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Índices para catálogo sistemático: 1. Análise do discurso - 410 2. Linguística - 410 Baronas, Roberto Leiser. (Org.) Estudos discursivos à brasileira: uma introdução / Roberto Leiser Baronas (Org.) Campinas, SP : Pontes Editores, 2015. Bibliografia. ISBN 978-85-7113-636-6 1. Análise do discurso 2. Linguística I. Título Dados Internacionais de Catalogação na Publicação (CIP) Todos os direitos desta edição reservados à Pontes Editores Ltda. Proibida a reprodução total ou parcial em qualquer mídia sem a autorização escrita da Editora. Os infratores estão sujeitos às penas da lei. Copyright © 2015 do organizador representante dos colaboradores Coordenação Editorial: Pontes Editores Editoração e capa: Eckel Wayne Revisão: Vera Bonilha Conselho editorial: Angela B. Kleiman (Unicamp – Campinas) Clarissa Menezes Jordão (UFPR – Curitiba) Edleise Mendes (UFBA – Salvador) Eliana Merlin Deganutti de Barros (UENP – Universidade Estadual do Norte do Paraná) Eni Puccinelli Orlandi (Unicamp – Campinas) José Carlos Paes de Almeida Filho (UNB – Brasília) Maria Luisa Ortiz Alvarez (UNB – Brasília) Suzete Silva (UEL) Vera Lúcia Menezes de Oliveira e Paiva (UFMG – Belo Horizonte) PONTES EdITORES Rua Francisco Otaviano, 789 - Jd. Chapadão Campinas - SP - 13070-056 Fone 19 3252.6011 ponteseditores@ponteseditores.com.br www.ponteseditores.com.br 2015 - Impresso no Brasil SUMáRiO PREFáCiO EStUDOS DO DiSCURSO à MODA BRASiLEiRA ............................... 7 Diana Luz Pessoa de Barros iNtRODUçãO CiÊNCiAS BRASiLEiRAS DE LiNGUA(GEM): tEORiAS DE DiSCURSO ......................................................................................................15 Roberto Leiser Baronas O SiLÊNCiO EXiStE PARA PODER (NãO) DiZER .............................. 27 Lucília Maria Abrahão e Sousa SEMiÓtiCA E CANçãO: UMA PAiXãO BRASiLEiRA ....................... 39 Flávio Henrique Moraes Mônica Baltazar Diniz Signori SEMâNtiCA DO ACONtECiMENtO: PRiNCíPiOS tEÓRiCOS, MEtODOLÓGiCOS E ANáLiSES ................................................................. 71 Soelir Maria Schreiber da Silva Carolina de Paula Machado tEORiA DOS EStEREÓtiPOS BáSiCOS E DOS EStEREÓtiPOS OPOStOS: A PiADA LEVADA A SÉRiO ..................................................................................................................95 Fernanda Góes de Oliveira ávila Roberto Leiser Baronas DE PRESiDENtES A PRESiDENCiáVEiS: VERBO-ViSUALiDADE NA ESFERA JORNALíStiCA E POLítiCO-PARtiDáRiO ................. 119 Maria Helena Pistori POR UMA ANáLiSE ARQUEGENEALÓGiCA DO DiSCURSO ........ 149 Pedro Navarro POSFáCiO ..............................................................................................................175 Kátia Menezes de Sousa SOBRE OS AUtORES ........................................................................................185 7 RobeRto LeiseR baRonas (oRg.) PREFáCiO EStUDOS DO DiSCURSO à MODA BRASiLEiRA Em artigos diversos sobre a semiótica no Brasil e na América do Sul, e sobre os rumos e os papéis dos estudos do discurso, procuramos discutir questões gerais sobre esses estudos e falar um pouco também da história desse campo de estudos da linguagem no Brasil. Retomamos essas reflexões por acreditar que com elas podemos embasar a apresentação do livro Estudos discursivos à brasileira: uma introdução, organizado por Roberto Leiser Baronas. É preciso dizer que o livro reúne artigos de diferentes correntes dos estudos do discurso e, sobretudo, da Análise do discurso – Ad, enquanto nossos trabalhos falam do lugar do semioticista do discurso. daí começarmos por dizer que há um ponto de vista comum nos estudos do discurso. Em trabalhos diversos, apontamos o fato de que os diferentes estudos do discurso trouxeram novas posturas e objeto aos estudos da linguagem a partir da segunda metade do século XX, e de que o fizeram com fundamentos diferen- tes, em quadros teóricos diversos. insistimos, porém, em que há um ponto de vista comum a tais estudos: eles ocupam o espaço vazio entre posições bem definidas e separadas pelos estudos linguísticos anteriores (língua vs. fala, competência vs. perfórmance, enunciação vs. enunciado, linguístico vs. 8 estudos discuRsivos à bRasiLeiRa: uma intRodução extralinguístico). Ao tratar assim, e ao mesmo tempo, do social e do individual, da argumentação e da informação, da intersubjetividade e da subjetividade, da organização do discurso e do dialogismo, esses estudos ocasionaram mudança de posicionamento nos estudos da linguagem e a eles atribuíram novos papéis. Pelo fato de ocuparem o lugar instável do “vão” entre pontos bem estabelecidos, os estudos do discurso tiveram e têm um papel digno de nota entre os estudos linguísticos, pois romperam com a tradição de estabilidade desses estudos e recuperaram a instabilidade própria da linguagem. Essas reflexões novas e velhas, sempre retomadas, nessa obsessão de encontrar sentido naquilo que fazemos e em que acreditamos, são da mesma ordem das que permeiam os vários capítulos do livro. Os estudos do discurso, de origens diversas, no caso das duas correntes mencionadas, de origem francesa, assumiram papéis e tomaram rumos próprios no Brasil, em que tiveram e continuam a ter desenvolvimentos significativos. Por essa razão pode-se falar de estudos discursivos à brasileira ou à moda do Brasil, tal como propõe Baronas em seu artigo mais teórico de introdução e também os demais autores do livro quando abordam os diferentes jeitos de estudar discurso no Brasil. Comecemos por tratar da questão da conservação ou da perda de rumos desses estudos. No Dicionário Houaiss, um dos sentidos encontrados para “rumo” é o de “percurso, orientação a seguir para ir de um lugar a outro, caminho, vereda, itinerário, rota”. A partir dessa definição, “rumo” pode ser entendido, semioticamente, como movimento, cons- trução, transformação, intencionalidade e direcionalidade, e é com essa concepção que temos pensado nos rumos dos estudos do discurso no Brasil. Nosso modo de ver, é que os estudos do discurso no Brasil mantêm o rumo, ou seja, não criam outra teoria, outro paradigma, com outros objetos 9 RobeRto LeiseR baRonas (oRg.) e métodos. Para que o rumo seja mantido, esses estudos precisam sofrer alterações, mudanças, desenvolvimentos. Só assim, refazendo-se, retificando-se, consertando-se, modificando-se, desenvolvendo-se, eles podem conservar a direção assumida. Greimas, na introdução de Sobre o sentido II. Ensaios semióticos, diz que “talvez seja um pouco paradoxal para um pesquisador afirmar que deseja permanecer fiel a si mesmo quando o projeto científico é hoje o único espaço em que a noção de progresso ainda faz sentido e no qual a renovação se mostra intrínseca a todo esforço teórico”. Uma das contribuições de Sobre o sentido II, e não pequena, é, sem dúvida, a discussão de como deve ser desenvolvido um projeto de ciência no campo da linguagem, e mais ainda no da significação e dos sentidos. Os estudos do discurso foram introduzidos cedo e com entusiasmo no Brasil. Esses primeiros entusiastas dos estu- dos do discurso, em geral ligados à tradição universitária, principalmente em Letras, formaram escola no Brasil, pois ofereceram cursos introdutórios e avançados nas universi- dades em que trabalhavam, escreveram livros, desenvolv- eram aspectos teóricos e metodológicos, fizeram muitas e variadas análises, traduziram estudos de pesquisadores do discurso de outros países e línguas. Houve assim, no Brasil, formação institucional nessa área, com a disciplinarização universitária dos estudos do discurso, de início um tanto clandestina e “escondida” em rótulos diversos dos estudos linguísticos e literários tradicionais. Aí está a nosso ver, um dos traços característicos do desenvolvimento dos estudos do discurso no Brasil, que deu força a esses estudos e permitiu a adequada conciliação entre a novidade e atradição. Em relação com a institucionalização e a discipli- narização, a segunda característica dos estudos do discurso no Brasil é a preocupação com o ensino e com a formação 10 estudos discuRsivos à bRasiLeiRa: uma intRodução de novos pesquisadores na área, e, ao mesmo tempo com a pesquisa, seja ela teórica e metodológica ou aplicada, nesse campo do conhecimento. São recuperações, retomadas e novos desenvolvimentos teóricos e metodológicos, que acarretam também mudanças de objeto e de extensão de aplicação da teoria. A terceira característica marcante desses estudos no Brasil e que facilitou e justificou sua introdução e desenvolvi- mento na universidade brasileira é a preocupação central dos estudiosos do discurso do país, desde o início, em explicar os processos de significação do homem e da sociedade brasileiros (e americanos), em construir suas identidades, em apontar seus traços universais e específicos. Houve sempre grande interesse no exame de objetos particulares da cultura do país e de sua diversidade, e na produção de conhecimento novo sobre a sociedade. A intensa atividade política e os problemas políticos do Brasil (e da América Latina em geral) foram algumas das causas do interesse dos pesquisadores da linguagem no Brasil pelos estudos do discurso, em busca de teoria e método para tratar da luta ideológica e fazer a crítica cultural e social. Os pesquisadores e professores brasileiros acreditaram ter encontrado um bom caminho para o exame dos sentidos dos textos e, por meio deles, para que se con- hecessem melhor a sociedade e a cultura brasileiras Pelo fato de ocuparem o lugar instável do “vão” entre pontos bem estabelecidos, os estudos do discurso abrem-se mais aos diálogos com outras teorias e favorecem o alar- gamento de seu objeto. São essas, a nosso ver, a quarta e a quinta características dos estudos do discurso no Brasil. Os estudos do discurso mantêm diálogos proveitosos com outras disciplinas, tais como a sociologia, a