pode somente ser citado); que o enunciado é a unida real da comunicação discursiva, pois o discurso só pode existir na forma de enunciados; e que o estudo do enunciado como unidade real da comunicação discursiva permite compreender de uma maneira mais correta a natureza da unidade da língua (a palavra e a oração por exemplo). (RODRIGUES, 2005, p. 155). Tal maneira de se conceber a linguagem e uso da língua permite ao indivíduo perceber a presença das variadas vozes em toda parte. As relações sociais de poder, a cultura e as próprias ações políticas são perpassadas pela linguagem, sendo resultado da interação humana, pois vão além de mero instrumento ou meio, como afirma Kramer (2003), produção humana acontecida historicamente, construída nos diálogos que têm vida, permitindo o pensar ações futuras e, até mesmo, a constituição do consciente. 28 Aquelas horas passaram rápido na presença daquela admiradora de Frida Kahlo. O meu encontro com alguém que classifiquei como uma profissional maravilhosa e uma pessoa real na academia veio como uma purificação de minhas experiências ruins com orientadores e professores da academia. Fácil de explicar que foi “assim como ver o mar” da teoria que me completa e anuncia por meio do acabamento do outro quem eu sou e como percebo o mundo que me rodeia. Aprendi infinitamente nessas moradas, porém, eu jamais imaginaria que estaria mais perto da teoria bakhtiniana mais adiante. Comecei a estudar Bakhtin sem muitos recursos. A solidão sempre está presente na vida de um pesquisador. Quando as dúvidas estavam no grau de quase incompreensão, corria para pedir socorro à professora Penha, até mesmo a colegas que já tinham estudado a teoria, por fim, fui aprovado. As disciplinas do mestrado pareciam cada dia mais difíceis, mais complicadas, afinal, o nível era de doutorandos, os mestrandos que se adaptassem. Minha formação era em língua espanhola, muito ensino de idioma e pouca teoria, o que me levava a ler muito e estudar muito mais que os outros para acompanhar aquele nível. No último passo, você descansa, fica feliz, celebra a vitória da caminhada, compartilha comtodos as alegrias de ter executado 29 a tarefa. Mas, no último olhar, tudo se encerra, quando se mira aquele espaço pela última vez; fica um pouco de tudo em nós e tudo de nós fica naquele ambiente. Entretanto, o tempo passou, consegui entrar no doutorado, ainda Bakhtin está comigo e a oralidade é meu objeto de vida e pesquisa. Sempre dialógico, sempre ouvindo ativamente e falando para resistência. Como canta Danilo Caymmi: “eu guardo em mim dois corações”, um que é da docência e outro marxistamente valorado e vozeado por muitos discursos. REFERÊNCIAS BAKHTIN, M. Estética da criação verbal. 6. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2010. FREITAS, M. T. A perspectiva sócio-histórica: uma visão humana da construção do conhecimento. In: FREITAS, M. T.; JOBIM E SOUSA, S.; KRAMER, S. (org.). Ciências Humanas e Pesquisa: Leituras de Mikhail Bakhtin. São Paulo: Cortez, 2003. p. 26-38. RODRIGUES, R. H. Análise de gêneros do discurso na teoria bakhtiniana: algumas questões teóricas e metodológicas. Linguagem em (Dis)curso, Tubarão, v. 4, n. 2, p. 415-440, jan./jun. 2004. Disponível em: http://aplicacoes.unisul.br/ojs/index.php/ Linguagem_Discurso/article/viewFile/272/286. Acesso em: 8 out. 2020. 30 31 O MUNDO SOB A ÉGIDE DA SUÁSTICA: relato de uma pesquisa investigativa acerca de partidos, organizações e facções supremacistas brancas e (neo)nazistas Marcos Alexandre Fernandes Rodrigues1 Discurso das Mídias em Análise Dialógica: caminhos teóricos e metodológicos No ano de 2020, encontrei na superfície da internet uma célula (neo)nazista denominada Nacional Socialismo em Rede (NSR). Refere-se a um blogue de nacionalidade portuguesa cujas funções me empenhei em identificar: (i) servir de catálogo mundial de páginas da web (sítios eletrônicos, fóruns, blogues) supremacistas brancas e (neo)nazistas, intrincando, assim, uma articulada rede (inter)nacional de ódio; (ii) propiciar uma formação político- histórico-ideológica para que, nesse sentido, pudesse ser possível o recrutamento de novos membros, seja para compartilhar o conteúdo, seja para participar dessa mesma rede; e (iii) fomentar o ódio contra etnias judia, negra, autóctones em articulação com um projeto cis(hétero)normativo do patriarcado branco europeu. 1 Aluno de graduação em Letras Português e Francês e suas respectivas Literaturas pela Universidade Federal do Rio Grande (FURG). Bolsista de Iniciação Científica pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado do Rio Grande do Sul (FAPERGS). Rio Grande – Brasil. Endereço eletrônico: rodmaf2@gmail.com 32 A minha compreensão dessa arena de vozes segregadoras foi respaldada por intermédio de uma visão de mundo, de sociedade, de ser humano e de língua(gem) promulgada pelo Círculo de Bakhtin-Volóchinov-Medviédev. Mobilizei conceitos como relações dialógicas, enunciação/enunciado, vozes sociais e signos ideológicos para avaliar dialógica e axiologicamente a rede discursiva de supremacismo branco e (neo)nazismo. No (per)curso do tempo, e com base em minha compreensão ativamente responsiva, desenvolvi um banco de dados com centenas de páginas de ideologias autoritariamente congêneres recorrendo aos endereços eletrônicos interiores e exteriores do blogue português. As (inter)relações dialógicas me evidenciaram um projeto político para o mundo, no qual, em seu combate e linchamento racial, fundado em um nós contra um eles, a tal raça branca comandaria governos e as ditas raças negra e judia seriam expatriadas ou mortas para o que os supremacistas concebem por uma nova solução. Mulheres brancas e cisgêneras serviriam funcionalmente para e tão somente reproduzir a determinada raça ariana. No ano de 2020, e seguindo essa fundamentação teórico- metodológica, pude usar o discurso como prova de um projeto de expurgo mundial nestas oportunidades: Universidade Federal do Rio Grande (FURG) - Signos ideológicos de supremacismo e 33 ódio: movimento (neo)nazista em rede; Universidade Federal de Passo Fundo (UPF) - As pontas da suástica: diálogo (neo)nazista entre o blog Nacional Socialismo em Rede e o site NSDAP/AO; Universidade Federal de São Carlos (UFSCar) - Observações sobre o blog combat18florida: vozes de ódio e supremacismo branco em diálogo (neo)nazista; Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) - Análise dialógica de blog brasileiro de supremacismo branco e (neo)nazismo; Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) – Apontamentos sobre o Afrikaner Weerstand Beweging: entre vozes do apartheid e do (neo)nazismo; Universidade Estadual do Maranhão (UEMA) - Partido Nacional Socialista dos Trabalhadores Brasileiros: o Partido (Neo)nazista do Brasil?; Instituto Federal da Bahia (IF-BA) - Investigações sobre rede húngaro-polonesa (neo)nazista: signos de ódio, terror e crueldade; Universidade Federal do Ceará (UFC) - The Loyal White Knights, White Camelia Knights of the Ku Klux Klan e Ku Klos Knights: fios dialógicos das facções supremacistas brancas; e Universidade Federal de São Carlos (UFSCar) - O Partido (Neo) nazista do Brasil sob a órbita da linguística forense: o discurso como vestígio de apologia ao racismo. 