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See discussions, stats, and author profiles for this publication at: https://www.researchgate.net/publication/267420259 Questões Atuais em Criminologia Article · December 2003 CITATIONS 0 READS 470 1 author: Some of the authors of this publication are also working on these related projects: indicadores criminais e metodologia de análise View project publicações em inglês View project Tulio Kahn Fundação Espaço Democrático, Brazil, São Paulo 64 PUBLICATIONS 389 CITATIONS SEE PROFILE All content following this page was uploaded by Tulio Kahn on 03 November 2016. The user has requested enhancement of the downloaded file. Questões Atuais em Criminologia Tulio Kahn APRESENTAÇÃO...............................................................................................3 CRIME E DESEMPREGO.....................................................................................4 CRIMINALIDADE E MEIOS DE COMUNICAÇÃO..................................................8 A VIOLÊNCIA BRASILEIRA.............................................................................16 OS CUSTOS DA VIOLÊNCIA ............................................................................21 A EXPANSÃO DA SEGURANÇA PRIVADA NO BRASIL: ALGUMAS IMPLICAÇÕES TEÓRICAS E PRÁTICAS. ...................................................................................34 POLICIAMENTO COMUNITÁRIO NO BRASIL: UMA EXPECTATIVA REALISTA DE SEU PAPEL......................................................................................................41 ARMAS DE FOGO: ARGUMENTOS PARA O DEBATE ..........................................49 ANEXO...........................................................................................................80 VIOLÊNCIA NAS ESCOLAS ..............................................................................82 BIBLIOGRAFIA ...............................................................................................88 2 Questões Atuais em Criminologia Apresentação Os seis primeiros artigos deste volume - "Crime e Desemprego", "Criminalidade e Meios de Comunicação", "A Violência Brasileira", "Os Custos da Violência", "A Expansão da Segurança Privada no Brasil" e "Policiamento Comunitário no Brasil" - foram originalmente escritos para o boletim Conjuntura Criminal (http://sites.uol.com.br/concrim) entre os anos de 1997 e 1999. São artigos de cunho mais jornalístico do que propriamente acadêmico pois foram escritos para serem lidos na internet, onde não é possível aprofundar temas sem cansar o leitor. Diversamente, os artigos sete e oito - "Armas de Fogo" e "Prestação de Serviço Comunitário" - são o resultado de pesquisas feitas pelo Ilanud e por isso são um pouco maiores e, quiçá, mais profundos do que os demais. "Crime e Desemprego" foi previamente publicado nos jornais Notícias Populares e O Dia; "Custos da Violência" na revista Perspectiva, da Fundação Seade e "Prestação de Serviço Comunitário" na revista do IBCcrim. Os demais textos foram parcialmente tratados em artigos na imprensa, mas podem ser considerados inéditos. Em conjunto, os artigos dão uma noção atualizada dos temas e métodos da criminologia moderna, baseada em dados empíricos e em pesquisa comparada. O desemprego e os meios de comunicação, em sua relação com a violência, são tratados nos dois primeiros artigos deste volume, que tratam de desmistificar algumas suposições correntes sobre tais questões. O terceiro artigo procura analisar a violência brasileira no contexto sul-americano e o quarto e o quinto o fenômeno crescente da "indústria da segurança" e sua expansão no país, em conexão com o aumento dos custos da violência. O texto sobre policiamento Comunitário no Brasil é uma reflexão que serviu de base para um projeto de avaliação destas experiências, proposto pelo Ilanud à Fapesp e Fundação Ford. O texto sobre armas foi escrito para um Workshop organizado pelo Ilanud em Junho de 99 e apresenta uma reflexão sobre os possíveis efeitos da proposta governamental de proibir o comércio e o porte de armas no pais. O último artigo analisa dados de uma pesquisa exploratória feita com condenados à prestação de serviços comunitários no Estado de São Paulo, avaliando o perfil dos prestadores em comparação com o perfil dos condenados às penas privativas de liberdade. 3 Crime e Desemprego Nestes tempos difíceis onde taxas de desemprego e índices de criminalidade apresentam tendências de crescimento, parece razoável supor que os dois fenômenos estejam intimamente relacionados. Não é preciso fazer nenhuma pesquisa sofisticada para perceber que uma taxa elevada e constante de desemprego que se mantenha durante muito tempo tenderá a levar para o mundo do crime pessoas – principalmente jovens – que de outro modo estariam participando do mercado de trabalho. É preciso todavia que se façam algumas considerações gerais sobre como desemprego e criminalidade se relacionam, para desfazer certos equívocos, como pretender que exista uma relação direta e imediata entre ambos. Pesquisa feita em 1991 pelo instituto Datafolha com 645 presos da Casa de Detenção da Capital revelou que, no momento do crime, 27 % dos criminosos não estava trabalhando. Com os jovens infratores investigados em 1996 pelo Movimento Nacional de Meninos e Meninas de Rua observou-se algo semelhante: 53% não trabalhava e 44% trabalhavam informalmente na ocasião da infração. O primeiro ponto que nos chama a atenção sobre estes dados é de que a maior parte dos infratores adultos e boa parte dos jovens estava trabalhando no momento do crime. Estar trabalhando é assim um elemento inibidor mas não constitui nenhuma garantia contra o cometimento do crime. Num país como o Brasil onde os salários são freqüentemente aviltantes e a qualidade do trabalho precária (trabalho informal, subemprego, ausência de garantias trabalhistas, etc.), o universo dos criminosos se confunde parcialmente com o universo dos trabalhadores. Enquanto no passado a maior parte das novas vagas abertas estavam no mercado formal, atualmente, não só ocorreu uma diminuição de vagas como uma deterioração qualitativa: a maior parte das novas vagas localiza-se hoje no setor informal da economia. Este tipo de trabalhador informal, em especial, faz parte do que a elite denominaria por "classes perigosas", porque do "bico" para o mundo do crime é um passo não muito longo a ser dado, diversamente do que ocorre com o trabalhador do setor formal da economia - onde a estabilidade e qualificação inibem o envolvimento com a ilegalidade. Nos dois estudos realizados pelo ILANUD sobre a questão do desemprego e criminalidade na Grande São Paulo– um tomando por 4 Questões Atuais em Criminologia base 60 meses entre 1985 e 1989 e outro utilizando 13 anos de evolução de ambos os fenômenos entre 1985 e 1997 – a constatação geral foi de que a correlação entre os dois fenômenos existe, porém é fraca, condicional e relativa. Entre as sugestões que puderam ser extraídas estão as seguintes: Em primeiro lugar, caberia lembrar que os efeitos do desemprego sobre a criminalidade não são imediatos. Ninguém normal perde o emprego num dia e torna-se assaltante de bancos no outro. O recém desempregado tentará obter uma nova colocação no mercado de trabalho durante certo tempo. No caso de não obtê-la tentará recorrer a um subemprego, às economias pessoais, ao salário desemprego, à ajuda de parentes e amigos, etc. Somente após repetidas tentativas frustradas de se colocar novamente no mercado ou quando todas as demais estratégias de sobrevivência tiverem se esgotado é que o crime passa a ser uma alternativa levada em consideração. Este processo,desnecessário dizer, pode levar meses ou mesmo anos, dependendo do indivíduo. O desemprego de hoje talvez só venha a se refletir nas taxas de criminalidade de daqui há muito tempo e a criminalidade atual é o fruto do desemprego de períodos passados. Não só a relação não é imediata como também não se manifesta em todo e qualquer tipo de criminalidade. Pesquisas realizadas em outros países e replicadas em São Paulo pelo ILANUD sugerem que o efeito do desemprego é maior sobre os crimes contra o patrimônio e dentre estes particularmente sobre o furto. Em outras palavras, existe uma, digamos assim, “carreira” criminosa que começa com os delitos menores e que só depois envereda para os crimes mais violentos. Novamente, é mais provável imaginarmos um desempregado furtando algum objeto de uma loja, ou passando cheques sem fundo do que efetuando um roubo a mão armada ou um seqüestro. De 1981 a 1983 o país atravessou uma forte recessão, com crescimentos negativos no PIB e desemprego elevado por 3 anos. De 1984 a 1986 a economia reage, observando-se uma recuperação do nível de emprego e taxa positivas de crescimento do produto. Seguindo o mesmo movimento, os furtos, que vinham aumentando entre 1981 e 1983, caem por três anos consecutivos entre 1984 e 1986. Quando em 1986, no auge do Plano Cruzado, a taxa de desemprego total na Grande São Paulo diminuiu de 12,2% para 9,6%, a taxa de furtos, também na Grande São Paulo caiu em cerca de 14%. Não por acaso, este também foi o ano de maior crescimento do PIB na década. Com o 5 fracasso do Plano Cruzado em 1987, os furtos e os crimes em geral retomam a tendência de crescimento. Encontramos um exemplo inverso ao de 1986 em 1992, quando a recessão reduz o mercado de trabalho e a quantidade de furtos aumenta em cerca de 7%. Estes efeitos são mais perceptíveis