antropologia, a retórica, a psicanálise, as teorias da comunicação e das artes, os estudos linguísticos e literários, a retórica, a estilística, os 11 RobeRto LeiseR baRonas (oRg.) estudos da conversação e mesmo com os da percepção e com as teorias cognitivas. Os estudos da linguagem, graças aos do discurso, caminham assim para a multidisciplinaridade. A perspectiva do diálogo multidisciplinar aqui apresentada não é a da soma de teorias, mas a da retomada do diálogo teórico em um quadro solidamente estabelecido, como são hoje os das diferentes perspectivas dos estudos do discurso. Se considerarmos com Bakhtin, que as ciências humanas estudam o homem no texto, enquanto as exatas e biológi- cas o examinam fora do texto, entenderemos bem o papel privilegiado dos estudos do discurso, bem usado no Brasil, para o estabelecimento de diálogos fecundos entre os estu- dos da linguagem e as muitas outras áreas e disciplinas já mencionadas. A quinta característica dos estudos do discurso no Brasil é a do alargamento de seu objeto, a da extensão de aplicação da teoria, decorrência e causa, ao mesmo tempo, das mudan- ças teóricas e metodológicas. Na semiótica discursiva, por exemplo, da análise inicial de certo tipo de texto – verbal, de “ação”, figurativo e da “pequena literatura” (folclore, etc.) – passou-se a textos não verbais, sincréticos, figurativos ou temáticos, poéticos (de arte, em geral, de canções, de música), científicos, etc., enfim, a qualquer tipo de texto, devido, entre outros, aos desenvolvimentos da sintaxe narrativa modal, dos percursos passionais do discurso, dos estudos enunciativos, do exame do plano da expressão. No quadro da Análise do Discurso - AD, a questão tem sido bastante discutida por Sírio Possenti, no Brasil, que propõe que a Análise do Discurso não se ocupe apenas de discursos institucionais e/ou públicos, pois a seu ver ela teria muito a ganhar se considerasse, também, discursos menos institucionais e/ ou mais “privados”. Em qualquer dos casos, os estudos do discurso no Brasil contri- buíram enormemente para esse alargamento dos objetos, já que houve, sempre, em nosso país, a preocupação em descre- 12 estudos discuRsivos à bRasiLeiRa: uma intRodução ver e explicar os mais diferentes discursos da sociedade e da cultura, institucionais ou não. Os estudos do discurso no Brasil têm estabelecido e atingido assim dois grandes objetivos: o de contribuir para o conhecimento da linguagem, através da língua e de seus discursos e, pela linguagem, do homem, sobretudo brasileiro, como ser social e cultural; o de concorrer para o desenvolvimento teórico e metodológico da disciplina, principalmente, em seu modo brasileiro de ser. Esses estudos têm, no Brasil, as especificidades que já apontamos e que a seguir sintetizamos: - institucionalização das várias correntes dos estudos do discurso como disciplinas universitárias, o que favorece a pesquisa e a formação de novos estudiosos; - formação de pesquisadores e professores em estudos do discurso, o que tem contribuído para a renovação cons- tante da área; - busca de desenvolvimentos teóricos e metodológicos, que possam dar algumas respostas aos desafios de uma socie- dade multilíngue e pluricultural, ou seja, de uma sociedade da “mistura”, e não da “triagem” (Zilberberg, 2007), de uma sociedade mestiça e que tem a mestiçagem como patrimônio; - contribuições inegáveis que os estudos do discurso trouxeram, no Brasil, aos estudos da linguagem, recriando diálogos promissores com outras disciplinas ou estabele- cendo novos diálogos; - alargamento dos objetos construídos nesses estudos, sobretudo pelo exame dos discursos sociais e culturais do Brasil, em busca de definições, de identidade, de formas de representação, de sentido enfim. 13 RobeRto LeiseR baRonas (oRg.) Dessa forma, os estudiosos do discurso do Brasil, têm podido dar importante contribuição teórica à comunidade internacional de estudos da linguagem, com seus estudos do discurso à brasileira. Os artigos reunidos no livro que apresentamos e recomendamos com entusiasmo têm as ca- racterísticas dos estudos do discurso à moda do Brasil que muito rapidamente expusemos. Deveríamos quem sabe acrescentar que os traços mais marcantes dos estudos do discurso que se fazem no Brasil são, muito provavelmente, o de não ter medo de enveredar por caminhos, ou desvios, diversos e pouco seguros, o de manter a preocupação com a sociedade, a cultura e a história e o de procurar estar no centro dos diálogos que constroem os estudos da linguagem, o homem e a sociedade. O dicio- nário aponta como primeiras acepções de “rumo” os espaços em que se divide a rosa-dos-ventos e, portanto, a da direção na navegação. Essa relação com a navegação e o mar tem origem na etimologia do espanhol rumbo – encantamento, fama, prestígio –, pois os espaços da rosa-dos-ventos divi- diam o horizonte e tinham uma figura de bronze usada nos encantamentos. Os rumos dos estudos do discurso no Brasil são, assim, corajosos, mas também mágicos e míticos. São esses os caminhos que este livro abre e percorre. Diana Luz Pessoa de Barros Universidade Presbiteriana Mackenzie – UPM Universidade de São Paulo - USP CNPq 15 RobeRto LeiseR baRonas (oRg.) iNtRODUçãO CiÊNCiAS BRASiLEiRAS DE LiNGUA(GEM)1: tEORiAS DE DiSCURSO2 Por Roberto Leiser Baronas “Os escritores nacionais célebres têm às vezes incitado, aconselhado a liberação nossa de Portugal – Júlio Ri- beiro, Graça Aranha... Principiam por um erro: opor Brasil e Portugal. Não se trata disso. Se trata de ser brasileiro e não nacionalista. Escrever naturalmente brasileiro sem nenhuma reivindicação nem queixa.” (PiNtO,1990, p.23). Primeiras Palavras: um Pouco sobre teorias brasileiras do idioma O presente livro de natureza introdutória e em tom de manifesto, destinado basicamente a alunos de graduação e pós-graduação em Letras e Linguística e áreas afins, está organizado em tornode uma audaciosa hipótese de traba- 1 Quando utilizamos a designação Ciências brasileiras de lingua(gem), não o fazemos com o intuito de negar o caráter universal da ciência, mas buscamos dar destaque à singularidade das ciências desenvolvidas por pesquisadores brasileiros no âmbito da linguagem. 2 O presente livro se constitui numa singela homenagem in memoriam à Profa. Rosa Virgínia Mattos e ao Prof. dercir Pedro Oliveira por terem nos mostrado ao longo de todas as suas vidas que, apesar de todos os contratempos, é possível fazer linguística brasileira de muita qualidade. Uma versão bastante modificada desta introdução foi apresentada em forma de comunicação oral no Seminário Internacional de Lin- guística, realizado na UFG – Goiânia - em setembro de 2012 e também em forma de conferência, durante a 67 Reunião Anual da SBPC, realizada na UFSCar em 14 de julho de 2015. 16 estudos discuRsivos à bRasiLeiRa: uma intRodução lho: há no Brasil não somente teorias próprias do idioma, conforme já enfatizado por diversos estudiosos, mas também teorias brasílicas de discurso. Para dar conta dessa hipótese, evocamos num primeiro momento o instigante artigo de divulgação científica, cujo título é “Uma teoria brasileira do idioma”, publicado na Edição 78 da Revista Língua Por- tuguesa, em abril de 2012 (MÓDOLO; BRAGA, 2012) e, na sequência, comentamos brevemente, a não menos pertinente conferência do Prof. Dr. Rodolfo ilari da UNiCAMP no GEL3-USP, em julho de 2013. Esses dois textos têm em comum o fato de que fazem referência a importantes estudos de pesquisadores brasileiros sobre a existência não só de uma linguística no Brasil, mas também de uma linguística do Brasil. Por último, na sequência do livro, apresentamos algumas das teorias brasílicas do discurso. No artigo em questão, os professores Marcelo Módulo e Henrique Braga da USP falam sobre algumas das teorias linguísticas desenvolvidas por pesquisadores brasileiros em nossa geografia nos últimos anos. Os autores destacam, por exemplo, como “[...] propostas já estruturadas em terras brasílicas a Gramática construtural da língua portuguesa, de Back e Mattos (1972)4, a Sociolinguística paramétrica de tarallo e Kato (1989)5, a Semântica de contextos e cenários de Ferrarezi Jr. (2010)6 e a Abordagem multissistêmica de Ataliba teixeira de Castilho7 (2010).” (MÓDOLO; BRAGA, 2012). 3 Grupo de Estudos Linguísticos do Estado de São Paulo <www.gel.org.br>. 4 Uma apresentação sucinta da Gramática Construtural, proposta por Back e Mattos (1972) pode ser vista no artigo a “Linguística Construtural”. Uma discussão de base mais his- toriográfica acerca dessa teoria linguística pode ser encontrada em “Aceitar ou negar as propostas da Gramática Construtural: uma interpretação historiográfica e sociológica de um período da gramática brasileira” de Ronaldo de Oliveira Batista (2011). 5 Uma apresentação detalhada dos postulados elaborados por Tarallo & Kato sobre a sociolinguística paramétrica pode ser vista nos artigos de Tarallo (1987). “Por uma Sociolinguística Romanica “Paramétrica”: Fonologia e Sintaxe”. E Tarallo & Kato (1989) “Harmonia trans-sistêmica: variação inter e intralinguística”. 6 Uma apresentação da proposta formulada por Ferrarezi Jr. pode ser vista no livro Introdução à semântica de contextos e cenários (2010). 7 A abordagem multissistêmica proposta por Ataliba de Castilho pode ser vista em Nova Gramática do Português Brasileiro (2010). 