34 Linguagem em Atividades no Contexto Escolar (LACE) Sempre começa do mesmo jeito. Panfletos ou adesivos racistas aparecem nas paredes de locais onde as pessoas vão pra se divertir ou são distribuídos nas casas das pessoas. Relatos de ataques e atos de intimidação contra pessoas negras aparecem nos noticiários. Rumores sobre neonazistas e apologistas da Supremacia Branca andando por perto de escolas. Aumenta o índice de incidentes de surras em gays. O pessoal do hip- hop, punks e skinheads antirracistas entram em conflito com nazistas nas ruas. Pessoas suspeitas começam a apoiar campanhas anti-imigração. Uma controvérsia local estoura sobre questões raciais, e a Klu Klux Klan e grupos nazistas planejam uma reunião para intensificar a tensão. Logo vira uma bola de neve: grupos nazistas organizam shows, racistas concorrem a cargos públicos, neonazistas invadem shows, começam brigas e atacam centros políticos esquerdistas, exercendo domínio sobre a juventude local e sobre as ruas. A pressão aumenta... é hora de contra-atacar! (CRIMETHINC, 2004, p. 32). Da FURG a PUC-SP, ainda em fase de discussões, comecei a pensar numa ação social operada em duas fases de atuação. Na 35 primeira delas, conhecer a percepção dos corpos discentes e do- centes, de determinadas instituições de educação básica, nos es- tados do Rio Grande do Sul e São Paulo, concernente ao objeto de minha linha de pesquisa. Para além disso, o objetivo é, igualmen- te, a coleta de materialidade semiótica a partir das posições ativas e axiológicas de quem comporá o universo da pesquisa. Para tan- to, o fornecimento de um Formulário Google com questões enu- meradas de 1 a 15 em que se demanda uma posição em relação ao supremacismo branco e ao (neo)nazismo. Na segunda fase, criar uma ação didático-pedagógica nas mesmas instituições de educação. Os objetivos a serem alcançados são estes: (i) fomentar o pensamento crítico e humanista; e (ii) desacreditar e desestabi- lizar organizações de terrorismo supremacista que tentam se ins- talar no Brasil, tais como Blood & Honour, Ku Klux Klan, Aryan Nations. Como procedimento metodológico, usar-se-ia uma base vygotskiana e freiriana. 36 37 MEMÓRIA DE FUTURO EM BAKHTIN E A COMPREENSÃO DAS HISTÓRIAS DE VIDA Michell Pedruzzi Mendes Araújo1 A tese de doutoramento intitulada “Assim como as borbo- letas, Bianca e a Síndrome de Turner” foi defendida por mim, no ano de 2020, no Programa de Pós-graduação em Educação da Universidade Federal do Espírito Santo. Como objetivo geral, busquei compreender a história de vida de Bianca, uma jovem que possui a síndrome de Turner2. Neste processo de escutar responsi- vamente um sujeito e compreender a sua história devida, recorri a conceitos-chave de Bakhtin, quais sejam: enunciação, alterida- de, dialogismo, polifonia e memória de futuro (ARAÚJO, 2020). Devido à relevância que teve para o desenvolvimento da tese em questão, trago à tona nesse texto a memória de futuro em Bakhtin e as potencialidades desse conceito para o desenvolvi- mento de estudos que se configuram metodologicamente como histórias de vida. 1 Professor adjunto da Faculdade de Educação- Universidade Federal de Goiás (FE/UFG). Goiânia- Goiás, Brasil. Doutor em Educação (Ufes). E-mail: michellpedruzzi@ufg.br. 2 Síndrome genética rara que acomete apenas o sexo feminino. Trata-se de uma aneuploidia- síndrome que envolve alterações cromossômicas numéricas. O cariótipo do indivíduo é 45, X0 (monossomia do X). Fenotipicamente, as mulheres que possuem essa síndrome apresentam: palato em ogiva (“oval”), baixa imunidade, ptose (caimento das pálpebras sobre os olhos), pescoço alado (excesso de pele no pescoço), tó- rax largo, implantação baixa da raiz do cabelo, unhas pequenas, metacarpo curto, hipotireoidismo, válvula aorta bicúspide, edemas nos vasos linfáticos (linfedemas), ovários em fita, útero infantil, esterilidade etc. 38 Tendo em vista que, no processo de contar a sua história, o sujeito resgata memórias do passado e é regido pelas memórias do futuro, optei por utilizar o conceito de memória de futuro de Bakhtin (2010). De acordo com o autor, “a memória do passado é submetida a um processo estético, a memória do futuro é sempre de ordem moral” (BAKHTIN, 2010, p. 167, grifos nossos). Partiu-se do pressuposto de que as memórias não são objetos que guardamos em um armário, mas que elas transitam entre nós, estão entre dois ou mais sujeitos, logo, “eu para mim mesmo sou esteticamente irreal” (BAKHTIN, 2010, p. 174). Assim, é necessário que o outro, com seu excedente de visão, me dê acabamento que, na condição de temporário, nos invita a responder a partir da nossa consciência que é única. Quando se objetiva compreender práticas discursivas concretas, a memória de futuro parece-nos fecunda para cultivar imagens de futuros construídas discursivamente em histórias de vida de pessoas com síndromes raras como a de Bianca. Por esse prisma, para compreensão do conceito de memória em uma perspectiva bakhtiniana, devemos pensar na dimensão de temporalidade. Amorim entende essa dimensão da seguinte maneira: 39 a construção do sentido de um enunciado-objeto é sempre efeito de movimento. Não apenas movimento no espaço, isto é, no jogo que põe e dispõe em cena as posições enunciativas, mas um movimento no tempo que torna presente o passado e o futuro. E essas duas direções temporais do movimento se articulam por meio de uma posição enunciativa específica da teoria bakhtiniana que é aquela expressa no conceito de sobredestinatário. De acordo com esse conceito, a obra se destina para além de seu contexto e essa destinação é tanto criadora de futuro como recriadora de passado. De um mesmo gesto, passado e futuro se encontram e se nutrem (AMORIM, 2009, p. 13, grifos nossos). Bakhtin (2010), ao discorrer sobre memória, elucida que ela é sempre de passado e de futuro, porque ambas andam juntas, ou seja, são complementares. Quando enuncia, o ser humano resgatam os valores já estabelecidos, mas ao evocar os valores ou significações, ao mesmo tempo, reinventa-se o sentido, haja vista que o indivíduo contribui com o tom, a expressão e o desejo do seu projeto discursivo. A memória de passado é o que se pode chamar de atual, contemporânea; já a memória de futuro é utópica, assim, não está concretizada. A primeira relaciona-se com a estética, com a constituição do sujeito, já a segunda tem 40 a ver com a moral, com a revisão e a reapresentação dos valores (CAMARGO JUNIOR, 2009). Nesse caminho, a memória de futuro é colocada como a imagem de um sujeito criativo, portanto, aquele que possui responsabilidade moral. O futuro garante a justificação porque é ele que reestrutura o passado, o presente e mostra a incompletude. Ademais, exige realização futura e não apenas uma continuação orgânica do presente, mas como sua eliminação essencial, sua revogação. Assim, cada momento que vivemos é conclusivo e, ao mesmo tempo, inicial de uma nova