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Brasília-DF. Psicanálise com BeBês Elaboração Mônica Gurjão Carvalho Tatiana Ferreira Peres Produção Equipe Técnica de Avaliação, Revisão Linguística e Editoração Sumário APRESENTAÇÃO ................................................................................................................................. 4 ORGANIZAÇÃO DO CADERNO DE ESTUDOS E PESQUISA .................................................................... 5 INTRODUÇÃO.................................................................................................................................... 7 UNIDADE I PSICANÁLISE DA CRIANÇA: UM PERCURSO HISTÓRICO ........................................................................ 13 CAPÍTULO 1 E TUDO COMEÇOU COM FREUD ........................................................................................... 13 CAPÍTULO 2 A ESCOLA INGLESA: MELANIE KLEIN E WINNICOTT ................................................................... 26 CAPÍTULO 3 A ESCOLA FRANCESA: FRANCOISE DOLTO ............................................................................. 41 UNIDADE II A CLÍNICA PRECOCE .......................................................................................................................... 49 CAPÍTULO 1 POR QUE PENSAR NO ATENDIMENTO DE BEBÊS? ..................................................................... 49 CAPÍTULO 2 A IMPORTÂNCIA DA VOZ NA CONSTITUIÇÃO SUBJETIVA .......................................................... 54 CAPÍTULO 3 PSICOPATOLOGIA DO BEBÊ .................................................................................................... 61 CAPÍTULO 4 RELATO DE UMA EXPERIÊNCIA ................................................................................................ 65 UNIDADE III A TÉCNICA NA CLÍNICA PSICANALÍTICA ............................................................................................... 70 CAPÍTULO 1 A FAMÍLIA NO PROCESSO TERAPÊUTICO: ENTREVISTA INICIAL COM OS PAIS, ACOMPANHAMENTO E ENTREVISTAS POSTERIORES .................................................................. 70 CAPÍTULO 2 A TRANSDISCIPLINARIDADE NA CLÍNICA COM BEBÊS ............................................................... 78 CAPÍTULO 3 A MÚSICA COMO INSTRUMENTO DE AUXÍLIO NA CONSTRUÇÃO SUBJETIVA ............................. 81 CAPÍTULO 4 CONSIDERAÇÕES FINAIS ........................................................................................................ 90 REFERÊNCIAS .................................................................................................................................. 96 4 Apresentação Caro aluno A proposta editorial deste Caderno de Estudos e Pesquisa reúne elementos que se entendem necessários para o desenvolvimento do estudo com segurança e qualidade. Caracteriza-se pela atualidade, dinâmica e pertinência de seu conteúdo, bem como pela interatividade e modernidade de sua estrutura formal, adequadas à metodologia da Educação a Distância – EaD. Pretende-se, com este material, levá-lo à reflexão e à compreensão da pluralidade dos conhecimentos a serem oferecidos, possibilitando-lhe ampliar conceitos específicos da área e atuar de forma competente e conscienciosa, como convém ao profissional que busca a formação continuada para vencer os desafios que a evolução científico-tecnológica impõe ao mundo contemporâneo. Elaborou-se a presente publicação com a intenção de torná-la subsídio valioso, de modo a facilitar sua caminhada na trajetória a ser percorrida tanto na vida pessoal quanto na profissional. Utilize-a como instrumento para seu sucesso na carreira. Conselho Editorial 5 Organização do Caderno de Estudos e Pesquisa Para facilitar seu estudo, os conteúdos são organizados em unidades, subdivididas em capítulos, de forma didática, objetiva e coerente. Eles serão abordados por meio de textos básicos, com questões para reflexão, entre outros recursos editoriais que visam tornar sua leitura mais agradável. Ao final, serão indicadas, também, fontes de consulta para aprofundar seus estudos com leituras e pesquisas complementares. A seguir, apresentamos uma breve descrição dos ícones utilizados na organização dos Cadernos de Estudos e Pesquisa. Provocação Textos que buscam instigar o aluno a refletir sobre determinado assunto antes mesmo de iniciar sua leitura ou após algum trecho pertinente para o autor conteudista. Para refletir Questões inseridas no decorrer do estudo a fim de que o aluno faça uma pausa e reflita sobre o conteúdo estudado ou temas que o ajudem em seu raciocínio. É importante que ele verifique seus conhecimentos, suas experiências e seus sentimentos. As reflexões são o ponto de partida para a construção de suas conclusões. Sugestão de estudo complementar Sugestões de leituras adicionais, filmes e sites para aprofundamento do estudo, discussões em fóruns ou encontros presenciais quando for o caso. Atenção Chamadas para alertar detalhes/tópicos importantes que contribuam para a síntese/conclusão do assunto abordado. 6 Saiba mais Informações complementares para elucidar a construção das sínteses/conclusões sobre o assunto abordado. Sintetizando Trecho que busca resumir informações relevantes do conteúdo, facilitando o entendimento pelo aluno sobre trechos mais complexos. Para (não) finalizar Texto integrador, ao final do módulo, que motiva o aluno a continuar a aprendizagem ou estimula ponderações complementares sobre o módulo estudado. 7 Introdução É mais fácil analisar crianças ou adultos? Existe atendimento psicanalítico para bebês? Como realizar esse tipo de atendimento? É preciso envolver os pais? Inúmeras são as dúvidas no que se refere ao trabalho psicanalítico com bebês entre as quais se destacam as especificidades do manejo psíquico de seres humanos incapazes de falar e a enorme carência de estudos sobre este campo da psicologia. Apesar de ser comum a ideia de não ser possível atender aqueles que não falam, é importante pensar que há uma comunicação. A questão é se sabemos escutar. Geralmente, a expressão do bebê se dá através do corpo, campo no qual o simbólico será alocado, já que ainda não há maturidade para a linguagem falada. A presença e o envolvimento dos pais desde o início do tratamento; a abertura para a escuta e o acolhimento quando necessário; a reavaliação da criança junto aos pais no decorrer do tratamento; todos esses itens provocam um considerável movimento transferencial que não tem como ser ignorado. Mais do que um traço particular do tratamento de bebês, a presença dos pais define uma especificidade dessa clínica, posto que o manejo e a intervenção se fazem necessários. Dificilmente o bebê chega à clínica e ainda é difícil compreender o trabalho analítico em tão tenra idade. Entretanto, saber sobre os primeiros momentos de vida da criança facilita a leitura da história das crianças e até mesmo dos adultos. O que queremos dizer é que, apesar de os bebês não chegarem ao consultório e o seu atendimento geralmente ocorrer nas instituições de cuidados precoces, saber como eles funcionam e estabelecem suas relações iniciais é fundamental para o sucesso do atendimento, independentemente da idade. A criança chega ao psicólogo levada por um adulto, que percebe nela sofrimento, tristeza ou porque o adulto sofre algum incômodo decorrente do comportamento da criança. Muitas vezes os pais chegam desnorteados, sem esperanças, preocupados com os sintomas que percebem na criança, transferem, portanto, para o psicólogo uma “suposição de saber”, demandam que o psicólogo os ajude e ajuste a criança, de tal forma que os problemas deixem de existir. Acreditam, muitas vezes, que a análise funcionará como uma cura mágica, restaurando a harmonia e tranquilidade familiar. Contudo, se são os pais que trazem a criança, apresentando uma queixa a respeito desta, escutá-los não significa escutar “a verdade da criança”, sua “história real”,mas, 8 sim, muitas vezes, escutar algo do desejo desse Outro parental diante do qual ocorre a constituição do sintoma infantil. Assim, ao receber uma criança para tratamento, devemos assumir a interrogação: de quem se trata quando se trata de uma criança ou de um bebê? Afinal, a demanda, comumente, não se apresenta como demanda do bebê, mas de quem a traz para o atendimento (o casal parental, a mãe, algum membro da família, uma Instituição etc.), sendo necessário um desdobramento transferencial para possibilitar o surgimento da demanda da criança, se é que ela existe de fato. Em outras palavras, se por um lado o psicólogo precisa acolher o discurso dos pais ofertando abertura para que um processo possa se constituir, por outro, deve ofertar, também, espaço para que o bebê e suas demandas possam advir, o que pode parecer estranho, já que bebês não falam. Aqui, trabalhamos o tempo todo com o suposto sujeito, aquele que ainda está por vir. Nossa escuta está intimamente relacionada à manifestação do corpo do bebê e à maneira como o casal parental reage a essa expressão. Para que fique claro, no atendimento do bebê, não tratamos nem um, nem o outro. Tratamos aquilo que surge na relação. Uma palavra dirigida à mãe pode funcionar como intepretação para o bebê ou para ambos e vice-versa. No atendimento com bebês é nossa função colocar a palavra. Sinteticamente podemos afirmar que escutar e compreender a demanda dos pais é importante, desde que não se inviabilize a escuta da criança ou do bebê. Como Zimerman (2004) destaca, é difícil imaginar uma criança atendida em psicoterapia psicanalítica sem o acompanhamento concomitante sistemático dos pais, não sendo rara a possibilidade de realizar sessões familiares. Contudo, faz-se necessário atentar para singularidade da criança, preservando seu espaço de análise. Portanto, é comum que, ao tratar uma criança, tratam-se na realidade duas demandas: a dos pais1 e a dela. Nesse contexto, faz-se relevante ainda destacar o conceito de infância. Apesar de, em um primeiro momento, a infância parecer um dado inquestionável, Philippe Ariès (1981) demonstrou, em a “História social da criança e da família”, que a definição de criança se modificou no decorrer do tempo de acordo com parâmetros ideológicos2. Ariès (1981) aponta que na idade média a criança era vista como um pequeno adulto, não sendo considerada merecedora de cuidados especiais. Assim, as crianças eram vestidas como pequenos adultos, participavam de trabalhos, festas, jogos e outras situações, sendo, portanto, um período rapidamente superado. Os bebês, por sua vez, eram destinados às amas de leite. A expressão: “cuidado para não jogar o bebê com 1 Aqui nos referimos a demanda parental em relação à criança. 