17 RobeRto LeiseR baRonas (oRg.) A discussão de Módulo e Braga (2012) se centra numa rápida apresentação da teoria proposta por Castilho. Para os autores, Ataliba de Castilho, alicerçado epistemologicamente numa base sociocognitivista e compreendendo a língua como um fenômeno complexo e dinâmico, [...] acredita ser possível analisar os traços lexi- cais, semânticos, discursivos e gramaticais de uma palavra ou construção, mesmo que “em estado de dicionário”. Assim, para o autor haveria um dispo- sitivo central, de base sociocognitiva, que ativaria, desativaria e reativaria os traços linguísticos de uma palavra ou construção em cada um desses sistemas, de acordo com as necessidades linguísti- cas do falante. Segundo esse ponto de vista, nossa mente operaria num modo simultâneo sobre o conjunto dos processos e dos produtos recolhidos nesses subsistemas. (MÓDULO; BRAGA, 2012). Para mostrar alguns dos problemas que a teoria de Castilho tenta elucidar, os autores mobilizam o item lexical [...] “contra”. Quais traços semânticos esse vocá- bulo pode comportar? Como esses traços foram agrupados (lexicalizados) nessa palavra? Qual o comportamento desse termo na estrutura sintática de uma frase? Como os falantes usam essa palavra na interação com outros indivíduos? Uma análise multissistêmica pressupõe essa multiplicidade de questões sobre um mesmo fenômeno linguístico. (MÓDULO; BRAGA, 2012). Evocamos agora a palestra do Prof. Rodolfo ilari, proferida no GEL-USP, realizado na cidade de São Paulo em julho de 2013. Na sua conferência, “A fábrica de ideias linguísticas do Professor Salum, o pinheiro e o lago”, ilari (2013), com base em um conjunto de textos manuscritos 18 estudos discuRsivos à bRasiLeiRa: uma intRodução pelo próprio Prof. Salum, redigidos em meados dos anos sessenta do século passado, apresentou entre outras pro- duções a “Abordagem linguístico-retórica dos textos”, ou, mais popularmente, a “teoria dos Garfos” do Prof. isaac Nicolau Salum. Uma pertinente teoria de análise textual, cujo objetivo primeiro é compreender de forma acurada as relações de sentido estabelecidas entre os diferentes níveis de um texto. trata-se de uma abordagem singular que busca entender o funcionamento da “inteligência linguística do texto”, sobretudo, o literário, descrevendo-o em seus va- lores semânticos; estilísticos; retóricos e até “ideológicos”. Aspectos completamente estranhos à análise linguística pra- ticada à época. Sobre a pertinência da abordagem de Salum para a análise textual, ouçamos a partir de Blikstein (1994) o que dizem a respeito os professores Antonio Candido e Segismundo Spina, dois grandes intelectuais brasileiros, respectivamente da área de teoria Literária e da área de Filologia e Língua Portuguesa: [...] num campo ele [isaac Salum] desamarrou: o da análise linguístico-literária. talvez porque os garfos e esquemas que inventou possuam um vago ar de quebra-cabeça, que, introduzindo certa at- mosfera lúdica, parece atenuar o compromisso com o rigor e permitir maior liberdade. De qualquer modo, aí ele atua com desafogo e prazer, oferecendo largamente os resultados da sua desmontagem minuciosa, paciente e cheia de iluminações, que permite mostrar com segurança a anatomia e a mensagem dos textos. Sem bulha nem matinada, foi construindo um método original, preciso e fecundo, que ainda por cima tem a vantagem de projetar-se numa figura que o olhar abrange, dispondo o texto conforme a arquitetura do sentido real. 19 RobeRto LeiseR baRonas (oRg.) [...] aí por volta de 1965, começaram a circular, en- tre os colegas da Faculdade de Filosofia, os gráficos de análise de texto do prof. Salum, altura em que a sua técnica amadurecia em método, conquistando aos poucos a adesão dos colegas, que de início en- xergavam apenas nos seus gráficos um esquema decorativo, à guisa de arabesco... A distribuição dos esquemas foi aumentando, e gradativamente conquistando a curiosidade e o interesse de uma clientela que passou a acreditar nas novidades do sistema, pois ele superava o velho e acanhado mé- todo da análise lógica, abrindo novos horizontes na inteligência linguística do texto, cujos valores semânticos, estilísticos, retóricos e, por que não dizer, a própria maneira de os autores visualizarem o mundo eram desconhecidos completamente pela abordagem sintática tradicional. Salum ar- rebentava de alegria quando percebia que seus esquemas eram examinados, estudados e às vezes até contestados peloscolegas. Não raro os gráfi- cos eram redistribuídos em segunda e até terceira edição, pois o próprio autor muitas vezes se dava conta das imperfeições ainda existentes nos seus esquemas, ou acatava as opiniões divergentes que lhe pareciam válidas. (BLiKStEiN, 1994, p.150). A imagem a seguir é um dos manuscritos engendrados pelo Prof. isaac Nicolau Salum para exemplificar o funcio- namento linguístico-textual da sua teoria dos Garfos. Para além da originalidade da abordagem, cumpre destacar que a teoria do Prof. Salum foi produzida antes mesmo da pu- blicação do clássico Cohesion in English de M. K. Halliday e R. Hasan em 1976, obra que viria inaugurar os estudos sobre a gramática do texto ou o que conhecemos hoje como Linguística textual. 20 estudos discuRsivos à bRasiLeiRa: uma intRodução Dada a pertinência e a heurística positiva tanto do artigo de Módulo e Braga (2012) quanto da conferência de ilari (2013) para o debate sobre a história e o fazer pros- pectivo da Linguística do Brasil, gostaríamos de ampliar tal discussão, defendendo neste livro a tese de que há no Brasil não só teorias do idioma, que têm centralmente o português brasileiro como objeto de estudo, enfatizando os níveis fono- lógico, morfológico, lexical, sintático, semântico e textual, como propõem os autores citados, mas que há também, por um lado, teorias das línguas faladas no Brasil8 e, por outro, teorias brasileiras do discurso. 8 Segundo Gilvan Muller de Oliveira (2000, p.1) “[...] no Brasil de hoje são falados por volta de 200 idiomas. As nações indígenas do país falam cerca de 170 línguas (chamadas de autóctones), e as comunidades de descendentes de imigrantes outras 30 línguas (chamadas de línguas alóctones).” 21 RobeRto LeiseR baRonas (oRg.) Não se trata de agir como um Policarpo Quaresma da ciência brasileira ou mesmo um fervoroso seguidor de Mi- guel Nicolelis9, propondo com base nas suas reflexões, uma Linguística Tropical, ou mais especificamente, uma Análise de Discurso Apaporu (ADA), mas de apresentar maneira introdu- tória em um único suporte algumas das teorias de discurso forjadas pelos pesquisadores brasileiros. teorias brasileiras do discurso: um Pouco mais As teorias e seus respectivos autores que elencamos neste livro estão inscritas nos mais variados domínios do campo de estudos do discurso10, isto é, elas não estão cir- cunscritas somente ao domínio derivado da Análise de Dis- curso de orientação francesa, por exemplo. Elas vão de uma semiótica da canção a uma arquegenealogia dos discursos. Cumpre dizer que, apesar de essas teorias terem o discurso 9 Manifesto de autoria de Miguel Nicolelis (2013) que propõe a criação de um novo paradigma científico, cujo título é Manifesto da Ciência Tropical: um novo paradigma para o uso democrático da ciência como agente efetivo de transformação social e eco- nômica no Brasil. A proposta de Nicolelis está alicerçada na filosofia do educador Paulo Freire e na de Alberto Santos-dumont e propõe quinze metas que visam a desencadear a massificação e a democratização dos meios e mecanismos de geração, disseminação, consumo e comercialização de conhecimento de ponta por todo o Brasil. 10 Em seu livro discurso e Análise do discurso, lançado no último Seminário do GEL, realizado em Campinas, em julho de 2015, dominique Maingueneau asse- vera: “O campo da análise do discurso, hoje globalizado e em expansão contínua, resulta da convergência de correntes de pesquisa provindas de disciplinas muito diferentes (linguística, sociologia, filosofia, psicologia, teoria literária, antropolo- gia, história...) e, por sua vez, exerce sua influência sobre elas. Falou-se muito de uma “virada linguística” na filosofia, na história e nas ciências sociais na segunda metade do século XX; poder-se-ia também falar de uma “virada discursiva”. de fato, não há nenhum setor das ciências humanas e sociais ou das humanidades que não possa fazer apelo a suas problemáticas, seus conceitos ou seus métodos. [...] Mesmo que as problemáticas de análise do discurso desenvolvidas na França tenham exercido indiscutivelmente um papel fundador e continuem a apresentar certo número de traços característicos, atualmente elas se encontram inseridas em um espaço de pesquisa que é globalizado, no qual as hibridações conceituais se multiplicam; 1) o campo dos estudos de discurso deve ser distinguido de outro, mais restrito, o da análise do discurso, que define um ponto de vista específico sobre o discurso; 2) o universo do discurso, o material a partir do qual trabalham os analistas do discurso, é profundamente heterogêneo: não se pode unificá-lo em torno do modelo dominante da comunicação oral face a face”. (MAINGUENEAU, 2015, p 4-6 – grifos nossos). 22 estudos discuRsivos à bRasiLeiRa: uma intRodução como objeto de observação, cada uma delas constrói o seu objeto teórico de maneira bem diferente. Nesse sentido, temos como algumas das teorias do discurso forjadas em cadinho verde e amarelo, a Semiótica da Canção, proposta por Luiz tatit (2007); a Semântica do Acontecimento, proposta por Eduardo Guimarães (2005)11; a Teoria dos Estereótipos Básicos e dos Estereótipos Opostos (2010), proposta por Sírio Possenti; a Teoria do silêncio, proposta por Eni Orlandi12 (2003); a Análise dialógica do discurso verbo- visual, proposta por Brait a partir de 1995 e a Abordagem foucaultiana do discurso, proposta por Gregolin e seu grupo de estudos (2000). todas essas teorias, embora tenham conver- sado, algumas mais, outras menos antropofolemicamente, com teorias desenvolvidas, sobretudo, na França do final dos anos 60 e 70 do século passado, possuem traços epistemoló- gicos que são bem brasileiros. No nosso entendimento não se trata simplesmente de expansões para dar conta de dados específicos, ou de meras resoluções de quebra-cabeças, para usar a terminologia khunniana, são programas de pesquisa no sentido atribuído a esta metodologia por Lakatos13. Para defender o ponto de vista expresso acima, busco subsídios em consistentes trabalhos de jovens pesquisadores brasileiros, que embora não se constituam nos autores das teorias brasílicas do discurso aqui descritas, têm trabalhado de maneira bastante renhida com esses arcabouços teórico- metodológicos, fazendo-os muitas vezes ranger. 