em anos como estes citados, quando ocorrem mudanças abruptas – para melhor ou para pior – nas taxas de desemprego ou nos anos que marcam a inversão de tendências. Nos anos em que as mudanças são pequenas em magnitude ou que estão compreendidos dentro de um ciclo de recessão ou prosperidade, os efeitos não são tão identificáveis. Caberia lembrar ainda o problema que os economistas chamam de “inflexibilidade” quando analisam o efeito dos preços sobre a oferta e procura de certas mercadorias. O aumento do preço do cigarro não altera tanto o consumo do produto porque os fumantes tendem a ser “inflexíveis”, isto é, continuaram fumando independentemente do preço do produto. O aumento do preço do macarrão, por outro lado, tenderá a produzir uma restrição na demanda pelo produto. Pois bem, fazendo uma analogia com a economia, poderíamos dizer que existem criminosos flexíveis e inflexíveis. O criminoso profissional é de certo modo inflexível com relação às variações no mercado de trabalho. Mesmo que estejam sobrando postos de trabalho, eles não abandonarão a carreira criminosa. Portanto, as variações no mercado de trabalho só tenderão a afetar aqueles indivíduos que poderíamos qualificar de criminosos “esporádicos” ou “episódicos”, que se alternam entre o mundo do crime e o mercado de trabalho conforme a disponibilidade de empregos no mercado. Caberia lembrar também dois outros aspectos da relação entre desemprego e criminalidade. O problema do desemprego hoje é o do que os economistas chamam de desemprego estrutural. Não é mais um desemprego cíclico, que inclui e exclui temporariamente o "exército industrial de reserva" no mercado de trabalho. Existe todo um contigente desta reserva que jamais entrou ou entrará no mercado de trabalho, o que tenderá a acentuar a relação entre desemprego e criminalidade. Outro aspecto é o preconceito com relação aos egressos do sistema criminal: se para um trabalhador com "ficha limpa" já é difícil arrumar emprego, tanto mais para aquele com passagem pelo sistema criminal. Isto explica em parte que as taxas de reincidência criminal em São Paulo estejam em torno de 47%. 6 Questões Atuais em Criminologia Uma vez tendo ingressado na carreira criminal, fica muito mais complicado voltar ao mercado de trabalho, independentemente da qualificação anterior. Mais do que o trabalhador que perde seu emprego a certa altura de sua vida profissional, o contingente anual de criminosos é engrossado pela massa de jovens que jamais ocuparam uma vaga no mercado formal de trabalho. É aí que o desemprego revela sua face mais perversa. Para estes é que é preciso pensar numa alternativa ao crime, como por exemplo um salário-social, cursos de aperfeiçoamento profissional ou um programa de primeiro emprego, para jovens desempregados das periferias das grandes cidades. Caso contrário, num futuro não muito distante, este contingente de desempregados virá cobrar da sociedade aquilo que lhes foi negado, de uma forma ou de outra. 7 Criminalidade e Meios de Comunicação As noções das pessoas sobre criminalidade nem sempre correspondem à realidade pois são, em grande parte, influenciadas pela forma como os meios de comunicação tratam o tema. Os meios de comunicação acabam muitas vezes selecionando os tipos de violência e criminalidade relevantes, selecionando vítimas, autores ou situações específicas e direcionando o modo como devem ser solucionados. (Sacco, 1995) Existe portanto uma distorção na percepção da população sobre criminosos e criminalidade causada, em parte, pela ênfase da mídia em certos tipos de crimes de interesse jornalístico, aliada a outros fatores como o preconceito social, o contato da população com filmes e livros de ficção sobre o tema ou ainda pela exploração política do tema da segurança pública. Estes e outros fatores fazem com que a percepção popular do crime guarde freqüentemente pouca relação com a realidade. Alguns exemplos corriqueiros de distorções: negros e migrantes são superestimados na população carcerária e entre os grupos criminosos; crimes violentos e contra a pessoa são superestimados com relação ao seu montante; os “índices de criminalidade” são sempre percebidos numa espiral ascendente e jamais descendente; porcentagem de “menores” envolvidos nos crimes é superestimada; porcentagem de crimes cometidos sob a influência de drogas é superestimada; violência doméstica é subestimada, etc. A lista é longa e tais distorções, desnecessário dizer, não são acidentais. A questão fica mais clara quando observamos não só a magnitude mas também o “sentido” da distorção, isto é, se ela é subestimada ou superestimada. Não é casual que os grupos de status negativamente privilegiados - negros, migrantes, desempregados, viciados - tenham sua participação nos crimes, invariavelmente, superestimada. Os crimes domésticos são camuflados e os cometidos por pessoas "de fora" são evidenciados porque vão contra a noção corrente de que o perigo vem dos outros e não de nós mesmos. É difícil aceitar que nossos familiares correm muitas vezes mais perigo em casa do que na rua. Os meios de comunicação não estão imunes a tais distorções, convertendo-se involuntariamente em fator de reforço. 8 Questões Atuais em Criminologia Analisando o conteúdo da mídia dedicada a cobertura criminal, percebe-se que ela fornece ao público uma mapa do mundo do crime que difere em muitas maneiras daquele fornecido pelas estatísticas oficiais. Entre outras distorções caberia destacar as seguintes: 1) as variações no volume de notícias sobre um tipo de crime guarda pouca relação com as variações reais observadas naquele crime, tanto com respeito a localização espacial quanto a variações no tempo 2) embora a maioria dos crimes seja não violento, a cobertura da imprensa sugere o contrário 3) tanto as vítimas quanto os agressores que aparecem na mídia são mais velhos do que sugerem as estatísticascriminais 4) as reportagens tendem a sobre-representar grupos minoritários ou impopulares entre os agressores 5) o retrato da atividade policial é dramatizado e parece mais eficaz e emocionante do que é na realidade 6) ignora-se os diferentes riscos de vitimização dos diversos grupos 7) há uma ausência generalizada sobre o contexto social e histórico da informação apresentada 8) existe uma concentração da atenção sobre crimes de rua, cometidos por pobres, e uma desconsideração com relação aos crimes de colarinho branco 9) dados enganosos são apresentados aos leitores, como os que reportam aumentos no número de crimes sem levar em conta aumentos no tamanho da população. A sazonalidade existente em certos crimes tampouco é considerada. Porcentagens são calculadas sob números absolutos insignificantes ( Schneider ;Sacco, 1995; Barkan, 1997). Sacco obeserva não sem certa ironia que, na prática, o único ponto convergente entre cobertura de mídia e estatísticas oficiais é o da apresentação do crime enquanto uma atividade predominantemente masculina. (Sacco, 1995) Vejamos alguns exemplos práticos do que estamos falando, utilizando para isso cobertura brasileira dos eventos criminais. Comparando a forma como o crime é representado na imprensa com os dados coletados pelos órgãos oficiais, é possível revelar a magnitude e o sentido de algumas distorções, que terminam por influenciar a imagem da sociedade sobre a criminalidade. Para 9 averiguar o destaque dado à cobertura dos crimes pela imprensa, utilizamos a "análise automática de discurso - AAD". Imaginado por M. Pêcheux, o procedimento procura, a partir da análise dos "efeitos de superfície", fazer inferências sobre uma "estrutura profunda". Colocando de modo mais simples, a técnica consiste em contar - independentemente do contexto em que surge - a ocorrência da palavra ou expressão num texto. A suposição subjacente é a de que a quantidade de vezes que uma determinada palavra ou expressão surge no texto fornece uma dimensão da importância relativa que ela assume no discurso. Assim, na análise de um programa partidário de cunho liberal a palavra "mercado" deve aparecer com relativa freqüência, sendo mais raras as referências à palavra "igualdade". Num programa mais "socialista", em contrapartida, espera-se que estas proporções sejam inversas, refletindo a importância do conceito dentro dos discursos "liberais" ou "socialistas". Para saber que tipo de crime e com que intensidade os meios de comunicação retratam, pesquisamos por palavras-chave a ocorrência de sete delitos em dois jornais de circulação nacional - um de São Paulo e outro do Rio de Janeiro. Com isso foi possível obter uma idéia da importância relativa com que os vários delitos são tratados pela imprensa. Em seguida, comparamos as porcentagens com que os crimes aparecem nos jornais com a porcentagem de crimes computados pelos órgãos oficiais de segurança pública, no intuito de verificar as diferenças entre os tipo de fontes. Conforme antecipado, a correspondência entre os crimes registrados na polícia e os crimes noticiados pela imprensa é bastante tênue para certos tipos de crimes. Isto tem algumas conseqüências importantes, pois a população forma parte de sua visão da criminalidade pela leitura dos jornais, uma vez que poucos têm acesso ou interesse pelos relatórios oficiais dos departamentos de estatística. Os pequenos furtos e as lesões corporais (agressões) são, de longe, os delitos mais freqüentes nas estatísticas oficiais de criminalidade. Mas quem se interessa em ler nos jornais sobre batedores de carteira ou brigas