vida (BAKHTIN, 2010). Diante desse contexto, “podemos avaliar o passado sem, contudo, afundar-nos por causa dele. Isso porque a revisão do passado pode gestar novas, inusitadas e melhores relações no futuro” (MELO, 2005, p. 66). Com relação ao futuro, é dele que “tiramos os valores com que qualificamos a ação do presente e com que estamos sempre revisitando e compreendendo o passado” (GERALDI, 2010, p. 109). Para Amorim (2009), a memória de futuro é um conceito que indica a memória do herói, e não do autor. De forma distinta deste, o herói está sempre em “perpétuo inacabamento em relação a si mesmo e seu olhar porque sua memória está comprometida com o futuro, com o por-vir, com o que pode vir a ser” (AMORIM, 2009, p. 10). Nesse caminho, “a projeção do futuro sugere 41 subjetividades não assujeitadas ao passado, que precisam saber lidar com a indeterminação de um futuro, previsto no presente” (COLLARES et al., 2006, p. 57). Em nossa vida estamos imersos em um eterno vir a ser. Assim, pelo conceito de “memória de futuro” o passado está à minha frente, o futuro está dentro de mim, é o que está a se realizar, o devir (DAVID, 2003). Ou seja, “o futuro se constrói como possibilidade do que há de vir e não como produto constante de uma mutação contínua e sem rumos” (GERALDI, 2010, p. 170). Cabe destacar também que o surgimento de memórias de futuro não se dá a partir de uma iniciativa individual do sujeito, que teria como suposta fonte de suas memórias o seu psiquismo individual, mas ao contrário, a memória só se dá entre sujeitos, de modo que criar não é dar livre expressão a um suposto gênio individual ou deixar agir a inspiração”. Isso porque, nas interações, está em jogo a memória coletiva, própria de um grupo social, que faz com que determinado objeto cultural seja pensado como discurso (AMORIM, 2009). Por fim, saliento que o conceito de memória de futuro auxiliou no desenvolvimento da tese de doutoramento intitulada “Assim como as borboletas: Bianca e a síndrome de Turner”, sobretudo para possibilitar o desenvolvimento do percurso metodológico- a história de vida. Em vários momentos, os enunciados de Bianca 42 e de outros sujeitos entrevistados evidenciaram projeções para o futuro nas descrições do presente e com base na ressignificação das memórias do passado. O exposto evidenciou o inacabamento de um sujeito, a construção coletiva das memórias e uma gama de possibilidades em sua trajetória de vida. REFERÊNCIAS AMORIM, M. Memória do objeto – uma transposição bakhtiniana e algumas questões para a educação. Bakhtiniana, São Paulo, v. 1, n. 1, p. 8-22, 2009. Disponível em <https://revistas.pucsp.br/bakhtiniana/article/view/2993>. Acesso em 01 jan. 2020. ARAÚJO, M. P. M. Assim como as borboletas: Bianca e a síndrome de Turner. 2020. 167 f. Tese (Doutorado em Educação) - Programa de Pós-graduação em Educação, Universidade Federal do Espírito Santo, Vitória, 2020. BAKHTIN, M. Estética da criação verbal (1979). Trad. Paulo Bezerra. 5. ed. São Paulo: Martins Fontes, 2010. CAMARGO JUNIOR, I. Di. O futuro analisado pela linguagem cinematográfica: diálogos entre a teoria do cinema e Mikhail Bakhtin. Dissertação de Mestrado. Programa de Pós-Graduação em Linguística da Universidade Federal de São Carlos – UFSCar, São Carlos, 2009. COLLARES, C. et al. Compaginar concepções: ciência e formação no horizonte de possibilidades de um projeto coletivo. Polifonia, V. 12, n. 1, p. 47-64, 2006. 43 Disponível em: <http://periodicoscientificos.ufmt.br/index.php/polifonia/article/ view /1079/851>. Acesso em: 08 dez. 2020.DAVID, W. Anotações sobre Bakhtin: Verbetes do curso “Tópicos de Lingüística V”, ministrado pelo Prof. Dr. João Wanderley Geraldi. 2003. Disponível em <https:// www.unicamp.br/iel/site/alunos/publicacoes/textos/a00006.htm>. Acesso em 24 nov. 2020. GERALDI, J. W. Ancoragens – Estudos bakhtinianos. São Carlos, Pedro & João Editores, 2010, 176 p. MELO, E. R. Justiça restaurativa e seus desafios histórico-culturais. Um ensaio crítico sobre os fundamentos ético-filosóficos da justiça restaurativa em contraposição à justiça retributiva. In: SLAKMON, C.; DE VITTO, R.; PINTO, R. S. G. Justiça restaurativa. Brasília: Ministério da Justiça e Programa das Nações Unidas para o Desenvolvimento (PNUD), 2005, p. 53-78. 44 45 MEUS OBJETOS DE PESQUISA E O CÍRCULO Renata Cristina Alves Meu contato com a teoria bakhtiniana começou apenas na pós-graduação. Infelizmente durante o período de graduação, assim como para muitos pertencentes às classes sociais mais pobres, há outras necessidades também fundamentais, o que me manteve um pouco distante da pesquisa, embora estivesse todos os dias na universidade. Apenas quando retornei à minha cidade, trabalhando como professora na educação básica pública, percebi a urgência de retornar à universidade para compreender o complexo processo de ensino e aprendizagem que a formação inicial não contemplou. É claro que a universidade me preparou para adentrar à sala de aula, mas não no contexto público, o qual muitos outros elementos, além de estudar, penetram nesse contexto. Ao prestar o processo seletivo da pós, minha base teórica seguia outra perspectiva, somente após acompanhar as aulas fui me aproximando e refletindo sobre o Círculo de Bakhtin e como eles me possibilitavam compreender não somente a sala de aula, mas principalmente a vida. Os aspectos ideológicos que perpassam os discursos produzidos pelos professores, pelos 46 alunos ou pela comunidade escolar. O elemento cerceador da esfera de comunicação – escola – na qual estava inserida e como ela penetrava em cada embate discursivo, violento ou não, já que sabemos que o contexto público educacional possui embates discursivos nem sempre agradáveis aos sujeitos que participam de tais. Durante as atividades de produção de texto, meu primeiro objeto de pesquisa, não somente compreendi as necessidades expressadas pelos alunos, pois ali naquelas palavras refletiam e refratavam a vida além dos muros escolares, mas também consegui modificar a estética das atividades realizadas em sala. Aos poucos, as atividades de leitura se tornaram comuns e as produções textuais dos alunos não eram produzidas somente para mim, e sim para eles, os quais estavam, ali, se constituindo como leitores/interlocutores de seus colegas. É evidente que todo processo de mudança causa estranhamento nas primeiras situações e alguns alunos deram maior abertura que outros no que diz respeito às participações em sala. As motivações para as produções textuais se alteraram à medida que mais e mais atividades eram realizadas. Assim, sempre havia uma primeira produção seguida da leitura dessas. Era uma leitura atenta na qual eles percebiam quais elementos eram aceitos ou negados pela turma, neste sentido, durante a reescrita e posteriores leituras, 47 as aceitações se multiplicavam nas outras produções, enquanto que as outras eram apagadas de suas produções, tornando aquele contexto da sala de aula uma praça pública para exteriorização de suas produções. Discursos que até então eram cerceados pela esfera escolar começaram a ser aflorar, já