11 Uma apresentação detalhada das reflexões propostas por Guimarães pode ser vista no livro Semântica do acontecimento (2005). 12 Uma apresentação detalhada das propostas formuladas por Eni Orlandi pode ser vista no livro Discurso e texto: formulação e circulação dos sentidos (2004). 13 No entendimento de Imre Lakatos (1979), um programa de pesquisa constitui-se de um núcleo firme - um conjunto de hipóteses ou teorias, considerado como irrefu- tável pelos cientistas – e de uma heurística, que mobiliza os cientistas a modificar o cinturão protetor – conjunto de hipóteses auxiliares e métodos observacionais de modo a adequar o programa diante de novos dados. 23 RobeRto LeiseR baRonas (oRg.) inaugura o livro o capítulo “O silêncio existe para (não) poder dizer” de Lucília Maria Abrahão e Sousa. Na sequên- cia, Flávio Henrique Moraes e Mônica Baltazar Diniz Sig- nori apresentam o capítulo intitulado “Semiótica e canção: uma paixão brasileira”. Depois, Soelir Maria Schreiber da Silva e Carolina de Paula Machado apresentam o capítulo “Semântica do acontecimento: princípios teóricos, meto- dológicos e análises”. No quarto capítulo, Fernanda Góes de Oliveira ávila e Roberto Leiser Baronas apresentam a “teoria dos estereótipos básicos e dos estereótipos opostos: a piada levada a sério”. O capítulo cinco, “De presidentes e presidenciáveis: verbo-visualidade na esfera jornalística e político-partidário” é apresentado por Maria Helena Pistori. Finaliza a coletânea o capítulo “Por uma análise arquegea- lógica do discurso” de autoria de Pedro Navarro. Acredito ser importante (re)dizer que assim como as teorias das línguas brasílicas não se resumemaos importantes trabalhos de Back e Mattos (1972); Kato e tarallo (1989); Ferrarezi (2010) e Castilho (2010), citados por Módulo e Braga, pois também poderíamos elencar os trabalhos de Heitor Megale14 e Rosa Virgínia Matos15 sobre o português diacrônico, os de Aryon Rodrigues16 sobre as línguas indí- genas brasileiras, os de Maria Helena Moura Neves17 sobre a gramática de usos do português, os de Francisco da Silva Borba18 sobre o dicionário de usos do português, as teorias 14 No livro coorganizado com Sílvio Almeida de Toledo Neto “Por minha letra e sinal: documentos do ouro do século XVII”, publicado pela Ateliê Editorial em 2005, pode-se encontrar uma representação metonímica das propostas teóricas desenvolvidas por Megale. 15 Em “Ensaios para uma sócio-história do português brasileiro”, publicado pela Parábola Editorial em 2004, pode-se encontrar uma bela apresentação da teoria proposta por Rosa Virgínia Matos. 16 Trabalhos representativos deste importante linguista brasileiro podem ser lidos gratuitamente no site http://biblio.etnolinguistica.org/colecao:aryon 17 Uma apresentação detalhada da teoria proposta por Moura Neves pode ser encontrada no livro Gramática de usos do português, São Paulo: Editora da UNESP, 2000. 18 As propostas teóricas de Borba podem ser vistas no livro. Dicionário de usos do português do Brasil. São Paulo: Ática, 2002. 24 estudos discuRsivos à bRasiLeiRa: uma intRodução sobre discurso não se resumem aos autores apresentados nos capítulos que compõem este livro. Nesse sentido, vale men- cionar os trabalhos de José Luíz Fiorin19 acerca do discurso literário; os de Diana Barros20 sobre o discurso da intolerância; os de ida Lúcia Machado21 sobre as emoções e os de izabel Magalhães22 sobre as relações entre discurso e poder. à guisa de conclusão, digo que a epígrafe de Mario de Andrade não é uma perfumaria nesta introdução, que busca sugerir aos meus destinatários uma imagem de pes- quisador erudito. Defendo que nas pesquisas em ciências brasileiras da linguagem deveríamos fazer como Andrade, na textualização de sua gramatiquinha da fala brasileira, ou seja, “ser brasileiro e não nacionalista. Escrever [produzir] naturalmente brasileiro [ciências brasileiras de linguagem] sem nenhuma reivindicação nem queixa” (re)construindo as nossas próprias teorias discursivas. Fica aí o convite para os nossos alunos de Letras e Linguística 19 As discussões elaboradas do Fiorin acerca do discurso literário podem ser vistas no livro As astúcias da enunciação: as categorias de pessoa, espaço e tempo, publicado pela editora Ática em sua primeira edição em 1999. 20 As reflexões propostas por Diana Barros sobre o discurso da intolerância podem ser vistas em O discurso intolerante: primeiras reflexões. São Paulo (texto digitado), 2005 A construção discursiva dos discursos intolerantes. In : BARROS, diana L. P. de (org.). Preconceito e intolerância na linguagem. São Paulo : Editora Mackenzie, 2011.Precon- ceito e intolerância em gramática do português. In : BARROS, d. L. P. de e FIORIN, J. L. (orgs.). A fabricação dos sentidos – estudos em homenagem a Izidoro Blikstein. São Paulo: Humanitas, 2008, p. 339-363. Política e intolerância. In : FULANETI, O. N. e BUENO, A. M. (orgs.). Linguagem e política : princípios teórico-discursivos. São Paulo : Contexto, 2013, p.71- 92. Intolerância, preconceito e exclusão. In: LARA, Gláucia Proença e LIMBERTI, Rita Pacheco (orgs.). Discurso e (des)igualdade social. São Paulo: Contexto, 2014, p.61-78.. 21 Um dos trabalhos de Ida Lúcia Machado pode ser visto no livro As emoções no discurso, publicado em 2010 pela Editora Mercado de Letras. 22 Uma representação metonímica dos trabalhos desenvolvidos por Izabel Magalhães pode ser vista em Teoria crítica do discurso e texto. Linguagem em (Dis)curso, 4, 2004. disponível em: http://www.unisul.br/paginas/ensino/pos/linguagem/0403/05.htm 25 RobeRto LeiseR baRonas (oRg.) bibliografia ARGENMULLER, J. A análise do discurso na Europa. IN: BONNAFOUS, S. & TEMAR, M. Análise do discurso, ciências humanas e sociais: diálogos pertinentes. (Trad. Roberto Leiser Baronas et al). São Carlos, SP: Pedro e João Editores, 2015. CASTILHO, A. Breve memória do Grupo de Estudos Linguísticos do Estado de São Paulo. In:: BRUNELLI, A. F. (et all). GEL: 40 anos de história na Linguística Brasileira. São Paulo: Paulistana, 2009. COURTINE, J. J. O discurso inatingível: marxismo e linguística (1965-1985). Trad. Heloisa Monteiro Rosário. Cadernos de Tradução, Porto Alegre, n. 6, 1999. DUFOUR, F.; ROSIER, L. Analyse do discours à la française: continuités et reconfigurations. Revue Langage & Société, nº 140, Éditions de la Maison des sciences de l´homme, juin de 2012. GUIMARÃES, E. Semântica do acontecimento. Campinas, SP: Pontes Editores, 2005. GUILHAUMOU, J. Linguística e história: percursos analíticos de acontecimentos discursivos. São Carlos, SP: Pedro & João Editores, 2009. HELSLOOT, N. et HAK Tony , « La contribution de Michel Pêcheux à l’analyse de discours » , Langage et société, 2000/1 n° 91. KHUNN, T. A revolução copernicana: a astronomia planetária no desenvolvimento do pensamento Ocidental. Lisboa: Edições 70, 1990 _____. A estrutura das revoluções científicas. 7.ª ed. São Paulo: Perspectiva, 2003. LAKATOS, I. The Methodology of Scientific Research Programmes: Philosophical Papers Volume 1. Cambridge: Cambridge University Press, 1977. _____. Mathematics, Science and Epistemology: Philosophical Papers Volume 2. Cambridge: Cambridge University Press, 1978. MAINGUENEAU, D. Novas tendências em Análise do Discurso. Campinas: Pontes & Editora da Unicamp, 1989. MAINGUENEAU, D. & CHARAUDEAU, P. Dicionário de Análise do Discurso. São Paulo, Contexto, 2003. MAINGUENEAU, D. A Análise do Discurso e suas fronteiras. In:: Revista Matraga, v. 14, nº 20, 2007. MAINGUENEAU, D. Discurso e Análise do discurso. (Trad. Sírio Possenti). São Paulo, SP: Parábola Editorial, 2015. 26 estudos discuRsivos à bRasiLeiRa: uma intRodução NICOLELIS, M. Manifesto da Ciência Tropical: um novo paradigma para o uso democrático da ciência como agente efetivo de transformação social e econômica no Brasil. Disponível no site http://www.viomundo.com.br/entrevistas/nicolelis-lanca- manifesto-da-ciencia-tropical-vai-ditar-a-agenda-mundial-do- seculo-xxi.html ORLANDI, E. As formas do silêncio: no movimento dos sentidos. 6 ed. Campinas, SP: Editora da Unicamp, 2007. PINTO, E. P. A gramatiquinha de Mário de Andrade: texto e contexto. São Paulo: Duas cidades/Secretaria de Estado de Cultura, 1990. POSSENTI, S. Humor, língua e discurso. São Paulo, Contexto, 2010. TATIT, L. Semiótica da canção: melodia e letra, 3 ed. São Paulo, SP: Escuta, 2007. 27 RobeRto LeiseR baRonas (oRg.) O SiLÊNCiO EXiStE PARA PODER (NãO) DiZER Por Lucília Maria Abrahão e Sousa ”O senhor sabe o que o silêncio é? É a gente mesmo, demais.” Guimarães Rosa um Percurso teórico entre silêncios e Palavras Calvino (1994, p. 7-8), ao descrever uma onda do mar, sinaliza algo que tomo aqui como mote para refletir sobre o silêncio e a linguagem: “Se então considerarmos cada onda no sentido de sua amplitude, paralelamente à costa, será difícil estabelecer até onde a frente que avança se estende contínua e onde se separa e se segmenta em ondas autôno- mas, distintas pela velocidade, a forma, a força, a direção”1. Uma onda enreda-se em outras, desdobra-se em efeitos de continuidade que se estiram em partes de outras ondas, e também em ausência delas, em mar aberto ou baía fechada. A onda dá-se como fundante na constituição de mar, e o contrário também vale; dessa mesma espessura são feitos silêncio e linguagem, tema sobre o qual esse trabalho irá se debruçar. A obra de Orlandi (1997) inaugura um modo de pro- blematizar e refletir sobre as formas do silêncio, marcando-o 1 Agradeço à Profa. dra. Vanise Medeiros o presente do livro Palomar, de Ítalo Calvino, e todos os momentosde interlocução sempre prazerosos. 