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h ISBN 85-85458-lQ -4 1 ~---------Liii /X X " 1 " "'11u. °"' * 1 l ) (\ li Quando um bebê apresenta problemas do desenvolvi- mento ou constituição psí- quica, a preocupação com seu futuro torna-se inevitável para os pais. Surge também uma. urgência pela intervenção, dado que os primeiros anos de vida são fundamentais para a constituição psíquica, assim como para as aquisições de linguagem, psicomotricidade e processos do pensamento. Mas, diante do afã de "fazer de tudo o quanto antes", os bebês são freqüentemente submetidos a múltiplos tratamentos que, ao deter-se nas funções que fracassam, perdem de vista a consti- tuição do sujeito que poderia vir a apropriar-se delas. A clínica interdisciplinar em estimulação precoce atravessada pela psicanálise implica o trabalho em equipe das disciplinas necessárias ao acompanhamento da primeira infância. Deste modo, prioriza a sustentação do exercício das funções parentals e a apropriaÇão, por parte do bebê. de seu corpo e de suas 111111111111 CSR 188356 , gl e ~ ' . "' "4' "' ~ t •r cc 2 " ~ :::s "' Ili "' ""' 'i "' ~ 'C o Hll u. (j) o u E QI > e ua e e ::s """ ::s "'"" o o .,,,.,. e ftS ::s C'" e u.I Cl ~ Enquanto ;;6 Ili "' "" "' ~ t o futuro "' :::s 00 "' z não vem cc Ili ~ "' "" -"' A Pslcanállse na "' ~ clínica interdlscipllnar 'C o l~ com bebês Julieta Jerusalinsky ISBN 85-85458-19-4 Enquanto o futuro não vem A Psicanálise na clínica interdisciplinar com bebês Julieta Jerusalinsky /' - n. . J-;:) © da autora, 2002 © Ágalma, 2002 1' edição: agosto de 2002 Projeto gráfico da capa e primeiras páginas Homem de Melo & Troia Design Editores Angela Baptista do Rio Teixeira Marcus do Rio Teixeira Ana Paula Piano Simões j SbG Direção desta coleção Daniele de Brito Wanderll!J' ~ -~. k .! ' - .; --µ . ;.,." ) ~· . Com a colaboração de Marie-Christine LaZf1ik Revisão a cargo dos editores Depósito legal Impresso no Brasil/ Printed in Bra'{jl Todos os direitos reservados á3dlmd Ágalma Psicanálise Editora Ltda Rua Agnelo de Brito, 18 7 Centro üdontomédico Henri Dunant, sala 309 40.170-100 Salvador - Bahia, .Brasil Tel: (Oxx) 71 332-8776 Telefax: (Oxx)71 245-7883 e-mail: agalma@agal111a.com.br site: www.agahna.com.br CIP-BRASIL CATALOGAÇAO-NA-FONTE SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ. J54e J erusalinsky, Julieta, 1971 - . , . , . Enquanto o futuro não vem : a ps1canalise na clínica interdisciplinar com bebês / Julieta Jerusalinsky. - Salvador, BA : Ágalma, 2002 . - (Calças curtas ; 3) Inclui bibliografia ISBN 85-85458-19-4 1. Lactentes - Psicologia. 2. Psicanálise infantil. 3. Psicoterapia infantil. . . . 1. Título. II. Título: A psicanálise na clínica interdisciplinar com bebês. III. Série. 02-1191. CDD 618.928917 CDU 159.964.2-053.3 A Daniel Bramatti, por seu amor, por seu humor. AGRADECIMENTOS Aos colegas do Serviço de Estimulação Precoce do Hospital Durand de Buenos Aires, especialmente a Jorge Garbarz, Mirtha Kuperman, Mari Aranda e Sylvia Fendrick, pelas acaloradas discussões em que a clínica sempre tem algo mais a ensinar-nos. Ao Centro 4Jldia Coriatde Porto Alegre e ao Centro Dra. Lydia Coriatde Buenos Aires, por transmitir, cada um a seu estilo, o trabalho em equipe interdisciplinar. A Fernando Maciel, por sua interlocução durante a elaboração do texto; a Elsa Coriat, Silvia Molina e Alfredo J erusalinsky por terem, após a leitura, incentivado a publicação. A todos os professores da FEPI e a sua diretora Stella Paez, pelo apoio à produção . À Associação Psicanalítica de Porto Alegre - .APPOA - e ao Percurso Psicanalítico de Brasília, por uma transmissão em que a psicanálise pode ousar na interlocução com outras disciplinas, levando-nos a interrogar permanentemente os limites e possibilidades em sua extensão a diferentes campos clínicos. Aos colegas da equipe interdisciplinar do CEPAGIA, Brasília, com os quais compartilhei diversas experiências decisivas para a produção deste escrito. SUMÁRIO Prefácio - Sohre o tempo, estímulo e estrutura, 11 Aogela Vorcaro --h 1. Situando a clínica com hehês, ;p A infância, os bebês e o surgimento da estimulação precoce, 27 2 Impasses do "estímulo" na clínica com hehês- da exercitação repetitiva ao _ -;;li> , . J }' - 46 exerctczo ua unçao materna, QQ.es.tímulo sensorial à rede significante materna,.52 O lugar do"'estímulo" na clinica com bebês a partit do corte epistemológico da psicanálise, 1 58 3 Estimulação precoce?. Educação precoce? Intervenção precoce? - problemas epistemológicos na nomeação de uma especificidade clínica, 66 !' 4 Temporalidade na clínica com hehês, 79 A articulação dos três registros do tempo na clínica com bebês, 83 5 Entre dois nomes, a certeza de um diagnóstico (caso clínico), 96 Da universalidade da síndrome à singularidade de seus efeitos na fantasia materna, 101 O sintoma parental e o lugar do bebê, 104 Do que se escuta no discurso parental e do que se lê na produção do bebê, 105 Intervenção em ato na clínica com bebês, 11 O Sustentando a singularidade do bebê, uma e outra vez, 111 6 A demanda de tratamento na clínica com hehês - quando o futuro fica em xeque, 114 Quando a pergunta pelo futuro apresenta uma duplicação, 116 Reconhecimento, filiação e diagnóstico, 119 Um pequeno rei com o futuro em xeque é trazido a tratamento, 122 O saber do clínico face ao futuro do bebê, 126 7 A interven Eg_do clínico no marco da estimulação precoce,\ 132 A "loucura necessária" do clínico na intervenção com bebês, 132 O circuito de desejo e demanda, 136 L Quando o circuito de desejo e demanda encontra uma fratura, 139 Articulando as vicissitudes pulsionais do bebê ao circuito de desejo e demanda do Outro, 140 A intervenção como o estiramento da corda pulsional do bebê, 145 r;· j . 8 fremporalidade e desenvolvimento, 149 Crescimento, maturação e desenvolvimento, 150 Limites impostos pela passagem do tempo cronológico ao desenvolvimento, 152 O que a passagem do tempo cronológico não resolve quanto ao desenvolvimento, 154 Organismo e marcas simbólicas, 156 1 Parcialidade da pulsão e sujeito do inconsciente, 157 Da parcialidade pulsional à antecipação de uma imagem do corpo, 159 Da antecipação do Outro encarnado à precipitação de uma realização do bebê, 160 Função paterna e constituição na infância (recorte clínico), 163 Sobre os diferentes momentos lógicos implicados na constituição do sujeito, 165 Desenvolvimento como linha imaginária construída a posteriori, 167 A autoria de uma aquisição instrumental e a subversão do desejo, 171 9 (.)_bebê e o sintoma,_174 Diferenciando o mal-estar dos pais de efetivos problemas na constituição do bebê (recorte clínico), 175 Quando o bebê apresenta um sintoma que torna necessária a intervenção clínica, 181 i ._ Sintoma do bebê ou no bebê?, 185 1 O Pedro e o escorregador- o que deslizri quando bnncamos- (caso clínico), 194 Do quadro orgânico à leitura clínica do sintoma, 195 Do encaminhamento médico à formulação de uma demanda parental, 199 Intervindo com o sintoma de Pedro e com sua articulação ao sintoma parental., 201 O tratamento como abertura de um lugar e um tempo para as produções de Pedro, 204 Da posição de impotência à delimitação do impossível, 207 Realização psicomotora, reconhecimento e surgimento do sujeito, 210 Realização instrumental como precipitação do sujeito e como ato simbólico, 216 ·~A repetição própria do brincar e o acesso ao simbólico, 219 A mudança na primazia de zona erógena, 220 Deslizamento significante e estiramento da corda pulsional, 223 11 É possível prevenir ou só resta remediar?, 224 - Prevenção secundária na clínica com bebês, 225 Prevenção primária na clínica com bebês, 235 Critérios para detecção precoce de problemas no desenvolvimento e na constituição psíquica, 245 Diferentes modalidadesde intervenção para a detecção precoce, 256 ~i)Clínica com bebês: da estrutura ao nascimento do sujeito, 258 / · O bebê e a estrutura edípica, 260 Considerações acerca do conceito de estrutura em psicanálise, 266 • A estrutura psíquica e suas temporalidades, 276 A temporalidade implicada na constituição de um bebê como sujeito face à estrutura, 283 "Vamos brincar enquanto o futuro não vem, 294 Bernardo Realce PREFÁCIO SOBRE O TEMPO, ESTÍMULO E ESTRUTURA Angela Vorcaro O texto que agora se dá a ler é profundamente instigante. Com sua honestidade intelectual, Julieta Jerusalinsky se permite a capacidade de interrogar o aparentemente óbvio porque já instituído, fazendo vigorar o fato de que as graves psicopatologias infantis nos convoquem a problematizar a teoria psicanalítica levando-a a avançar a partir do que, na clínica, nos interroga. Estas constatações tornam impossível ficar alheio à articulação entre tempo, estímulo e estrutura elaborados pela autora. E nos levam a interrogar a presença desses termos em nossas próprias hipóteses de trabalho, e no que há de imaginário em nossos operadores clínicos. Além disso, os leitores que se dispuserem a enfrentar essas questões encontrarão nesses escritos o prazer da leitura agradável e provocativa que problematiza a capacidade operatória da teoria psicanalítica nos confins da clínica com bebês, evidenciando a trilha que amarra suas hipóteses, o crivo de sua crítica e a clareza de sua competência clínica. Assim, além de nos oferecer um exemplo de autoria, tal leitura nos proporciona também a vontade de distinguir nossas próprias modalidades de engajamento à teoria e à clínica. Mas o que se mostra mais surpreendente é que aquilo que aqui comparece como escrito repete o que se revela na interlocução 11 ENQUANTO O FUTURO NAO VEM direta com a autora, com a mesma generosidade com que ela acolhe e discute cada hipótese teórica, cada acontecimento clínico ou institucional. Localizando tempo, estímulo e estrutura, distinguidos e articulados pela autora num mesmo gesto, e ainda, ao recolher, do