que a relação professor-aluno e aluno- aluno estavam se alterando e considerávamos ali os sujeitos, com seus interesses, desejos e vivências. Minha dissertação registrou esse processo, ainda que não em sua plenitude, já que os recortes limitam a recuperação de toda a complexidade da cadeia de comunicação. Qualifiquei, defendi e a etapa do mestrado estava concluída. Foram dois anos incríveis, os quais, em cada interação, foram me alterando, me constituindo e eu pude compreender como somos seres inacabados, bem como, considerando o contexto no qual trabalhava, a urgência de entender o não-álibi de existência. Não há macro revoluções, todavia na educação básica há micro revoluções a todo momento: quando olhamos os alunos enquanto ser humanos, de modo que não haja pré-julgamentos; quando tratamos cada variedade linguística como uma maneira de ver o mundo; quando entendemos que aquele dia não é um bom dia para aquele sujeito que está em nossa frente; quando compreendemos o processo não apenas o resultado. Dito isso, posso dizer que sou bakhtiniana, porque a teoria 48 contempla todos os aspectos que enfrento na sala de aula: das questões de constituição da identidade ao funcionamento da linguagem; das forças centrípetas e centrifugas que perpassam o discurso à construção de atividades didáticas; da cronotopia ao discurso carnavalizado dos alunos. Da leitura do mundo à leitura da palavra, como dizia Paulo Freire. Ser bakhtiniana é dar um passo de cada vez, ir se constituindo; é entrelaçar manualmente cada fio até que se complete, mas que, sempre, pode adquirir novos formatos e usos, dependendo da necessidade do momento. É como dizia um professor da pós-graduação “não há um Bakhtin, há muitos. Cada um tem o seu”. Por fim, o Círculo de Bakhtin é de grande valor para nossas pesquisas em educação, ciências humanas e demais áreas, pois nos permite não sucumbir ao objetivismo abstrato, o qual afastaria a linguagem de seu funcionamento na vida, na realidade concreta do nosso cotidiano. 49 O CÍRCULO DE BAKHTIN NA VIDA: algumas palavras Ida Maria Marins1 Tudo o que me diz respeito, a começar por meu nome, e que penetra em minha consciência, vem-me do mundo exterior, da boca dos outros (da mãe, etc.), e me é dado com a entonação, com o tom emotivo dos valores deles. Tomo consciência de mim, originalmente através dos outros... (BAKHTIN, [1992] 2011, p. 373). Inicio este texto valendo-me do fragmento acima retirado da obra Estética da Criação Verbal, de autoria de Mikhail Bakhtin. Desse enunciado depreendi a noção de que somos sujeitos relacionais, socio-historicamente situados em uma determinada cultura, e constituídos na e pela linguagem. Essa e outras noções desenvolvidas por Bakhtin e o Círculo como: concepção de linguagem, dialogismo, enunciado, discurso, gênero discursivo, para citar algumas, foram tornando-se referências para a compreensão de questões que emergiram ao longo do mestrado em Letras – período em que fui introduzida ao mundo do pensamento bakhtiniano, inicialmente na obra Marxismo e 1 Professora Adjunta da Universidade Federal do Pampa (UNIPAMPA), campus Jaguarão/RS. E-mail: idamarins@hotmail.com 50 Filosofia da Linguagem. Essa obra foi desvelando um outro olhar sobre aquilo que tinha como referência sobre língua(gem). Até então, compreendia a língua às bases do estruturalismo, algo que foi sendo ressignificado no diálogo com um pensamento bastante atual, embora os escritos do Círculo datarem de meados do século XX. Segundo Brait (2006), o pensamento do Círculo sobre linguagem trouxe o sujeito, a história e o social como elementos crucias para a sua compreensão, o que gerou mudanças profundas no modo de perceber o ser humano, tanto nos estudos Linguísticos como nos das Ciências Sociais Humanas. Como afirma a autora: (...) o pensamento bakhtiniano presente [na obra Marxismo e Filosofia da Linguagem] ofereceu a ocasião de um salto qualitativo no sentido de observar a linguagem não apenas no que ela tem de sistemático, abstrato, invariável, ou, por outro lado, no que de fato tem de individual e absolutamente variável e criativo, mas de observá-la em uso, na combinatória dessas duas dimensões, como uma forma de conhecer o ser humano, suas atividades, sua condiçãode sujeito múltiplo, sua inserção na história, no social, no cultural pela linguagem, pelas linguagens (BRAIT, 2006, p. 22-23). 51 Além de trazer o sujeito socio-historicamente situado para o estudo da linguagem, Bakhtin/Volochínov afirmam que a verdadeira substância da língua é constituída “pelo fenômeno social da interação verbal, realizada através da enunciação ou das enunciações” ([1929] 2012, p. 127) ou seja, “o centro organizador de toda enunciação, de toda expressão, não é interior, mas exterior: está situado no meio social que envolve o indivíduo” (Ibid. p. 125). A interação (eu e o outro) é, pois, elemento-chave na organização, produção/desenvolvimento e criação da linguagem. Na dissertação de mestrado discuti as motivações para a aprendizagem de uma língua estrangeira por crianças; e os estudos sobre a concepção de linguagem bakhtiniana em diálogo com a teoria da aprendizagem de Vygotsky foram fundamentais para levar a cabo a pesquisa. Nos estudos do Círculo de Bakhtin, a linguagem transcende uma abordagem estrita de língua, a qual privilegia a estrutura. Ao contrário, ela é concebida como prática social concretizada nas interações entre sujeitos. Do mesmo modo, Vigotski (2003) destaca o papel das interações nos processos de aprendizagem, enfatizando que o desenvolvimento da linguagem dá-se às bases da relação eu/outro. Logo após meu ingresso na universidade, como professora no curso de Letras, iniciei o doutorado. Minha pesquisa, nesse curso, investigou a formação da identidade de professor de língua 52 portuguesa, e a teoria bakhtiniana foi a referência para as análises dos discursos dos professores sujeitos da pesquisa. Segundo Brait (2006), o Círculo de Bakhtin nunca formulou um conjunto de categorias a priori para efeito de análises. O seu pensamento motivou a formulação, pelos estudiosos da linguagem de base enunciativo-discursiva, de uma teoria/análise dialógica do discurso. Assim, temos hoje a denominada Análise Dialógica do Discurso (ADD), que trabalha com princípios bakhtinianos para a compreensão do objeto de análise, partindo das relações dialógicas constitutivas da vida da linguagem e dos seres humanos. Desde 2008, trabalho com disciplinas de Linguística Aplicada ao ensino do Português e com os estágios dos alunos licenciandos em Letras. São componentes que requerem atualizar e dar ênfase à concepção de linguagem que vem prevalecendo, no Brasil, desde a década de 80 e sendo confirmada nas pesquisas no campo da Linguística Aplicada e nos documentos oficiais que orientam o trabalho com a língua portuguesa na educação básica, a saber: PCNs (1998) e BNCC (2018). Essa concepção, reitero, está centrada na linguagem como prática social que tem a interação, o diálogo como lugar da sua produção e da constituição dos sujeitos, o que confirma as bases do pensamento do Círculo de Bakhtin