2 Philippe Airès (1981) realizou um estudo na Europa, no período compreendido entre a Idade Média e o século XX, para demonstrar como definição de criança se modificou no decorrer do tempo de acordo com parâmetros ideológicos. 9 a água do banho” reflete o lugar do bebê nessa época: ele não era pensado e cuidado como sujeito, o que muitas vezes gerava mortes prematuras. Na idade média as crianças se relacionavam mais com a comunidade do que com seus pais. Assim, a aprendizagem e a socialização não eram realizadas pela família ou pela escola, mas por toda a comunidade. É a partir da renascença que ocorre a privatização do espaço doméstico e a família passa a se estabelecer em um grupo fechado e coeso. Passa a predominar, então, a noção de uma inocência infantil, tornando-se a educação uma preocupação das famílias e dos educadores. No século XVII, a Igreja já se preocupava em afastar a criança de assuntos ligados ao sexo, apontando que estas vivências deformavam a formação do caráter e a moral. Foram construídas escolas nas quais, além da preocupação básica com o ensino da religião e da moral, ensinavam-se habilidades como leitura, escrita e aritmética. À época, acreditava-se que na infância predominava a maldade, portanto, fazia-se necessário um adestramento moral. Cabia aos pais uma atitude rigorosa com seus filhos, uma certa frieza e distanciamento que oportunizassem uma educação rígida que livrasse os filhos das malignidades naturais. O capitalismo, desde seu advento, transformou a criança num investimento lucrativo para o Estado. A ideia era que uma criança bem-educada poderia assegurar o futuro da civilização. Tratava-se, portanto, de preparar as crianças para que a sociedade tivesse homens bons e produtivos. Com o objetivo de educar a criança tornando-a um futuro adulto produtivo, a pedagogia, a pediatria e a psicologia desenvolveram-se. O discurso psicológico destaca-se como aquele capaz de produzir um discurso científico sobre a infância no qual a pedagogia, cada vez mais, vai se ancorar para produzir práticas educativas e saneadoras. Esse caráter normatizador torna-se imperativo, principalmente na infância, que é a etapa da vida em que o desenvolvimento do caráter se encontra em fase embrionária e, portanto, mais suscetível às influências externas. (NEVES; VORCARO, 2010) Frente a esse cenário, os pais passaram, muitas vezes, a reproduzir e assumir o discurso científico e social, acreditando que uma criança bem-ajustada seria aquela capaz de adequar-se socialmente, ao passo que uma criança desajustada estaria fadada à exclusão social. A criança era, portanto, um ser a ser moldado, corrigido e educado pelo adulto. A criança não teria desejo próprio, sendo, ainda, assexuada. Essas ideias foram questionadas por Freud, que, apesar de não ter atendido crianças, formulou, a partir da escuta de suas pacientes histéricas, uma modificação no conceito de infância, que deixou de ser vista a partir de um registro genético e cronológico para ser abordada pela lógica do inconsciente. 10 Assim, apesar de as descobertas de Freud sobre a infância decorrerem da análise de adultos, a natureza delas conduziram o autor a investigar os anos de infância, pois lhe pareceu claro que as primeiras causas dos transtornos mentais tinham sua fonte em fatores provenientes das primeiras fases do desenvolvimento. As descobertas de Freud acerca da dinâmica do inconsciente, a sexualidade infantil e a configuração e destino do complexo de Édipo provocaram rechaço, despertaram repúdio e resistências. Contudo, foram fundamentais para que se reconsiderasse o que, até então, se conhecia sobre crianças. Freud pôs em xeque as concepções moralizantes sobre a atividade sexual das crianças apresentando ao mundo uma nova concepção de criança, dotada de uma sexualidade perverso-polimorfa. Partindo do legado freudiano, Melanie Klein, Winnicott e Lacan buscaram novas formas de compreender e aplicar a psicanálise ao tratamento de crianças. A partir desse panorama podemos pensar na clínica psicanalítica com crianças e bebês destacando seus impasses, desafios e nuances. É preciso que se atente, desde já, que a história da psicanálise com crianças e bebês não é linear. Afinal, muitas formulações freudianas foram questionadas e até mesmo restruturadas pelos pós-freudianos, que reviram a teoria e a prática acerca da organização sexual infantil e das chamadas relações pré-genitais. No que tange ao contexto brasileiro, Zimerman (2004) destaca a grande influência das ideias de autores como M. Klein e D. Winnicott, além de contribuições de A. Aberastury e R. Soifer (autoras argentinas). O autor destaca que a Psicanálise no campo da infância esteve frequentemente associada à área da Educação e, também, à Medicina. Assim, por muito tempo, as ideias psicanalíticas eram aplicadas no contexto educacional com o objetivo de solucionar problemas escolares ou de tratar “transtornos emocionais e mentais”. Diante desse cenário, Zimerman (2004) destaca a importância da atenção integral à criança, que combina a psicoterapia e a assistência relativa às dificuldades externas, numa abordagem que reconhece que muitas crianças, além de sofrerem conflitos emocionais,possuem considerável carência de cuidados físicos e psicológicos. Assim, é importante destacar que cabe à psicanálise, no contexto brasileiro, atentar ao fato de que as condições de pobreza atingem, no mínimo, 40% da nossa população. O psicólogo deve em sua prática, seja esta clinica ou não, realizar uma reflexão crítica sobre os fenômenos sociais, tais como o preconceito de gênero, classe e raça, interpretando seus pacientes não apenas a partir de um ponto de vista psicanalítico, mas, também, social, afinal, tal contexto atravessa, por vezes de maneira determinante, o ambiente analítico. 11 De forma geral, esta disciplina apresentará o percurso histórico da psicanálise com crianças e bebês, indicando os principais autores que contribuíram para a técnica da Psicanálise de Crianças. Nesse sentido, abordará a obra e as concepções de autores como Freud, Anna Freud, Melanie Klein, Donald Winnicott e Francoise Dolto. Discutirá, ainda, a teoria do brincar, seu valor na análise infantil e práticas empreendidas nesse campo. Contextualizará teorias e perspectivas apresentadas com a realidade brasileira, refletindo de forma crítica sobre toda a complexidade que envolve o atendimento de crianças e bebês. Objetivos » Apresentar a história da Psicoterapia Psicanalítica com bebês; » Apresentar os fundamentos e os conceitos da prática psicanalítica com bebês; » Oferecer subsídios teóricos e técnicos acerca da psicoterapia infantil; » Oferecer subsídios teóricos e técnicos para a prática do atendimento dos pais e/ou familiares; » Preparar o profissional para observar, compreender e interpretar as manifestações psíquicas do bebê sob a ótica psicanalítica; » Refletir sobre situações que favoreçam o desenvolvimento do pensamento clínico e sobre a atuação profissional perante o sujeito criança em diferentes etapas do seu desenvolvimento e em diferentes contextos clínicos. 12 13 UNIDADE I PSICANÁLISE DA CRIANÇA: UM PERCURSO HISTÓRICO Objetivos » Conhecer a história do pensamento psicanalítico e suas transformações em relação às crianças e bebês. » Apresentar os principais autores e conceitos. » Refletir sobre a mudança da noção de constituição do sujeito. CAPÍTULO 1 E tudo começou com Freud Freud (1909/1996b)1 iniciou a teoria psicanalítica a partir de métodos focados no adulto e, posteriormente, continuou o desenvolvimento no campo de análise de crianças. As descobertas de Freud sobre as crianças se deram por meio do atendimento de adultos, visto que foi a partir destes que observou que as primeiras causas dos transtornos se localizavam em fatos da infância. A partir da escuta de suas pacientes histéricas, Freud desenvolveu inicialmente a teoria da sedução, afirmando que a etiologia das neuroses nos adultos estava fundada em experiências sexuais traumáticas ocorridas durante a infância. Contudo, com o decorrer do tempo, reviu essa teoria, pois percebeu, a partir de seus atendimentos clínicos, que as neuroses não obrigatoriamente estavam fundadas em experiências reais e concretas, mas, muitas vezes, eram decorrentes de fantasias impregnadas de desejo. Portanto, a realidade psíquica era a determinante, e não a realidade factual. Esse foi um momento muito importante para a teoria psicanalítica quando, finalmente, Freud (1909/1996b) percebeu que não seriam os fatos “concretos” da infância, a 1 Veja mais em: Freud, S. (1996). Análise de uma fobia em um menino de cinco anos. In: FREUD, S. Edição Standard Brasileira das Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud (Vol. 10, p. 11-133). Rio de Janeiro: Imago. (Obra original publicada em 1909). 