texto non-sense cifrado por bebês, o testemunho de haver ali linguagem posta em funcionamento, Julieta Jerusalinsky me oferece aqui a possibilidade de resgatar alguns apontamentos sobre a homologia entre a escansão temporal e a instalação da estrutura significante no organismo, dos quais situo meu testemunho: Há alguns anos, lidando com crianças fora da função da fala que, a despeito de ferirem-se, batiam-se incessantemente, não podia desconsiderar as questões: que espécie de usufruto da vida é este, que insiste em reproduzir o afeto de dor no corpo, como se apenas assim, com esse gozo, a singularidade da sua vida fosse comemorada? Como é possível que a criança insista em machucar-se, mesmo diante de todas as outras ofertas que ela recusa? Trata-se de um exercício subjetivo nessa recusa às palavras e nessa incidência do afeto de dor ou de uma alienação plena? Lacan nos lembra que nada sabemos sobre o gozo do organismo porque, sem a mediação significante, 1 vivo e gozo se equivalem. Por isso, a noção de instinto nos é tão cara. Afinal, com o termo instinto, podemos nos referir a um saber do qual não se é capaz de dizer o que isso que1~ mas que se presume que tenha como resultado que a vida subsista. O bebê humano é guiado pela intervenção da alteridade que significa o organismo e assim desfalca o instinto vital de sua plenitude. Afinal, conduzido unicamente por seu fluxo , a condição de insuficiência do organismo o mataria. A alteridade opera a perda do gozo instintual inserindo-o no campo da linguagem. Seus cuidados são interpretações em atos simbólicos, cujos sentidos são imperativos por arbitrarem valor, constringindo a pureza do gozo da vida, ao acolhê-lo, emoldurando e decidindo sua significação. Por isso, o desempenho da função materna depende de a mulher, 12 PREFÁCIO na condição de mãe, ser desejante. Diante desse desejo, uma criança não é indiferente, pois ele autoriza a máscara da repetição do gozo 1 • Portanto, a alteridade, na condição de mãe, incita e franqueia o gozo na criança. Mas, já que sua condição de ser falante impede reproduzi-lo, ela convida a criança a simulá-lo, com a linguagem, na repetição que é, sempre, máscara do que teria havido. E nfim, nessas relações primárias, a mãe age sobre seu filho de modo a, num só tempo, inseri-lo na linguagem e permitir ao gozo ousar a máscara da repetição. Fazendo-se de órgão extra-corpóreo da criança, ela ·reconhece as urgências vitais e simula a equivalência destas à decisão que toma quanto a significação que teriam. A mãe faz, de si mesma, o instrumento da vivência de satisfação do filho, na medida em que ela se prende ao que a própria natureza orgânica da criança oferece como suportes dispostos em oposição. A natureza, diz Lacan,jornece significantes que estruturam e modelam a organização inaugural das relações humanas. O jogo operatório do significante inclui o sei~ e age de maneira pré-suhjetiva 2 • É com a materialidade oferecida por sua própria natureza que o organismo sofre os efeitos de sua desnaturalização desde que a ordem simbólica implantada pela mãe passe a regular sua economia. O organismo tomado pela mãe como ser passa a obedecer a uma univocidade de signos, pressupostos por sua mãe como partilhados com seu filho, numa linguagem capaz de realizar uma fusão com ele. Tal linguagem sígnica assegura imaginariamente a comunicação exata com seu filho 3 . Nessa perspectiva é que Melman4 afirma que o termo Outro-erotismo poderia ser o nome do auto-erotismo, na medida em que a criança goza do corpo que, entretanto, é território dti Outro. O Outro é o corpo infinito representado na origem pela mãe, corpo que a criança não pode 1 Jacques Lacan, O Semi11á1io, livro XVIL O avesso da psicanálise, J.Z.E., RJ, p.73-4. 2 J.Lacan (1964), O Seminá1io, Livro X I, Os q11atro co11càtosji111damentais da psicanálise, J.Z.E. , RJ , p. 25. · 1 Charles Melman, Que;tions de clinique PSJ'Cha11alytiq11P, Séminaire de l'année 1985- 6, 10 de outubro de 1985, AFI, Paris. +Charles Melman, opus cit, 12 e 19 de dezembro de 1985, AFI, Paris. 13 ENQUANTO O FUTURO NÃO VEM conter ou apreender, mas, ao contrário, a contém. O corpo próprio é, portanto, de início, lugar propício ao gozo do Outro, gozo privado que se oferece à criança como Dom. Ao permitir que o filho estabeleça com ela uma condição parasitária, a mãe franqueia ao gozo a ousadia da máscara da repetição: lendo como significantes e estabelecendo o sentido do texto orgânico do filho, ela o ultrapassa, antecipando um sujeito, ao mesmo tempo que estende, instala e atribui à criança a posição indeterminável de um sujeito do gozo5 . Por isso, os objetos de satisfação oferecidos à criança alojam- na em uma posição de alienação plena, onde se inscreve somente o registro de uma diferença entre dois estados que se recobrem. A possibilidade do apaziguamento permitir a cessação do estímulo adverso que provoca tensão faz funcionar a alienação numa alternância de reciprocidades que se opõem ao mesmo tempo em que se anulam, e portanto, se equivalem. Não há descontinuidade nessa circularidade. A relação de mera oposição alternante sobrepõe- s e em continuidade recíproca. A diferença posta em jogo de alternância é renovação em que a possibilidade da ausência é segurança da presença. Por não implicar existência positiva, apenas reenvia à relação entre termos quaisquer, logicamente anteriores às propriedades dos termos presença e ausência que não,têm nenhum valor determinado, nenhuma significação, mas que se determinam reciprocamente na relação diferencial em que se reenviam um ao outro. A manutenção dessa alternância recíproca pela mãe permite a relação com a presença sohre o.fundo de ausência e com a ausência na medida em que esta constitui a presença 6 . Agenciando a máscara da repetição do gozo, a maternagem 7dá suporte a esse tempo mítico só posicionável retroativamente, após sua falta. Este funcionamento simbólico acéfalo do organismo é o leito estrutural necessário em que se situa a cadeia significante 5 ]. Lacan, Seminário X, A Angústia, inédito, aula de 13/03/63. 6 J. Lacan(l 956-7), Seminário IV, A refação de objeto, J.Z.E., p.186. 7 Cf. J. Lacan: Semináiio ·vn (A Ética da Psicanálise) e Sm1i11á1io XX ( Mai,~ ainda ). 14 PREFÁCIO que comanda a presentificação do assujeitamento do ser, o lado desse vi'vo chamado à suijetivação 8 que dispõe do funcionamento sincopado antes de engajar-se na linguagem ou de aí localizar um semelhante9. Qualquer determinação de'st!feito depende do discurso. Há um discurso tecido na prática de articulação significante, tramada pelo saber daquele que agencia a função materna diante de um organismo. Assim, o organismo é dito ser pelo agente materno, ou seja, ser que não sabe dizer, de seu próprio lugar <<eu sou>>, mas que é dito de outro lugar: <<ele é>>. Desse lugar, inicialmente, todos os . significantes se equivalem,_ jogando apenas com a diferença de cada um com todos os outros (não sendo, cada um, o que os outros são). Mas uma modalidade de ligação significante se distinguirá completamente e instalar-se-á aleatoriamente, pelo uso específico de um significante qualquer tomado dessa articulação já presente. Como a mãe é um ser falante, o próprio funcionamento ritmado da alternância, operada por ela, acaba por realizar uma defasagem que se inscreve entre os termos diferenciais, fazendo incidir lacuna, alteridade real, na relação rítmica em que um termo anulava o outro alternadamente. Afinal, diferentemente da criança, ainda infans, a mãe está totalmente submetida à língua, ou seja, funciona sob a lei do significante, que não equivale a nenhum outro significante, nem a si mesmo. O desencontro entre os termos alternantes marcará a exclusão de um destes, cortado pelo adiamento ou pela precipitação da alternância, introduzindo a equivocidade entre mãe e criança. Diante desse oco da defasagem temporal, o iefans ocupará a posição vazia por meio do grito, substituindo o termo sustentador da alternância, que não compareceu em seu lugar, onde já podia, pelo funcionamento alternante, ser esperado. A relação de oposição presença-ausência, sustentadora da alternância que articulava os termos é rompida. A hiância acidental na sustentação dessa primeira estrutura simbólica, em que falta o 8 J. Lacan (1964), Seminário XI, op. cit., p.194. ' Idem, Ibidem. 15 ENQUANTO O FUTURO NÃO VEM que ainda não está representado, pontua o encontro faltoso, fisgando o ser antes que ele possa figurar o que escapa a sua apreensão. Instaura- s e a situação de privação10 , antes de o sujeito ser subjetividade, primeiro passo e ponto mais central da estrutura da identificação do s1geito 11 • Na condição de privação, algo falta em seu lugar, <<há um nada ali>>. A falta, portanto, só é apreensível por intermédio do já estruturado (do simbólico), onde algo inominado falta na posição esperada. O grito que se faz apelo ao retorno da coisa alternante é corpo que se oferece ao que falta na alternância simbólica. Assim, na dupla de termos alternantes, a incidência de uma falta localizará a impossível sustentação da automaticidade tensão-apaziguamento. A articulação da criança no registro do apelo a situa entre a noção de um agente que participa da ordem simbólica e o primeiro elemento de uma ordem simbólica - o par de termos opostos em cadeia. O apelo, assumindo função antes de ser percebido como tal e antes de se distinguir um eu e um não-eu, é atualização, na experiência, da estrutura mínima do significante, que agora incidirá no infans como real, traçando o recalque originário. A estrutura se diferencia, assim, num ponto singular, em que a diferenciação significante estrutural é uma intervenção (adia e precipita) temporal que desnaturaliza o Outro. Essa condição de falta demarca um lugar, introduzindo um traço. No momento em que a criança encontra a falta num dos termos da estrutura simbólica constituída por alternância do casal primitivo de articulação significante, a coisa desconecta-se de seu grito, elevando-o à função de demanda no grito-significante-da- coisa. O grito enlaçado pelo pequeno como apelo de urgência diante da falta opera a primeira substituição do infans: a falta faz deslizar o tu A tríade Privação-Frustração-Castração refere-se às modalizações da falta de objeto. A privação é a falta real de um objeto simbólico, a frustração é o dano imaginário de um objeto real e a castração é a falta simbólica de um objeto imaginário. 