28 estudos discuRsivos à bRasiLeiRa: uma intRodução primeiramente como fundador de todo ato de linguagem. Descarta a concepção de que há falta ou ausência no silêncio e de que ele é o “resto da linguagem” (1997, p. 12), ou seja, desloca as certezas depositadas nas reflexões que entendem o silêncio como da ordem da ausência. Anota ainda que não se trata de pensar o “nada”, já que “não é o vazio sem história” (op. cit, p. 23), já que “o silêncio não é mero complemento de linguagem” (idem). Desnaturalizando efeitos muito eviden- ciados na ordem do repetível, a autora faz, primeiramente, o percurso de teorizar aquilo que o silêncio não é: “O silêncio não é, pois, em nossa perspectiva, o ‘tudo’ da linguagem. Nem o ideal do lugar ‘outro’, como não é tampouco o abismo dos sentidos.” (op. cir., p. 23). Ainda trabalhando na desconstrução de nossas cer- tezas sobre o silêncio, a autora marca que ele “não é dire- tamente observável e no entanto ele não é vazio, mesmo do ponto de vista da percepção: nós o sentimos, ele está ‘lá’ (no sorriso de Gioconda, no amarelo de Van Gogh, nas extensões, nas pausas” (op. cit., p. 47). Dito desse modo, o silêncio coloca-se em toda e qualquer materialidade com a qual nos deparamos, e sustenta toda a significação. E Or- landi apresenta-o em outra dimensão, qual seja, a de que existe um “sentido no silêncio” e de que “todo dizer é uma relação fundamental com o não-dizer” (op. cit., p. 12); isso porque estamos na instância que considera a incompletude da linguagem e a errância dos sentidos a partir de algo que os funda, o silêncio. Ele configura-se com “significância própria” que “dá espaço de recuo significante, produzindo as condições para significar” (idem, p. 23-24). A autora compara-o ao mar que “não está disponível à visibilidade, não é diretamente observável. Ele passa pelas palavras. Não dura. Só é possível vislumbrá-lo, de modo fugaz” (idem, p. 34). O silêncio é fundador, espécie de material alicerçante sobre o qual se ergue todo dito. 29 RobeRto LeiseR baRonas (oRg.) O silêncio é da ordem do não dito, funciona de modo a sustentar a linguagem, dando suporte aos movimentos significantes e aos giros do sujeito na linguagem, o silêncio “é assim a ‘respiração’ (o fôlego) da significação; um lugar de recuo necessário para que se possa significar, para que o sentido faça silêncio. Reduto do possível, do múltiplo, o silêncio abre espaço para o que não é ‘um’, para o que permite o movimento do sujeito.” (op. cit., p. 13). Ou seja, sujeito e sentidos estruturam-se e podem vir a emergir porque há si- lêncio, porque muitos sentidos fervilham no silêncio fundan- te, prontos a ser tomados a partir de uma posição-sujeito e grávidos de serem ditos em dadas condições sócio-históricas. O silêncio, como iminência do sentido, tal como expressamos no corpo de nosso trabalho, nos aponta que o fora da linguagem não é o nada mas ainda sentido. Silêncio que atravessa as palavras, que existe entre elas, ou que indica que o sentido pode ser outro, ou ainda que aquilo que é o mais importante nunca se diz, todos esses modos de existir dos sentidos e do silêncio nos levam a colocar que o silêncio é ‘fundante’. (ORLANDi, op. cit., p. 13-14) Fundante ou fundador, assim a autora o toma para pensá-lo discursivamente em sua primeira forma, anotan- do que “Sempre se diz a partir do silêncio” (op. cit., p. 23). Estamos aqui a trabalhar o dizer em sua instância própria da linguagem, “o silêncio fundador, aquele que existe nas palavras, que significa o não-dito” (op. cit., p. 24). É da or- dem do sujeito jogar, brincar e equilibrar-se nessa gangorra permanente entre o dito e o silenciado, o dizer e o não dizer, a palavra e o que não coube nela; mais ainda, o sujeito enun- cia sempre no limiar dessa “possibilidade de movimento, deslocamento de palavras em presença e ausência”. (op. cit., p. 25). O silêncio fundador é, “não fala. O silêncio é. Ele sig- 30 estudos discuRsivos à bRasiLeiRa: uma intRodução nifica. Ou melhor: no silêncio, o sentido é.” (op. cit., p. 33). O silêncio está, o silêncio atravessa, o silêncio compõe e o silêncio assegura que a palavra venha a ser. Uma instância constitutiva da linguagem que permite ao sujeito endereçar a sua voz por meio de uma palavra, ainda que amparados - ambos, sujeito e palavra - pelo silêncio. Baldini (2012, p.108) define “a política da cesura” em relação silêncio fundador, o que significa “falar, falar ao outro, falar ao Outro, supõe a ilusão da comunicação, o recorte no continuum do silêncio, o surgimento do verbo e seus trejeitos, sua sedução e seu poder de nos fazer imaginar que há algo mais além da linguagem, viagem sempre buscada.” Assim, a primeira forma do silêncio é denominada como fundador, mas Orlandi (1997, p. 75) define ainda a “política do silêncio” com duas outras formas articuladas nos seguintes termos “política do silêncio, que, por sua vez tem duas formas de existência ligadas a) o silêncio constitutivo e b) o silêncio local”. Para entender o silêncio constitutivo, é considerar que à condição de dizer sempre corresponde o gesto de apagar e silenciar. Por tomarmos a palavra, cala- mos; e, por calarmos certas palavras, nos é possível assumir uma (ao menos) e tomá-la como inscrição na linguagem. É interessante marcar que se algo-silêncio funda toda palavra, algo do silêncio a fez funcionar depois de dita, visto que uma palavra “escolhida” deixa de lado inúmeras outras maneiras de dizer. Essa tensa relação entre a palavra e o silêncio dá-se aqui a partir das condições sócio-históricas, em que a historicida- de faz falar a legitimidade de certos sentidos em detrimento de outros. Ou seja, há palavras que são postas em silêncio pelo que não devem circular, tidas como indesejáveis ou pre- teridas em dada conjuntura; o que nem por isso as faz deixar de existir ou as impede de circular em outras condições. 31 RobeRto LeiseR baRonas (oRg.) Com efeito, a política do silêncio se define pelo fato de que ao dizer algo apagamos necessariamente outros sentidos possíveis, mas indesejáveis, em uma situação discursiva dada. A diferença entre o silên- cio fundador e a política do silêncio é que a política do silêncio produz um recorte entre o que se diz e o que não se diz, enquanto o silêncio fundador não estabelece nenhuma divisão: ele significa em (por) si mesmo. (ORLANDi, 1997, p. 75) Vejamos o silêncio constitutivo então. Ao tomar a palavra e enunciar de um lugar discursivo, cabe ao sujeito deixar de lado outras tantas formas de dizer sobre o seu objeto, deixando em latência de um vir-a-ser possível em outros dizeres. Por não ser possível tudo dizer e por não ter cabimento dizer muitas palavras ao mesmo tempo, o sujeito abre mão do todo da língua e “escolhe” certo dizer a partir da posição que ocupa. inscrever-se de um modo na língua é, nesses termos, uma operação da política do silêncio. Orlandi (op. cit, p. 76) anota que “se diz ‘x’ para não (deixar) dizer ‘y’, este sendo o sentido a ser descartar do dito. É o não dito necessariamente excluído”. trata-se então do silêncio constitutivo na relação do dito com os não ditos. Em concordância com a teoria discursiva, fundada por Michel Pêcheux, sabemos que é impossível tudo dizer, que o sujeito recolhe palavras que já circularam antes para se sustentar em uma posição e as toma como suas a partir da evidência ideológica de um sentido. Ao fazê-lo, o sujeito cala e silencia, posto que “ao dizer algo apagamos necessaria- mente outros sentidos possíveis, mas indesejáveis, em uma situação discursiva dada” (ORLANDi, op. cit., p. 75). tal funcionamento é constitutivo já que toda palavra, depois de colocada em discurso, passa a criar relações com o que não foi colocado na ordem da língua. interessante perceber como a autora (op. cit., p. 72) postula essa condição lacunar 32 estudos discuRsivos à bRasiLeiRa: uma intRodução da palavra bordejadapelo silêncio: “o sujeito desdobra o si- lêncio em sua fala. No discurso há sempre um ‘projeto’, um futuro silencioso do sujeito, pleno de sentidos”. Vejamos um exemplo disso. Na rede social Facebook, cada solicitação de amizade é enviada de um sujeito-nave- gador para outro, o qual deve responder de modo a aceitar ou recusar a entrada deste em sua rede. E desse modo que se cria um circuito de redes dentro de redes conectadas na movência própria do digital. Não importa aqui discutir isso, mas, sim, o que aparece vez ou outra quando o “dono” da sua própria página do Face é convocado a responder a seguinte questão: interessante observar discursivamente como este dizer está em relação a um não dito (dentre outros). Ora, se esta- mos no espaço virtual, os amigos denominam-se igualmente virtuais, o que marcaria uma forma outra de inscrição da so- cialização. No entanto, o recorte acima nos convoca a checar se o solicitante é conhecido no mundo fora da própria rede social onde ele está inscrito. Silencia-se, assim, a virtualidade do próprio dispositivo tecnológico, cuja função é justamente conectar pessoas que estão em diferentes lugares sem ne- cessidade de contato físico ou pessoal. A “obrigatoriedade” ou a necessidade de um “conhecer bem” implica não dizer onde exatamente está inscrita a subjetividade do navegador na rede. 33 RobeRto LeiseR baRonas (oRg.) Além do silêncio fundador e do silêncio constitutivo, Orlandi (1997) apresenta mais uma forma de silêncio, qual seja, o silêncio local, aquele em que há censura e interdição de certos sentidos considerados indesejáveis e impedidos de circular em dadas condições sócio-históricas. tais sentidos não teriam espaço de circulação pois, pelo efeito ideológico de evidência, desautorizariam o que está legitimado como aceito ou oficial, fariam buraco no que é enrigecido como único dizer; assim, não podem nem devem ser ditos. Proíbem-se certas palavras para se proibirem certos sentidos. No entanto, há um aspecto inte- ressante a