no tocante à concepção de linguagem. Os documentos oficiais supracitados não mencionam 53 explicitamente a teoria de Bakhtin e o Círculo como referência para a concepção de linguagem apresentada e defendida. A teoria aparece subjacente aos enunciados que percorrem boa parte dos dois documentos. Para ilustrar, a BNCC anuncia: Assume-se aqui a perspectiva enunciativo-discursiva de linguagem, já assumida em outros documentos, como os Parâmetros Curriculares Nacionais (PCN), para os quais a linguagem é uma forma de ação interindividual orientada para uma finalidade específica; um processo de interlocução que se realiza nas práticas sociais existentes numa sociedade, nos distintos momentos de sua história. (BRASIL, 1998, p. 20) (BRASIL, 2018, p. 67). Desse modo, entendemos que os documentos referem-se à linguagem em consonância com o pensamento do Círculo, o que representa uma grande atualização sobre o modo como a língua era concebida: sistema abstrato, imutável e homogêneo, para uma concepção de concretude, dinamicidade e heterogeneidade como elementos da natureza própria da língua(gem). Contudo, ainda assistimos práticas de ensino presas às bases do estruturalismo apesar da gama de pesquisas, produções e publicações feitas pelos estudiosos da linguagem. É um percurso longo e desafiador, 54 para nós professores e formadores, desconstruir concepções tão internalizadas pela sociedade, mas temos avançado. Os escritos de Bakhtin e o Círculo são, desde o mestrado, minhas referências de estudos, pesquisas e publicações. Minha filiação a essa teoria vem da crença de que o ser humano é um sujeito imerso em um mundo semiótico de múltiplas linguagens, e o pensamento do Círculo nos oferece a possibilidade de problematizar o modo como esse mundo nos constitui. REFERÊNCIAS BAKHTIN, M. M. Estética da criação verbal. Trad. Paulo Bezerra. 6ª ed. São Paulo: Editora WMF Martins Fontes, [1992], 2011. BAKHTIN, M. M; VOLOCHÍNOV, V. N. Marxismo e filosofia da linguagem. Trad. Michel Lahud e Yara F. Vieira. 13ª ed. São Paulo: Hucitec Editora [1929], 2012. BRAIT, B. “Análise e teoria do discurso”. In: BRAIT, B. Bakhtin: outros conceitos-chave (org.). São Paulo: Contexto, 2006. P. 9-31. BRASIL. Secretaria de Educação Fundamental. Parâmetros curriculares nacionais. Língua portuguesa de 5ª a 8ª série do 1º grau. Brasília: MEC/SEE, 1998. ______. Ministério da Educação. Base Nacional Comum Curricular. Brasília/MEC, 2018. Disponível em: http://basenacionalcomum.mec.gov.br/documento/Apresentação.pdf> Acesso em: 10 de julho. 2019. Vigotski, L. S. Pensamento e linguagem. Trad. Jefferson Luiz Camargo. 2ª ed. São Paulo: Martins Fontes, 2003. 55 A BIBLIOTECA ESCOLAR INFANTIL AOS OLHOS DO CÍRCULO DE BAKHTIN Marina Moreira1 Precisarei de um dicionário! Logo após ler minha primeira obra de Bakhtin, Marxismo e Filosofia da linguagem, essa foi minha afirmação. O contato com algo novo, e surpreendentemente diferente, me fazia (e ainda faz), avançar algumas páginas, e retroceder tantas outras, e assim o fiz. Lendo e devaneando entre as linhas, me perdia em outras tantas conexões que ia realizando durante a leitura. Quem é esse cara? Quem são essas pessoas? Como foi possível essa compreensão da realidade tão apurada assim? E as questões iam e vinham na minha mente, sem que eu nem ao mesmo me desse conta de que já haviam passado horas, e eu estava na mesma página. Assim foi o meu primeiro contato com as obras do Círculo de Bakhtin. Então contarei a vocês, como e porque, tudo isso começou. Pedagoga de formação e amante dos livros, sempre possui o desejo de ingressar na Pós-graduação, que, com muita alegria aconteceu em 2018. Com um projeto voltado para os livros e a biblioteca na Educação Infantil, fui selecionada por 1 Doutoranda no curso de Doutorado em Educação da Universidade Federal do Estado de Santa Catarina. Florianópolis, Brasil, marynnah_moreira@hotmail.com. 56 uma orientadora, um tanto quanto peculiar. Ela tinha leveza nas palavras, um carinho inestimado pelos livros, e uma paixão por Bakhtin. Pera aí, Bakhtin? Quem é esse? Eu nunca tinha ouvido falar. Já nas primeiras orientações ela me disse: “Eu oriento sob as lentes de Bakhtin, é assim que eu sou, é assim que eu sei orientar!”, e me aconselhou que fosse logo lendo tudo, lendo mais, lendo sempre. A partir disso, comecei a compreender que eu não anuncio minha palavra enquanto um ser monológico, que fala apenas por si. Mas como um ser dialógico, composto pelas múltiplas vozes a qual sou constituída, todavia, na singularidade da palavra que somente eu posso dizer, pois estamos em um “[...] diálogo sem fim, onde não há a primeira nem a última palavra” (BAKHTIN, 2011, p. 407). Deste modo, deu início minha pretensão de realizar a compreensão dialógica do discurso ancorada na concepção bakhtiniana de linguagem, com o propósito de compreender a biblioteca escolar infantil, meu objeto de estudo, enquanto um local singular. Assimcomo a criança, que se sente como “coisa-aqui”2 pelas palavras amorosas de sua mãe e vai constituindo sua consciência através dela, como descreve Bakhtin (1997, p. 68), eu, sinto-me 2 “E nos lábios e no tom amoroso deles que a criança ouve e começa a reconhecer seu nome, ouve denomi- nar seu corpo, suas emoções e seus estados internos; as primeiras palavras, as mais autorizadas, que falam dela, as primeiras a determinarem sua pessoa, e que vão ao encontro da sua própria consciência interna, ainda confusa, dando-lhe forma e nome, aquelas que lhe servem para tomar consciência de si pela primei- ra vez e para sentir-se enquanto coisa-aqui, são as palavras de um ser que a ama.” (BAKHTIN, 1997, p. 68) 57 enquanto “coisa-aqui” nas relações arquitetônicas que construo em minha história, para compreender e conceituar a biblioteca escolar infantil, para além de suas paredes, de seu espaço físico, ou de suas coleções. Para tanto, os conceitos de biblioteca escolar infantil definidos por mim, ao longo dessa caminhada com Bakhtin, revelam não apenas ideias preestabelecidas. Mas demonstram o modo como compreendo esse lugar, através não só da minha consciência, mas da consciência do outro que também me constitui, na busca de encontrar a verdade-pravda dos enunciados, uma vez que, os estudos bakhtinianos realizam uma distinção entre verdade “pravda” e verdade “istina”, onde essa é a representação da generalidade, dada por universais, verdades absolutas, enquanto aquela “como uma entonação do ato, como a sua afirmação, ou seja, para qual tende e pelo qual é aferida e o afere”. (BAKHTIN, 2017, p.17) Ninguém continua sendo o mesmo após dialogar com as produções do Círculo. Meu objeto de estudo, já não era mais um local estático, pronto e acabado. Mas um lugar de encontro, composto pelas múltiplas relações sociais que permeiam seu entorno. A Biblioteca Escolar infantil, deve ser compreendida, então, de acordo com a dialogicidade das múltiplas vozes que a compõem. 