11 J. Lacan (1961 -2), Semi11á1io IX, L'1de11tiftcation, aula de 07 /03/62, inédito. 16 PREFÁCIO grito de apelo com o que preencheria o oco. Isto que se desprende como grito, que se separa do infans passando por um orifício do corpo, ultrapassa a função fonatória do organismo, é referência invocante, resquício de um objeto indizível, que faz dessa emissão o que não pode se dizer. Assim, o sujeito aparece no que lhe faz alteridade: no que o primeiro significante - o grito - incide como sentido, significante unário que, por só poder se prestar a intimar uma recuperação, não se faz equivaler a ela, apenas traça sua falta. Esse uso específico de um significante estrutura o suporte n1.ítico ultra-reduzido em que o ser sustenta-se, equivalendo-se a esse significante, que toma como si mesmo. Tal saber mítico não subjetivo de ser idêntico a seu próprio significante é, para Lacan, fato definível, em estrutura. Afinal, a partir da separação de um significante-mestre, esse significante se define no organismo perdido pelo indivíduo biológico, para orientar a constituição do corpo onde se inscreverão todos os outros significantes. Por isso, para Lacan, Urverdrâng quer dizer que há, na estrutura, uma ligação significante completamente radical: o elemento de impossibilidade como fato de estrutura. Esse impossível é o real, que surge como o escolho lógico daquilo que, do simbólico, se enuncia como impossível. É nesse ponto da primeira ligação - do S1 ao S2 - que abre-se a falha chamada sujeito, falha onde os efeitos da ligação significante operam. Produz-se uma cadeia que induz e determina essa posição de sujeito. Assim, um significante qualquer vem em posição de significante- mestre, com a função eventual de representar um sujeito para todo outro significante. Este significante único, o significante-mestre, opera por sua relação com os significantes presentes já articulados ali, articulando-se a eles ao ordená-los. Entretanto, o sujeito que ele representa não e unívoco. Está e também não está representado: algo fica oculto em relação a esse mesmo significante, pois a linguagem deixa as coisas nessa hiância. Pode-se denominar essa 17 ENQUANTO O FUTURO NÃO VEM híância de real efeito de linguagem, e o termo pai real 12 a qualifica melhor, considerando o que Freud13 aponta da identificação ao pai como sendo absolutamente primordial. O pai preside a essa primeiríssima identificação14 , em que não se trata do Um unificante, mas da identificação pivô, ou seja, o traço unário, o ser marcado como um. A criação repetitiva inaugural parte da impotência original da criança, onde o significante-mestre se produz de qualquer significante. Ali, alguma coisa falta - e é justamente isso que, de saída, caracteriza o sujeito. Basta dar ao traço unário, 51, a companhia de um outro traço, S2, para que, sendo significante também lícito, o traço da falta situe o sentido do sujeito e sua inserção no Outro. Na medida do funcionamento da linguagem, ela se demonstra pelos seus efeitos que são sempre retroativos. Assim, ela manifesta que ela é falta a ser. a linguagem é demanda que fracassa; não é seu ê:xito, mas sua repetição, que engendra a dimensão da perda. Não se trata, portanto, do filtramento de sensações de aparelhos e órgãos vitais.Certamente os órgãos filtram e nos servimos deles, mas é na articulação significante que entram em jogo os termos de soletração, termos elementares que enlaçam um significante a outro significante, e que já produzem efeitos, posto que esse significante só é manipulável em sua definição por~ue tem um sentido, ou seja, ele representa, para outro significante, um sujeito, e nada mais. 12 O pai real difere do pai da realidade imaginado como o privador. A posição estrutural do pai real como impossível tem como efeito que o pai seja imaginado necessariamente como privador. Sua imaginarização deve-se ao que escapa: o pai real. 13 Em Psicologia das Massas e Análise do E11 (1921) . 14 O pai é aquele que merece o amor, pois a identificação primária não é aquela que liga a criança à mãe, como querem muitos analistas. Essa discordância é, segundo Lacan, construída pela confusão causada por esses analistas não se referirem a configurações primordiais do discurso. Para Lacan, a configuração subjetiva tem, pela configuração significante, uma objetividade perfeitamente localizável, que funda a possibilidade da interpretação. Cf. Sem. XVII, O Avesso da Psicanálise. 18 PREFÁCIO O significante, então, se articula por representar um sujeito junto a outro significante. Essa definição permite dar sentido à repetição inaugural na medida em que ela é repetição que visa o gozo. Ela não é um efeito de memória biológica, mas relaciona-se ao limite do saber, que quer dizer gozo. Essa perspectiva permite retomar a pequena interrogação clínica que apresentei, relativa à comemoração da dor, e que Lacan se refere ao falar da fantasia de flagelação 15 . Esse estado de gozo diferido do gozo narcísico mostra que a relação de objeto antecede o. narcisismo. Afinal, identifrcada ao oijeto de gozo, a criança porta a glória da marca, antes de sua constituição narcísica. O gozar assume aí a ambigüidade da equivalência entre o gesto do Outro que marca e o corpo tomado romo objeto de gozo: Gozo de quem porta a glória da marca, gozo do Outro. A consistência da imagem especular na qual o narcisismo se edifica é sustentada por esse objeto perdido, que ele apenas veste, por onde o gozo se introduz na dimensão do ser do sujeito. É apenas por um acidente que o gozo entra em ação. Mas interessa notar que já é referido a uma estrutura matricial significante mínima, ou seja, temporalizada numa escansão ritmada que articula e alterna dois termos, que ele se distingue e se produz, mesmo que visando a máscara da repetição plena. E é desse lugar que é possível ao clínico criar uma extensão, uma outra inscrição significante que mediatize e diferencie um corpo, no limite entre gozo e organismo. O texto de Julieta Jerusalinsky nos apresenta os modos temporais de diferentes registros, em ciclos que reciclam um resíduo onde reside o que, do sujeito, comparece. Distinguir essa condição é fundamental para que o sujeito se aparelhe com a linguagem, ultrapassando o gozo acéfalo que permite manifestar-se no campo simbólico. É com tal distinção que a intervenção psicanalítica, na clínica com bebês, pode incidir para acolher a produção de outros ciclos. Mais ainda, esta intervenção, feita do movimento provocado IS J · Lacan, Seminário XVII, opus cit. 19 ENQUANTO O FUTURO NÃO VEM pelo texto no campo psicanalítico, me convidou a dar aqui meu testemunho ao leitor, certa de que, a partir da leitura, ele poderá também oferecer o seu. São Paulo, Julho de 2002 20 SITUANDO A CLÍNICA COM BEBÊS - O quê? O senhor submeteu criancinhas à análise? Crianças com menos de seis anos? Isso pode serfeito? E não é muito arriscado para as crianças? 1 A interpelação acima, dirigida a Freud, data de 1926. Se, mais de sete décadas depois, já não causa tanta surpresa o tratamento de crianças em idade escolar, ainda há certo sobressalto quando se fala em intervenção com pequenas crianças e bebês.2 - Estimulação precoce? O que isso quer dizer? É uma pergunta escutada inúmeras vezes por aqueles que se dedicam a tal intervenção clínica. ~- definir_ o marco da estimulação precoce como a clínica ~-b-~~§~ p_equenas crianças que apresentam problemas dç: ~~~tuição psíquica e de des~nvolyimento - relativos às aquisiç§_es de psicomotricidade, linguagem e aprendizagem :-• constatamos ~e:no mterlocutor interessado, tal esclarecimento costuma despertar outras interrogações: 1 Sigmund Freud (1926), A questão da análise leiga, E.S.B., vol. XX, Rio de Janeiro, Imago, p. 244. 2 Fiz referência a esta questão no artigo O pé esquerdo do academicismo - sobre bebês, psicanálise e estimulação precoce, Psicanálise, outros lugares para uma escuta, Correio da APPOA, nº 83, Associação Psicanalítica de Porto Alegre, 2000 (N. da A.). 21 - ENQUANTO O FUTURO NÃO VEM - Mas os bebês têm problemas? Quei- dizer .. . desculpe, não me entenda mal, mas é possível ter problemas tão cedo na vida? E, afinal, o que um clínico pode Jàzer com um bebê? É curiosa a insistência com que tais questões continuam a comparecer desde o social, principalmente se levarmos em conta a atual explosão editorial dedicada à puericultura e desenvolvimento, assim como a proliferação de técnicas e atividades dirigidas a bebês. kJ Hoje em dia parecem não bastar a formação e os cuidados que um bebê recebe ao conviver com as pessoas de sua família ou ao freqüentar uma creche até o tempo em que se tornará uma pequena criança e começará a ter uma educação formalizada sob o modo de currículo escolar. Cada vez mais cedo e em maior número, atividades dirigidas vêm superlotar a agenda dos bebês, fazendo deles uma espécie de pequenos executivos sem tempo a perder quanto ao "aprimoramento de suas aptidões"3 . Ao entrar em uma loja de brÍnquedos resulta praticamente impossível - ou no mínimo soa como uma pretensão anacrônica - comprar algum com a simples ilusão de que um bebê possa vir a se divertir com ele, pois para cada mínimo chocalho, cordel ou cubo de espuma encontramos na embalagem uma lista de recomendações acerca do seu úso e da suposta aprendizagem que tal objeto propiciaria ao bebê. Podemos vislumbrar nisso um novo sintoma social no que tange à infância: os pais correm atrás das mais diversas possibilidades para "superequipar" o quanto antes seus pequenos filhos na esperança de melhor prepará-los para o futuro. Enquanto isso, proliferam técnicas que se propõem a favorecer a potencialização de talentos e a acelerar as aquisições dos rebentos. ~ Evidentemente, o laço pais-filhos está permeado pelo sintoma social de cada época ._-S.