14 UNIDADE I │ PSICANÁLISE DA CRIANÇA: UM PERCURSO HISTÓRICO experiência “real” que a criança viveu, mas a realidade psíquica, constituída pelos desejos inconscientes e pelas fantasias a ela vinculadas, que atuaria como pano de fundo na constituição da sexualidade infantil. Em outras palavras, Freud constatou que: O efeito traumático estaria relacionado ao fato de a criança ser confrontada passivamente com a sexualidade do adulto. Através dos cuidados e dos desejos maternos, a criança será introduzida no campo da sexualidade, pois é pelo contato com a mãe, ou um substituto, que o corpo do bebê será erogenizado (NEVES; VORCARO, 2010, p.14) Figura 1. Sigmund Freud, por Max Halberstadt, em 1922. Fonte: https://pt.wikipedia.org/wiki/Sigmund_Freud. Acesso em 03 set. 2020. A partir dessa constatação, Freud questionou a visão moralizante que até então se tinha da infância. Na obra “Três ensaios sobre a teoria da sexualidade”, elaborou teses sobre a sexualidade infantil, apresentando o conceito de complexo de édipo – que a seguir apresentaremos. Pode-se dizer, portanto, que Freud apresenta ao mundo uma nova criança, repleta de pulsões e desejos. Chocou a sociedade vienense em sua época ao propor a ideia de uma infância que se afastava da tradicional noção de pureza, trazendo à tona uma criança dotada de afetos, desejos e conflitos. Freud demonstrou como a criança utiliza o “próprio corpo como objeto de satisfação (por exemplo, sugar o polegar), derivado da impossibilidade de a criança dominar o mundo externo” (NEVES; VORCARO, 2010, p. 15). Assim, pode-se dizer que o pai da psicanálise pôs em xeque a concepção naturalista acerca da sexualidade predominante no final do século XIX ao afirmar que a sexualidade surgiria desde os primórdios da 15 PSICANÁLISE DA CRIANÇA: UM PERCURSO HISTÓRICO │ UNIDADE I constituição do psiquismo e seria radicalmente diferente da então aceita noção de instinto sexual. Até agora mencionamos os termos pulsão sexual e instinto sexual. Você sabe a diferença entre eles? É importante notar que, para Freud, pulsão sexual é um fator que impulsiona uma série de manifestações psíquicas. Pulsão sexual designa em psicanálise um impulso energético que direciona o comportamento do indivíduo. O comportamento gerado pelas pulsões é impulsionado por forças internas, inconscientes. As pulsões são a origem da energia psíquica que se acumula no interior do ser humano, gerando uma tensão que exige ser descarregada. Quanto ao conceito de instinto sexual, este se refere, para Freud, a um padrão de comportamento biológico hereditariamente fixado. Refere-se, assim, às atividades da sexualidade biológica. Freud acreditava que a pulsão não está dentro do aparelho psíquico, e, sim, entre este e o somático, num limite entre os dois. É importante, ainda, notar que Freud distinguiu duas pulsões: Eros, ou pulsão sexual / pulsão de vida, e Tânatos, ou pulsão de morte. Nas palavras do pai da psicanálise: Fomos levados a distinguir duas espécies de instintos: aqueles que procuram conduzir o que é vivo à morte, e os outros, os instintos sexuais, que estão perpetuamente tentando e conseguindo uma renovação da vida. (FREUD, 1920/2010) Assim, para Freud (1920/2010), a pulsão de vida é aquela que nos leva à busca constante de satisfação que nunca é completa e que faz com que o sujeito continue desejando. Já a pulsão de morte é a sua contrapartida, a diminuição da excitação, o trabalho dessa pulsão teria como objetivo a descarga, a falta de vida. Podemos considerar que a psicanálise de crianças foi inaugurada pelo famoso caso do pequeno Hans2 (FREUD, 1909/1996b). Freud viu a criança uma única vez e o tratamento estava a cargo do pai, Max Graf, paciente de Freud à época. A partir das interpretações feitas pelo pai do menino, Freud observou as possibilidades e potencialidades do tratamento psicanalítico infantil, considerando que eventos traumáticos infantis gerariam possíveis problemas emocionais na fase adulta. 2 O pequeno Hans é o garotinho cujo caso clínico é descrito por Freud (1909/1996d) em “Análise de uma fobia em um menino de cinco anos”. Freud, S(1996). Duas Histórias Clínicas (o “Pequeno Hans” e o “Homem dos Ratos”, v. X. In Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud. Rio de Janeiro: Imago. (Trabalhooriginal publicado em 1909). 16 UNIDADE I │ PSICANÁLISE DA CRIANÇA: UM PERCURSO HISTÓRICO A partir dessa compreensão – e da consequente ampliação – explicitada em “Três ensaios sobre a teoria da sexualidade” (1905/1996a), Freud questionou as concepções moralizantes sobre a atividade sexual das crianças, elaborando, o que à luz da psicanálise atual, se denomina “uma tese inicial sobre a sexualidade infantil”. Freud apresentou, portanto, um novo conceito de criança, dotada de uma sexualidade perverso-polimorfa. O autor nos apresenta a criança dotada de um “corpo de desejo”, repleto de pulsões que emanam de zonas erógenas que estão em processo de constituição, apoiando-se em funções vitais. Para Freud (1905/1996a), a criança usa o próprio corpo como objeto de satisfação (sugar o polegar, defecar etc.). Para o infante, todo o corpo se comportaria como uma zona erógena. Afinal, para o autor, as crianças obtêm prazer com atividades cotidianas ligadas ao corpo. Assim, para Freud (1905/1996a), as manifestações sexuais da criança são perversas pois não têm relação com a reprodução; são também polimorfas porque não estão voltadas a um objeto sexual, assumindo formas variadas de satisfação através das zonas erógenas mas, também, através de partes da pele e/ou da mucosa. Portanto, o corpo da criança é tomado por pulsões parciais, que seriam pulsões sexuais fragmentadas e independentes entre si, que encontram prazer no próprio corpo e não em um objeto externo. A criança viveria, portanto, um estágio de autoerotismo. Ao falar de autoerotismo, Freud salienta a ausência de investimento em objetos externos. A criança vivenciaria o prazer direcionado ao seu próprio corpo, durante a satisfação de suas necessidades (de sono, de alimentação etc.). Nas palavras de Freud (1905/1996a, p.171): Diríamos que os lábios da criança se comportaram como uma zona erógena, e a estimulação pelo fluxo cálido de leite foi sem dúvida a origem da sensação prazerosa. A princípio, a satisfação da zona erógena deve ter-se associado com a necessidade de alimento. [...] A necessidade de repetir a satisfação sexual dissocia-se então da necessidade de absorção de alimento [...]. A criança não se serve de um objeto externo para sugar, mas prefere uma parte de sua própria pele, porque isso lhe é mais cômodo, porque a torna independente do mundo externo, que ela ainda não consegue dominar, e porquê desse modo ela se proporciona como que uma segunda zona erógena, se bem que de nível inferior. Assim, à medida que as pulsões autoeróticas que a criança destina ao próprio corpo começam a se dirigir a um objeto externo, o narcisismo se instalaria e, com isso, o 17 PSICANÁLISE DA CRIANÇA: UM PERCURSO HISTÓRICO │ UNIDADE I ego. Contudo, antes que se apresente a formação do ego a partir de uma perspectiva Freudiana, é importante salientar que o autor estruturou a organização sexual infantil por meio de quatro fases de desenvolvimento: oral, anal, fálica e genital. Cada uma dessas fases diz respeito a uma etapa do desenvolvimento, preponderando em cada etapa uma zona erógena e uma modalidade específica de relação com o objeto. Fase oral Aproximadamente entre 0 e 1 ano Freud (1905/1996a) destacou como etapa inicial a fase oral, uma vez que a boca é o destino de tudo que está próximo ao bebê. É pela boca que o bebê conhece o seio da mãe e o mundo à sua volta. É por essa razão que a criança pequena tende a levar tudo o que pega à boca. Inicialmente o seio da mãe é o primeiro objeto da pulsão sexual do bebê, contudo, à medida que a mãe não está mais inteiramente à disposição, o bebê substitui a atividade de sucção do seio materno pela sucção de uma parte do seu próprio corpo. O principal objeto de desejo nesta fase é o seio da mãe, que, além de alimentar, proporciona satisfação ao bebê. Nesta fase, o bebê experimenta uma relação de dependência com os sujeitos que lhe proporcionam nutrição e sustento. O objetivo desta fase é que o bebê obtenha gratificação de suas necessidades libidinais orais sem conflitos excessivos. Fase anal Aproximadamente entre 2 e 4 anos Neste período a criança passa a adquirir o controle dos esfíncteres, a zona de maior satisfação é a região do ânus. A criança passa a, gradativamente, dominar a musculatura do corpo, prendendo ou soltando as fezes. É assim que descobre que a mucosa do intestino é fonte de excitações intensas. O objeto que caracteriza a fase anal são as fezes, utilizadas pela criança como moeda de troca na relação com o seu cuidador, à medida que a criança descobre que pode controlar as fezes que sai de seu interior, oferecendo-as à mãe em alguns momentos como um presente e, e outros, como algo agressivo. 