de marido e mulher ? Estes delitos tendem a comparecer no noticiário somente quando existe algo de pitoresco e anedótico relacionado a eles. Uma carteira furtada passa a ser motivo de interesse jornalístico se a vítima é uma autoridade pública ou artista 10 Questões Atuais em Criminologia conhecido. Caso contrário, estes eventos continuarão esquecidos nos arquivos das repartições públicas. Regra geral, o interesse dos meios de comunicação é direcionado pelo "potencial dramático" da história, dramaticidade que é aumentada, segundo Sacco, quando a vítima ou o agressor são uma celebridade, quando o incidente é especialmente sério ou quando as circunstâncias são atípicas. Como se diz no meio jornalístico, a notícia existe quando o homem morde o cachorro e não quando o cachorro morde o homem. Se os eventos corriqueiros e estatisticamente freqüentes são esquecidos pela cobertura jornalística, na outra ponta, temos os assassinatos, chacinas, os estupros, seqüestros e ações de traficantes de drogas, todos eles cobertos numa proporção bastante superior à sua participação no mundo do crime1. Curiosamente, apenas os roubos e assaltos compareceram no noticiário jornalístico numa proporção realista em relação ao seu significado. Isto ocorre, precisamente, pela posição intermediária dos roubos em termos de gravidade para a sociedade. Tabela 1. Incidência de crimes na mídia impressa e nos dados oficiais Delito % Folha 97 % Folha 98* % JB 97 % JB 98* % de Crimes em São Paulo -1º trim. 1998 Furto 2,7 4,8 3,0 2,9 45,6 Lesão corporal/espanca mento 3,9 2,7 4,6 2,3 27,3 Roubo/assalto 24,7 27,6 27,3 31,5 23,7 Assassinato/homi cídio/latrocínio 41,5 38,1 41,5 43,9 1,7 Tráfico de drogas 9,5 10,5 14,3 13,1 1,0 Estupro 6,4 5,3 6,2 3,5 0,4 Seqüestro 10,6 10,5 2,5 2,2 0,0001 Total 7727 3437 4279 2180 247446 Fontes: Folha de S. Paulo, Jornal do Brasil e Secretaria da Segurança Pública do Estado de São Paulo. * até julho de 1998. 1 Num estudo de 1980 realizado por Doris Graber com artigos sobre crimes, a autora revelou que o Chicago Tribune dedicava 26% de suas matérias a casos de homicídios, embora os homicídios somassem apenas 0.2% de todos os casos registrados pela polícia de Chicago. Sobre o tema, ver Barkan, 1997, p.29. 11 Observe-se a regularidade com que os crimes são apresentados de um ano para outro e a semelhança de cobertura entre os jornais das duas metrópoles. As semelhanças de cobertura são notáveis, exceto pelo destaque proporcionalmente maior dado aos seqüestros pela Folha de S. Paulo, tanto em 1997 quanto em 1998. A questão do tráfico de drogas - como esperado em função do tipo de organização encontrado no Rio de Janeiro - recebeu por seu lado uma cobertura mais extensa por parte do Jornal do Brasil. Embora não exista uma pesquisa exaustiva sobre outros meios de comunicação, é bastante provável que a televisão e o rádio reproduzam estes mesmos padrões de cobertura criminal. Uma análise preliminar de como os crimes são tratados pelos noticiários de televisão sugere a existência das mesmas distorções encontradas na mídia escrita. O Ilanud gravou durante uma semana, entre 2 e 8 de agosto de 1998, a programação de 27 telejornais exibidos pelas 7 emissoras de canal aberto existentes no país. No total assistiu-se a 1211 cenas de crimes nestes noticiários, assim distribuídos: Tabela 2. Incidência de crimes na televisão e nos dados oficiais Delito Freqüência Porcentagem % de Crimes em São Paulo -1º trim. 1998 Furto 5 0,4 45,6 Lesão corporal/espancamento 153 12,6 27,3 Roubo/assalto 75 6,2 23,7 Assassinato/homicídio/la trocínio 714 59,0 1,7 Tráfico de drogas 30 2,5 1,0 Estupro 141 11,6 0,4 Seqüestro 10 0,8 0,0001 Outros (latrocínio, atentado violento ao pudor, uso de entorpecente, fraude, dano em carro) 83 6,8 Total 1211 100 247.446 Fonte: Ilanud e Secretaria da Segurança Pública do Estado de São Paulo Em que pese a influência de casos específicos durante o período - naquela semana os destaquesforam os casos do Maníaco do Parque, 12 Questões Atuais em Criminologia do policial "Rambo" e a ação de um policial carioca que matara dois assaltantes de banco numa motocicleta - a tabela mostra com nitidez a preferência dos noticiários de televisão pelos crimes violentos contra a pessoa e das ações espetaculares, como seqüestros, em detrimentos dos crimes contra o patrimônio, como o furto. Estas distorções, no sentido de superestimar os crimes violentos e organizados, certo tipo de criminosos ou circunstâncias do crime, são compartilhadas também por políticos e membros das forças policiais e, não raramente, acabam se refletindo em políticas públicas igualmente destorcidas: orientações para tratar com maior rigor os negros e migrantes, criação de grupos especiais anti-seqüestro, leis mais repressivas contra drogados ou contra crianças e adolescente etc., quando, na realidade, a sociedade está mais carente de instituições para lidar com a violência doméstica ou com batedores de carteira. Em suma, a forma com a mídia retrata a criminalidade, autores e vítimas, tem influência na realidade social, na administração da justiça e na legislação penal, influência em geral mais poderosa do têm as pesquisas de criminologia. (Schneider) É preciso adequar as políticas públicas à realidade do crime. Propostas como as que deram origem aos "crimes hediondos", que desrespeitam garantias e direitos clássicos dos envolvidos, surgiram, quase sempre, após um surto de exposição de casos ou incidentes simbólicos relatados pela mídia, surtos por vezes imaginários, ao invés de surgirem da reflexão sobre tendências reais da criminalidade. Propostas de introdução da pena de morte, redução da maioridade legal, e outras medidas repressivas, surgem no bojo destas "ondas de criminalidade"2. Talvez o caso recente mais pitoresco seja o de alguns acidentes ocorridos em poços de elevadores, que deve ter vitimado no máximo uma dezena de pessoas nas últimas décadas, mas que, destacados nos meios de comunicação, deram origem a um lei obrigando a colocar um aviso, em todas as portas de todos os elevadores do Estado, alertando as pessoas para verificar se existe realmente um elevador antes de tentarem tomar algum ... 2 Estes surtos imaginários de criminalidade são muito comuns nos Estados Unidos, onde vários exemplos foram estudados. O mais famoso é o dos "ataques contra idosos", mas há também os casos dos "serial killers", das "crianças desaparecidas" ou ainda o dos "doçes de Hallowenn envenenados". Todos estes casos, quando confrontados com as estatísticas oficiais, revelaram-se claramente exagerados. 13 É compreensível que, diante da pressão pública, as autoridades procurem soluções emergenciais para tais problemas, pois mesmo que o "surto" exista somente na cabeça de alguns responsáveis pelas pautas dos meios de comunicação, o temor da população diante do fenômeno é bastante real. Diversas pesquisas, entre elas a pesquisa de vitimização realizada pelo Ilanud em 1997, que o medo do crime e da violência não tem relação com as reais probabilidades de vitimização: embora os jovens corram riscos maiores de vitimização, o sentimento de insegurança entre eles é menor do que o manifestado pelos mais velhos, cujo risco de vitimização é menor.3 Outras pesquisas captaram o mesmo fenômeno: mulheres e pessoas idosas temem mais serem vítimas de crimes violentos cometidos por desconhecidos, embora o risco de vitimização destes grupos sejam inferiores à média. (Schneider, ???) Embora as pessoas não recebam acriticamente as informações passadas pelos meios de comunicação sobre a criminalidade - e filtrem estas informações de acordo com sua própria experiência com o crime, com a percepção de credibilidade no meio de comunicação ou segundo a preocupação prévia sobre sua segurança pessoal - diversos analistas trabalham com a hipótese de que existe uma relação entre exposição de crimes na mídia, especialmente homicídios, e medo do crime. (Barkan, 1997) Por isso é importante que os meios de comunicação que se dedicam a cobertura de violência e criminalidade façam a coleta e análise sistemática e periódica de dados sobre estas questões, para que possam dar a sua audiência uma imagem fidedigna do que está acontecendo na realidade, sem exagerar a relevância do evento apresentado. Aumentos explosivos de criminalidade e "surtos" de crimes específicos são fenômenos mais raros do que aparentam ser. Não há dúvida de que existe o fenômeno do "contágio" ou "efeito dominó", onde a aparição de uma modalidade ou forma diferente de praticar um crime induz a imitação por parte de outros, provocando assim uma "onda". Mas quando se analisa friamente a evolução dos crimes no tempo, percebe-se, ao contrário, que as taxas de 3 Uma hipótese plausível para este fenômeno é a de que o sentimento de insegurança está mais relacionado à fragilidade da vítima - sua incapacidade de se defender da violência - do que com a experiência concreta de vitimização. 14 Questões Atuais em Criminologia criminalidade são na verdade bastante estáveis. A realidade do crime, ao menos aqui no Brasil, já é ruim o bastante por si só, sem que precisemos contribuir para isso. Sempre que possível, mesmo com as limitações do meio, deve-se procurar fazer uma apresentação contextualizada dos eventos criminais. Este tipo de apresentação pode sem dúvida tirar um pouco da dramaticidade do fato, mas é a única forma de ajudar a recolocar a discussão sobre as políticas públicas para lidar com o crime nos seus devidos eixos, sem provocar o pânico na sociedade ou favorecer as "saídas mágicas", tão ao gosto aos legisladores brasileiros. 