~a.mo na nossa, a promessa do quando VOJê /!.!!!.er .. . fica conjugada à ameaça de um não há lugarpara todos, parece não restar tempo a perder na preparação de um bebê para uma inserção social cada vez mais calcada na corrida do triunfo individual. 'Abordei esta questão no artigo Bebês ou pequenos executivos, Boletú11 do CEPAGIA, n. 2, Brasília, CEPAGlA, 1998 (N. da A.). 22 j SITUANDO A CLÍNICA COM BEBÊS Então há algo de paradoxal quando nossos diversos · tcrlocutores leigos interrogam atônitos se é possível que um bebê 10 . . tenha problemas. f ois ao mesmo tempo err: que prolif~ram técruc:1s e pLtblicações dedicadas a adequar o bebe como objeto de gozo do social, continua a despertar desconcerto que se reconheça -:- porque, _ e_y_icl_çntemept~~ .. taf!tO_ menqs se q~er saber disso - que e possível, sim, ter problemas tão cedo na vida e que tais ~roblemas não se restringem a questões orgânicas de base, mas tambem podem . ser relativos à constituição psíquica do bebê e ao modo como tal ~onstituição incide no funcionamento das suas funções orgânicasJ , ~ Como nos indica F~eud, se os. be~ês são depositários d~s 1 esperanças de transcendênoa e reahzaçao parental, tan~o mais 1 1 doloroso resulta, pelo narcisismo neles depositado, que se1am eles ( os atingidos por um problema, que se1am eles os que padeçam de uma dificuldade. _ Mas quandoe como um hebê é encaminhado a tratamento? ;{- Os bebês são trazidos a tratamento quando, em algum ponto, falham em relação ao que deles era esperado, quando .º ) nascimento do bebê, o comu~cado do diagnóstico da pat~logia ( que ele apresenta, ou o exerc1cio da materrudade ou pater.rudade com ele, produzem um sintoma, um obstáculo, um. padecimento neste circuito de realização de ideais sociais e parentais. Assim a clínica com bebês fica situada justamente no avesso desses best-seUe~ d;aco-;;~elhamentos a pais ~"técnicas estimulantes de aptidões do bebê", não só porque ocorre a partir.do. pont~ em que os ideais sobre a maternidade, a paternidade e a primeira mfanc1;i encontram um fracasso em sua realização, mas porque o trabalho clínico diante de tal fracasso opera pela escuta, sustentação e intervencão dos interrogantes pelos quais cada pai e mãe ficam . . . d singularmente implicados c~m o seu filho, em lugar de partir 0 aconselhamento anônimo. \ . ~ .. e.O encaminhamento de um bebê para avaliação ou trata:nento /'\ d profissionais que em estimulação precoce ocorre quan o os 23 ENQUANTO O FUTURO NÃO VEM J co_rriqueiramente .lid_am ~om a infância - pediatras, neurologistas, onentadores educac10na1s, entre outros - alertarn__que há algo que ~ ~-ª!!.~ª-b~_!l2_ com o bebê ~ que o problema por ele ap.~ 'f" } ex~eds9 âmbito d9 acompanhamento médico e educacio~e i, rottna Às ve~e~,_!ª1_~g~~rpá~af!!g:i1Q_oc9_rre após o diagnóstic.oAe um problema orgânico no bc::~ê; Q_~tras \Tezi:s ss: deve à pre~~-nsa de- sf~os clínicos que se m~nifest:_am ~a produção espontânea de~t;;- ~ qu~- esc_aptlm aos parâmetros _tomados como referê~e r:or~~dade em nossa cultura, ainda que não _ç_onstitµam _diagnósticos -~~finidos de quadros patológicos plenamente configurado_s) Assim, chegam até nós pacientes com indicações de tratamento por causas bastante amplas: ''._síndrome genét;ka"~ ~'.ksã~ Q~1:'.:9l<)gica", '~malformação coºgên,ita",__'. ' c!_eªs;~ncia sensorial", "~ç_iência física", "atraso global do desenvolvimenJQ", "i_~_!Uridade generalizada", '.'aJraso ,:;em causa.s orgânicas defjnidas", -j:.> '\90.du.tas atípica( f:_ "problemas na relação mãe-bebê" são alg~iis dos mais recorrentes. Também chegam bebês e pequenas crianças t que apresentam sintomas aparentemente restritos a um determinado aspecto da vida, pelo qual o funcionamento de uma função específica passa a ocorrer de modo patológico - por exemplo, nos distúrbios do sono, da alimentação, da deglutição, do controle esfincteriano~ da respiração, entre outros. É inegável que as práticas interdisciplinares favore_ceram-e. fa_vor~-q~e, ~ada vez mais,-- aqueles profission_<l_~~que _normalmente intervêm com a infância possam detectar nos bebês e pequenas crianças os primeiros sinais que apontam riscos quanto ao seu desenvolvimento e constituição psíquica. À medida em __g~ clínicos especialistas em estimulação precoce passaram a intervir no ,âmbito da Saúde r- junto a pediatras, enfermeiros, neonatolo~as; obstetras -~f .no â~bito _da _Educaçãg - junto a professores e psicopedagogos, ~o realizar o trabalho de inclusão ou L acompanhamento de crianças pequenas com problemas de ~esenvolvimento no ensino - foi possível ir inscrevendo a 24 SITUANDO A CLÍNICA COM BEBÊS f importância clínica de, diante de um problema do desenvolvimento l ou de constituição psíquica, não deixar o tempo passar para intervir. No entanto, a implantação de serviços clínicos interdisciplinares de estimulação precoce foi e ainda vem sendo realizada desde a iniciativa isolada de algumas equipes dedicadas à intervenção com bebês4 , uma v.:z que tal prática ainda não se constituiu como uma diretriz governamental de saúde pública preventiva. Em diferentes países da América Latina, lamentavelmente, ainda há muito a ser feito -no sentido de uma política de saúde e educação ~riyjJ.ç:gi~ . .a._i_n.tei:vençª-_o _e .~etecção precoce de ~ble~~s 12ª c(_)nsti~~ção psíquica e desenvolvim~~-tci"5) Atualmente é bastante grande o contigente de crianças que, com uma idade que varia entre os seis e nove anos, é encaminhado a tratamento por orientadores educacionais. Ao recolhermos a história clínica de tais crianças logo se percebe que, em muitos casos, os problemas por elas apresentados vinham se instalando e agravando há tempo. -3* Porém, é somente com a entrada na escola que se estabelece um momento decisivo quanto ao olhar que o social dirige à criança que, até então, fica, nesses países, quase que exclusivamente sob a responsabilidade do núcleo familiar. 4 Podemos citar, neste sentido, a experiência realizada em Buenos Aires, Argentina, desde 1993, pela Red Interhospita/aria de Esti11111!ación Temprana, que consiste na implantação de serviços de estimulação precoce em diversos hospitais públicos. Ver: M. Terzagui e M. Pedemonte (1996). Clínica da estimulação precoce no hospital público, Esctitos da Criança, Porto Alegre, Centro Lydia Coriat de Porto Alegre (N. da A.). 5 No Brasil, somente em 1997 entrou em vigor uma legislação de educação na qual, pela primeira vez, são contempladas as crianças menores de três anos. Em alguns organismos estatais ou fundações realizam-se intervenções denominadas como "Educação Precoce" e "Estimulação Precoce", mas não há ainda uma política pública que torne efetivamente ampla e generalizada, desde a Saúde ou Educação, a precoce detecção e intervenção com bebês que apresentam problemas do desenvolvimento e constituição psíquica. Na Argentina, se bem que tal prática ocorra publicamente pela intervenção realizada desde o âmbito da Educação nos "Gabinetes materno-infantiles", ainda não está regulamentada desde a área da Saúde (N. da A.). 25 ,.) ENQUANTO O FUTURO NÃO VEM - l' :> _ . .J O problema da detecção precoce e do encaminhamento para · · tJ!atamento em estimulação precoce se dá, então, em dois níveis: - D primeiro relativo à falta de circulação, nos locais onde_o_s peb_ês §ão normalmente acompanhados (em çreches e serviços de pe.diatria, por ex~mplo).J. d_e.. alguns conhecimentos clínico-teóricos _5~~9_a_11:_1en!a~s para a detec_ção precoce de problemas de constit~. r_síquica e des~nv_ohjp1ent9. \ Ocorre que tais conhecimentos clínico-teóricos não se restringem aos oferecidos pelas diferentes formações acadêmicas de base intervindo de modo isolado, sejam elas pediatria, pedagogia, fisioterapia, fonoaudiologia, psicologia, entre outras. 'ó,Q..tratar-se/ da intervenção com a infância, e ainda mais com bebês, torna-se/ necessária uma prática clínif a interdi~_c;_ir::ilinaJ _,) -tç· J\,çlínic.a interdisciplinar em estimulação precoce, nos lugares onde ela ocorre, tem se revelado extremamente favorecedora da circulação de tais conhecimentos. ) A especificidade desta praxis permitiu estabelecer um olhar e uma escuta clínica cada vez mais 1 apurada na detecção dos primeiros sinais que despertam alerta quanto li a possíveis problemas de um bebê. Possibilita, deste modo, uma ; mudança , no eixo do acompanhamento da infância, que passa a , ficar mais c~ntrado em propiciar a um bebê com problemas as l condições para sua constituição, c:;m lugar de intervir apena..s Qi~_te _de um quadro pat9lógic_o plenamente configurado. \ \ .v:. ~ , '- - p segundo nível do problema diz respeito a que, ainda. qu,ando os médicos detectam p1~oblemas d.e desenvolvirn~ntc;:> no Q.ebê que exigiriam uma intervenção específica em estimulação pre coce, tropeça-se com a carência de serviços públicos especializados no atendimento ao bebê e crianças pequenas aos quais seja possível realizar encaminhamentos.6 6 Como nos demonstra a expe1iência de intervenção em postos de saúde, UTI pediátrica e neonatal e como também pudemos constatar nos pilotos da pesquisa para estabelecimento de Indicadow para a detecção p1uoce de riscos no desenvo/i!imento infantil realizados no Posto de Saúde Butantã, em São Paulo, no ano 2000, e no HUB de Brasília, em2001, com a colaboração dos profissionais de tais serviços pediátricos e de um extenso grupo de pesquisadores coordenados por J osenilda Caldeira Brant e Maria C1istina Kupfer, junto ao Mi1ústério da Saúde do Governo Federal (N. da A.). 