observar em relação ao mecanismo da censura. Como, no discurso, o sujeito e o sentido se constituem ao mesmo tempo, ao se proceder desse modo se proíbe ao sujeito ocupar certos ‘lugares’, ou melhor, proíbem-se certas ‘posições’ sujeito. (ORLANDi, 1997, p. 78) Desse modo, são certas posições-sujeito em dadas for- mações discursivas que merecem ser impedidas de circulação, embora - é preciso dizer - que isso não as elimina, tampouco significam que elas não irão irromper de outro modo. Sabe- mos, pela interpelação ideológica dos dois esquecimentos de Pêcheux (1975), que o sujeito não controla todos os sentidos que produz e que há um atravessamento inconsciente em todo ato de linguagem, o que marca que o censurado pode re-aparecer e circular de outro modo. Sobre isso, Orlandi (op. cit., p. 98) afirma que “[...] dizemos o mesmo para significar outra coisa e dizemos coisas diferentes para ficar no mesmo sentido. É este movimento que me interessa na base da relação censura/resistência”. Eis aqui a esfera do sujeito - e do modo como ele inscreve- se em uma dada posição - e da ideologia, mecanismo que natura- liza sentidos possíveis de serem ditos (ou silenciados) em certo 34 estudos discuRsivos à bRasiLeiRa: uma intRodução lugar discursivo a partir da luta por/entre regiões de poder; isto conduz à reflexão de que a política do silêncio “dispõe as cisões entre o dizer e o não-dizer” já que impõe o silêncio, que não se resume tão somente a calar, mas impede que o sujeito sustente outro discurso diferente do oficial. Proibe-se a circu- lação de certos discursos, exclui-se a abertura do dizer para significaçoes inesperadas e administra-se o efeito parafrástico. Um exemplo bastante recente, ainda sobre e coletado no Facebook, indicia que a política do silêncio existe e opera efeitos de sentido na rede digital. O artigo “Facebook rein- troduz a censura no Brasil”2 aponta, pela via do estudo da comunicação, outros modos de funcionamento da máxima “fulano caiu”, discurso que, no período militar brasileiro, inscrevia efeitos de morte pela tortura e extermínio do Estado em relação aos denominados “subversivos”. Antes o sentido de morte sob castigo, hoje o efeito de outro “castigo”, a suspensão e o banimento da rede social. Assim, as páginas digitais caem, são excluídas por um tempo determinado pelo próprio Face, isto é, são tiradas do ar sem o consentimento de seus donos-criadores e dos sujeitos que ali instalam seus dizeres. E agora quem o faz é uma empresa planetária, de alcance globalizado e que trama suas negociações em um território ao qual nenhuma legislação tem alcance. No dia 28 de julho de 2013, realizou-se a segunda edição do “Dia da Livre Expressão do Nu no Facebook”, fomentada pela censura sofrida por dois escritores e poetas (Claudio Wil- ler e Floriano Martins) que postaram uma fotografia de Nina Simone nua e tiveram suas páginas pessoais bloqueadas. O movimento durou um dia todo de postagens com mais de dois mil internautas disparando imagens pictóricas e fotográficas de nu artístico, sempre acompanhadas pelo texto a seguir: 2 disponível no endereço eletrônico que se segue, acesso em 02/08/2013. http:// www.observatoriodaimprensa.com.br/news/view/facebook_reintroduz_a_censu- ra_no_brasil 35 RobeRto LeiseR baRonas (oRg.) 28 DE JULHO – DiA DA LiVRE EXPRESSãO DO NU NO FACEBOOK Esta postagem de nu- dez artística faz parte de um movimento contra a censura no Facebook. A censura vai contra a Constituição do meu país. Se o Facebook opera aqui no Brasil, deve respeitar suas leis. - o artigo 5. iX. da Constituição brasileira é claro: é livre a expressão da atividade inte- lectual, artística, científica e de comunicação, independentemente de censura ou licença; - o artigo 220 é ainda mais claro: a manifestação do pensamento, a criação, a expressão e a infor- mação, sob qualquer forma, processo ou meios não sofrerá restrição, observando o disposto nesta Constituição * * * this postage of an artistic nude is part of a move- ment to rule out cultural Censorship in Facebook. Censorship goes against the constitution of my country. if Facebook operates here in Brazil it should respect its laws. - Article 5. iX. of the Brazilian constitu- tion is clear: expression of intelectual, artis- tic, scientific and communication content is free, independently of censorship or licence. - Article 220 is even more clear: manifestation of thought, creation, expression and information, under any form, process or means will not undergo restriction according to this Constitution. interessante observar como o sujeito-navegador, que colou esse texto em sua postagem “pessoal”, marcou a sua participação em uma trama coletiva e legitimou-se a partir do efeito da lei, inscrevendo a Constituição Brasileira (e seus artigos) como aquilo que sustenta a legalidade daquela 36 estudos discuRsivos à bRasiLeiRa: uma intRodução postagem (e de outras), remetendo o seu dizer a um espaço de garantia jurídica estabelecido fora da rede digital. Marcar o “meu país” em um espaço contornado por outras configu- rações de espaço, o ciberespaço, aponta um modo de fazer retornar o que está para além da rede eletrônica. Ora, como vimos no recorte anterior, “conhecer amigos reais” não faz parte do dispositivo do digital que incluiria a virtualidade da amizade, bem como também não o constitui reconhecer uma carta legislada em/de qualquer país. Anoto aqui um fun- cionamento discursivo em que, diante do enigma do espaço digital, o sujeito apega-se e ancora-se no que faz sentido fora da rede eletrônica para significar o que é outro dispositivo. O manifesto foi escrito e circulou em língua portuguesa amparado pela citação de artigos da lei nacional, mas, em se tratando da especificidade do espaço digital, o sujeito antecipa-se a fazer constar também uma versão em língua in- glesa, o que indicia imaginariamente um modo de estabelecer relações comos outros navegadores, ou melhor, com o todo da rede social. No dia do manifesto, outras tantas páginas foram bloqueadas, algumas por 30 dias, outras por 24 horas. Sob a acusação de que elas teriam imagens “pornográficas” ou estariam difundindo conteúdos de “pornografia”, foram silenciadas. Eram fotografias de índias brasileiras amamen- tando, de crianças nuas brincando na chuva, de iansã com os seios de fora, de uma mulher na campanha contra o câncer de mama, de outra grávida seminua, dentre outras. Não é objetivo deste artigo avançar na análise da ciber- militância ou dos efeitos de censura no Face, mas apresentar recortes que indiquem como a teoria do silêncio de Orlandi coloca-se em funcionamento, operando uma inscrição tão própria à lingua e à linguagem. Ao teorizar sobre o silêncio, Orlandi abre um campo para os estudos da linguagem, inserindo uma maneira origi- 37 RobeRto LeiseR baRonas (oRg.) nal e ousada de dar sentido ao que antes deste estudo ficava restrito a um lugar de não sentido, de ausência e de falta de som, bem como do místico e do vazio. As várias formas do silêncio operam nos modos de o sujeito e o sentido se consti- tuirem, edificam toda possibilidade de dizer e encontram-se em relação ao discurso, ao não dito e ao silenciamento. Ou melhor, tais formas presentificam-se: i. no que é a instância sustentadora da linguagem, o silêncio fundante, ii. no que é o não dito ao qual se relaciona a todo modo de dizer, o silêncio constitutivo iii. na censura que impede que certas posições- sujeito circulem, a política do silêncio. Enredada em todas elas, a voz de Rosa se coloca: “o silêncio é a gente mesmo”. referências ORLANDI, E. As formas do silêncio, o movimento dos sentidos. Campinas. Editora da Unicamp, 1997. PÊCHEUX, M. Semântica e discurso, uma crítica à afirmação do óbvio. Campinas. Editora da Unicamp, [1975] 2009. BALDINI, L. J. S. Beckett e a cesura. In: Conceitos discursivos em rede. Lucília Maria Sousa Romão e Fernanda Correa Galli. Org. São Carlos: Pedro & João Editores, 2012. 39 RobeRto LeiseR baRonas (oRg.) SEMiÓtiCA E CANçãO: UMA PAiXãO BRASiLEiRA Por Flávio Henrique Moraes e Mônica Baltazar Diniz Signori A partir desse trabalho, as tentativas anteriores de estudo semiótico da canção acabam soando como tímidos balbucios, como ensaios mais ou menos no escuro1 A teoria conhecida como Semiótica Greimasiana teve suas primeiras sistematizações concluídas na década de 1960, com o trabalho pioneiro de Algirdas Julien Greimas, junta- mente com o Grupo de investigações Sêmio-Linguísticas da Escola de Altos Estudos em Ciências Sociais, em Paris. tem sua fundamentação marcada pela concepção de linguagem saussuriana, segundo a qual as unidades linguís- ticas não se definem positivamente, por características que as constituíssem nelas mesmas, mas, ao contrário, negati- vamente, pelo valor de que se revestem quando em relação umas com as outras. Explica-nos Ferdinand de Saussure (1972, p. 136), por meio dos editores de suas reflexões, C. Bally e A. Sechehaye, no Curso de Linguística Geral: Quando se diz que os valores correspondem a conceitos, subentende-se que são puramente dife- 1 depoimento pessoal do semioticista Ivã Carlos Lopes sobre o livro Semiótica da Canção: melodia e letra, de Luiz Tatit (ALMEIdA, 2009, p. 18). 