15 A Violência Brasileira Os brasileiros, principalmente habitantes das grandes cidades, sentem que vivem numa sociedade e numa época violentas. Esta sensação é confirmada pelas histórias contadas pelos mais velhos, dos tempos em que não se precisava trancar a porta de casa e podia-se ir a noite para qualquer lugar, sem medo de ser assaltado. Qualquer um que tenha mais de 30 anos lembra também por experiência própria que morar no Brasil já foi algo mais tranqüilo. Existe assim uma referência temporal que toma por base o passado como exemplo de sociedade que mantinha padrões toleráveis de violência. Em algum momento na década de 80 a situação parece ter fugido ao controle. Se existem referências razoavelmente seguras para inferirmos que a sociedade brasileira tornou-se violenta com o tempo - e diversos indicadores apontam neste sentido - existem todavia poucas comparações com outros países para que tenhamos uma noção precisa do quão violenta ela é. A exiguidade de comparações internacionais se deve principalmente a dois fatores: falta de uma definição precisa para o termo "violência" e carência e imprecisão de dados. Como saber se somos mais ou menos violentos que outros países ? Com quais países estabelecer a comparação ? Quais os indicadores adequados para mensurar o conceito de violência ? Onde encontrá-los, calculados da mesma forma e para os mesmos períodos? Na ausência de um indicador mais preciso, convencionou-se utilizar como medida de violência a taxa de homicídios dolosos por 100 mil habitantes. Embora a correlação não seja estritamente verdadeira, aceita-se que a taxa de homicídios seja uma medida resumo da violência existente no país e que uma sociedade onde morrem muitas pessoas é também uma onde ocorrem outros tipos de crimes. A escolha da taxa de homicídios dolosos por 100 mil habitantes, se não é perfeita, tem alguns méritos: os homicídios não sofrem tanto com o problema da subnotificação quanto os outros crimes e nãoexiste praticamente sociedade que não tenha um registro sobre as causas de mortalidade de seus habitantes. Do mesmo modo, se existem divergências sobre o que é uma agressão sexual ou um assalto de uma legislação para outra, existem poucas sobre o que é um assassinato. 16 Questões Atuais em Criminologia Para efeitos de comparação internacional, portanto, trata-se do melhor indicador possível de "violência", ao lado das pesquisas internacionais de vitimização. Aceitando-se com algumas ressalvas que a taxa de homicídios dolosos por 100 mil habitantes seja um indicador de violência, resta o problema de onde encontrar dados abundantes e confiáveis. Os organismos internacionais, principalmente os vinculados as Nações Unidas, constituem o maior manancial para este tipo de informação. No que se refere a taxa de homicídios, localizamos quatro diferentes estudos recentes (anos 90), dois deles com informações relativas ao Brasil: são eles United Nations Survey on Firearm Regulation (UNSFR, 1997, 36 países), o estudo patrocinado pelo U.S Center for Disease Control (CDC, 35 países) , o United Nations Surveys of Crime Trends and Operations of Criminal Justice System (TRENDS, 1990-1994, 59 países) e o International Crime Statistics (ICS, 1994, 84 países), elaborado pela Interpol. No total, foi possível coletar informações sobre taxas de homicídio para 108 países. Quando a informação para um país existia em mais de uma fonte, extraiu-se uma média dos dados. Uma vez escolhido o indicador a partir do qual analisar quão violento é o Brasil em comparação a outros países e encontradas as fontes, resta ainda uma questão crucial para a análise: violento comparado a quem ? Entre os países pesquisados existem nações ricas e pobres, socialmente igualitárias e desiguais, culturalmente tradicionalistas e modernas, urbanizadas e rurais, super e sub povoadas, religiosas e laicas, politicamente repressivas ou liberais, entre outras variedades. Todas estas diferenças implicam em diferentes graus de violência (e violências de natureza diferente) e só faz sentido comparamos países que tenham algum grau de semelhança entre si. A taxa média de homicídios para os 108 países investigados foi de 8,5 por 100 mil habitantes, o que eqüivale a cerca de um terço da taxa brasileira, estimada em 24,1 por 100 mil. Quando separamos os países pelo grau de desenvolvimento industrial, observamos que uma taxa elevada de homicídios é característica das nações em desenvolvimento, sendo mais baixa tanto nos países menos desenvolvidos quanto nos países industrializados. 17 Tabela 1. Taxa de homicídios por grupo de países Grupo Homicídios por 100 mil N° de Países Menos desenvol. 4,2 14 Em desenvol.. 12,7 52 Industrializados 4,7 42 8,5 108 Fontes: United Nations Survey on Firearm Regulation / U.S Center for Disease Control / United Nations Surveys of Crime Trends and Operations of Criminal Justice System / International Crime Statistics. Resultados semelhantes são obtidos quando dividimos os países pelo seu nível de desenvolvimento humano ou ainda pelo PIB per capta: os níveis intermediários de desenvolvimento são sempre mais violentos do que os níveis muito baixos ou muito altos. Neste sentido, a evolução do fenômeno da violência parece seguir a forma de sino e não uma forma linear: ultrapassado certo limiar de desenvolvimento a violência emerge, voltando a cair novamente quando o país ingressa no grupo das nações desenvolvidas. Mesmo quando comparado com o grupo de países em desenvolvimento a violência brasileira chama a atenção, pois apresenta quase o dobro da taxa destes países, estimada em 12,7 por 100 mil. Muitos países em desenvolvimento estão localizados no mundo árabe ou no continente asiático, países onde a cultura e o sistema político e religioso constituem-se em fatores de inibição da violência. Tabela 2. Taxas de homicídios por regiões Regiões Homicídios por 100 mil N° de Países África Sub-Saariana 13,0 17 estados Árabes 1,7 12 Este da Ásia 5,5 4 Sudeste Asiático 5,6 9 Sul da Ásia 2,2 7 América Latina e Caribe 19,8 20 América do Norte 6,1 2 Europa Oriental 8,6 16 Europa Ocidental e do Sul 1,9 18 8,7 105 Fontes: United Nations Survey on Firearm Regulation / U.S Center for Disease Control / United Nations Surveys of Crime Trends and Operations of Criminal Justice System / International Crime Statistics. 18 Questões Atuais em Criminologia Quando separamos os países por regiões, percebem-se as enormes diferenças inter-regionais, com a América Latina sobressaindo-se como uma das áreas mais violentas do planeta, seguida pela África Sub- Saariana e pela Europa Oriental. Com quase 20 homicídios por 100 mil habitantes, a média latino-americana é bastante próxima da brasileira, o que sugere que não somos uma caso tão desviante de violência quando nos comparamos apenas com a média dos países da região. Analisando separadamente os países da região, o Brasil aparece como o quarto mais violento, superado apenas por Colômbia, Honduras e Jamaica. Nem mesmo países que passaram recentemente por guerras civis ou que convivem com a guerrilha política - como Venezuela, Peru e Nicarágua - apresentam taxas tão elevadas. Tendo em conta que o Brasil é o país mais populoso do grupo, em termos absolutos somos os líderes em mortes por homicídio. Sendo correta a estimativa de 24 homicídios por 100 mil, numa população de cerca de 154 milhões de habitantes em 1994, isto representa algo em torno de 37.000 assassinatos todos os anos. Vendo de outro modo, o Brasil concentraria nada menos que 38,5% de todos os homicídios ocorridos na América Latina e Caribe. Tabela 3. Taxas de homicídios por país Países Homicídios por 100 mil N.º de mortos (estimativa) Colômbia 78,44 27077 Honduras 63,58 3624 Jamaica 28,96 722 Brasil 24,10 37047 Venezuela 22,14 4826 Guiana 19,85 163 Nicarágua 19,02 837 Bahamas 18,98 52 México 17,58 16350 Paraguai 15,61 780 Panamá 13,97 360 Chile 11,04 1544 Trinidad Tobago 10,57 137 Equador 10,31 1156 Granada 7,78 7 Barbados 6,83 20 Costa Rica 5,72 175 Argentina 2,87 993 Peru 1,41 325 Fontes: United Nations Survey on Firearm Regulation / U.S Center for Disease Control / United Nations Surveys of Crime Trends and Operations of Criminal Justice System / International Crime Statistics. 19 Chamamos a atenção finalmente para o fato de que as médias nacionais encobrem diferenças internas elevadas. O problema da violência concentra-se principalmente nos grandes centros urbanos destes países: tomadas isoladamente, cidades como Rio de Janeiro (74,2:100 mil) ou São Paulo (44,3:100 mil) apresentam taxas muito mais elevadas. A taxa média brasileira cai para 24 porque as taxas nas cidades menores são bem mais baixas. A explicação para a violência generalizada na região é complexa e vai além da pobreza, como vimos. O passado "autoritário" do país tampouco é condição suficiente para explicar adequadamente a violência atual uma vez que ex-ditaduras como Peru (1963-1980), Equador (1968-1979) e Argentina (1976-1983) estão entre os países com violência mais baixa do continente. Uma combinação explosiva de modernização e urbanização aceleradas, desigualdade social, padrões de consumo de primeiro mundo, liberdade política e ausência de freios morais e religiosos parecem ser os maiores responsáveis pelo fenômeno da violência latino-americana, sem mencionar a produção de drogas e a economia estagnada em vários países. O Brasil, neste sentido, ao lado da Colômbia e do México, seria apenas um dos casos onde estas variáveis se apresentam de modo mais extremo. 