18 UNIDADE I │ PSICANÁLISE DA CRIANÇA: UM PERCURSO HISTÓRICO Quando nos referimos às fezes como instrumento que potencialmente pode ser utilizado pela criança como expressão da agressividade, referimo-nos à concepção freudiana da fase anal como a etapa em que se configura a dualidade: Atividade x Passividade. Freud afirma que, muitas vezes, o bebê se recusa obstinadamente “[...] a esvaziar o intestino ao ser posto no troninho, ou seja, quando isso é desejado pela pessoa que dele cuida, ficando essa função reservada para quando aprouver a ele próprio.” (FREUD, 1905/1996a, p. 175). Nesse momento, o bebê, mesmo que de maneira rudimentar, percebe uma divisão de opostos, o par ativo/passivo. Assim, nessa relação de troca com o outro, o bebê começa a perceber as possibilidades de perdas e ganhos: ao renunciar ao prazer proporcionado pela retenção das fezes, a criança ganha respeito social. Fase fálica Aproximadamente entre 4 e 6 anos Nesta etapa, as crianças voltam sua atenção para a região genital. Inicialmente imaginam que tanto os meninos quanto as meninas possuem um pênis. Contudo, quando são defrontadas com as diferenças anatômicas entre os sexos, criam as chamadas “teorias sexuais infantis”, imaginando que a menina não tem pênis porque este órgão lhe foi arrancado. No decorrer de suas observações, o menino percebe que nem todos possuem pênis. Descobre tal fato, conforme afirma Freud (1905/1996a), por meio da visão fortuita dos genitais de uma irmãzinha ou amiguinha. Quando isso acontece, o menino rejeita a ausência do pênis, criando argumentos plausíveis para isso, como fez o pequeno Hans quando, ao observar a irmã no banho, afirmou: “‘Mas o pipi dela ainda é bem pequenininho’, observou; e acrescentou, à guisa de consolo: ‘Quando ela crescer, ele vai ficar bem maior.’” (FREUD, 1905/1996a, p. 20). Já a menina, segundo Freud, ao se deparar com pênis de um irmãozinho ou de um amiguinho, nota que o tamanho é maior do que o de seu órgão. Instala-se, neste momento, a inveja do pênis. A menina admite que não tem pênis, mas quer tê- lo também, ou melhor explicitando a questão, não é que a menina deseje o genital masculino, mas a sensação de potência que tal órgão promove. Assim, na fase fálica, o menino vivencia a angústia da possibilidade de perder o falo e a menina sofre por já o ter perdido. Neste período surge também o complexo de Édipo, no qual o menino passa a ter a mãe como objeto de desejo e a rivalizar com o pai. A 19 PSICANÁLISE DA CRIANÇA: UM PERCURSO HISTÓRICO │ UNIDADE I menina também tem, na mãe, o seu primeiro objeto de amor e precisa trocá-lo pelo pai e voltar seu investimento libidinal para ele. Enquanto o menino tem como objeto narcísico uma parte de seu corpo, na menina, o objeto narcísico é a imagem de si. Assim, a dor de ter perdido o pênis faz com que a menina abandone a sexualização da mãe e se volte para o pai, para que este possa cuidar de sua ferida narcísica. Fase de latência Aproximadamente entre 6 e 11 anos Este período caracteriza-se, principalmente, pelo deslocamento da libido da sexualidade para atividades socialmente aceitas, ou seja, a criança passa a gastar sua energia em atividades sociais, escolares etc. Assim, não se trata de uma nova organização emtorno de uma zona erógena, nem de uma nova modalidade de relação objetal. Freud (1905/1996a) afirmava que o período de latência não se configura como uma fase psicossexual, visto que não ocorre a organização de uma zona erógena, nem uma nova modalidade de relação objetal. Portanto, o período de latência é um ponto intermediário entre a sexualidade infantil e a adulta. O investimento libidinal desloca-se de objetivos sexuais e é canalizado para outras finalidades. Fase genital Aproximadamente a partir de 11 anos Finalizando a organização libidinal, tem-se a fase genital e a consolidação da vida sexual adulta. Neste período, que se inicia com a adolescência, há uma retomada dos impulsos sexuais. Se antes a pulsão sexual partia de diversas zonas erógenas, independentes entre si, ou seja, eram pulsões parciais, agora elas se reúnem sob o domínio da zona genital. A adolescência é um período de mudanças no qual o jovem tem que elaborar a perda da identidade infantil para que, pouco a pouco, possa assumir uma identidade adulta. É o momento em que, gradativamente, ocorre a desvinculação dos pais, permitindo, assim, a inserção na comunidade social. Para se desvincular dos pais, é preciso dessexualizá-lo, ou seja, dirigir os desejos libidinais para um objeto de amor real, no mundo externo. 20 UNIDADE I │ PSICANÁLISE DA CRIANÇA: UM PERCURSO HISTÓRICO Para além das observações que Freud fez do pequeno Hans – que o levaram a repensar a teoria do trauma, constatando que a realidade psíquica era constituída pelos desejos inconscientes e pelas fantasias a ela vinculadas –, outra importante observação feita pelo pai da psicanálise foi sobre o papel do brincar3. Observando seu neto Ernst, então com um ano e meio de idade, brincando com um carretel – empurrava este para longe enquanto pronunciava “Fo-o-o-órt”, uma interjeição referente a “ir embora”, em seguida, puxava o carretel de volta, emitindo alegremente um “daaaaaa” -, Freud observou que a criança estava encenando a partida da mãe, vivenciada de forma desagradável e, consequentemente, o seu retorno, saudado com prazer. O garotinho repetia, por meio da brincadeira, uma experiência que era desagradável, mas que o permitia passar de um papel passivo para um ativo. Nas palavras de Freud, o jogo do Fort-da se relaciona: À grande realização cultural da criança, à renúncia instintual (isto é, a renúncia à satisfação instintual) que efetuara ao deixar a mãe ir embora sem protestar. Compensava-se por isso, por assim dizer, encenando ele próprio o desaparecimento e a volta dos objetos que se encontravam a seu alcance (FREUD, 1920/2010, p. 172). É a partir da observação sobre o jogo do Fort-da que Freud (1920/2010) compreende que a criança, brincando, cria um mundo próprio ou rearranja as coisas de seu mundo numa forma que lhe agrada. Apesar de o pai da psicanálise não ter atendido crianças ou trabalhado diretamente com elas, Freud destacou as relações entre o brincar e a construção da realidade psíquica. Que tal pensar sobre psicanálise de uma forma leve? Por meio de exemplos criativos e baseando-se em contextos recorrentemente presentes no nosso dia a dia, Christian Dunker e Cláudio Thebas publicaram o livro “O Palhaço e o Psicanalista - Como escutar os outros pode transformar vidas” (2019). Cláudio Thebas, um dos escritores do livro, é palhaço e, por longos anos, trabalhou com crianças. No texto “Depois que a gente brinca, a gente fica amigo” reflete sobre o brincar a partir de uma perspectiva freudiana, diz o autor: Se perguntássemos a Freud como aprender a escutar o outro, ele provavelmente diria que escutar é brincar. Brincar é realizar um percurso junto, ao modo de uma pequena viagem. Brincar envolve, portanto, fazer malas criar planos, imagina companhias, 3 Verificar em: FREUD, S. Além do princípio de prazer. São Paulo: L&PM, 2016. (Obra original publicada em 1920). 21 PSICANÁLISE DA CRIANÇA: UM PERCURSO HISTÓRICO │ UNIDADE I usar mapas, mas também: ficar esperando na estação, ficar perdido sem saber para onde ir, tropeçar e perder as malas, encontrar hotéis lotados e até mesmo decepcionar-se com o encontro real com lugares tão vivamente imaginados. Só o adulto que esqueceu demasiadamente de sua infância esqueceu-se do quão sério é brincar (THEBAS, 2019, p. 50) Por meio desta leitura você refletirá sobre a escuta psicanalítica dos pacientes, mas, também, sobre a escuta que o analista deve fazer de si mesmo. Esperamos que você tenha compreendido as fases do desenvolvimento libidinal e a importância do brincar na construção da realidade psíquica; que tenha compreendido como Freud concebe a constituição do sujeito marcada pela pulsão sexual. Afinal, a mãe, ao dispensar cuidados ao corpo biológico do filho, desperta também “um corpo psíquico”. Nesse sentido, é o contato entre mãe4 e filho que oferece os contornos de uma estrutura psíquica. Nos cuidados, a figura materna libidiniza o corpo, de forma sexual, mas não erótica, o que faz com que a criança tome o lugar de ser desejado, que se oferece ao gozo do outro, para um outro momento, o de tornar-se um ser desejante. Anna Freud e os primeiros passos de uma psicanálise infantil Quando se fala de Ana Freud, “a ascendência familiar e a transmissão psicanalítica confundem-se e mesclam-se.” (NEVES; VORCARO, 2010, p.19). Muito além de filha, Anna foi companheira enfermeira, parceira de viagens e interlocutora de Freud. Cuidou de Freud principalmente em seus últimos anos de vida, em especial quando este enfrentou um câncer de mandíbula. Após a morte do pai da psicanálise, coube à filha o papel de guardiã e censora da obra freudiana. Anna nasceu em uma família na qual a tradição era a de que os homens fossem intelectuais reconhecidos, mas, mesmo frente às dificuldades, lutou para se tornar uma psicanalista, sendo analisada pelo próprio pai durante um longo período. Como em sua época era vedado que mulheres cursassem a faculdade de medicina, tornou-se professora primária. Com o tempo, Anna percebeu que ser professora não era sua vocação, passou a dedicar-se à psicanálise infantil. Nessa época, a psicanálise com crianças era, ainda, uma prática controvertida, portanto, pode-se dizer que Anna, com Hermine von Hug- Hellmuth, deu os primeiros passos para o tratamento psicanalítico de crianças. 4 Aqui nos referimos à realização da função materna, que é independente de quem a realiza. 22 UNIDADE I │ PSICANÁLISE DA CRIANÇA: UM PERCURSO HISTÓRICO Figura 2. Anna Freud, em 1957. Fonte: https://pt.wikipedia.org/wiki/Anna_Freud. Acesso em 03 set. 2020. Em 1927, Anna Freud publicou sua primeira obra oficial: “O tratamento psicanalítico das crianças”, por meio da qual expôs técnicas e princípios da análise infantil. Para a autora, o papel do analista com a criança era pedagógico. Vale ressaltar que a publicação dessa obra revelou a oposição entre Anna e Melanie Klein5. Neves e Vorcaro (2010, p.24) destacam que, quanto ao tratamento psicanalítico de crianças, Anna Freud afirmava que era impossível: Estabelecer uma relação puramente analítica com uma criança em função de sua imaturidade e dependência do meio ambiente. A criança não tem consciência de sua doença, nem acha que tem um “problema” para resolver. Normalmente são seus pais que estão preocupados ou angustiados diante de suas dificuldades. Neste sentido, falta à criança o elemento fundamental para a entrada de um paciente em análise, que é o mal-estar em relação a seu sintoma e a necessidade de tratamento. Outro aspecto que Anna Freud apontava como diferente entre a análise de crianças e adultos era “o destino dos produtos de uma análise” (NEVES; VORCARO, 2010, p. 25). A autora apontava que o tratamento psicanalítico com adultos objetiva a suspensão do recalque enquanto o tratamento infantil não se dá da mesma maneira, pois, se as tendências pulsionais fossem liberadas do recalque, a criança buscaria sua satisfação