40 estudos discuRsivos à bRasiLeiRa: uma intRodução renciais, definidos não positivamente por seu con- teúdo, mas negativamente por suas relações com os outros termos do sistema. Sua característica mais exata é ser o que os outros não são. Revela-se a noção de valor na centralidade da teoria saussuriana, irradiando-se em direção à ininterrupta atua- lização da linguagem, em um movimento de autorregulação das unidades no interior do próprio arranjo de que fazem parte: É preciso reconhecer que valor exprime, me- lhor do que qualquer outra palavra, a essência do fato, que é também a essência da língua, a saber, que uma forma não significa, mas vale: esse é o ponto cardeal. Ela vale, por conseguin- te ela implica a existência de outros valores. (SAUSSURE, 2004, p. 30) Entrecruzam-se nesse ponto valor e significação, pi- lares que sustentam, em impulso inicial, as bases da teoria linguística e, em seu contínuo desenvolvimento, “o conceito- chave em redor do qual se organiza toda a teoria semiótica” (GREiMAS; COURtÉS, s.d., p. 418): Reservamos o termo significação para aquilo que nos parece essencial, ou seja, para a “di- ferença” – para a produção e para a apreensão dos desvios – que define, segundo Saussure, a própria natureza da linguagem. Assim enten- dida como utilização das relações – ou como a apreensão delas –, a significação inscreve- se como “sentido articulado”. (GREiMAS; COURtÉS, s.d., p. 419) Vinculadas pelo princípio das relações-diferença – “ser o que os outros não são” – linguística e semiótica evidenciam 41 RobeRto LeiseR baRonas (oRg.) a dinâmica discursiva de ressignificação do desenvolvimento teórico2, instituindo-se, por um lado, o pioneirismo saus- suriano – “é a F. de Saussure que cabe o mérito de haver introduzido o conceito de valor linguístico” (GREiMAS; COURtÉS, s.d., p. 482) –, fazendo, por outro, avançar as próprias orientações basilares: se, no Curso de Linguística Geral, é possível observar um movimento em direção à primazia do valor sobre o signo, as bases da semiótica já se consolidam sobre a compreensão da linguagem como estrutura de significação. Ainda que evitando a falácia das sucessões, a abor- dagem da teoria greimasiana conduz, inevitavelmente, às reflexões do linguista dinamarquês Louis Hjelmslev que, por sua vez, elege Saussure como “o único teórico [que] merece ser citado como pioneiro indiscutível” (1975, p. 5). Aprofundando-se nas possibilidades de engendramento das relações e suas consequências para a significação, Hjelmslev afirma como insustentáveis a “antiga tradição segundo a qual um signo é, antes de mais nada, signo de alguma coisa”, ou a tradicional compreensão de que “o signo é a expressão de um conteúdo exterior ao próprio signo”, posicionando- se “pelo contrário” do ponto de vista da “teoria moderna (formulada em particular por F. de Saussure e, a seguir, por Leo Weisberger)”, que “concebe o signo como um todo formado por uma expressão e um conteúdo” (1975, p. 53). Seguindo a lógica pioneira, Hjelmslev absorve os princípios saussurianos – “a unidade linguística é uma coisa dupla, constituída da união de dois termos” (SAUSSURE, 1972, p. 79) – mas explora em sua teoria das linguagens a trama 2 Ora a noção mesma de história comporta uma parte de ilusão inevitável. A história na sociedade moderna, à semelhança do mito para muitas sociedades, se apresenta como um gesto de fundação. O abuso atual de termos como fundamento, fundação, fundamental o indica suficientemente; há uma tendência em se falar de aquisição e de herança. A ilusão consiste no fato de que não é o primeiro discurso que funda, ou fundaria, o segundo, mas o segundo discurso que instaura o primeiro como primeiro! A sucessão é falaciosa. (ZILBERBERG, 1997, p. 165) – tradução nossa. 42 estudos discuRsivos à bRasiLeiRa: uma intRodução que se estabelece no âmbito de cada face da “coisa dupla”. Para Saussure, o signo constitui uma forma, estabelecido entre duas substâncias: “podemos, então, representar o fato linguístico em seu conjunto, isto é, a língua, como uma série de subdivisões contíguas marcada simultaneamente sobre o plano indefinido das ideias confusas e sobre o plano não menos indeterminado dos sons” (SAUSSURE, 1972, p. 130). “A pertinência da distinção entre “forma” e “substância”, que constitui precisamente o principal mérito de Saussure aos olhos de Hjelmslev,” (ZiLBERBERG, 1997, p. 2) é, antes de tudo, reconhecida, para, em seguida, ser profundamente questionada, tocando Hjelmslev no ponto exato da própria coerência saussuriana: numa ciência que evita qualquer postulado não ne- cessário, nadaautoriza que se faça preceder a língua pela “substância do conteúdo (pensamento) ou pela “substância da expressão” (cadeia fônica) ou o contrá- rio, quer seja numa ordem temporal ou numa ordem hierárquica. Se conservamos a terminologia de Saus- sure, temos então de nos dar conta – e justamente a partir de seus dados – de que a substância depende exclusivamente da forma e que não se pode, em senti- do algum, atribuir-lhe uma existência independente. (HJELMSLEV, 1975, p. 55) (tradução nossa). Como bom leitor, Hjelmslev não acompanha simples- mente as elaborações saussurianas, mas explora e encadeia seus princípios tecendo uma nova configuração, que concebe o signo não como uma forma única decorrente da associação entre significante e significado: “postulando para cada um dos dois planos da linguagem – expressão e conteúdo – a distinção entre forma e substância, foi ele levado a precisar a natureza do signo como reunião entre a forma da expressão e a forma do conteúdo” (GREiMAS; COURtÉS, s.d., p. 422), propondo, por isso “o abandono de uma tentativa de análise em ‘signos’”: 43 RobeRto LeiseR baRonas (oRg.) Somos levados a reconhecer que uma descri- ção que esteja de acordo com nossos princípios deve analisar conteúdo e expressão separa- damente, cada uma destas análises isolando finalmente um número limitado de grandezas que não são necessariamente suscetíveis de serem comparadas com as grandezas do plano oposto. (HJELMSLEV, 1975, p. 51) Se “todo signo, todo sistema de signo, toda língua en- fim, abriga em si uma forma da expressão e uma forma do conteúdo [...] a análise do texto deve conduzir, desde seu primeiro estágio, a uma divisão nessas duas grandezas” (HJELMSLEV, 1975, p. 63). Ampliando e complexizando, assim, a assertiva saussuriana de que “a língua é forma e não substância” (SAUSSURE, 1972), Hjelmslev destaca o princípio de imanência, cuja importância permanece em evidência na teoria greimasiana: O princípio de imanência, essencial para a linguística (e, por extensão, para a semiótica em seu conjunto) é, ao mesmo tempo, o pos- tulado que afirma a especificidade do objeto linguístico que é a forma, e a exigência meto- dológica que exclui qualquer recurso aos fatos extralinguísticos. (GREiMAS; COURtÉS, s.d., p. 268) Concentrando-se, enfim, no estudo da forma, a teoria semiótica concebe a manifestação como a “presentificação da forma na substância”, o que “pressupõe, como condição, a semiose (ou o ato semiótico) que conjunge a forma da expres- são e a do conteúdo” (GREiMAS; COURtÉS, s.d., p. 268): A manifestação é então – e antes de tudo – [...] a postulação do plano da expressão no momento da produção do enunciado e, inver- 44 estudos discuRsivos à bRasiLeiRa: uma intRodução samente, a atribuição do plano do conteúdo no momento de sua leitura. A análise imanente de uma semiótica é, então, o estudo de cada um dos dois planos da linguagem, tomados separadamente. (GREiMAS; COURtÉS, s.d., p. 269) “Na esteira de L. Hjelmslev” (GREiMAS; COURtÉS, s.d., p. 174), marcada também pelo percurso saussuriano, a semiótica greimasiana condensa o problema da significação no ato semiótico que reúne os planos das linguagens – ex- pressão e conteúdo – “em relação de pressuposição recíproca” (GREiMAS; COURtÉS, s.d., p. 174). Jean-Marie Floch3 (2001, p. 9), pioneiro no desenvolvimento da semiótica visual, assim define os dois planos: O plano da expressão é o plano onde as qualidades sensíveis que possui uma linguagem para se ma- nifestar são selecionadas e articuladas entre elas por variações diferenciais. O plano do conteúdo é o plano onde a significação nasce das variações diferenciais graças às quais cada cultura, para pen- sar o mundo, ordena e encadeia ideias e discurso. A partir desses princípios, a semiótica greimasiana desenvolve-se tendo, inicialmente, se ocupado da descrição do plano do conteúdo. Propõe o percurso gerativo do sen- tido e o concebe como uma organização cujo encadeamento orienta-se para níveis crescentes de abstração, generalização, simplicidade e invariância, compreendendo as estruturas sêmio-narrativas (compostas pelas categorias fundamentais e narrativas) e as discursivas: 3 Jean-Marie Floch foi colaborador de Greimas na elaboração da semiótica geral, deixando sua marca original no desenvolvimento dos estudos específicos sobre a visualidade. 45 RobeRto LeiseR baRonas (oRg.) Designamos pela expressão percurso gerativo a economia geral de uma teoria semiótica (ou apenas linguística), vale dizer, a disposição de seus componentes uns com relação aos outros, e isso na perspectiva da geração, isto é, postu- lando que, podendo todo objeto semiótico ser definido segundo o modo de sua produção, os componentes que intervêm nesse processo se articulam uns com os outros de acordo com um “percurso” que vai do mais simples ao mais complexo, do mais abstrato ao mais concreto. (GREiMAS; COURtÉS, s.d., p. 206) O ponto mais abstrato, geral e simples desse percurso é descrito no nível fundamental, constituído por uma única oposição semântica, ampla o suficiente para sustentar o conteúdo de vários textos, construindo, assim, também, uma marca de invariância. É o caso de categorias como: /bem/ vs. /mal/, /vida/ vs. /morte/, /cultura/vs. /natu- reza/, /feminilidade/ vs. /masculinidade/, /divindade/ vs. /humanidade/. Concebeu-se, inicialmente, sua sintaxe regida por uma ló- gica implicativa, entendida como o encadeamento de operações tais que a negação de um dos contrários pressupõe a afirmação do outro. Por exemplo, uma manchete como “Morre em São Paulo o jornalista Joelmir Beting”4 é mantida semanticamente pela oposição /vida/ vs. /morte/, cuja sintaxe obedece à se- guinte sequência: primeiro a/vida/ é afirmada, para ser negada em seguida, dando lugar à afirmação da /morte/. Observamos como característica dessa sintaxe a discretização dos elementos que entram em relação e que, nesse caso, representam bem a significação veiculada pela manchete. Entretanto, em “Joelmir 4 