20 Questões Atuais em Criminologia Os Custos da Violência Quantose gasta ou deixa de ganhar por causa do crime no Estado de São Paulo 4 Uma combinação explosiva de modernização e urbanização aceleradas, desigualdade social, padrões de consumo de primeiro mundo, liberdade política e ausência de freios morais e religiosos parecem ser os maiores responsáveis pelo fenômeno da violência crescente na América Latina, ao lado da produção de drogas e da economia estagnada em vários países. O Brasil, ao lado da Colômbia e do México, é um dos casos onde estas variáveis se apresentam de modo mais extremo e portanto onde a violência tem mais crescido nas últimas décadas. Este aumento da violência tem um impacto não desprezível sobre a economia do país. Neste artigo procuramos avaliar os custos da violência tomando como base o estado de São Paulo, onde a questão da criminalidade se apresenta de maneira aguda. A violência custa caro, tanto para o país como individualmente. Custa caro porque "segurança" é um bem desejado por todos, mas cada vez mais escasso. Para garantir este bem, executamos todos os dias dezenas de atos de precaução e adquirimos outros tantos bens no mercado: seguros de toda espécie, cães de guarda, quinquilharias eletrônicas, travas, grades e cadeados de todo tamanho e função. A preocupação com a segurança afeta nossas decisões de uma maneira que já é quase imperceptível e autômata para os moradores dos grandes centros urbanos como São Paulo e Rio: sem que o percebamos, deixamos de viajar para determinadas cidades, de morar em certas vizinhanças, de estacionar o carro nesta ou naquela rua, de comprar carros conversíveis ou morar em casas. Em função da violência reordenamos parte de nossa vida e de nossos negócios. Para o poder público, segurança converteu-se também num dos maiores itens orçamentários e em objeto de preocupação prioritária. Pesquisas de opinião pública revelam que, ao lado do 4 Diversas pessoas ajudaram a compilar os dados para este artigo, entre elas, principalmente, Cristina Barbosa, Flávia Piovesan, José Alves dos Reis, Rafael Rabinovici, Renato Sérgio de Lima e Tatiana Bicudo. Nenhum deles tem qualquer responsabilidade pela forma como os dados foram interpretados. 21 desemprego, a questão da violência aparece entre as maiores inquietações da população". Cada ano a população exige mais policiais, mais viaturas e armas, novos presídios, juízes, promotores, rádios comunicadores, computadores. O Estado vem investindo quantias significativas na área de Segurança Pública desde 1995. O efetivo da Polícia Militar aumentou em 12% desde janeiro de 1995, contando hoje com 82.021 policiais. Os pisos salariais para os soldados de 1° e 2º classes aumentaram em mais de 200% neste período. Por conta destes investimentos, os gastos com o pagamento do efetivo da Polícia Militar passaram de R$ 47 milhões em abril de 1995 para R$ 91,7 milhões em fevereiro de 1998, representando um aumento de 95%. A Polícia Civil, por sua vez, nomeou cerca de 5 mil novos policiais entre 95 e 98. Foram adquiridas 4.466 viaturas para aparelhar a polícia estadual, a um custo de R$ 94,9 milhões. Outros R$ 18,7 milhões de reais foram utilizados na compra de 14.849 coletes, 22.500 revólveres, 6.000 pistolas, 5.000 cacetetes, além de capacetes, escudos, munição e espingardas. Na área da administração penitenciária foram construídas 21 penitenciárias em regime fechado e 3 em regime semi-aberto, a um custo de R$ 230 milhões de reais, para retirar os presos condenados mantidos ilegalmente nas delegacias de polícia. Mas, apesar de todos estes investimentos, sem dúvida necessários, a criminalidade está aumentando no estado de São Paulo. Se pegarmos como período base o 3º trimestre de 1995 e como período de comparação o último trimestre de 1998, veremos que, com exceção do estupro - que está sujeito a bruscas variações em função da baixa notificação - todos os crimes monitorados pelas estatísticas da Secretaria de Segurança Pública aumentaram nos últimos 4 anos. Os ritmos de crescimento variam de crime para crime: o destaque fica por conta dos roubos de carro, que cresceram nada menos do que 123%. Os homicídios culposos (13,8%) e o tráfico de entorpecentes (15,2%), por outro lado, foram os crimes que menos cresceram de 1995 para cá. Todas as taxas de crescimento de crimes são maiores do que a taxa de crescimento populacional no período, que ficou em torno de 5,8%. O Índice de Criminalidade - medida resumo que indica a média ponderada de 4 crimes selecionados, com base na população - apresentou um aumento de 63% desde 1995. 22 Questões Atuais em Criminologia Tabela 1. Taxas de Criminalidade em São Paulo (Estado) Variação da Criminalidade - 1995 a 1998, no Estado de São Paulo 3º Trim. 1995 4ºTrim. 1998 Variação 1995-1998 Homicídio doloso 2302 2.953 28,28 Homicídio culposo 1128 1.284 13,83 Tentativa de homicídio 1496 2.347 56,89 Lesão corporal 57687 75.081 30,15 Latrocínio 101 148 46,53 Estupro 1153 1079 -6,42 Tráfico de entorpecentes 1911 2.202 15,23 Roubo 25559 52.017 103,52 Roubo de Veículo 9472 21.136 123,14 Furto 69218 98.884 42,86 Furto de Veículo 19787 28.309 43,07 População do Estado 33427929 35367254 5,80 hom.dol. Por 100 mil 6,89 8,38 21,74 Lesão corporal por 100 mil 172,57 213,15 23,51 roubo por 100 mil 76,46 147,67 93,14 furto por 100 mil 207,07 280,73 35,57 Índice de Criminalidade 1021,63 1664,13 62,89 Fontes: Fundação SEADE: População / Secretaria da Segurança Pública: dados de criminalidade Qual é o preço que a sociedade paga por este crescimento dos índices de criminalidade ? Estes investimentos tem se revelado compensadores para a sociedade ? Haveriam outras formas de investir estes mesmos recursos mais eficazmente ? Foi para responder estas perguntas que se criaram diferentes fórmulas e metodologias para estimar os custos da violência. Não há consenso sobre a melhor fórmula, o que se deve incluir ou deixar de fora dos cálculos, qual o peso de cada fator. Os custos podem ser classificados em preventivos e curativos, diretos e indiretos, perdas materiais e perdas humanas, tangíveis e intangíveis, econômicos e financeiros, custos para a sociedade ou para o cidadão, de curto ou de longo prazo, perdas pelo que se gasta ou pelo que se deixa de ganhar e assim por diante. A variedade de métodos só não é maior do que a variedade de fontes utilizadas: estatísticas oficiais de criminalidade, pesquisas de vitimização, orçamentos governamentais, tabelas de seguradoras, pesquisas de opinião pública, estimativas feitas por especialistas no setor público e privado e toda uma série de meios formais e informais que possam servir como base para o cálculo. 23 Antes que alguém comece a levar demasiado a sério os cálculos aqui apresentados, é preciso dizer que por trás da aparente sofisticação metodológica das estimativas dos custos do crime existe uma boa dose de "adivinhação". Trata-se, todavia, de adivinhação bem informada e assume-se aqui ser melhor trabalhar com elas do que com nada. Trata-se de ter alguma estimativa, por precária que seja, para auxiliar no processo decisório na esfera da segurança pública, uma orientação que ajude na hora de optar por alternativas, como investir na repressão ou prevenção do crime.5 Já existem algumas tentativas de mensuração de custos da violência feitas no Brasil. Um pesquisa feita pelo BID estimou que a violência custa 84 bilhões de dólares ao Brasil ou 10,5% do PIB nacional. O economista Ib Teixeira, da Fundação Getúlio Vargas, calcula em 60 bilhões o valor gasto ou perdido, ou 8% do PIB. Somente no município do Rio de Janeiro, segundo o ISER, a violência custou aos cidadãos cerca de 2 milhões de dólares, ou5% do PIB municipal de 1995. O problema é que estas estimativas não são comparáveis porque usam metodologias, unidades geográficas e anos diferentes. Nenhuma é necessariamente certa ou errada. Para esta pesquisa, optamos por dividir os gastos em 3 diferentes categorias: 1) gastos feitos pelo cidadão indiretamente, através de impostos e que são alocados direta ou indiretamente no combate ao crime; 2) gastos feitos diretamente pelos indivíduos ou empresas para a compra do bem "segurança" ou perda de patrimônio direta em função do crime e 3) valores que deixam de ser produzidos ou ganhos pela sociedade em razão do medo da violência / outros custos intangíveis. 6 1) gastos feitos pelo cidadão indiretamente através de impostos e que são alocados no combate ao crime Tabela 2 . Gastos Indiretos com Violência Item Valor Porcent 5 Para tomar um exemplo concreto: o governo, através das Secretarias da Administração Penitenciária e do Trabalho, iniciou em 1997 um programa de prestação de serviços à comunidade, para aqueles que foram condenados a cumprir penas alternativas. Nesta modalidade de pena um prestador custa ao estado cerca de 50 reais mensais e trabalha gratuitamente 8 horas semanais. Se estivesse cumprindo pena em regime fechado, custaria R$ 620 mensais aos cofres públicos. 6 A explicação detalhada das fontes e cálculos não cabem no limite deste artigo, mas podem ser obtidas no Ilanud, onde a pesquisa foi desenvolvida. 