26 SITUANDO A CLÍNICA COM BEBÊS Assim, entre o nascimento no hospital e a entrada na escola, freqüentemente, deixa-se passar ~~lllPº que é deci~~v:o para ª· constituição psíquica ~d_esenvolvimento de bebês e pequenas crianças que, na maior parte dos casos, só vêm a ser aten'didos quando os Problemas apresentados encontram-se muito mais cristalizados e 1 ' estruturalmente, mLÚto menos sensíveis a possíveis modificações pela intervenção. A infância, os bebês e o surgimento da estimulação precoce Por mais evidente-que possa resultar-nos atualmente a diferença que existe entre um adulto constituído e uma criança em constituição, sabemos que nem sempi;e o "sentimento da infância'\ a sua representação foi a mesma. Daí que seja preciso situar o bebê e o surgimento da estimulação precoce enquanto disciplina dentro de uma dimensão histórica. Hoje em dia, espera-se desde o ideal social que o nascimento de um bebê -"sua majestade o bebê'', como situa FreucF - comporte um grande investimento narcísico por parte dos pais em relação a este bebê recém-chegado ao mundo. As famílias costumam depositar no nascimento de um bebê a possibilidade de transcendência da morte pela transmissão dos ideais ao filho, zelando assim pela saúde, educação, formação e constituição desse pequeno bebê. Mas esse modo do laço de pais e filhos é bastante recente. Foi _somente na passagem da sociedade medieval à sociedade tl1oderna que ocorreu a organização do núcleo familiar em torno da criação e educação das crianças. Na sociedade medieval, a duração da infância era reduzida ao seu período mais frágil, enquanto o filhote do homem não conseguia bastar-se. Mal a criança adquiria desembaraço físico, era logo misturada aos adultos e partilhava de seus trabalhos e jogos. De criancinha pequena era transformada imediatamente em homem jovem.8 ? Sigmund Freud (191 4), Introducción ai narcisismo, O.C, vol. XIV, Buenos Aires, Amorrortu, p. 88. A citação completa é retomada na nota 2 do capítulo Temporalidade e clínica com bebês (N. da A.). ' Philippe Arries (1973) , A Histó1ia Social da Família e da C1iança, segunda edição, füo de Janeiro, Guanabara, p. 10. 27 ENQUANTO O FUTURO NÃO VEM "Se a arte medieval representa a criança como um homem em escala reduzida ( ... ) a criança era portanto diferente do homem, mas apenas no tamanho e na força, quanto às outras características permanecia igLtal ( ... ) a criança era um anão, mas um anão seguro de que não permanecerá anão, salvo em caso de feitiçaria."9 Quando a criança sobrevivia aos primeiros anos, freqüentemente passava e viver em outra casa que não a de sua familia de origem. A familia tinha por missão a sobrevivência que individualmente era impossível, praticava um ofício comum, assim como ajuda e proteção mútua da vida e honra. Ali o amor não era necessán·o à existência nem ao equilíbrio da família; se existisse, tanto melhor.10 "um sentimento superficial da criança - "paparicação" - era reservado à criancinha em seus primeiros anos de vida enquanto ela ainda era uma coisinha engraçadinha. As pessoas se divertiam com a criança pequena como com um animalzinho, um macaquinho impudico. Se ela morresse então, como muitas vezes acontecia, alguns podiam ficar desolados, mas a regra geral era não fazer muito caso, pois uma outra criança logo a substituiria. A criança não chegava a sair de uma espécie de anonimato." 11 Se nas civilizações antigas havia uma educação formal dirigida , aos jovens, na Idade Média, mais do que educação dirigida a formar as crianças, havia um convívio indiferenciado destas com os adultos, que assim lhes comunicavam seu savoirfaire e o savoir-vivre. 12 À medida em que a infância começou a ser representada como uma etapa diferente da vida adulta, também foi se criando uma resposta que, desde o social, viesse a dar conta dessa diferença. Surgiu assim, a partir do final do século XVII, a escola. Tal instituição passou por diversas modificações, mas manteve o seu caráter inicial de "formar moralmente indivíduos que ainda não estavam prontos 9 Idem , p. 14 e 15. w Idem, p. 11, 17, 18 e19. 11 Idem, p. 10. 12 idem, p. 16. 28 SITUANDO A CLÍNICA COM BEBÊS · para serem cidadãos". Ao mesmo tempo em que a familia foi se nucleando como um lugar de afeição necessária entre cônjuges e entre pais e filhos, passou-se a atribuir importância cada vez maior à educação. Os pais passaram a interessar-se pelos estudos de seus filhos e a acompanhá-los com uma solicitude habitual nos séculos XIX e XX13 • Cada criança foi se tornando, assim, única e insubstituível. Ao mesmo tempo em que a familia passa a nuclear-se em torno de uma aposta narcísica de transcendência de sua realização na criança, desde o social também passa a se fazer da formação da criança uma aposta por "um mundo futuro melhor". Assim, a partir do início do século XX, tratamentos passam a ser aplicados às crianças quando algo neste circuito de realização fracassa. Desde a ciência, i!S diferentes disciplinas, tomando como cerne de investigação seus respectivos objetos cienúficos, começaram a interrogar-se sobre as peculiaridades que estes assumiam na infância, uma etapa da vida que, desde o aspecto anátomo-fisiológico, se caracteriza por funções que ainda não estão constituídas, mas em um tempo de constituição. Começa então a ser estabelecido um conhecimento sobre o processo de desenvolvimento e a serem configuradas diferentes modalidades de fntervenção diante dos problemas apresentados na infância. É interessante notar que as primeiras técnicas de intervenções terapêuticas são inicialmente estabelecidas tomando como ponto de referência a experiência com a perda de determinadas funções em adultos e a sua reeducação. Parte-se da suposição de que o processo de reaquisição no adulto que havia perdido uma função seria semelhante ao da aquisição na infância. É somente num segundo momento que se estabelece o estudo e conhecimento acerca das características próprias da infância, sendo considerada a diferença entre intervir com um adulto e com uma criança, pois, ao intervir com crianças, passa a ser necessário saber da legalidade que rege as aquisições durante o desenvolvimento. 13 Idem, p. 12. 29 ENQUANTO O FUTURO NÃO VEM O modo pelo qual se deu conta da diferença entre crianças e adultos implicou no surgimento de diversas escalas que passaram a estabelecer a correspondência entre determinadas idades e determinadas aquisições. A partir delas, foram desenvolvidos testes e técnicas com o objetivo de avaliar o desempenho da criança e - ao compará-lo com tais escalas estabelecidas - indicar se estaria situado do lado da "normalidade" ou da "patologia". Em outras palavras, poderia se dizer que tais técnicas vêm ~valiar até que ponto uma criança se adequa ao que dela se espera. E uma tentativa de tornar mensurável, através de testes aplicados, a medida dessa "adequação" ou "inadequação'', aplicando, a partir daí, técnicas reeducativas com o objetivo de sanar o dijicit apresentado. 14 Mais adiante encontramos a possibilidade de situar a produção de um bebê ou de uma criança desde estágios de desenvolvimento, ou seja, desde os passos que fazem parte de seu processo de aquisição. Isto permite que a intervenção passe a proceder não mais desde um modelo reeducativo (de adequação e inadequação, de certo e errado), mas a partir de uma leitura que permite situar a produção e o problema da criança, assim como as ofertas que podem vir a favorecer suas conquistas, dentro de um processo de aquisição cada vez mais complexo. Este é um efeito clínico propiciado, por exemplo, ... pela Epistemologia Genética de Jean Piaget. 15 Situamos ainda um terceiro marcono que diz respeito ao tratamento e intervenção com crianças com problemas no desenvolvimento: trata-se do corte epistemológico operado pela psicanálise, desde o qual constatamos que o processo das aquisições instrumentais que constituem o desenvolvimento não é independente da constituição psíquica. O desenvolvimento não ocorre por automatismos desencadeados pela mera passagem do tempo e seus efeitos na maturação no organismo. Tampouco é pelo mero encontro com o real que se desencadeiam estruturas epistêmicas de progressiva 14 Zulema G. Yanez (1990), Desde o verbo de Nicolás, Escritos da cn'ança, nQ 3, Porto Alegre, Centro Lydia Coriat de Porto Alegre. 15 Jean Piaget (1972), E! nacimiento de la inteligencia en e! nino, Madrid, Aguilar. 30 SITUANDO A CLÍNICA COM BEBf:<:S ·coordenação nas ações de um bebê. 16 O desenvolvimento está atrelado à constituição psíquica e, portanto, ao laço que um bebê ou criança estabelecem com o Outro. 17 Percebe-se, deste modo, que há diferentes modos de conceber 0 processo de devir adulto de uma criança. Tais diferenças têm efeito no que se propõe como tratamento e intervenção diante de um problema que se apresenta na infância. Certamente um grande passo científico foi dado ao diferenciar um adulto constituído de uma criança em constituição. Foi justamente 0 reconhecimento dessa diferença que deu lugar ao surgimento de especialidades dedicadas à infância, tais como pediatria, neuropediatria ou psicanálise de crianças. Mas há outra diferenciação que, apesar de bastante mais sutil, é de grande importância clínica: trata-se do reconhecimento das características próprias da primeira infância, ou seja, do que situa a diferença entre um bebê e uma criança. O modo como os pais ficam implicados na vida de um bebê, a forma com que se fazem presentes os padecimentos e as manifestações patológicas de um ser que ainda não fala, são peculiaridades que exigem que um bebê e uma criança sejam situados de modo diferenciado desde o enquadramento clínico. Pois, ainda que o tempo de ser bebê faça parte da infância como um todo, as características desse primeiro tempo da constituição exigem uma intervenção que contemple clinicamente a especificidade apresentada pelos bebês. Foi diante da necessidade de dar esse passo que nasceu a clínica interdisciplinar em estimulação precoce, fortemente vinculada à importância que a detecção e intervenção precoces têm na evolução clínica de um bebê que apresenta problemas em seu desenvolvimento e constituição psíquica. 