58 A Biblioteca é uma das instituições que acompanha a humanidade a séculos, e nasceu para que homens e mulheres conseguissem alocar seus conhecimentos, de maneira segura, e pudessem repassá-los para as outras gerações. Na contemporaneidade, refletir sobre a Biblioteca Escolar aos olhos do Círculo de Bakhtin, é compreender que esses espaços já superaram a qualidade de apenas depósito de livros e conhecimentos. É entender que são lugares singulares que, para além de armazenarem o conhecimento historicamente acumulado pela humanidade, se tornaram também, locais que propiciam a geração de conhecimentos novos. A biblioteca que por anos excluiu de suas dependências as crianças pequenas, por ser caracterizada como um lugar de silêncio e inércia. hoje, se atualiza e se reinventa para abrigar a multiplicidade de pequeninas vozes necessárias para compor-se enquanto um espaço de aprendizagem e saberes. Ao ler Bakhtin, percebi que a Biblioteca Escolar Infantil, deve se estruturar como um lugar singular, disposta a abrigar todos que a procuram. Desde a mais tenra idade, a criança precisa ter o contato com esse ambiente estimulador, logo, não buscamos verdades globais para constituir esses espaços, mas, a trama das relações sociais que estão imbricadas ao seu redor. Assim, apresento minha maneira de olhar para esse objeto de 59 estudo, colocando minha voz para circular entre os debates dessa temática. E quanto ao dicionário? Fui percebendo, ao longo das leituras, que Bakhtin se lê com a alma. De maneira insistente e sistemática, mas de coração aberto para entender tudo aquilo que nossa compreensão nos permite. Estudar o Círculo, é abrir- se para o novo sem medo de errar, e aceitar que EU, nas relações arquitetônicas que vou construindo, me possibilitam uma leitura única daquele que pode ser lido e compreendido por muito. REFERÊNCIAS BAKHTIN, Mikhail M. Estética da criação verbal. Tradução de Maria Ermantina Galvão G. Pereira. 2 ed. São Paulo: Martins Fontes, 1997. _________. Estética da criação verbal. 6 ed. São Paulo: Martins Fontes, 2011. __________. Para uma filosofia do ato responsável. Tradução aos cuidados de Valdemir Miotello & Carlos Alberto Faraco. São Paulo. Pedro & João editores. 2017. 60 61 BAKHTIN VAI AO CINEMA Maria Carolina Silva de Oliveira¹ A minha dedicação em estudar Bakhtin não iniciou de forma convencional, no meu primeiro semestre em Letras Português e suas Literaturas na Universidade Federal do Pampa, campus Bagé, eu acreditei verdadeiramente na possibilidade de me tornar uma Sherlock Holmes. A pessoa responsável por me fazer acreditar/ sonhar nessa possibilidade, notoriamente, foi uma professora. Ao passo que no segundo semestre me tornei Bolsista de iniciação científica nas ações afirmativas (PIBIC-AF) CNPq/Unipampa, orientado pela Doutora Professora Fabiana Giovani, a saber: “Da Análise linguística a estilística no ensino da língua: atualizando as considerações de Mikhail Bakhtin” a partir da análise de textos escritos. E durante esse período eu produzi dois capítulos de livros para o VII CÍRCULO - Rodas de Conversa Bakhtiniana FRONTEIRAS. O primeiro capítulo do livro : FRONTEIRA TÊNUE: A IDEOLOGIA POR TRÁS DA RISADA e depois “E” OU “OU”. E por isso, após três anos, eu e meu amigo, colega de curso e parte da minha personalidade, continuamos a levar a palavra sobre Gêneros Discursivos e o Marxismo e Filosofia da linguagem 62 para todos os nossos amigos que despretensiosamente visitam nossa casa em noites chuvosas quando o carro quebra na estrada. Como Drácula, sugamos a ignorância de quem não sabe observar a beleza do estilo de um gênero ou a quebra de estrutura utilizada como forma de quebrar nossas expectativas e se deliciar de um tema mergulhado em problemáticas sociais. Atualmente, sigo me dedicando ao estudo bakhtiniano, pois, vejo a beleza dos gêneros discursivos no desdobramento dos objetos passíveis análises que nossa sociedade produz ao desenvolver cultura. E como continuo na graduação, acrescento a esse conhecimento uma nova forma de compreender o sujeito. Como a autora Jacqueline Authier-Revuz, sinto que meu consciente não cabe em uma só corrente teórica. Por isso, quando eu tomei a decisão de cursar a disciplina eletiva “Cinema, psicanálise e discurso” oferecida no segundo semestre de 2019, antes do mundo estagnar, nesse momento, eu conheci a Análise do Discurso (AD) e a partir disso eu e Bakhtin entramos juntos no cinema. Quando eu descobri a AD e sua filiação francesa, a disciplina utilizava filmes como objeto de análise, eu me senti em casa: sozinha com os meus pensamentos e conversando com os meus amigos imaginários: os filmes. Ao conhecer a prática de análise e a concepção do sujeito, inconsciente e história e sua materialidade 63 na linguagem, eu comecei a observar o estilo na linguagem cinematográfica e, consequentemente, estrutura e tema. O que me motiva a continuar estudando Bakhtin é ampliar os conceitos do diálogo que podemos desenvolver com a cultura produtora de infinitos gêneros discursivos. Eu particularmente, quero utilizar o cinema como fonte de estudos, mas, isso é só uma das possibilidades, visto que: A riqueza e a variedade dos gêneros do discurso são infinitas, pois a variedade virtual da atividade humana é inesgotável, e cada esfera dessa atividade comporta um repertório de gêneros do discurso que vai diferenciando-se e ampliando- se à medida que a própria esfera se desenvolve e fica mais complexa” (Bakhtin, 1997, p. 280). O sujeito divide-se em três quando é confrontado por uma obra cinematográfica, podemos observar: o estilo nos proporciona a beleza das cores e direção de fotografia, planos amplos ou restritos, sensação de estranheza ou felicidade, contemplar paisagens de mundo alienígenas, tudo a mercê da criatividade humana. Enquanto a estrutura, nosagarra pela mão e nos leva a percorrer o caminho que ela deseja para contar a sua história, independente da nossa satisfação ou apreço pela personagem que 64 65 BAKHTIN E O TEXTO EM SEU STATUS NASCENDI: uma história de dialogia em registro Márcia Helena de Melo Pereira1 O começo... O encontro dessa pesquisadora com Bakhtin dá-se no ano de 1999, quando surge o interesse dela pelo texto visto em seu status nascendi, em uma parceria feita com a Crítica Genética, área da literatura que também vislumbra o texto do ponto de vista processual. Tal interesse é ainda mais aguçado quando a pesquisadora dispõe de um software francês chamado genèse du texte, desenvolvido pela Association Française pour la Lecture, em 1993, com objetivos pedagógicos, angariado pela orientadora da dissertação2 que ora se construía, Profª Drª Raquel Salek Fiad, da Unicamp, em visita à França. À época, registrar dados processuais não era tarefa fácil e o genèse du texte possibilitava o acompanhamento de todo o processo de produção de um texto, pois suas idas e vindas, suas substituições, novas ordenações, 1 Professora titular do Departamento de Estudos Linguísticos e Literários da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (DELL/UESB) e docente do quadro permanente do Programa de Pós-Graduação em Linguística da mesma instituição (PPGLIN/UESB). Vitória da Conquista, Brasil. E-mail: marciahelenad@ yahoo.com.br 2 MELO, Márcia Helena de. “A apropriação de um gênero: um olhar para a gênese de texto no Ensino Médio”. Dissertação (Dissertação em Linguística Aplicada). Instituto de Estudos da Linguagem – Univer- sidade Estadual de Campinas, Campinas, 2000. 