24 Questões Atuais em Criminologia . Secretaria da Segurança Pública - 1998 3.585.094.695 85,4 Secretaria da Administração Penitenciária - 1998 471.007.971 11,1 Tribunal de Alçada Criminal - 1998 72.874.153 1,7 Internação de crianças e adolescentes infratores - 1988 38.390.760 0,9 Tribunal de Justiça Militar -1998 14.617.586 0,3 Ministério Público - 1998 (somente gastos com salários, na capital) 5.529.600 0,1 Procuradoria Geral do Estado - 1998. (somente gastos em salários, na capital) 3.060.000 0,05 Guarda Civil Metropolitana (somente gastos com salários, na capital) 2.700.000 0,06 Pensões pagas para famílias de policiais, mortos em serviço. (Dados da Resolução 168, publicados no Diário Oficial de 21-5- 98) 2.175.800 0,05 Internações hospitalares na rede pública : somente gastos com "homicídios e lesões provocadas intencionalmente por outras pessoas / outras violências" (DATASUS, 1997) 1.310.595 0,03 Total 4.196.761.160 100 Fontes: Diário Oficial / DATASUS / Serviço de Relações Públicas do Comando da Guarda Civil / COSESP Os gastos dos órgãos diretamente relacionados com o combate da criminalidade, como Secretarias de Segurança Pública e Administração Penitenciária, foram retirados do orçamento estadual de 1998. Do orçamento da Secretaria de Segurança Pública deduzimos apenas os valores relativos ao Corpo de Bombeiros, cujas atividades não dizem respeito ao controle do crime (exceto no caso de incêndios provocados intencionalmente). Para outros órgãos públicos que só dedicam parte de seu orçamento ao problema do crime, cálculos diferentes foram necessários. Assim, por exemplo, o valor das internações dos menores infratores não eqüivale aos gastos integrais da Secretaria de Assistência e Bem Estar mas é o resultado da multiplicação de 3.485 internos em junho de 1998, ao custo unitário de R 918,00 por mês. Para estimar os custos no Ministério Público averiguamos que, somente na Capital, existem 256 promotores de Justiça com atribuições criminais e tomamos como salário base, no início de carreira, o valor de 1.800 reais, tanto para promotores quanto para procuradores. O valor é sabidamente subestimado pois não leva em conta os promotores no interior, os gastos administrativos e os acréscimos salariais. O mesmo 25 é válido para a Procuradoria do Estado: somente parte do trabalho do órgão é despendido no trato de questões criminais. Na Capital atuam 105 procuradores na área criminal, além de 65 espalhados pelo interior. Somente foram levados em conta os gastos com salários, minimizando os custos efetivos do Ministério Público e da Procuradoria. Na ausência de informações precisas, ao calcular os custos da violência é preferível pecar por falta do que por excesso. Na Guarda Municipal de São Paulo, segundo o serviço de relações públicas do Comando da Guarda Civil, trabalham 4.500 policiais, com vencimentos brutos, na categoria base, em torno de 600 reais mensais. O custo aqui é novamente subestimado pois só leva em conta os gastos com salários e no município de São Paulo. Além dos salários dos operadores do direito - policiais, carcereiros, juízes, promotores e procuradores - é preciso levar em conta o pagamento de seguros e indenizações públicas às vítimas da violência. Desde 1998, as famílias dos policiais que morrem em serviço recebem como indenização, em média, R$ 50.600 reais. Em 1997 morreram em serviço 40 policiais militares e 3 policiais civis e é sobre esta base que computamos os gastos com seguro apresentados na tabela. Desde junho de 1996, quando este tipo de seguro foi criado, 151 famílias receberam o equivalente a 7 milhões e 200 mil em indenizações da Cosesp, Companhia de Seguros do Estado. O INSS, por sua vez, pagou em São Paulo 449.933 pensões por invalidez e 908.880 pensões por morte em 1996, mas não soubemos avaliar quantos dos mortos por homicídio e inválidos no Estado receberam tais pensões, de modo que optamos por não incluir os gastos do INSS no cômputo. (INSS, 1996). Como a maior parte dos mortos pela violência são jovens, sub empregados e não raramente desempregados, é possível que boa parte das famílias não receba indenizações do INSS. Quanto aos gastos ambulatoriais com as vítimas da violência, (93% dos homicídios em São Paulo são cometidos por armas de fogo) finalmente, estimamos que São Paulo representa 46,4% dos gastos nacionais no quesito "internações hospitalares por violência na rede pública", tomando como base a proporção de gastos no Estado com atendimento específico em urgência e emergência. Faltaria acrescentar ainda os gastos em São Paulo da Polícia Federal, para completarmos o quadro, mas não foi possível obter tais informações. O efetivo da polícia federal é pequeno se comparado ao efetivos das polícias estaduais, de modo que o resultado final não está demasiado distante da realidade. 26 Questões Atuais em Criminologia Os gastos neste primeiro grupo de custos, que chamamos de indiretos, são sabidamente subestimados, mas mesmo assim perfazem 4 bilhões e 200 milhões de reais, com o orçamento da Secretaria de Segurança Pública, como era previsível, representando o maior dispêndio proporcional nesta categoria. 2) gastos feitos diretamente pelos indivíduos ou empresas para a compra do bem "segurança" ou perda de patrimônio direta em função do crime Tabela 3. Gastos e perdas diretas com Violência Item Valor Porcent . Segurança Privada: 400.000 guardas no Estado (Sesvesp, somente salários) 2.880.000.000 60,6 Veículos furtados 839.772.000 17,6 Seguros: automóveis 495.681.600 10,4 Veículos roubados 340.404.000 7,1 Cargas roubadas (DIVECAR, SETECESP, 1998) 116.472.180 2,4 Perda de patrimônio em arrombamentos residenciais (excluindo o custo dos danos, somente Região Metropolitana de São Paulo) 41.337.021 0,8 Perda direta de bancos com roubos em agências (DEPATRI, 1998) 30.000.000 0,6 Outros roubos e furtos, excluindo veículos, bancos e cargas 10.437.750 0,2 Sepultamento das vítimas de homicídio 2.496.800 0,05 Equipamentos de segurança para carros 692.300 0,01 Total 4.757.293.651 100 Fontes: SESVESP / Secretaria de Segurança Pública / DIVECAR / SETECESP / DEPATRI/ Serviço Funerário Municipal / ILANUD Os valores estimados para este segundo grupo de itens somam 4 bilhões e 757 milhões de reais anuais entre gastos e perdas diretas da população. São quantias em dinheiro ou bens que mudaram de mãos, no caso dos crimes consumados, passando do setor legal para o ilegal da sociedade. Quantias, nos caso da prevenção, que os indivíduos certamente prefeririam estar investindo em outras coisas, como lazer, ao invés de usá-las para se precaver de perigos em potencial. Deste grupo, o item de maior peso é o investimento em vigilância privada, um dos únicos setores do país para o qual não existe crise. Depois dos gastos em vigilância privada aparecem em importância os gastos relativos a veículos: somados, os custos com roubos, furtos, seguros, equipamentos de proteção de veículos 27 representam no final um rombo considerável no orçamento dos indivíduos. Poderíamos agregar ainda a este grupo de custos os seguintes itens: • Custos e honorários advogatícios. • Perdas com os "crimes de colarinho branco". • Horas de trabalho perdidos: convalescência física e psicológica, registro de queixa policial; testemunho em processos criminais, etc. • Quebra de produtividade de funcionários vítimas de violência. • Tratamento médico e psicológico das vítimas na rede privada. • Investimento em equipamentos para segurança própria, empresarial ou residencial, como armas, grades, câmeras, alarmes, etc. Infelizmente, com relação a estes itens, só dispomos de alguns elementos para base de cálculo, de modo que não foram incluídos neste levantamento. Entre estes elementos, valeria mencionar: quanto aos custos advogatícios, o site da OAB na internet divulga uma pesquisa feita em escritórios de advocacia, com os seguintes preços mínimos: na fase do Inquérito Policial - diligências R$300; acompanhamento R$500 ; instauração R$700. Na fase da Ação Penal: defesa R$1.000; defesa em júri R$2.000; habeas corpus R$500, etc. Os custos com advogados aparecem geralmente no caso de crimes cometidos entre pessoas que se conhecem, ou nos casos de crimes financeiros ou de "colarinho branco", raramente aparecendo no caso dos crimes de rua, como roubos e assaltos. Note-se também que deixamos de fora - e todos os cálculos de custos da violência o fazem - as perdas para a sociedade com os crimes de "colarinho branco", como corrupção, falências fraudulentas, prevaricação, golpes na praça em geral. Em geral, as pesquisas sobre custos da violência preocupam-se exclusivamente com os crimes violentos, ou crimes de rua, deixando de lado os crimes não violentos cometidos pela classe média. Um só destes escândalos financeiros, porém, provocados por criminosos de classe média, pode implicar em prejuízos equivalentes a milhares de roubos e furtos, cometidos por ladrões pobres. Com relação a quebra de produtividade no trabalho das vítimas da violência, segundo a Brasiliano e Associados, o rendimento cai de 20% a 35% nos dias posteriores ao crime. É preciso computar também as horas de trabalho perdidos pela vítima com a convalescência física e 28 Questões Atuais em Criminologia psicológica, registro de queixa policial, testemunho em processos criminais e outras atividades envolvidas na fase judicial. Finalmente, como relação aos investimentos em equipamentos de segurança residencial feitos pela população, sabemos, através de pesquisas de vitimização feitas na capital, que 8% das residências têm arma de fogo em casa; 27% fechaduras especiais para portas; 31% cão de guarda; 32% janelas e portas gradeadas e 36% grades altas. (Ilanud, 1997). Este tipo de investimento se faz uma só vez, sendo difícil calcular o custo em base anual. Especificamente em relação aos automóveis, sabemos que 28% dos carros da capital têm alarme e 23% trava de direção ou câmbio, e que 27% têm algum mecanismo de corte de combustível ou corrente elétrica. (Ilanud, 1997). Uma vez que a frota no Estado era de 7.937.980 veículos em 1997, isto significa que foram comprados para a proteção da frota atual cerca de 2.222.634 alarmes, 2.143.254 corta correntes ou de combustível e 1.825.735 travas. Os valores mencionados na tabela acima com "equipamentos de segurança para carros" foram estimados com base no incremento anual da frota. 