16 É aí que reside a fundamental diferença entre o paradigma da epistemologia genética e da psicanálise em relação ao desenvolvimento. Ver: Alfredo Jerusalinsky (1988), Psicanálise e desenvolvimento infantil, cap. 2, primeira edição, Porto Alegre, Artes Médicas (N da A.). 17 Este aspecto é retomado e mais amplamente discutido no capítulo Temporalidade e desenvolvimento (N. da A.) . 31 ENQUANTO O FUTURO NÃO VEM A estimulação precoce surgiu como especialidade clínica há aproximadamente 30 anos, ao longo dos quais vem inscrevendo os efeitos de seu trabalho no campo da intervenção com problemas do desenvolvimento infantil. Seu surgimento se dá em um lugar fronteiriço com o de várias outras disciplinas, com as quais se faz necessária uma permanente interlocução, dado que seus conhecimentos são fundamentais para o trabalho com bebês 18 • Tal é o caso da neurologia e da genética em relação ao processo de maturação no início da vida, da lingüística e da fonoaudiologia para compreender a aquisição da linguagem, da psicopedagogia e da epistemologia para compreender o processo de aprendizagem e construção do pensamento, da fisioterapia e da psicomotricidade para conhecer a legalidade e estabelecimento dos movimentos do corpo, e da pediatria com seu saber sobre a puericultura. Mas, ao mesmo tempo em que todas estas disciplinas dispunham e dispõem de conhecimentos fundamentais para a intervenção com bebês, foi na lacuna deixada entre suas praxis que se fundou tal especialidade, situando o bebê no cerne da intervenção clínica. Com o avanço científico, não só propiciado por conhecimentos que foram possibilitando a realização de diagnósticos clínicos mais acurados, como também pela importância decisiva que o progresso tecnológico foi ganhando nesse processo, foi sendo possível realizar cada vez mais cedo a precoce detecção de patologias orgânicas. Mas, uma vez que os médicos e os pais passaram a ter acesso a diagnósticos orgânicos precoces, encontraram-se com um vazio quanto à possibilidade de uma intervenção clínica que contemplasse a especificidade apresentada por um bebê com problemas de desenvolvimento. Esse foi o caso de bebês que, no final da década de 60, tinham finalmente diagnosticada geneticamente a trissornia no par 21 como causa da síndrome de Down. Naquele momento, além 18 Elsa Coriat (1997), Psicanálise e clínica com bebês, Porto Alegre, Artes e Ofícios. 32 \ SITUANDO A CLÍNICA COM BEBÊS da realização diagnóstica, pouco mais havia para se oferecer além dos controles médicos de rotina. 19 Foi a clínica que impôs a necessidade de estabelecer uma intervenção específica que sustentasse, junto ao bebê e à sua família, as condições que possibilitam a constituição psíquica e o desenvolvimento. Por isso, apesar de que inicialmente foram recebidos bebês com síndrome de Down, logo começaram a chegar a tratamento em estimulação precoce bebês acometidos por diversos outros problemas, com ou sem quadros orgânicos de base, que tampouco eram contemplados desde as praxis de outras disciplinas. zo Deste modo, o surgimento e a sustentação de uma prática clínica interdisczplinar em estimulação precoce se deu a partir da possibilidade de reconhecer que a intervenção de um bebê com problemas e sua família implicava uma especificidade da qual não havia como dar conta de modo isolado desde os diferentes campos teórico-clínicos !á estab~lecidos, e de que a questão tampouco se resolvia por uma justaposição multidisciplinar dos mesmos. - Para que tratar se o problema apresentado não tem cura? - Como intervir se o diagnóstico orgânico ou o quadro patológico do bebé não estão plenamente configurados? - Que tratamento indicar quando um bebé tem diflmldades em ván.as áreas do desenvolvimento? Estes são questionamentos que se repetem uma e outra vez prov~nientes do ambiente médico, do social e do parental, e~ relaçao a bebês que apresentam problemas de desenvolvimento. 19c omo traz o seguinte testemunho: Assim que o co1po médico soube que em algum luuar estudava-se a síndro d D · " me e 0111n, os pacientes compareceram em massa, porque os profissionais encontra~am-se desvalidos diante da afecção de seus pacientes ou fiamiliares. (. .. ) Nem a reeduca !.' · . d fª.º e asszca, nem as medicações habituais evitavam a profunda deterioração da maioiia estas cnanças. (Lydia Coriat, 1970). Citado por Elsa Coriat (1997) obra citada ~~~~~. ' ' 20 UNICEF (1978) E ti , ., -r · . d . _ ' s mu1acton L emprana - tmportancta dei ambiente para e/ desa1Tollo eJ nzno, Santiago de Chile. Ver também: Elsa Coriat, obra citada, p. 64 (N. da A.). 33 ENQUANTO O FUTURO NÃO VEM t Justamente por isso, eles estão situados no cerne da clínica interdisciplinar em estimulação precoce. Tal clínica surge da possibilidade de escuta destas questões e sua praxis e cotpus teórico se fundam pela formulação e reformulação de respostas a estas questões que insistem no dia-a-dia da vida de um bebê com problemas e sua família. 1- Quando se detecta a presença de um quadro orgamco inexorável - como é o caso de quadros sindrômicos, lesionais ou de malformações congênitas - a intervenção terapêutica pode ficar questionada, uma vez que ela não conduzirá à cura da patologia. Para que tratar se não tem cura? O que vai ser tratado, se não há como resolver o problema? Concebemos que, diante de tal interrogação, a intervenção com o bebê e suafamília tem uma importante função clínica ao conduzir uma direção da cura do que não se cura 21 para que os efeitos fantasísticos - as fantasias inconscientes - engendrados nos pais pelo diagnóstico orgânico não terminem produzindo uma série de obstáculos para o bebê tanto mais graves que as limitações impostas pela patologia orgânica em si. Como aponta Maud Mannoni - psicanalista pioneira ha intervenção com crianças acometidas de graves problemas orgânicos: "Quando um fator orgânico está em jogo, esta criança não tem só que fazer face a uma dificuldade constitucional, mas ainda à maneira pela qual a mãe utiliza esse defeito em um mundo fantasmático que acaba por ser comum aos dois. A realidade da doença não é, em momento algum, subestimada em uma psicanálise, mas o que se procura evidenciar é como a situação real é vivida pela criança e pela sua farrúlia. O que adquire, então, um sentido é o valor simbólico que o sujeito atribui a essa situação em ressonância a uma certa história familiar."22 21 Como aponta Alfredo Jerusalinsky, obra citada, cap. 4 (N. da A.) . Por razões de padronização na tradução dos conceitos, os editores optaram por fantasia e tratamento, ao invés de fantasma e cura, apesar da autora por vezes utilizar estes últimos (vide a justificativa desta opção em "Posfácio - Sobre a tradução", in Dicionário de Psicanálise - Freud & Lacan, vol I, 2a edição, Ágalma, Salvador, 1997) ( N. dos E.). 22 Maud Mannoni, A criança, sua "doença" e os outros, São Paulo, V ia Lettera, 1999, p. 59. 34 SITUANDO A CLÍNICA COM BEBÊS 2- A tradição médica toma como modelo para sua intervenção o diagnóstico realizado desde quadros patológicos fechados. Parte, assim, para o estabelecimento de sua nosografia, de um modelo adultomorfo, ou seja, .de patologias plenamente configuradas que se apresentam com seus diversos sintomas estabelecidos.23 Então, como situar aí um bebê? Como indicar um tratamento e como intervir se o diagnóstico orgânico ou o quadro patológico do bebê não estão plenamente configurados? Dado que a clínica da estimulação precoce intervém nos tempos primordiais, muitas vezes recebemos pacientes que, mesmo diante da suspeita de um quadro orgânico, ainda não foram submetidos a todos os exames necessários para chegar a um diagnóstico, pois não têm sequer o tempo de vida suficiente p.ara isso. Por isso, ao tratar-se de bebês, o estabelecimento do rea/24, mwtas vezes, vai ocorrendo ao longo do tratamento. O ponto é que a vida não pode ficar em suspenso enquanto 0 diagnóstico orgânico não se define, pois a intervenç~o é com o bebê que apresenta um problema e não com a patologia. Há, nesse sentido, uma série de operações clínicas que apontam a organizar o marco que faz possível a constituição psíquica e .º desenvolvimento de um bebê, independentemente da patologia orgânica que esteja em jogo, e também a que os pais possam exercer as funções materna e paterna com o seu filho em lugar de ficarem tomados pela _incerteza que comporta o tempo de espera de uma definição diagnóstica. Intervir no tempo de indefinição diagnóstica, tempo em que a filiação de um bebê pode ficar em suspenso à espera do parecer 23 A respeito dos modelos psicopatológicos ver: Jean Jacques Rassial (1996), Psicose na adolescência, Escritos da Criança, n.4, Porto Alegre, Centro Lyd1a Conat de Porto Alegre (N. da A.). 24 Como aponta Alfredo Jerusalinsky, o estabelecimento do real é um passo necessário para a direção do tratamento na intervenção com problemas.do de~envolv1men~~ infantil. Tal passo permlte estabelecer até que ponto uma ltm1taçao presente produção da cnança tem causas orgârucas. Obra citada, cap. 4 (N. da A.). 