http://g1.globo.com/sao-paulo/noticia/2012/11/morre-o-jornalista-joelmir-beting. html 46 estudos discuRsivos à bRasiLeiRa: uma intRodução Beting está em coma irreversível, diz hospital”5 a mesma lógica não se verifica, pois /vida/ e /morte/ seguem afirmadas, uma ao lado da outra, em um contínuo que demanda não operações de negação, implicação e afirmação, mas o estabelecimento de um gradiente que configure o grau de tensão no intervalo entre os polos do eixo semântico: não se trata de afirmar ou negar a /vida/ ou a /morte/, mas de determinar a tensividade entre elas, o que, por sua vez, definirá o estado do sujeito em questão. A proposta de uma sintaxe tensiva alcança sua expres- são máxima – genial – em Claude Zilberberg, que evidencia em sua teoria o contínuo e suas modulações, buscando as condições metodológicas necessárias para a abordagem dessa configuração significativa: “nosso ponto de partida não é nem a oposição [a vs. b] nem a soma [a + b], mas a interação [ab], que chamamos de produto” (ZiLBERBERG, 2010, p. 2). Prepara-se, então, a teoria para o estudo e a descrição da significação constituída a partir de uma outra lógica, a concessiva. Retomando nosso exemplo anterior, enquanto a primeira manchete apoia-se em uma base implicativa – a extinção da /vida/ implica a /morte/ –, a segunda busca uma posição entre os dois extremos: é a /vida/ que se ma- nifesta apesar da /morte/, ou a /morte/ que se faz presente apesar da /vida/. A semântica do nível fundamental comporta, ainda, a atri- buição de valores – euforia ou disforia – aos termos da oposição de base. Seguindo com o noticiário sobre nosso jornalista, uma outra reportagem – “Palmeiras lamenta a morte de Joelmir Beting”6 – não apenas divulga o acontecimento, mas explicita, por meio do “lamento”, o valor negativo atribuído ao termo / morte/, pressupondo-se a positividade relativa ao seu contrário. Esses valores, assim como toda operaçãodescrita pelo percurso 5 http://oglobo.globo.com/economia/joelmir-beting-esta-em-coma-irreversivel-diz- hospital-6859216 6 http://esporte.uol.com.br/futebol/ultimas-noticias/2012/11/29/palmeiras-lamenta- morte-de-joelmir-beting-e-presta-homenagem-ao-palmeirense.htm 47 RobeRto LeiseR baRonas (oRg.) gerativo do sentido, são configurados de maneira específica em cada texto, o que é evidente pois, inscrevendo-se “a significação [...] como ‘sentido articulado’” (GREiMAS; COURtÉS, s.d., p. 419), importam menos os elementos que entram em jogo para a produção significativa e mais a engenharia que os configura em cada tessitura particular. Assim, uma última reportagem – “Americanos comemoram nas ruas morte de Bin Laden”7 – nos demonstra a utilização da mesma oposição – /vida/ vs. /morte/ –, da mesma lógica implicativa que nega a /vida/ para afirmar a /morte/, modificando, no entanto, o valor dos termos contrários, detalhe suficiente para configurar tramas completamente distin- tas. O mesmo se pode facilmente observar com relação à sintaxe: uma narrativa como a ressurreição de Lázaro opera em direção oposta às exemplificadas anteriormente, pois aqui é a /morte/ que é negada para que a /vida/ possa ser afirmada. Passando ao nível narrativo, os termos da categoria opo- sitiva do nível fundamental “são assumidos como valores por um sujeito e circulam entre sujeitos, graças à ação também de sujeitos” (BARROS, 1990, p. 11), concebidos estes como um papel actancial que se define de maneira interdependente pela associação com outro papel actancial – o objeto –, com o qual estabelece relações de junção – conjunção ou disjun- ção –, construindo narrativas mínimas, respectivamente de aquisição ou de privação. O jogo entre essas duas narrativas pode ser observado na canção Amigo é pra essas coisas8, cuja significação sustenta- se justamente pelos estados contrários que caracterizam dois amigos que se encontram depois de muito tempo distancia- dos. No diálogo que se estabelece entre eles, um relata suas mazelas, o que se configura como a situação de disjunção do sujeito com objetos-valor representados, basicamente, pelo 7 http://www.bbc.co.uk/portuguese/multimedia/2011/05/110502_videobinladenrua- ebc.shtml 8 Composição de Aldir Blanc e Sílvio da Silva Júnior. Interpretação de MPB 4, no álbum A Arte de MP4 (coletânea), Fontana Special, 1976. 48 estudos discuRsivos à bRasiLeiRa: uma intRodução amor e pelo dinheiro: “Rosa acabou comigo”; “estou desem- pregado”. O outro, em posição oposta, acha-se em conjunção com esses objetos: “dei mais sorte com a Beatriz”; “tome um cabral”. interessante observar como, sendo uma canção, ou seja, um texto sincrético que associa elementos da lingua- gem verbal e da linguagem musical, sua melodia compõe igualmente o quadro de oposição entre os dois sujeitos, de tal maneira que a fala do primeiro – em disjunção com os objetos-valor – é marcada por frases melódicas mais lentas, em que se destaca o prolongamento das vogais, criando-se o efeito de lamento; a do segundo – em conjunção com os objetos-valor – é, ao contrário, construída por meio de fra- ses melódicas com menor duração, em que as consoantes se acentuam frente às vogais, constituindo os ataques rítmicos coerentes com seu bem-estar. Ao lado desses estados – relações de junção entre su- jeito e objeto –, Amigo é pra essas coisas expressa também acontecimentos que culminaram na natureza da junção: a canção nos leva a supor que a condição infeliz de um e a de satisfação de outro são devidas à ação de dois diferentes su- jeitos, figurativizados, respectivamente, por Rosa e Beatriz. importa considerar que enunciados de estado, que descrevem as junções, associam-se a enunciados de fazer, que descrevem os deslocamentos das relações entre os papéis actanciais: presume-se que o estado de infelicidade evidenciado na canção é o resultado de um processo de transformação do sujeito devido às expectativas criadas em relação a Rosa, fi- gurativização de um objeto-valor, mas também de um sujeito que, com suas ações, levou à frustração das expectativas do amigo em sofrimento, deslocando-o de um estado feliz – a esperança – para um infeliz – a decepção. 49 RobeRto LeiseR baRonas (oRg.) Caracteriza-se, assim, a narratividade9 como um enca- deamento de enunciados de estado e de fazer, tendo em vista os valores estabelecidos pelos sujeitos que, em sua busca de diferentes junções, vão sendo modalizados, configurando-se, antes de tudo, a partir das relações que estabelecem com suas motivações, vale dizer, a partir da maneira como modalizam seu ‘querer’ e/ou seu ‘dever’: um contraventor pode ser a ex- pressão de um sujeito que age de acordo com um ‘querer’ em dissonância com um ‘dever’; já um cidadão exemplar pode ser visto como aquele que associa adequadamente ‘querer’ e ‘dever’. Definindo-se as motivações do sujeito, é preciso alcançar sua competência, o que compreende a forma como se expressam o seu ‘saber’ e também o seu ‘poder’: um sujeito que sabe-fazer alguma coisa, mas não-pode-fazer, não faz; da mesma forma, caso possa-fazer sem que saiba-fazer, igual- mente não fará. Entrelaçam-se, assim, objeto-valor e objetos- modais – querer, dever, saber, poder –, todos concebidos em relação ao sujeito que, por sua vez, é também moldado pelo objeto-valor que almeja e pelas condições de que lança mão para alcançá-lo: ‘preguiçoso’ e ‘obstinado’ podem se definir em relação a um mesmo objeto-valor, diferenciando-se em suas modalizações: enquanto o preguiçoso nada faz para conjugar-se à competência necessária para o alcance de seus objetivos, o obstinado enfrenta quaisquer obstáculos, movimentando-se tenazmente em meio aos tropeços de uma lógica que, muitas vezes, concessiva, não o impede de buscar a conjunção com os meios que o levarão aos fins desejados. A partir dos variados arranjos possíveis entre enun- ciados de estado e enunciados de fazer, caracterizam-se diferentes dimensões narrativas. Ao enfatizar o fazer, a narratividade constitui-se no âmbito de uma dimensão pragmática, deixando de explorar a especificidade das mo- 9 Por narratividade compreende-se uma das etapas da construção da significação que, como tal, faz-se presente na configuração do percurso gerativo do sentido de todo e qualquer tipo de texto, seja ele narrativo ou não. 50 estudos discuRsivos à bRasiLeiRa: uma intRodução dalizações do sujeito – seu estado. A canção Maracangalha10, por exemplo, nada informa sobre aquele que afirma sua “ida” pra Maracangalha’, a não ser que irá vestido de branco e de chapéu de palha, e que irá de qualquer jeito, mesmo que só. O poema Vou-me embora pra Pasárgada11, diferentemente, evidencia o estado de alma de alguém às voltas com suas tristezas12. Quando a narratividade destaca um jogo de re- lações intersubjetivas a envolverem o sujeito, estabelece-se a dimensão cognitiva. Ainda que nesses textos o fazer ele mesmo mantenha-se como dado relevante para a narrativi- dade, esse fazer não se define objetivamente, mas por meio da intersubjetividade das relações entre um sujeito mani- pulador (destinador-manipulador) e um sujeito manipulado (destinatário), que firmam entre si um contrato fiduciário que determinará a performance – o fazer – que, uma vez realizada, será avaliada, entrando em cena um outro jogo intersubjetivo, composto, agora, com o destinador-julgador, cujo parecer só será significativo em relação ao contrato ajustado anteriormente. Na canção História de uma Gata13 podemos observar um acordo firmado – “fique em casa, não tome vento” – e não cumprido – “mas é duro ficar na sua” –, resultando na sanção pragmática – “fui barrada na por- taria” – devida à apreciação de um sujeito que considerou a ação da “gata” uma ingratidão. Por mais que a narratividade assim configurada faça sobressair as relações intersubjeti- vas, a ação permanece como componente significativo e o objeto desejado identifica-se com o conjunto dos valores
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