imediata.Dessa forma, na análise de crianças, o psicanalista deve demonstrar certa autoridade, ajudando a criança a “domar” seus impulsos, exercendo, também, o papel de educador. Anna Freud foi amplamente reconhecida por “O Ego e os Mecanismos de Defesa”, publicado em 1936. Nessa obra, apresentou sua visão da psicanálise infantil fazendo 5 Líder, até então, da escola psicanalítica inglesa. No próximo capítulo conheceremos um pouco mais sobre sua obra. 23 PSICANÁLISE DA CRIANÇA: UM PERCURSO HISTÓRICO │ UNIDADE I um percurso até a adolescência. Além disso, essa obra obteve especial reconhecimento na época por discutir três relevantes aspectos da psicanálise: » Analisar e rever as descobertas técnicas e teóricas que ensinavam os psicanalistas a dar igual consideração clínica ao id, ao ego e ao superego. » Rever os mecanismos de defesa que seu pai isolara e descrevera, elaborando-os e resumindo-os. » Incorporar os mecanismos de defesa à experiência que acumulara, até então. Essa obra é até hoje reconhecida por auxiliar a compreensão mais profunda do adolescente e, também, da psicologia do ego, parte do aparelho psíquico que a autora destaca como fundamental na mediação entre os impulsos instintivos e a realidade. Você quer conhecer mais sobre a obra de Anna Freud? Que tal assistir a um vídeo que fala de sua vida e obra? The School of Life – Escola da vida – produziu o vídeo: “Psicoterapia - Anna Freud”, com comentários sobre a teoria de Anna e com exemplos. Assistindo ao vídeo, você compreenderá os mecanismos de defesa estudados por Anna em “O Ego e os Mecanismos de Defesa”, com uma ampla riqueza de exemplos e situações. No que tange à psicanálise com crianças, Anna questionava velhas teorias que se baseavam na noção de que o desenvolvimento saudável de uma criança dependia de uma rígida disciplina. Por meio de sua longa experiência na clínica Hampshead, na Grã-Gretanha – fundada por Anna em 1947 –, estudou o desenvolvimento da criança, atuou junto a pais e professores. Destacava, constantemente, que a terapia devia ter uma influência educacional positiva na criança. Neves e Vorcaro (2010, p.24) destacam que, no que se refere ao tratamento psicanalítico com crianças, Anna Freud levantou algumas questões, diferenciando a análise de crianças e adultos. Segundo ela, há uma impossibilidade de estabelecer uma relação puramente analítica com uma criança em função de sua imaturidade e dependência do meio ambiente. A criança não tem consciência de sua doença, nem acha que tem um “problema” para resolver. Normalmente são seus pais que estão preocupados ou angustiados diante de suas dificuldades. Nesse sentido, falta à criança o elemento fundamental para a 24 UNIDADE I │ PSICANÁLISE DA CRIANÇA: UM PERCURSO HISTÓRICO entrada de um paciente em análise, que é o mal-estar em relação a seu sintoma e à necessidade de tratamento. Conclusivamente, podemos sintetizar o excerto acima afirmando que, para Anna Freud, a criança está em processo de construção, portanto, torna-se impossível compreender sua personalidade, já que está sendo formada. Assim, o trabalho com a criança deve ser educacional e, nesse processo, é fundamental a participação de pais e professores, que devem contribuir para que a criança se torne autônoma e criativa. Anna Freud (1951/1971) destacava, ainda, que as crianças não têm capacidade de transferência espontânea ou de realizar associação livre. Nas palavras da autora: “os sonhos e os sonhos diurnos das crianças, juntamente com a fantasia manifestada no jogo, desenhos, etc., revelam os impulsos do id sem disfarces e de uma maneira mais acessível que nos adultos” (FREUD, 1951/1971, p. 83) Diante desses aspectos, afirmava que seria necessário um trabalho prévio não analítico, com a finalidade de preparar a criança para o tratamento. Seria um momento de trazer à consciência da criança a enfermidade, dando-lhe confiança no analista. Diante do fato de que a criança está, ainda, em processo de construção e é incapaz de constituir uma transferência com o analista, como Anna Freud propunha que o psicanalista realizasse o tratamento da criança? Além do período preparatório acima destacado, a autora sugeria entrevistas preliminares realizadas com os pais e professores para produzir artificialmente uma demanda de análise, ou seja, conscientizar a criança de seu sofrimento e da necessidade de ser ajudada a se livrar de seu sintoma. Dando seguimento a essa etapa, tendo, portanto, a demanda parental em mente, é papel do psicólogo tentar mostrar, por exemplo, que uma conduta rebelde por parte da criança é um problema, e que traz desvantagens. Assim, para Anna Freud: É tarefa do analista mostrar à criança que, a desobediência, por exemplo, é sinal de que a criança e infeliz, na realidade, ela é muito infeliz, que sofre e há um desgaste excessivo em sua luta interna contra ‘seus demônios’ (NEVES; VORCARO, 2010, p. 25). Para demonstrar tais aspectos à criança, o analista deve se apresentar de maneira acessível, usando uma linguagem apropriada que aproxime a criança dele. Anna Freud (1951/1971) dizia que o analista de crianças, além do treinamento analítico propriamente dito, também deveria possuir um grande conhecimento pedagógico. 25 PSICANÁLISE DA CRIANÇA: UM PERCURSO HISTÓRICO │ UNIDADE I Assim, para Anna Freud, o analista de crianças deve constantemente associar medidas pedagógicas aos meios analíticos, numa tentativa de conquistar a confiança da criança, facilitando seu engajamento no processo psicanalítico. Para além disso, ela adverte que o analista deve se colocar no lugar do Ego-Ideal da criança por toda a duração da análise. Outro aspecto defendido por Anna Freud é o de que “a criança não consegue associar livremente como o adulto; não estabelece uma neurose de transferência em função de sua ligação com os pais da realidade” (NEVES; VORCARO, 2010, p.25). Assim, embora a criança estabeleça entre ela e o analista uma relação na qual expressa muitas das situações vividas com os pais, Não está disposta, como o adulto, a reeditar seus vínculos amorosos, porque, por assim dizer, ainda não esgotou a velha edição. Seus primeiros objetos amorosos, os pais, ainda existem na realidade e não só nas fantasias, como no neurótico adulto; a criança mantém com eles todas as relações da vida cotidiana e experimenta todas as vivências (ABERASTURY, 1982, p. 61) Ante esses limitadores, Anna Freud (1951/1971) sugere que deve haver uma colaboração dos pais com o analista. Contudo, em situações, por exemplo, em que os pais se apresentavam como um empecilho para o desenvolvimento da criança, Anna sugeria o afastamento da criança, colocando-a, por exemplo, numa instituição onde pudesse ser analisada. Anna Freud (1951/1971) apresentou ainda o conceito de linhas de desenvolvimento, destacando que o desenvolvimento da criança se dá em um processo contínuo e cumulativo, sendo, ainda, possível que a criança avance ou regrida no decorrer desse processo. No caso de uma regressão, Anna destaca que, às vezes, a criança precisa regredir por um breve período a fim de lidar com estágios mal resolvidos, uma vez regredindo e superando o desafio, a criança pode voltar a avançar. Como exemplo, podemos pensar em uma criança que já aprendeu a ir ao banheiro sozinha, mas que, confrontada com a pressão de um novo “irmãozinho”, esqueça “como fazer essa atividade”. Uma vez que tenha se ajustado ao novo membro da família, com o apoio dos pais, o problema será resolvido e novamente a criança estará pronta para avançar. 26 CAPÍTULO 2 A escola inglesa: Melanie Klein e Winnicott Melanie Klein e a técnica do brincar A teoria de Freud sobre o desenvolvimento da criança influenciou muitos discípulos que, a partir de suas ideias, pensaram o desenvolvimento infantil à luz da teoria psicanalítica. Entre esses discípulos, Melanie Klein se destacou ao averiguar, em sua experiência clínica com crianças, a teoria do desenvolvimentolibidinal proposta por Freud. Contudo, se Klein confirmou alguns elementos da teoria freudiana, por outro, fez suas próprias descobertas a respeito dos estágios iniciais do desenvolvimento da criança. Klein (1952/1991) teve uma vasta experiência com a clínica de crianças. Para a autora, o mundo interno do bebê é povoado por fantasias, figuras boas e más. Assim, desde o nascimento, o bebê está exposto aos impulsos libidinais. Em outras palavras, pode- se dizer que: “O elemento organizador essencial do pensamento de Melanie Klein é a prevalência da fantasia e dos ‘objetos internos’ sobre as experiências desenvolvidas no contato com a realidade externa” (NEVES; VORCARO, 2010, p.30). Segundo a teoria kleiniana, cada criança nasce com um “dote pulsional”, que compreenderia as forças que se articulam entre a pulsão de vida e de morte, que se equilibram quando o bebê está tranquilo, livre de fome, medo, sono etc. Na prática, quando o bebê recebe o carinho e a atenção da mãe, sente-se gratificado, o que reforça sua pulsão de vida; e o contrário, a ausência da mãe, intensifica as frustrações do bebê e, consequentemente, a sua pulsão de morte. Assim, para Klein (1952/1991), quando o bebê nasce, experimenta ansiedades que têm origem em fontes internas e externas. Vivencia dor e desconforto como se estivesse sendo atacado por objetos persecutórios, num processo que inaugura um ciclo contínuo de projeção e medo de aniquilamento. No entanto, os sentimentos de perda suscitados pelo nascimento podem ser compensados pelas experiências gratificantes que o bebê experiencia com a mãe através da amamentação e do aconchego. 