35 ENQUANTO O FUTURO NÃO VEM médico, é tão importante quanto intervir diante da certeza de uma patologia que vem a fazer obstáculo a que os pais coloquem em cena seu saber inconsciente e consciente para exercer as funções materna e paterna com o bebê. A clínica da estimulação precoce não se limita a intervir com bebês que apresentam suspeita ou confirmação de problemas orgânicos. Muitas vezes recebemos bebês em relação aos quais os _ médicos percebem que "algo não está bem", ainda que, exame após exame, não se encontre neles nenhum comprometimento orgânico de base. Assim, por exemplo, chegam bebês com alterações funcionais específicas - no sono, na alimentação, no estabelecimento psicomotor etc. - e, mais freqüentemente, bebês que apresentam "atrasos generalizados no desenvolvimento'', ou ainda, bebês com "traços de desconexão" e pequenas crianças com "condutas estereotipadas" ou "atípicas" que apontam a incidência de problemas na constituição psíquica. São casos em relação aos quais, pela precoce detecção e intervenção, pode-se evitar a plena instalação da patologia e, em grande parte deles, dar lugar a uma reinscrição do modo de funcionamento da estrutura psíquica do bebê ou pequena criança. , Daí a importância de trabalhar junto àqueles profissionais que normalmente intervêm com a infância, tais como pedagogos e pediatras, já que a detecção precoce permite que possa ser realizada uma intervenção - às vezes mais curta e específica, outras implicando um tratamento - em lugar de se ficar esperando que o quadro clínico do bebê esteja absolutamente configurado em todas as suas manifestações patológicas, que corresponda ponto a ponto a todos os critérios nosográficos para fechar um diagnóstico e, portanto, que só se intervenha diante da patologia plenamente instalada. A clínica com bebês opera pela precoce detecção de traços que, a partir dos cuidados parentais e das produções do bebê, indicam a incidência de problemas no marco da constituição do bebê. Não é preciso esperar que o quadro patológico esteja plenamente instaurado para intervir, pois é possível ler os primeiros indicadores clínicos que levantam a suspeita de que a constituição 36 SITUANDO A CLÍNICA COM BEBÊS . do bebê não vai bem, em um tempo em que ainda estão sendo estabelecidas as primeiras inscrições do seu funcionamento pulsional, de sua constituição psíquica e, portanto, em um tempo em que estruturalmente há maior permeabilidade a inscrições e reinscrições.25 3 - Como intervir quando o bebê apresenta dificuldades em várias áreas do desenvolvimento? Atualmente é comum que, ao ser detectado um quadro de "distúrbio global do desenvolvimento'', um bebê seja encaminhado a múltiplos tratamentos . Já quando o diagnóstico indica comprometimento orgânico de uma determinada função do bebê, muitas vezes se procede com uma "estimulação específica" da área afetada . Por exemplo, se há um déficit auditivo, indica-se "estimulação auditiva" em fonoaudiologia, ou se há paralisia cerebral se intervém desde métodos fisioterapêuticos, e assim por diante. Neste ponto é preciso recordar que, quando a estimulação precoce surgiu enquanto clínica dedicada a intervenção com bebês, diferentes disciplinas como fonoaudiologia, fisioterapia, terapia ocupacional, pedagogia, psicologia, entre tantas outras existentes, tinham um trabalho com a infância dirigido, principalmente, a crianças em idade escolar. Hoje em dia a situação é outra. As mais diversas disciplinas começam a focar sobre o bebê seus oijetos de estudo e a intervir com este a partir de um recorte de sua área de conhecimento. Ocorre, assim, uma transposição da aplicação do conhecimento de cada área, de suas técnicas já estabelecidas ou de novas técnicas de "estimulação específica", no bebê. O problema é que onde se vê a árvore não se vê a floresta. Quando o olhar fica centrado no déficit e na técnica a aplicar, o que se perde de vista é o bebê. Se a ciência veio se organizando pela subdivisão de seus objetos de estudo, permitindo ter conhecimento acerca da legalidade que rege a aquisição de cada área na infância, o que tende a ficar esquecido nesse processo é que uma aquisição instrumental, para que seja efetivamente uma aquisição, tem que serde alguém. 2' Tal questão é abordada no capítulo É possível prevenir ou só resta remediar? (N. da A). 37 1 1 \ ENQUANTO O FUTURO NÃO VEM O estabelecimento do circuito pulsional26 que permite que uma função atue não ocorre de modo autônomo. É preciso que haja aí um desejo implicado - desejo que, para um bebê, é inicialmente sustentado por um Outro encarnado. Neste sentido, quando se procede a partir de múltiplas intervenções ou de intervenções que recortam o déficit, desconsiderando as condições constituintes de um bebê e lançando-o ao anonimato de várias técnicas, os efeitos podem ser iatrogênicos. Ignorar isto, ou intervir a partir da prática que pretende deixar a inscrição do sujeito do desejo "de fora", tem os seus efeitos, efeitos estes extremamente desorganizadores para crianças pequenas e tanto mais para um bebê (que ainda não tem estabelecido o Eu), seja porque tal bebê passa a padecer o super-investimento que se dirige justamente àquilo que no seu corpo fracassa, seja porque a multiplicidade de intervenções fragmenta sua possibilidade de reconhecimento. Deste modo, a experiência clínica apontou a importância de estabelecer um dispositivo que, contemplando os conhecimentos científicos de diversas áreas que são necessários a esta intervençã0, ao mesmo tempo, propiciasse um marco favorecedor para a constituição psíquica e para as aquisições instrumentais de um bebê. Foi a partir da consideração de tais questões clínicas que se configurou o dispositivo de um terapeuta único no marco de uma equipe interdisczplinar7 na intervenção com a primeira infância. 26 Questão trabalhada no capítulo Temporalidade e desenvolvimento (N. da A.). 27 A modalidade de intervenção de um Terapeuta único em estimulação precoce 110 marco interdisciplinar é proposta e utilizada há mais de 25 anos pelas equipes do Centro Lydia Coriat de Porto Alegre e de Buenos Aires na intervenção com bebês e, a partir daí, por outras instituições que passaram também a tomar tal dispositivo como referência na intervenção com a primeira infância. A fundamentação teórica de tal dispositivo pode ser encontrada em diferentes produções científicas publicadas por essas instituições, tais como as revistas C11ademos dei Desarrol/o Infantil, Buenos Aires; Escritos dt1 C1iar1ça, Porto Alegre; Escritos de la Infancia, Buenos Aires; o livro de autoria de Alfredo Jerusalinsky Psicanálise e Problemas do Desenvolvimento Infantil, Porto Alegre, Artes e Ofícios; e o l.ivro de autoria de Elsa Coriat Psicanálise e clínita com hebês, Porto Alegre, Artes e Ofícios (N. da A.). 38 SITUANDO A CLÍNICA COM BEBÊS A interdisciplina possibilita aí a interlocução entre diversas áreas, o que é imprescindível ao tratar-se de bebês e crianças pequenas com problemas de desenvolvimento. E a intervenção de um terapeuta especializado no trabalho com bebês a cargo da direção do tratamento cumpre a importante função de possibilitar o estabelecimento de uma referência no tratamento. Deste modo, não são os pais e o bebê que têm de padecer efeitos desagregadores ao ficar deparados com os diversos discursos científicos ou efeitos de . redução do bebê ao déficit diante de uma intervenção que sublinha a função que fracassa. É fato que, desde o nascimento da estimulação precoce até hoje em dia, foram surgindo novas concepções clínicas - quanto ao modo e finalidade da intervenção, ao lugar do paciente e dos pais no tratamento e também quanto à função e o lugar do clínico. Assim, sob o mesmo nome de "estimulação precoce" hoje coexistem intervenções clínicas muito divergentes que se apoiam em diferentes cortes epistemológicos. O surgimento de tais práticas sempre se produz - quer elas dêem conta disso teoricamente ou não - como 0 estabelecimento de respostas, desde uma ou outra inclinação ética, aos questionamentos centrais anteriormente citados que se apresentam na vida de bebês com problemas e suas famílias. • Entre algumas das explicações mais recorrentes que hoje em dia justificam as mais diversas intervenções com bebês podemos encontrar práticas fundadas em explicações tautológicas do "estimular porque é bom" e "quanto antes melhor" que auto- explicam seus benefícios a partir da atribuição de uma imanência terapêutica de ce1tos oijetos - sejam eles a água, os animais, as cores, as formas, o movimento, etc. Acrescem ao nome de tais objetos a palavra "terapia" e, a partir dos supostos efeitos benéficos por eles propiciados, sugerem que a "experimentação" dos mesmos pelo bebê seria, por si só, propiciadora de desenvolvimento. São poucos os pais que situam todas as suas apostas de melhora do filho nesse tipo de intervenções, mas muitos deles as mantêm como "atividades complementares do tratamento propriamente 39 ENQUANTO O FUTURO NAO VEM dito'', pela justificativa do "mal não faz". Esta afirmação que comparece pela negativa do "mal não faz" revela o quanto, em tais modalidades de intervenção, a "ação", o "fazer", situa-se mais do lado do objeto "em seu poder de cura" do que numa aposta, numa expectativa pelo que o bebê poderia vir a fazer. É certo que, em qualquer experiência pela qual um bebê passar, vão estar em jogo suas reações de equilíbrio psicomotor, suas sensações proprioceptivas e exteroceptivas. Mas daí a estabelecer uma imanência terapêutica no objeto há uma grande diferença e uma diferença ainda maior em supor que isso, por si só, produziria desenvolvimento. • Outra vertente da intervenção com bebês consiste na aplicação de programas de estimulação ou técnicas reeducativas, com intervenções multidisciplinares ou intervenção sobre o dijiàt específico. " Assim, atualmente, muitos bebês passaram a ser tomados em tratamento em áreas específicas nas quais apresentam um dijicil e, quando seus sintomas se generalizam, vão se acrescentando ao tratamento inicial todos aqueles que correspondem às áreas dos novos problemas apresentados. Assim chega-se a ter tantos tratamentos quantas forem as áreas que comprometidas28 • Intervém- se ali a partir da aplicação de técnicas, por exemplo, com estimulação psicomotora precoce, estimu.laçào auditiva precoce, estimulação visual precoce, estimulação multise1JJorial etc. Trabalha-se com o que está em "déficit no bebê", na aposta de que, quem sabe com a "estimulação a mais" propiciada a partir da intervenção, cada déficit específico possa vir a ser compensado. Certamente é fundamental saber, por exemplo, como evitar um padrão tônico ou favorecer uma mudança postural em um bebê que apresenta paralisia cerebral, como favorecer a acuidade 28 Ver, por exemplo, CORDE (1992), Estivltf!açJo precoce, org. Aidyl e Juan Pérez- Ramos, São Paulo, Ministério da Ação Social, pág. 26, que situa a utilização da seguinte prática: ~s eqt1ipes multidisciplinares contam com 11ma variedade de profissionais qt1e vão sendo pa11/ati11amente incorporados ã medida q11e surgem as necessidades d11rante a evolução das oia11ças atendidas e de Slías respectivas famílias" (N. da A.). 