3) valores que deixam de ser produzidos ou ganhos pela sociedade em razão do medo da violência / outros custos intangíveis Este último grupo de custos é o mais difícil de ser estimado, seja pela precariedade de dados, seja pela subjetividade de algumas categorias. Em termos relativos, sabe-se que a maior perda é representada pelas mortes prematuras e incapacitações permanentes. As vítimas da violência são em geral jovens enquanto a expectativa de vida no Estado é de 65 anos para os homens e 73 para as mulheres. São milhares de anos de vida potencialmente produtiva, de 11.000 pessoas mortas todos os anos, que deixam de ser aproveitadas. O ISER avalia que tais custos econômicos por morte prematura e incapacidade representam de 83% a 91% dos custos da violência. Este e outros custos não estão sendo computados aqui, pois representam perdas potenciais. Apenas para dar uma dimensão do quanto se perde com mortes prematuras no Estado, podemos fazer um cálculo aproximado, levando em conta que 93% das vítimas são homens e os seguintes valores: 29 Tabela 4. Anos de vida perdidos por morte prematura Faixa Etária Homens Mulheres Anos perdidos Homens Anos Perdidos Mulheres 46 a 100 (6,9) 708 53 - - 39 a 45 (8,2) 840 63 16800 1764 36 a 38 (4,4) 458 34 12366 1190 33 a 35 (7,5) 773 58 23190 2204 30 a 32 (11,0) 1131 85 37323 3485 27 a 29 (11,0) 1131 85 40716 3740 24 a 26 (14,3) 1469 110 57291 5170 21 a 23 (14,2) 1452 109 60984 5450 18 a 20 (14,2) 1452 109 65340 5777 16-17 (5,7) 590 44 28230 2464 0 a 15 (2,0) 212 16 10600 928 N = 11.000 10.230 770 352.840 32.172 Fonte: DHPP / SEADE - Porcentagens por sexo e idade baseadas nas 4145 vítimas de homicídios analisados pelo DHPP em 1997 e extrapoladas para as cerca de 11.000 vítimas no Estado. Os limites máximos de cada faixa foram utilizados para calcular a diferença entre a idade da morte e a expectativa de vida para cada sexo. Apenas para efeito de cálculo, se supusermos que estas pessoas ganhavam pelo menos um salário mínimo mensal (R$ 1.440 por ano) e que continuariam a ganhar o mesmo pelo resto de suas vidas, chegamos a uma perda por mortes prematuras no valor de R$ 508.089.600 reais para os homens e de R$ 46.327.680 reais para as mulheres, totalizando R$ 554.417.280 reais, somente com as pessoas mortas por homicídio num único ano. Entre outros custos intangíveis por vezes computados em estudos sobre custos da violência valeria a pena mencionar: • Turismo nacional e internacional desviado para outros locais menos violentos. • Oportunidades empresariais perdidas: fábricas e lojas instaladas em outros locais. • Perda de qualidade de vida: estresse, medo. • Mudanças de estilo de vida: habitantes da cidade saem menos de casa, consomem menos em bares, cinemas, restaurantes, etc. 30 Questões Atuais em Criminologia Alunos que deixam de freqüentar cursos noturnos e empregados de trabalhar em turnos noturnos. Estes valores são os mais difíceis de estimar pois são quase sempre hipotéticos. Oferecemos aqui apenas alguns indícios e variáveis que deveriam ser levados em conta caso uma pesquisa completa conseguisse estimá-los: em relação ao turismo, o economista Ib Teixeira, da FGV do Rio, calcula que o Brasil deixou de ganhar 20 bilhões de dólares entre 1988 e 1998, ou cerca de 2 bilhões de dólares por ano. Uma vez que se estima quecada 1000 dólares gastos por turistas no país gera de 2 a 3 empregos, o problema do desemprego no Brasil praticamente desapareceria nas regiões turísticas se este fluxo de visitantes fosse canalizado para cá. Sobre os aspectos subjetivos da violência e seus efeitos comportamentais, desnecessário apontar o quanto nossa rotina é alterada: somente a título de exemplificação, a pesquisa de vitimização do Ilanud levantou que, na Capital, 45% dos habitantes costuma evitar certas ruas, locais ou pessoas por questão de segurança; 49% sentem-se um pouco ou muito inseguros ao andar na vizinhança depois que fica escuro; 35% acha muito provável ou provável ser vítima de tentativa de arrombamento nos próximos 12 meses. Com relação a mudança de hábitos, 52% da população da capital costuma pedir a vizinho ou vigia para olhar a casa quando sai (Ilanud, 1997). Conclusões É preciso ficar atento para o fato de que estes gastos também implicam numa redução da criminalidade e que porque eles são feitos um grande número de crimes deixa de ocorrer . Nem todas estas rubricas - especialmente os gastos com polícia - podem ser considerados como "custos", se pensarmos no seu papel preventivo. Se os gastos feitos em segurança ajudam a prevenir crimes que de outro modo ocorreriam, trata-se na verdade de um bom investimento; se não ajudam, ou não tanto quanto deveriam, a questão muda de figura. Assim como no caso dos carros ou cargas roubadas descontamos os recuperados, um cálculo ideal deveria levar em conta - e subtrair dos gastos - estes crimes prevenidos. O problema é que este cálculo é impossível de ser feito, superestimando de certo modo os custos da violência. Tenha-se em mente também que, na maioria dos casos, dinheiro e bens roubados mudam de mãos, mas não desaparecem simplesmente da economia: o dinheiro gasto em salários 31 de policiais e vigilantes, por exemplo, entra de novo na economia quando estes consomem outros bens. O PIB nominal do estado de São Paulo foi de 241,58 bilhões de dólares ou de 292, 31 bilhões de reais, em valores de 1997, segundo o SEADE. Os custos da violência aqui levantados, em caráter provisório, atingem a cifra de 8 bilhões e 96 milhões de reais, ou cerca de 3% do PIB estadual. É difícil julgar se esta é uma proporção elevada ou não em comparação com outros estados ou países, mesmo porque não existe comparabilidade metodológica deste estudo com os demais. Mas é sem dúvida um gasto elevado quando comparamos com o que é investido em outros setores: representa, por exemplo, 2,7 vezes o gasto feito com a Secretaria da Saúde e 21,7 vezes o gasto com a Secretaria de Assistência e Desenvolvimento Social em 1998. Assim como em outros serviços prestados pelo Estado na área da educação e da saúde, também na área da segurança acaba ocorrendo uma espécie de "dupla-tributação" para aqueles que não querem depender somente dos serviços públicos. Tributação dupla porque, apesar de pagar através de impostos o custeio de escolas, hospitais e segurança pública, o cidadão que desejar ensino de boa qualidade, atendimento médico adequado ou melhor segurança, vai ter que pagar caro no mercado por estes produtos. Do mesmo modo como, em função da perda de qualidade, o ensino e a saúde públicos foram privatizados no país, a deterioração na qualidade do serviço de segurança pública está levando à privatização do setor. Escolas, hospitais e policiamento públicos serão, cada vez mais, serviços prestados a quem não pode pagar pelos serviços privados. Esta tendência deve ser ainda mais acelerada na área de segurança pois, diferentemente das demais, freqüentemente são as mesmas pessoas que atuam na segurança público e na privada: como trabalham com base em escalas, os policiais - treinados com recursos públicos - são aproveitados pelas empresas de segurança privada, boa parte das quais, diga-se de passagem, são de propriedade de policiais de altas patentes nas polícias Civil e Militar. Este custo da violência até agora tem sido "repartido" pelo Estado (cuja fonte são os impostos pagos pela sociedade), pelas vítimas da violência e por aquelas empresas ou indivíduos que pretendem diminuir seus riscos de vitimização. Existem, por outro lado, dois ramos industriais específicos que tem parcela indireta de responsabilidade pelos elevados custos da violência mas que não 32 Questões Atuais em Criminologia contribuem de maneira proporcional para custeá-los: estou me referindo especificamente à industria de armas e de bebidas alcoólicas. Obviamente não é a arma ou a bebida que causam isoladamente a violência, assim como não é o cigarro o único responsável pelo câncer em fumantes. Não há como negar, todavia, o impacto da disponibilidade de armas e do consumo de álcool sobre a criminalidade e seus custos, assim como não se pode mais negligenciar os efeitos indiretos do fumo sobre a incidência de câncer ou problemas cardíacos na população. Pesquisa realizada pelas Nações Unidas em 1995 mostrou que no Brasil as armas de fogo são utilizadas em nada menos que 88% dos homicídios, colocando-nos como o país com maior proporção de homicídios por armas de fogo em todo o mundo. Os homicídios por armas de fogo transformaram-se, em outras palavras, num problema de saúde pública. No Rio de Janeiro, os médicos plantonistas já recebem treinamento dados aos médicos que cuidam de vítimas de guerras, em virtude na quantidade e qualidade dos ferimentos. Nos Estados Unidos, a indústria do fumo reconheceu sua parcela de culpa por uma série de doenças e está entrando em acordo com o governo para pagar parte dos gastos na área de saúde que o Estado tem por causa do cigarro. Como contrapartida, não seriam aceitas ações individuais por danos contra as indústrias ligadas ao fumo. Acordos semelhantes estão sendo estudados em algumas comunidades com relação aos fabricantes de armas. O princípio invocado é o mesmo: o ônus com o tratamento das vítimas da violência não deve caber apenas ao Estado ou as vítimas. Se o álcool e as armas de fogo tem parcela de responsabilidade pela violência e mesmo lucram com ela - como é o caso da indústria de armas - eles deveriam arcar de alguma forma com os seus custos. A título de conclusão deste artigo, gostaria de reafirmar a precariedade dos dados aqui apresentados e de lembrar que a cifra de 3% do PIB é uma estimativa conservadora para o custo da violência em São Paulo, uma vez que deixa de computar diversos itens importantes. E é acima de tudo uma estimativa que não leva em conta um valor incalculável, de uma bem que não tem preço: o valor da vida das vítimas da violência e suas famílias; da dor e do sofrimento humano que a violência representa. 