27 PSICANÁLISE DA CRIANÇA: UM PERCURSO HISTÓRICO │ UNIDADE I Figura 3. Melanie Klein, em 1952. Fonte: https://pt.wikipedia.org/wiki/Melanie_Klein. Acesso em 03 set. 2020. Você sabia que Melaine Klein, conhecida como a responsável por lançar as bases e desenvolver a técnica da análise de crianças, não brincava com seu pai? Nas palavras de Klein: “Não me lembro de alguma vez ele ter brincado comigo. Doía-me pensar que meu pai era capaz de afirmar com toda franqueza e sem consideração por meus sentimentos que preferia minha irmã mais velha, sua primogênita.” (SOCHA, 2019) Você quer conhecer mais sobre a vida e a obra de Melaine Klein? Em 2008, a Folha de S. Paulo publicou, na coleção “Folha explica”, o livro Melanie Klein, de autoria de Luis Claudio Figueiredo e Elisa Maria Cintra. No livro, além da teoria kleiniana, você encontrará curiosidades como o fato de Melanie Klein ter buscado a psicanálise, inicialmente, para curar sua própria depressão. Para Melaine Klein (1952/1991), como se daria a pulsão de morte e de vida para o bebê? Logo no primeiro dia de vida, o bebê experimenta ansiedades que têm origem em fontes internas e externas, uma intensa sensação de perda suscitada pelo nascimento. Contudo, essas sensações são aliviadas pela experiência gratificante que os bebês têm com a mãe através da amamentação, do aconchego e do afeto. A partir da experiência do bebê em seus primeiros meses de vida, Klein (1935/1996) descreve duas posições: a posição esquizo-paranoide e a posição depressiva. Vejamos abaixo um pouco mais sobre cada uma. Posição esquizo-paranoide Entre o nascimento e o terceiro ou quarto mês de vida do bebê Durante esse período o bebê compreende o seio materno de dois modos: o seio bom, que alimenta e supre suas necessidades, e o seio mau, que o deixa com fome, sozinho, 28 UNIDADE I │ PSICANÁLISE DA CRIANÇA: UM PERCURSO HISTÓRICO esperando a saciedade. Assim, enquanto o seio bom seria gratificador, o seio mau seria frustrador. O bebê, nesse momento, não é capaz de compreender que existe um único seio, imagina que existem dois, separados, um amado e outro odiado. O seio bom aglutina as boas experiências, proporcionando a formação de uma unidade egoica (as bases para autoestima). Nas palavras de Klein (1952/1991, p. 92), “fortalece a capacidade do bebê para amar e confiar em seus objetos, aumenta o estímulo para a introjeção de objetos bons e situações boas, sendo, portanto, uma fonte essencial de reasseguramento contra a ansiedade. Torna-se o representante interno da pulsão de vida”. Assim, a posição esquizo-paranoide caracteriza-se pela ansiedade constante que o bebê sente de ser destruído. Um medo constante de que o seio mau prevaleça sobre o seio bom. Contudo, entre o quarto e o quinto mês de vida do bebê, a posição esquizo- paranoide dá lugar à posição depressiva. Posição depressiva Entre o quarto ou quinto mês de vida do bebê É o momento que o bebê introjeta o “objeto como um todo”, em outras palavras, ele passa a perceber o seio como único. Assim, o seio amado, também seria o seio odiado. Ambos se integrariam formando, gradativamente, um objeto total. Klein (1935/1996) acredita que o bebê consegue estabelecer uma relação de objeto total quando a mãe é percebida como um objeto completo, real e amado. A partir desse momento, o bebê também passa a perceber o pai, os irmãos e as outras pessoas do seu convívio como pessoas inteiras. O bebê é agora capaz de integrar amor e ódio, sintetizando as emoções relacionadas a ele. Passa a sentir, assim, culpa pelos ataques agressivos que dirigiu aos objetos amados. Percebe que quando estava atacando o seio mau, apertando, mordendo, estava, na realidade, também, atacando o seio bom. Tal constatação leva ao bebê o desejo de reparar os danos cometidos. Assim, se instalada a posição depressiva, nas palavras de Klein, (1952/1991, p. 55), o sentimento do bebê seria como o seguinte : “O objeto bom está ferido, está sofrendo, está num estado de deterioração; transformou- se num objeto mau; está aniquilado, está perdido e nunca mais estará presente”. Note que Klein (1932/1997) utiliza o termo “posição” em detrimento do termo “fase” (utilizado por Freud). A autora escolheu esse termo, pois, apesar desses fenômenos ocorrerem durante os estágios iniciais da vida do bebê, 29 PSICANÁLISE DA CRIANÇA: UM PERCURSO HISTÓRICO │ UNIDADE I eles não estão confinados a esses estágios, aparecendo e reaparecendo durante toda a vida. Agora que você conhece um pouco mais da teoria kleiniana e as duas posições que a autora apresenta, deve estar se perguntando: E o complexo de Édipo? Onde Melaine Klein situaria este evento? Klein, assim como Freud, deu grande atenção ao conflito gerado pelo complexo de Édipo. Contudo, reformulou a forma de pensar o Édipo. Klein (1935/1996) acreditava que a frustração advinda do desmame liberaria as tendências edipianas, assim, o complexo de Édipo surgiria no primeiro ano de vida, com o início da posição depressiva. Klein (1935/1996) refere-se, assim, a um édipo precoce que é despertado a partir dos sentimentos depressivos expressos pelo medo da criança de perder os objetos amados, por causa de seu ódio e da agressividade dirigidos a eles. Mas como isso aconteceria? Para Klein (1935/1996), a culpa e os sentimentos depressivos impulsionariam a libido a buscar outras formas de satisfação além da proporcionada pelo seio. O ímpeto de procurar novos objetos se deve à tentativa de alcançar uma satisfação sem limites, tal ímpeto afasta o bebê do seio da mãe e volta seus desejos para o pênis do pai. Dessa forma, o seio e o pênis se configuram como os primeiros objetos que o bebê toma para satisfazer seus desejos orais. Contudo, assim como o bebê descobriu, por meio da frustração, a existência de um seio mau, também descobrirá um pênis mau, tendo, dessa forma, suas esperanças de encontrar gratificação com o novo objeto, o pênis do pai, frustradas. Neste momento, o bebê se volta novamente para o seio. Assim, para Klein (1935/1996), os impulsos de ódio e a ansiedade gerada por eles inauguram o conflito edipiano e a formação de um superego “primitivo”. A teoria e a técnica do brincar na teoria kleiniana Para além da discussão sobre as experiências advindas dos primeiros meses de vida do bebê, no que serefere à prática clínica com crianças, Melanie Klein fundou a técnica da análise pela atividade lúdica com crianças, afirmando que, pelas brincadeiras, a criança traduz de modo simbólico suas fantasias, seus desejos e suas experiências vividas. 30 UNIDADE I │ PSICANÁLISE DA CRIANÇA: UM PERCURSO HISTÓRICO Para Klein, quando a criança brinca, expressa o conteúdo de seus desejos, fantasias e experiências de modo simbólico, afinal, Brincar é o meio de expressão mais importante da criança. Ao utilizarmos essa técnica lúdica, logo descobrimos que a criança faz tantas associações aos elementos isolados de seu brinquedo quanto o adulto aos elementos isolados de seus sonhos. Cada um desses elementos lúdicos é uma indicação para o observador experimentado, já que, enquanto brinca, a criança também fala e diz toda a sorte de coisas que tem o valor de associações genuínas. (KLEIN, 1969, p. 31) Assim, para Melaine Klein, brincar é, para a criança, um meio de expressão, de libertar- se de sentimentos e problemas. Enquanto na terapia com o adulto, o analista acessa dificuldades e traumas por meio da fala, com a criança, encontra esses elementos por meio da brincadeira, afinal, a criança, em geral, não possui um domínio da linguagem capaz de transmitir as infinitas sutilezas que podem ser encontradas na brincadeira. Assim, no que se refere ao atendimento clínico, M. Klein (1952/1991) notou que as brincadeiras das crianças, os seus jogos, as suas histórias e os desenhos que inventam, tudo poderia ser visto e escutado como se fosse o falar do adulto. É com base nessa ideia que Klein afirma: Ao interpretar não apenas as palavras das crianças, mas também suas atividades com seus brinquedos, apliquei este princípio básico à mente da criança, cujo brincar e atividades variadas – na verdade, todo o seu comportamento – soa meios de expressar o que o adulto expressa predominantemente através de palavras (KLEIN, 1991). Melaine Klein foi, assim, a primeira psicanalista a utilizar as brincadeiras infantis como equivalentes à associação livre6 da análise dos adultos. Considerava que, assim como as associações aos elementos do sonho do adulto levavam à descoberta do conteúdo inconsciente, o mesmo ocorria em relação às brincadeiras infantis. Analisando o brincar com o modelo do sonho, chegou ao cerne da fantasia inconsciente de muitas crianças que atendeu, fornecendo a estas crianças a possibilidade de elaborar tais situações. O primeiro paciente de Melaine Klein foi Fritz, de 5 anos e meio de idade. Klein realizava o atendimento na casa dele, utilizando os brinquedos que ele tinha. Por meio desta experiência, Klein percebeu que poderia interpretar as ansiedades e fantasias de Fritz a partir do uso que ele fazia dos brinquedos. Tempos depois, em 1925, Klein tratou Rita, de dois anos e nove meses. Nesse 6 A associação livre foi um método desenvolvido por Freud em substituição à hipnose, que consistia em encorajar o paciente a dizer o que viesse à sua mente, sendo também este convidado a relatar seus sonhos. 