40 SITUANDO A CLÍNICA COM BEBÊS de discriminação sonora de um bebê com perda auditiva ou como ropiciar a formação da imagem mental e a tridimensionalidade ~o espaço em um bebê com grave deficiência visual. O ponto é que as problemáticas apresentadas pelos bebês e as questões ~~zi~as pelos pais não costumam obedecer a cronologia e sequencias previstas nos programas de estimulação. Apesar das recomendações que constam nos manuais de que 0 reeducador "instrua" os pais sem "engajar-se em nenhuma psicologia profunda" 29 , as questõ~s dos pais ,e as produções_ do bebê irrompem para além do previsto pelo metodo. Quando isso ocorre, os profissionais ora colocam os pais para fora da sala, para que não "impeçam o andamento do programa c~m s~as _questões", ou para dentro da sala, para "dar-lhes onentaçoes tecrucas acerca de como proceder com o bebê"Jo. Os profissionais tentam, deste modo, encontrar soluções práticas acerca do lugarfísico de permanência dos pais quando o que está em jogo diz dos lugares simbólicos e da implicação dos pais em relação ao bebê no marco do tratamento. Outras vezes, é a produção do bebê que irrompe como obstáculo à aplicação da técnica. Na medida em que o trabalho fica dirigido a restabelecer por automatismos a função do órgão . que fracassa em seu funcionamento, a suposição do bebê como sujeito psíquico fica sem lugar na cena clínica. Então, quando compar:ce, se faz ver e escutar de modo irruptivo. Encontramos assim bebes e pequenas crianças que provocam vômito nas sessões de fonoaudiologia ou que choram incessantemente enquanto são realizadas em seu corpo manobras posturais. 29 Como recomendam Herren e Herren (1986), Estimulação psicomotora precoce, Porto Alegre, Artes Médicas, p. 22 (N. da A.). 30 Como afirmam Aidil e Juan Perez-Ramos acerca do lugar dos país em diversos nos programas de estimulação precoce: "Além da 01ientação individual_ a eles (pais) proporcionada (...) são utilizados cimos específicos de treinamento, nos q11azs se mcltte?ll, entre outros asrnntos, conhecimentos básicos sobre estimulação precoce e sobre a necessidade de aceitação da niança atípica pelos familiares, hem como a prática das atividades que devem realizar com a mesma." Obra citada, p. 27 (N. da A.). 41 ENQUANTO O FUTURO NÃO VEM A partir do corte epistemológico reeducativo o bebê é concebido como um "indivíduo" que, ainda que dependa dos outros para seus cuidados, já que no início não tem condições reais de sobreviver sozinho, teria um desenvolvimento produzido de modo autônomo. Pai, mãe ou outros "entes queridos" contribuiriam com uma dose de "afeto", configurando o "meio favorável" ao desenvolvimento do bebê. 31 Mas, dado que o desenvolvimento se produziria por um automatismo do encontro do organismo com o meio, decorrendo de sua experimentação ao longo do tempo, a intervenção aposta que, ao propiciar área por área uma melhora dos padrões das produções específicas, chegar-se-ia a produzir melhoras gerais no quadro do bebê - como se a soma das partes, área por área, pudesse produzir "o conjunto" do desenvolvimento. Quando os pais irrompem com suas questões ou quando o bebê, através das manifestações do seu corpo, resiste à aplicação do programa reeducativo, a técnica insiste até que tais irrupções se submetam ao método. Ou seja, até que o sujeito do desejo não insista mais em emergir. De fato, os bebês modificam seus comportamentos e, em grande parte dos casos, cumprem os padrões esperados e propostos pelas tabelas de evolução especiais para sua patologia. Afinal: "O sistema nervoso central do ser humano possui tanta flexibilidade (quando não está profunda e gravissimamente danificado) que resulta quase impossível introduzir uma estimulação sistemática e não obter algum resultado no comportamento. Porém medir o progresso de uma certa discriminação perceptiva, ou o aumento da velocidade e precisão de uma atividade de motricidade fina, nada nos diz acerca de como esses elementos estão ou não integrados no sistema de significação e, portanto, de articulação do desejo, que é o que constitui o núcleo fundamental desse sujeito."32 31 Ver, por exemplo, Herren e Herren, obra citada, p. 21; e CORDE, obra citada, p. 29 (N. da A.). 32 Alfredo Jerusalinsky, obra citada, p. 67 (N. da A.). 42 SITUANDO A CLÍNICA COM BEBÊS Ainda dentro das modalidades de intervenção com bebês encontramos aquelas que se estabelecem como práticas intuitivas: "Leio várias coisas, ma.i~ na hora de intervir, plum! Me atiro no colchonete': argumenta uma "terapeuta de bebês". Ainda que esta resposta possa causar bastante desconcerto, ela talvez explicite uma posição muito comum na intervenção com a primeira infância. Mesmo nas origens da psicanálise de crianças, encontramos algumas concepções que propõem a intuição como modo de sustentar a prática clínica, por exemplo, ao sugerir que a mulher seria "naturalmente" aquela que · deveria vir a exercer a psicanálise de crianças. ''A condição de mãe ter-lhe-ia conferido o lugar de onde desenvolveu sua abordagem analítica e refinou suas articulações. Nessa forma, a psicanálise de crianças ficara exposta a este risco de desvio do SeLt campo, já que a analista faria função de substituta do agente materno, numa expectativa de suplência propiciadora de uma relação mãe-criança ideal. 33 A posição da criança, posição de equivalência simbólica ao falo na economia subjetiva do agente materno, permitiria o recurso de uma língua dual, privilegiada, reservada à relação mãe-criança, podendo situar as mulheres-analistas de crianças num laço particular e privado, cuja conseqüência seria a economia da passagem à articulação teórica, fazendo, muitas vezes, da "intuição" uma suficiência."34 Afinal, poderia ser questionado: - Quem é que não sabe o que fazer com um bebê? Se levarmos em consideração a condição de sujeição de um recém-nascido, é certo que, a princípio, pode-se fazer de tudo com ele, ainda que isso tenha conseqüências para sua constituição. Tanto mais decisivo é então para o seu futuro o lugar que lhe é atribuído, 33 A · firma Angela Vorcaro, apontando o problema das práticas intuitivas ao retomar as questões levantadas por Fendrik acerca das origens da psicanálise de crianças e das produções ele Melanie Klein e Anna Freud. A Ciia11ça 11a Clinica Psica11a!ítica, Rio de Janeiro, Companhia de Freud, 1997, p. 14. Ver também Silvia Fendrik (1988), Psicoanálisis para 11ifios:ficción de sus 01igenes, Buenos Aires, Amorrortu (N. da A.). 34 • Angela Vorcaro, obra citada, p. 140. 43 ENQUANTO O FUTURO NÃO VEM não só a partir do parental, mas também pela condução do tratamento. As práticas que partem da aplicação de métodos reeducativos e técnicas de estimulação, muitas vezes, também se utilizam de intervenções intuitivas quando deparam com questões que não estão previstas pelo método. A questão é que disso não se fala, é como se tais intervenções ficassem "de fora" do "tratamento propriamente dito" sendo, portanto, geralmente suprimidas ou negligenciadas ao expor a "evolução do caso'', tanto quando surtem efeitos negativos, como quando são propiciadoras de melhoras para o bebê e sua familia, melhoras que então passam a ser atribuídas simplesmente à aplicação da técnica. Não se trata de que antes de cada sessão tudo tenha que estar pensado e planejado. Até porque, quando assim se pretende proceder por meio da aplicação de técnicas, não se dá lugar a que compareça o sujeito - e, quando este fugazmente irrompe, seja a partir das produções espontâneas do bebê ou a partir da fala parental, é prontamente silenciado para que se prossiga com o programa pré- estabelecido. Porém, quando o tratamento fica conduzido de um modo intuitivo, o bebê e sua família correm sérios riscos de ficarem situados como objetos das fantasias inconscientes do terapeuta. Neste sentido, consideramos fundamental o corte epistemológico que a psicanálise produz na clínica da estimulação precoce, diferenciando-a da postura reeducativa e da terapêutica intuitiva: Na clínica da estimulação precoce, a intervenção não se conduz por uma planificação pré-estabelecida em função da patologia do bebê. O clínico aponta a intervenção numa determinada direção - que implica a produção de um sujeito no bebê e a possibilidade de que o mesmo possa vir a se apropriar de aquisições instrumentais - e intervém a partir da leitura da produção de cada bebê e da escuta de seus pais. 44 SITUANDO A CLÍNICA COM BEBÊS Há, portanto uma direção do tratamento35, que vai s~~do Ul'da intervenção por intervenção. Apesar do calculo do clínico, constr ' . - - h ' omo se ter de antemão certeza dos efeitos que serao nao a c . . D , d 'dos pela intervenção deles só se sabe a posterzorz. ai que pro uzi ' · 1 · i·so que as intervenções realizadas e os efeitos que e as sep prec . 1 líni. d
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