66 pausas, acréscimos, podiam ser registrados em forma de relatórios. Para a pesquisa de então, duas duplas de estudantes do Ensino Médio, alunos da pesquisadora, produziram três textos usando o genèse du texte, escritos em três gêneros discursivos diferentes: narrativa de ficção, notícia e carta argumentativa. Em acréscimo, a conversa que a dupla manteve entre si durante a elaboração textual foi gravada em áudio, seguida de uma entrevista. Como nasce um texto? Essa era a indagação principal. Para responder a esse e outros questionamentos, entra em cena Bakhtin com sua teoria dialógica, de enunciado e de gênero do discurso. Se tínhamos dois sujeitos conversando a respeito de um texto que estavam escrevendo, quem melhor para fundamentar tal reflexão do que Bakhtin e sua teoria dialógica? Se o produto da interação entre nossas duplas seria em forma de enunciados, quem mais poderia nos subsidiar do que Bakhtin? Se quando produzimos enunciados sempre tomamos por base um gênero, quem poderia ser o teórico de escolha a não ser Bakhtin? O doutorado veio logo em seguida. Novamente Bakhtin entra em cena, dessa vez com o postulado das duas forças que operam nos gêneros: uma que os estabilizam e os tornam homogêneos (forças centrípetas), e outra que os desestabilizam e os tornam heterogêneos (forças centrífugas). Segundo o teórico, há gêneros que não possibilitam muitas inovações, como é o caso de um 67 requerimento, por exemplo, que apresenta elementos constitutivos mais rígidos, tornando-o mais estável; mas há outros mais acomodatícios a entradas individuais, exemplificados pelo autor como sendo os gêneros literários. O foco centrou-se mais no pilar estilo, uma vez que o estilo individual está ligado ao enunciado e aos gêneros do discurso, havendo gêneros mais ou menos acomodatícios a entradas subjetivas. A tese investigou o embate de forças genéricas postas em operação durante a elaboração, agora, dos três textos de que dispúnhamos. Ela foi intitulada de “Tinha um gênero no meio do caminho. A relevância do gênero para a constituição do estilo em textos de escolares”3 e defendida em 2005. O meio... Em 2012, a pesquisadora entra para o corpo docente da Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia (UESB), como professora adjunta, fazendo parte do Departamento de Estudos Linguísticos e Literários (DELL). A inserção no Programa de Pós- Graduação em Linguística (PPGLin) deu-se dois anos depois. As orientações que desde então se seguiram continuaram 3 PEREIRA, Márcia Helena de Melo. “Tinha um gênero no meio do caminho. A relevância do gênero para a constituição do estilo em textos de escolares”. Tese (Doutorado em Linguística Aplicada). Instituto de Estudos da Linguagem – Universidade Estadual de Campinas, Campinas, 2005. 68 tendo os postulados do Círculo de Bakhtin como fundamentação teórica. A pesquisadora foi observando que as máximas a respeito do conceito de gênero discursivo respondem muito bem a questões postas também hoje, como Brait (1999) pontuou, ao salientar que mesmo em “gêneros próprios das novas formas de comunicação, viabilizadas pela tecnologia e, especialmente, por novos valores assumidos pelo homem contemporâneo em relação a tempo/ espaço, público/privado, efêmero/duradouro”, Bakhtin continua sendo autor de escolha. Afinal, o gênero não se limita a estruturas ou textos, embora os considere como dimensões constituintes. Implica, acima de tudo, dialogismo e a maneira de entender e enfrentar a vida. Essa premissa bakhtiana pôde ser vista em uma pesquisa orientada pela pesquisadora que teve como escopo o gênero diário íntimo. Nela, Jocelma Boto Silva4 buscou investigar os elementos linguísticos e/ou discursivos inseridos por dois sujeitos em diários que escreveram na tentativa de conhecer um pouco mais a respeito deles e de sua relação com a linguagem, além do próprio gênero em si. Outras pesquisas se sucederam, voltadas para gêneros como estes: blog, debate, resumo, resenha, TCC, petição inicial, Instagram, post de facebook, tweet, etc. 4 SILVA, Jocelma Boto. “O eu autobiográfico e suas funções: escrever a vida para que e para quem?”. Dissertação (Dissertação em Linguística). Programa de Pós-Graduação em Linguística – Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia, Vitória da Conquista, 2016. 69 “Tudo ainda está por vir e sempre estará por vir”: (sobre) saindo pela carnavalização Há um desejo em Bakhtin, na obra “Para uma filosofia do ato”, de reconciliar o mundo da teoria e o mundo da vida. O evento único e irrepetível, do mundo da vida, sempre esteve no horizonte do filósofo. E a vida, no momento atual, leva esta pesquisadora cada vez mais para a interação nas mídias digitais. E é trazendo o Bakhtin de Rabelais e seu mundo, o Bakhtin do Dostoiévski polifônico e carnavalizado que esta pesquisadora prossegue, agora procurando traçar um paralelo do conceito de carnavalização com as fanfics, gênero bastante popular entre os adolescentes e com características carnavalizadas marcantes. O espaço é curto para um filósofo tão completo, pois sequer uma vida inteira bastaria para esmiuçar as diferentes faces teóricas que abarcou e nos legou. REFERÊNCIAS BRAIT, Beth. “A produtividade do conceito de gênero em Bakhtin e o Círculo”. Alfa, São Paulo, 56 (2): 371-401, 2012. 70 71 O CÍRCULO DE BAKHTIN: reflexões e usos na análise do discurso da imprensa Thomas Dreux Miranda Fernandes Marxismo e Filosofia da Linguagem, revela com enorme competência o conceito de Dialogismo, indicando o aspecto inescapável da interação e movimento entre os enunciados como a realidade fundamental da língua. Tal obra, ao apontar que é necessária a ancoragem material e histórica para se pensar - a partir da base social - o como as expressões humanas se constituem, além da reflexão sobre seu conteúdo, propõe um giro epistemológico revolucionário no pensar filosófico da linguagem. Nesse sentido, toma-se como exemplo a expressão artística em destaque no período de produção da obra e de atuação do Círculo de Bakhtin, a literatura. Na virada dos séculos XIX e XX, esta emerge, portanto, junto com uma nova maneira de percepção do mundo, expressando as questões pungentes da sociedade,extrapolando na forma, sua historicidade inerente. Assim, é isso que caracteriza o discurso indireto livre, uma nova forma de expressão historicamente colocada e criada a partir de um novo horizonte social que nascia e se transformava com a aceleração e consolidação do mundo do capital. Nesse sentido, é possível tomar 72 este raciocínio metodológico e aplicá-lo a outros usos e suportes como por exemplo a fotografia, aqui nos aproximamos, então, de outros objetos de estudo, criando novos diálogos e interações em uma proposta de pesquisa que toma os conceitos do Círculo de Bakhtin como base teórico-metodológica para novas análises que se propõe ir além do que fora realizado no início do século XX. Dessa, forma, partindo de uma