31 PSICANÁLISE DA CRIANÇA: UM PERCURSO HISTÓRICO │ UNIDADE I momento, concluiu que a análise da criança melhor transcorreria se utilizasse uma sala de brinquedos adequada. Klein passou, então, a acentuar a importância da caixa de brinquedos, que incluía pequenas figuras animais e humanas, pequenos veículos, recipientes, lápis, cola, massa de modelar, fita adesiva, cordão, tesoura etc. Tempos depois, a psicanalista argentina Arminda Aberastury (1982 introduziu e sistematizou o uso da caixa de brinquedos no setting analítico. Para Aberastury (1982), a caixa representa o mundo interno da criança, o mundo não verbal, contendo as representações inconscientes e as relações com seus objetos. Você quer conhecer mais a respeito da caixa lúdica? No livro “A Psicanálise da Criança: teoria e técnica”, Aberastury (1992) discute, no capítulo dois, a utilização da caixa lúdica, explicitando os brinquedos, o manejo necessário e os eventuais problema técnicos. No mesmo livro, no último capítulo, a autora apresenta casos clínicos em que essa técnica é utilizada. Uma excelente leitura para quem deseja conhecer essa ferramenta. Klein (1952/1991) trabalhou com brinquedos, pinturas, desenhos e modelagem para ajudar a recuperação de crianças. Sua meta era de que a criança pudesse alcançar, por meio do brincar, o domínio da angústia que lhe afligia e causava sofrimento. Klein (1952/1991) acreditava que, ao brincar, qualquer criança buscava superar as experiências desagradáveis. Brincar ajudaria a criança a dominar os medos instintivos e perigos internos, pela projeção destes no mundo exterior. Em outras palavras, por meio do brincar, a criança conseguiria deslocar os processos intrapsíquicos para o exterior. Winnicott: A função do ambiente Donald Winnicott, médico e psicanalista, realizou um extenso trabalho clínico com bebês e crianças. Em decorrência de seu trabalho como pediatra, buscou compreender a importância do meio emocional da criança no desenvolvimento das doenças físicas. Winnicot, durante muito tempo, foi supervisionado e orientado por Melaine Klein, contudo, por sua independência diante das teorias e das práticas clínicas defendidas à época juntou-se ao middle group7. Ao contrário dos estudos realizados na época – que enfatizavam os fenômenos de estruturação interna da subjetividade – Winnicott destacou a dependência da estruturação da subjetividade em relação ao ambiente. 7 Diante das controvérsias existentes à época entre Anna Freud e Melanie Klein, o middle group ou grupo dos independentes, caracterizou-se por sua independência diante das teorias e da prática clínica defendidas por essas duas teóricas. 32 UNIDADE I │ PSICANÁLISE DA CRIANÇA: UM PERCURSO HISTÓRICO Ao longo de sua obra, Winnicott estudou a influência do meio ambiente no desenvolvimento psíquico infantil. Ao referir-se ao ambiente, Winnicott destaca a importância dos cuidados maternos para o bebê, ressaltando que estes podem favorecer ou dificultar o desenrolar do processo de desenvolvimento. Figura 4. Donald Winnicott. Fonte: https://amenteemaravilhosa.com.br/biografia-de-donald-woods-winnicott/. Acesso em: 22 set. 2020. Para Winnicott, é por intermédio dos cuidados maternos e da capacidade que a mãe tem de se adaptar às necessidades do bebê que este passa a conhecer o mundo. Em decorrência dessa ideia, criou a expressão “mãe suficientemente boa” para designar essa função. Winnicott destacou, ainda, que, se a mãe estiver impossibilitada de cuidar do bebê, estiver ausente ou for demasiadamente intrusiva, a criança pode ter tendências à depressão, ou a condutas antissociais. Winnicott não negligenciava os cuidados paternos para o desenvolvimento do bebê. No decorrer de sua obra destacou a importância dos cuidados paternos, afirmando que é fundamental que o pai apoie moralmente a mãe, sustentando sua autoridade. Assim, para o autor, deveria ocorrer um equilíbrio entre a função materna e a paterna. Para descrever o desenvolvimento psíquico do bebê, Winnicott partiu de sua total dependência em relação ao meio ambiente até o estágio edípico. O autor acredita que o amadurecimento é cheio de idas e vindas, de modo que a criança constantemente oscila entre uma maturidade relativa e uma imaturidade típica dos primeiros estágios de dependência. Para descrever esse caminho, estabeleceu os seguintes estágios: 33 PSICANÁLISE DA CRIANÇA: UM PERCURSO HISTÓRICO │ UNIDADE I Dependência absoluta Aproximadamente até os quatro meses de vida do bebê Esse estágio é chamado assim pois não haveria chances de o bebê sobreviver sem os cuidados do ambiente (mãe). Há, portanto, uma total dependência. A amamentação é central na vida do bebê. Aqui, Winnicott não se refere somente ao aspecto alimentar, mas ao sentido da relação estabelecida entre a mãe e o bebê. Ao amamentar, a mãe dá início à relação do bebê com a realidade externa, ainda quede forma bastante rudimentar. Inicialmente o bebê não compreende a mãe como sendo um objeto externo. Também o ambiente não é entendido como um ambiente externo para o bebê; a mãe – ou pessoa que ocupe a função materna – e o ambiente não são distinguidos pelo bebê como externos ou separados. Nesse momento, o bebê vive o que Winnicott denomina “Ilusão de onipotência”, que seria a característica do bebê de não conceber as como coisas separadas do seu mundo subjetivo. Assim, o bebê manifesta uma “criatividade primária”, ou seja, o bebê cria aquilo que vem de fora, como se ele o tivesse inventado. Para que esse estágio decorra com sucesso, é necessário que o ambiente seja confiável. Para tal, é preciso que a mãe seja “suficientemente boa”: capaz de se adaptar suficientemente às necessidades do bebê, de maneira que esse sinta confiança no ambiente e que este se apresente de maneira previsível, permitindo, assim, um ambiente facilitador que oportunize uma continuidade do ser por parte do bebê. Assim, gradativamente, por meio deste ambiente previsível e confiável, o bebê é capaz, segundo Winnicott, de realizar algumas tarefas essenciais para o seu desenvolvimento: » Integração no tempo e no espaço; » Personalização (o alojamento da psique no corpo); » Início das relações objetais (início do contato com a realidade). Essas três tarefas são interdependentes, ou seja, uma não se realiza sem as outras. Assim, à medida que o bebê é introduzido no tempo e no espaço, começa gradualmente a perceber os períodos de mamada, de sono, a rotina do ambiente ao seu redor etc., começa a habitar no mundo real, o que resulta no gradual alojamento da psique no corpo. 34 UNIDADE I │ PSICANÁLISE DA CRIANÇA: UM PERCURSO HISTÓRICO À medida que o bebê “habita seu corpo” pode, também, explorar o espaço, perceber distâncias e proximidades, o caráter fixo ou transitório das coisas. Assim, caso o ambiente seja propício, o bebê amadurece especialmente em função do que Winnicott chamou de “tendência natural ao amadurecimento”, que seria esse percurso que o bebê passo a passo faz para a integração de um si-mesmo unitário. Para que o bebê realize as três tarefas destacadas, a mãe/ambiente é essencial. Assim, existem três funções maternas que devem ser exercidas simultaneamente, proporcionando que o bebê cumpra essas tarefas: » Apresentação do Objeto É a apresentação do seio ou da mamadeira. O bebê tem fome e “espera” algo. Esse algo surge, naturalmente, de modo que o bebê aceita o objeto oferecido. Nesse momento, o bebê tem a ilusão de ter “criado” esse objeto para a sua satisfação. Essa “ilusão” provê ao bebê uma experiência de onipotência; é como se o objeto adquirisse existência real quando desejado e esperado. À medida que a mãe está sempre à disposição, esta ilusão vai sendo reforçada e, ao mesmo tempo, protegendo o bebê de angústia que seriam insuportáveis. » O Holding (segurar) A integração no tempo e no espaço é uma das tarefas mais básicas que o bebê faz. Para isso, Winnicott destaca um cuidado específico: o Holding. Esse segurar refere-se a manusear o corpo do bebê, os cuidados em realizar essa atividade, sempre mantendo a preocupação com o bem- estar do bebê. É preciso que a mãe/ambiente provenha um ambiente tranquilo e regular, uma atmosfera repleta de calma que espera pelo bebê e seus movimentos. Note, não se trata de estimular o corpo do bebê para que este se movimente de algum modo específico, mas de “sustentar a situação no tempo”, não exigindo que o bebê faça nada, apenas deixando que ele exista, aguardando respeitosamente para que os movimentos do bebê venham. » O Handling (manuseio) O alojamento da psique no corpo também requer um cuidado específico. Winnicott destaca esse cuidado como Handling, trata-se de um manusear físico que provê ao bebê suas primeiras experiências sensoriais: de temperatura, de textura, de ritmo etc. Nesse manusear, gradualmente, o bebê sente seu corpo, sente que “não está solto no espaço”. 35 PSICANÁLISE DA CRIANÇA: UM PERCURSO HISTÓRICO │ UNIDADE I A experiência do Handling permite que o bebê gradativamente vá “habitando seu próprio corpo”, que, passo a passo, sinta-se real, vivo, existindo. Assim vai se criando uma conexão entre psique e soma, entre mente e corpo, que gradativamente dá ao bebê o sentimento de integração. Dentro da etapa de dependência absoluta é importante destacar, ainda, um possível efeito das falhas de maternagem sobre o bebê. Winnicott (1994) destaca que as falhas de maternagem neste primitivo momento do amadurecimento prejudicam o indivíduo na constituição de um si mesmo. Assim, ante as falhas da mãe/ambiente, surge um falso self, que se constitui como uma tentativa de substituir a falha da função materna. Em outras palavras, diante de uma mãe incapaz de reconhecer, acolher e respeitar a singularidade de seu bebê, este, tentando suprir as insuficiências maternas, cria um “falso self” que busca proteger o verdadeiro self. Você já assistiu ao filme: Precisamos falar sobre Kevin? O filme, de 2011, dirigido pela cineasta Lynne Ramsay, mostra a relação de Eva e seu primeiro filho Kevin. Ao engravidar, Eva teme que sua vida social, sexual, profissional sejam afetadas. Não se sente confortável com seu corpo e com a gravidez. Após Kevin nascer, o filme mostra como não é criado um vínculo entre a mãe e filho, ou seja, Eva não participa ativamente do desenvolvimento de Kevin, não lhe provê o amor e os cuidados iniciais necessários ao desenvolvimento. Sendo assim, Kevin se sente sozinho no mundo e só acha conforto nos braços do pai. Eva se sente frustrada como mãe, por não conseguir acalmar seu filho durante suas incessáveis crises de choro. À medida que Kevin vai crescendo, Eva tenta melhorar sua função de mãe, contudo, observa-se, no decorrer do filme, que a relação dos dois é constantemente permeada por sentimentos de ódio e vingança um pelo outro. O resultado disso? O filme é surpreendente, vale a pena assistir e refletir a importância do papel facilitador do ambiente, ou, ainda, da “mãe suficientemente boa” na constituição da criança. 