formação concomitante e complementar em Jornalismo e História, meus interesses sempre tentaram aproximar, ainda que de maneira inconsciente, esses campos de conhecimento. Além disso, através das diferentes etapas do percurso acadêmico ficou evidente qual o ponto de contato entre estas, que podemos chamar de disciplinas, esse nó é justamente a reflexão a respeito do discurso e seu processo de formação. Explico. Após algumas incursões e pesquisas a respeito do fenômeno do WikiLeaks, seus reflexos e refrações na imprensa brasileira no início dos anos 2010, além de outra pesquisa dedicada à atuação diplomática do Itamaraty durante o Regime Militar (1964-1985), ficou evidente que o interesse maior estava justamente na busca pelo entendimento e razões para a formulação de um determinado discurso. Fosse esse o discurso oficial da diplomacia ou da imprensa burguesa. A partir daí acrescenta-se mais uma camada, a Fotografia. O fascínio exercido pela fotografia, tem sem dúvida fundamento 73 no seu caráter dialógico, ou seja, no quanto ela é capaz, enquanto suporte material, de dialogar com diversos outros tipos de enunciado, criando, recriando e reforçando diferentes processos de significação a partir da continuidade físico-química da realidade material. Assim, chegamos ao grande encontro multidirecional que se colocou pelo caminho, conjugar diferentes camadas, ângulos e vetores da realidade que aparecem quando nos dedicamos ao estudo do enunciado da imprensa brasileira durante o Regime Militar (1964-1985), através do prisma do fotojornalismo. A fotografia possivelmente é - por seu código aberto – uma das melhores expressões do que Volóchinov (2018) e o Círculo de Bakhtin se propunham pensar, língua, ideologia e discurso, dado que permite de maneira mais direta as reflexões e refrações que irão compor a significação do enunciado em uma via de mão dupla entre o enunciador e seu auditório. Se mostram notáveis os diferentes recortes e usos de um mesmo evento, abrangendo interesses de classe – representados na intencionalidade editorial dos jornais – e também individuais - representados na maior ou menor subjetividade nas interpretações dos fotógrafos. Com isso, se destaca a importância dos conceitos bakhtinianos, a noção de movimento proposta dentro da ideia de Dialogismo e o como tais ferramentas metodológicas, mas sobretudo, 74 tal virada epistemológica ajuda a se entender as nuances dos enunciados a respeito do golpe civil-militar de 1964 no Brasil, a compreensão das ferramentas de enunciação utilizadas, suas interações e a consequente historicização que nos transportam do que permaneceu nos jornais como a aparência dos eventos históricos para a sua essência material histórica. Os elementos de um enunciado, e aqui acrescentamos o enunciado fotográfico, são uma modulação do como e para quem se quer enunciar determinada expressão ideológica. E será essa base que tornará possível a compreensão e ampliação da existência sensível: Os novos aspectos da existência que passam a integrar o horizonte de interesses sociais e que são abordados pela palavra e pelo pathos humano não esquecem dos elementos da existência integrados anteriormente, mas entram em embate com eles, reavaliando-os, alterando o seu lugar na unidade do horizonte valorativo. Essa formação dialética se reflete na constituição dos sentidos linguísticos. Um sentido novo se revela em um antigo e por meio dele, mas com o objetivo de entrar em oposição e o reconstruir”. (VOLÓCHINOV, 2018, p.238). E será assim que o sentido se compõe e organiza, a partir dessa ampliação dialética do horizonte social, na qual o novo, através do já existente - que por sua vez é integrado - altera o já existente, ao mesmo tempo se opondo e renovando-o. Este é então um 75 processo instável, principalmente na significação. Na fotografia, fica visível como diferentes técnicas e estilos transformaram o fazer fotográfico ao longo da história e, especialmente o modo como tais alterações estiveram ligadas a inovações tecnológicas e formas de percepção do mundo material. No caso do Fotojornalismo, a fotografia a cores e, depois, a fotografia digital, trouxe novos elementos materiais de linguagem e interação social que afetaram o modo como esta passou a ser usada na expressão ideológica burguesa através da imprensa. Os conceitos de Bakhtin nos são caros, pois ajudam a levar para o campo prático as noções de - avaliação, significação e horizonte social - tomando como base a noção de que a linguagem e a expressão compõem e são, simultaneamente, alteradas pela realidade material/social na qual estão inseridas. Ao analisar as fotografias publicadas na Folha de S. Paulo e no Jornal do Brasil no ano de 1964, o objetivo é entender qual foi o papel das fotografias e dos diferentes usos da linguagem fotográfica na construção discursiva a respeito do golpe civil- militar de 1964, tentando criar novos entendimentos sobre os fatos e a importância da disputa discursiva no contexto. O que se viu, portanto, foi um posicionamento do jornal Folha de S. Paulo abertamente favorável ao movimento golpista e seus realizadores. Tendo sido feito um uso da fotografia e da linguagem fotográfica 76 de maneira supostamente objetiva, modulando o discurso jornalístico ao jornalismo moderno, que se afirmava naquele período. Dessa forma, as fotografias, interagindo com legendas, chapéus e demais textos, procuraram consolidar o consenso de que o movimento golpista estaria realizando uma “revolução” em favor da democracia, contra uma suposta ameaça comunista representada por João Goulart. O discurso “revolucionário” é a retórica da aliança das frações de classe, que se uniram para derrubar o governo constitucional de Goulart. Por suas lacunas e contradições o discurso revela o que deseja ocultar: que é o discurso da classe dominante e que as finalidades do movimento de março foram a contenção da participação política das classes subalternas e a dinamização da acumulação capitalista. (FIORIN, 1988, p.152) Nesse trecho vemos como os conceitos do Círculo de Bakhtin também estão presentes em outras reflexões, nesse caso de um grande linguista brasileiro. O que se vê no caso da presente pesquisa é o fato de que, nesse momento histórico, os periódicos analisados, sobretudo a Folha de S. Paulo, atuaram como amplificadores do discurso golpista e reproduziram enunciados que representavam os interesses de classe dos executores do golpe, nesse contexto a fotografia serviu também como referencial de veridicção dos fatos e eventos retratados, porém, 77 através do distanciamento proporcionado pela análise histórica, verifica-se que a fotografia também amplificou as lacunas de tal discurso interessado. Dessa forma, sublinhamos à necessidade e importância de historicizar a produção do enunciado, pois este é um caminho para se compreender seus usos ativos e socialmente vivos nas disputas cotidianas. E dentro dessa proposta as ideias bakhtinianas são um combustível fundamental para a realização de uma análise materialista histórica do passado.
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