36 UNIDADE I │ PSICANÁLISE DA CRIANÇA: UM PERCURSO HISTÓRICO Dependência e Independência relativas - rumo à independência Aproximadamente dos 4 meses aos 2 anos de vida do bebê Gradativamente, à medida que o bebê se desenvolve a mãe vai se “desligando” um pouco do estado intenso de identificação, vai retomando sua vida, fazendo surgir, dando origem ao que Winnicott chamou de “falhas de adaptação moderadas”. Em outras palavras, o que caracteriza esse estágio é o início de uma desadaptação gradual da mãe em relação às necessidades do bebê. Essa desadaptação gradativa da mãe é essencial para que o bebê dê seguimento ao seu processo de amadurecimento, diferenciando-se da mãe, rompendo com a unidade indiferenciada “mãe-bebê”. Esse processo levará o bebê a integrar-se como um eu unitário separado, capaz de estabelecer relações com o mundo externo. O bebê sente esse momento como se “existissem duas mães”: Uma é a mãe dos momentos calmos, a outra, a dos momentos de excitação em que a agressividade está presente (em especial nas refeições). Diante dessas situações, o bebê se preocupa, pois já é capaz de identificar a existência de uma mãe e reconhecer-se dependente dela. Contudo, com o tempo, o bebê passa a integrar as duas figuras maternas, perceber que se trata da mesma pessoa. Para isso, é fundamental a presença da mãe suficientemente boa. Nessa fase, depois de ter passado por uma fase de ilusão de onipotência, em que cria os objetos de suas necessidades, a criança vai descobrindo que ela e sua mãe são separadas e que ela depende da mãe para suas necessidades. Tem início o que Winicott denominou de “desilusão”. Na fase de desilusão a criança desenvolve atividades como levar os dedos ou algum objeto à boca, como a ponta de um lençol, chupeta, um ursinho etc. Essas atividades aparecem em momentos emque surge a angústia de separação da mãe. Winnicott chama essas atividades de fenômenos transicionais, e quando elas envolvem objetos estes são chamados de objetos transicionais; lençol, chupeta etc. Trata-se aqui do objeto encontrado pela criança para compensar a angústia da ausência da mãe. Ao utilizar objetos transicionais, a criança começa a perceber, mesmo que de forma rudimentar, a existência de uma realidade externa. Constitui-se, nesse momento, o espaço transicional, o espaço de jogo entre a criança e o mundo. Nas palavras de Dias (2017, p. 207): “Os fenômenos transicionais estão exatamente no meio do caminho – 37 PSICANÁLISE DA CRIANÇA: UM PERCURSO HISTÓRICO │ UNIDADE I como uma passagem intermediária e facilitadora – dessa ‘longa jornada’ que vai da realidade subjetivamente concebida a realidade objetivamente percebida”. Winnicott destaca que o que deve ser levado em conta não é o objeto transicional em si (a chupeta, o ursinho, o lençol etc.), mas a função que esses objetos ocupam na vida psíquica do bebê. Para o autor, o objeto transicional permite à criança suportar a separação, restabelecendo a continuidade ameaçada de ruptura, assim, ele é de grande valia na constituição da subjetividade, pois é a partir daí que o bebê adquire um sentimento de self. É a partir dos objetos e fenômenos transicionais que se dá o reconhecimento objetivo da realidade. A teoria winnicottiana sobre a constituição subjetiva terá efeitos na prática clínica, pois, tomando como base sua teoria, Winnicott propôs uma nova abordagem, uma nova forma de lidar com pacientes. Isso ocorre, por exemplo, no caso em que indivíduos que se depararam com um ambiente em que fracassara na adaptação às suas necessidades. Nesses= caso, o analista deveria, tal qual a mãe, exercer a função de holding, ou seja, ser continente com as necessidades do paciente, permitindo o estabelecimento de uma relação íntima entre dois psiquismos. Na prática, isso significa que o analista deve prover cuidados ao paciente, permitindo que um ego muito infantil, que ficou regredido, encontre pontos de referência estáveis para que o paciente possa se integrar no tempo e no espaço. Mas, na prática, como esse fundamento poderia ser aplicado à clínica com crianças? Ao atender crianças, Winnicott buscava estabelecer uma comunicação com a criança, um encontro “espontâneo”. O autor destaca, ainda, que o analista deve ser cuidadoso com crianças, afinal, em determinadas situações, o sintoma representa a melhor forma que a criança encontra para lidar com as dificuldades que a vida lhe apresenta. Assim, de maneira cuidadosa, o analista pode ajudar a criança a se conectar com suas próprias experiências de vida, desvencilhando-se de alguns sentimentos e dificuldades. Assim como Melaine Klein, Winnicott adotou a prática do brincar com crianças, contudo, para o autor, o brincar tinha uma função um pouco diferente. Klein permitiu que a função simbólica do brincar fosse explicitada. Para a autora, o brincar seria um meio de a criança expressar seus sentimentos e problemas, ou seja, um meio de comunicação da criança. Já para Winnicott, o brincar é a base para a construção do processo psíquico que estrutura o self. O autor trabalhou de modo minucioso a relação existente entre o brincar, a capacidade criativa do sujeito e a cultura. 38 UNIDADE I │ PSICANÁLISE DA CRIANÇA: UM PERCURSO HISTÓRICO Winnicott (1975) relata que é por meio do brincar que a criança pode ser criativa e, sendo criativa, pode descobrir o seu eu (self). Assim, o brincar é para o autor um espaço potencial, por meio do qual a criança experimenta liberdade suficiente para “criar-se”, ou seja, um espaço em que a potência do indivíduo se mobiliza em busca de uma concretização. Para Winnicott (1975), a criança que brinca é aquela que aprendeu a estar sozinha, que elaborou sua capacidade de criatividade, ou seja, é uma criança saudável. Vale destacar que, para melhor compreensão do brincar, em Winnicott (1975), você precisa, antes, compreender os estágios de desenvolvimento do bebê que detalhamos, em especial, as noções de fenômeno transicional e objeto transicional. Afinal, conforme o autor destaca, o brincar só pode ser plenamente entendido quando se compreende a noção de transicionalidade. Dito de outro modo, enquanto Freud afirmava que a experiência dos indivíduos passa por dois campos: um da realidade psíquica, pessoal e interna e outro da realidade externa compartilhada socialmente, Winnicott (1975) propôs um campo intermediário, o da transicionalidade. Trata-se de uma área intermediária da experiência humana na qual ocorre o encontro entre o mundo psíquico e o mundo socialmente construído. Assim, para Winnicott (1975), o brincar ocorre nesse espaço de fronteira, ele não fica dentro ou fora da subjetividade; é um espaço potencial, de descoberta do mundo. O brincar na sessão analítica winnicottiana Winnicott afirma que o brincar é um aspecto universal da natureza. Assim, para ele, o brincar é, em si mesmo, psicoterápico: “É no brincar, e talvez apenas no brincar, que a criança ou o adulto fruem da sua liberdade de criação” (WINNICOTT, 1971, p. 79). Brincar, na perspectiva winnicottiana, é “uma experiência, sempre uma experiência criativa, uma experiência na continuidade espaço-tempo, uma forma básica de viver” (Winnicott, 1968, p. 75). Assim, é por meio do brincar no processo terapêutico que a comunicação se estabelece, é por meio do “brincar juntos” que a criança estabelece confiabilidade com o analista e compartilha suas referências. Assim, em uma perspectiva winnicottiana, inicialmente, o analista não deve se preocupar com a demanda de análise ou com o estabelecimento de um diagnóstico, 39 PSICANÁLISE DA CRIANÇA: UM PERCURSO HISTÓRICO │ UNIDADE I nem mesmo com a interpretação. Deve buscar, primeiro, estabelecer uma comunicação com a criança, um encontro “espontâneo”. Não se trata, portanto, de um encontro mecânico composto por “brincadeiras mecânicas” com objetivos específicos e orientados, mas de um encontro com o si- mesmo, da comunicação entre a realidade subjetiva e a objetivamente percebida, encontro que, segundo Winnicott (1968), contribui para o amadurecimento. É por meio do brincar junto ao analista que a criança, gradualmente, toma a vida como algo que lhe diz respeito, já que o brincar que Winnicott (1968) propõe se dá na área em que a criança cria o mundo em que vive, ao mesmo tempo em que se adapta ao mundo objetivamente dado, sem perda significativa da sua espontaneidade. Em outras palavras, Winnicott (1968) reconhecia que, por meio do brincar, a criança poderia explorar e desenvolver sua liberdade criativa, o que significa, na prática, experimentar o mundo, as frustrações, as ilusões, os devaneios etc. e, assim, aos poucos, reelaborar questões e conflitos constituindo novos significados a estes. Um método instituído por Winnicott (1994) foi o “Jogo do Rabisco”. O autor descreve a brincadeira mediante estas instruções: Vamos jogar alguma coisa. Sei o que gostaria de jogar e vou lhe mostrar. Há uma mesa entre a criança e eu, com papel e dois lápis. Primeiro apanho um pouco de papel e rasgo as folhas ao meio, dando a impressão de que o que estamos fazendo não é freneticamente importante, e então começo a explicar. Digo: “Este jogo que gosto de jogar não tem regras. Pego apenas o meu lápis e faço assim...” e provavelmente aperto os olhos e faço um rabisco às cegas. Prossigo com a explicação e digo: Mostre-me se se parece com alguma coisa a você ou se pode transformá-lo em algo; depois faça o mesmo comigo e verei se posso fazer algo com o seu rabisco (WINNICOTT, 1994, p. 232). Ao propor o jogo do rabisco, Winnicott acreditava que o problema que está causando tensões na criança se revelaria na situação terapêutica. Essa técnica se diferencia pela ausência de normas fixas, contrastando com os jogos estruturados por sistemas de regras. Para Winnicott
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