33 A expansão da segurança privada no Brasil: algumas implicações teóricas e práticas. Teoricamente, segundo a clássica definição de Max Weber, o Estado é o detentor do monopólio da violência legítima dentro de um determinado território. Desde que os cidadãos abdicaram de seus "direitos naturais" em favor do Estado, somente ele tem o poder e o dever de zelar pela segurança externa e interna, policiando, julgando e punindo os infratores da lei. Julgar e punir criminosos ainda é monopólio estatal em quase todos os países civilizados, não obstante a freqüência das tentativas populares de fazer "justiça com as próprias mãos", quando avaliam que o estado atua ineficazmente. Mas linchamentos, vigilantismo, violência policial e esquadrões da morte, felizmente, são atividades ilegais em qualquer canto: existem na prática, contando não raramente com a aprovação popular quando as vítimas são "criminosos", mas ainda são competência exclusiva do poder público. O poder de polícia, por outro lado, deixou há várias décadas de ser um tipo de atividade monopolizadapelo Estado. Neste setor, como assinala Bayley, (Bayley, 1994) ocorreu uma erosão do monopólio público, provocada tanto pelas iniciativas comunitárias de autodefesa como principalmente pela expansão das atividades da indústria da segurança. Hoje a função de policiamento é repartida entre o Estado e a sociedade, e esta última vem adquirindo cada vez maior proeminência. Em diversos países do mundo, desde os anos 70, o número de vigilantes privados superou em quantidade o de policiais treinados e pagos pelo Estado: nos Estados Unidos existiam, em 1990, cerca de três vezes mais seguranças particulares (2 milhões) do que policias, estimados em 650 mil. A projeção norte-americana é de que nos anos 90 os agentes de segurança particulares cresçam anualmente ao dobro da taxa dos policiais. Na Inglaterra e no Canadá a situação é a mesma: existem duas vezes mais seguranças particulares do que policiais e a taxa de crescimento do setor privado é mais rápida do que do setor público. Os dados existentes para São Paulo revelam uma tendência parecida. Em todo estado existem cerca de 400 mil vigilantes privados, em comparação com 120 mil policiais civis e militares, numa proporção de 3,3:1. 34 Questões Atuais em Criminologia As causas desta erosão do monopólio estatal sobre o policiamento ? Aumento do crime, do sentimento de insegurança e o reconhecimento de que o poder público - se pode prestar um serviço de segurança básico, não atende às necessidades específicas de segurança demandadas pelo mercado. Este mesmo processo, é preciso lembrar, ocorreu em outros setores típicos da atividade estatal, como saúde e educação. Em países, como o Brasil, onde os serviços médicos e educacionais públicos são precários, aqueles que podem procuram comprar estes serviços no setor privado. Com a exceção de algumas "ilhas de excelência", a qualidade da segurança, educação e saúde públicas no Brasil deixa muito a desejar, criando neste vácuo a oportunidade para lucros elevados no setor privado: as indústrias de saúde, educação e segurança privadas, não por acaso, estão entre os ramos mais lucrativos nas últimas décadas7. Ao pobre nada mais resta do que lutar pelas vagas nas escolas do município ou do estado, mofar na fila dos hospitais públicos e depender da escassa proteção policial, que simplesmente não pode estar em todos os lugares, o tempo todo. A classe média, em compensação, pode ser dar ao luxo de colocar seus filhos na escola particular, internar-se na rede privada de saúde e contratar porteiros e vigilantes para cuidarem de seus bens, mas na verdade acaba sendo duplamente tributada: já paga e caro, através dos impostos, por saúde, educação e segurança, mas quase nunca pode utilizá-los, sendo obrigada a comprar estes bens e serviços no mercado quando precisa de um atendimento de qualidade. O problema não é só o da qualidade do atendimento. Algumas empresas ou setores da sociedade desejam ter segurança 24 horas por dia e o estado não tem a obrigação nem o dever de atendê-los, pois isto significaria a privatização, em benefício de alguns, de um serviço que deve ser de todos. É o caso, por exemplo, dos espaços privados freqüentados por grande número de pessoas, como shopping centers , clubes, bancos, edifícios de escritórios, condomínios, etc. Não é possível nem desejável colocar um policial em cada um destes locais e por isso eles são quase que exclusivamente policiados por seguranças particulares, ainda que a jurisdição legal seja da polícia. 7 0 salário médio de um vigilante foi estimado em R 600,00 mensais. O setor de vigilância privada movimentou 1 bilhão de reais no Estado de São Paulo, entre abril de 1996 e maio de 1997 (Sesvesp). Cerca de 29% da população da capital diz ter vigia ou guarda de segurança para olhar a casa (Ilanud, 1997) 35 A indústria da segurança prospera no Brasil, como em outros grandes centros urbanos, e a priori não há qualquer problema nisto. Existem todavia algumas características específicas na prestação deste serviço no Brasil que tornam a situação algo problemática. Em primeiro lugar, uma simbiose por vezes suspeita entre o setor público e o privado na área da segurança. Ainda que não seja legalmente permitido, é público e notório que muitos dos proprietários de empresas privadas de segurança pertencem aos quadros superiores das polícias: geralmente delegados de polícia civil ou oficiais superiores da polícia militar, embora as empresas estejam legalmente em nome de familiares, como esposas e filhos. O mesmo ocorre com relação aos empregados, geralmente policiais civis ou militares. Numa tese sobre a caracterização do policial militar no Estado de São Paulo, Álvaro da Silva Gullo (Gullo, 1992)encontra indícios claros desta simbiose: segundo dados levantados na ocasião, 33% dos policiais tinha algum trabalho remunerado fora da PM e a proporção era tanto maior quanto menor o posto ou graduação. Dos que tinham algum outro trabalho remunerado, cerca de 1% eram empregadores (obviamente os estratos superiores), 20% trabalhavam como autônomos e 12% como empregados assalariados. Este "bico", como revelou a pesquisa, garantia rendimentos iguais ou mesmo superiores aos auferidos na atividade policial. Em alguns casos a atividade policial se torna secundária em detrimento do bico. Não se sabe ao certo quantos destes 33% que possuem outro trabalho atuam na área de segurança privada, mas estima-se que seja a maior parte. A primeira vista não há problema em que um policial de rua, que trabalha com base numa escala, tenha outra atividade e que esta atividade se dê também na área da segurança. Segurança é o assunto que ele conhece, tem afinidade e para o qual foi treinado. Além disso, professores da rede pública também dão aulas particulares e médicos do serviço público mantém consultórios particulares, para ficarmos apenas nestas duas áreas básicas. A situação é mais complicada para os policiais que não estão na rua e portanto não trabalham com escalas, pois nestes casos só é possível exercer uma atividade paralela em detrimento do serviço público. Outra questão complicada: os policiais são treinados durante meses pelo Estado - defesa pessoal, tiro, legislação, investigação, etc - com o dinheiro público, e todo este treinamento é aproveitado pelas empresas particulares que utilizam esta mão-de-obra, sem que tenham que pagar nada por isso. Se, por um lado, isto significa uma qualidade superior no serviço de vigilância privada, por outro lado representa uma apropriação privada de um 36 Questões Atuais em Criminologia "bem" público. Há o problema do stress: os policiais, ao invés de estarem repousando de uma atividade estressante, estão na rua exercendo mais uma vez uma atividade perigosa, de modo que voltam ao trabalho tão ou mais exaustos que antes, prejudicando o trabalho policial. Existe também o problema das perversões, que são casos isolados, mas que levantam sérias dúvidas sobre a compatibilidade entre prestação pública e privada dos serviços de segurança: casos de policiais que deixam de policiar determinadas áreas da cidade para se aproveitar da insegurança e oferecer proteção particular; uso de armamento, viaturas e outros equipamentos públicos pelos policiais, durante a atividade particular; extorsão pura e simples de dinheiro de comerciantes em troca de "proteção"; prestação de serviços de segurança a pessoas envolvidas em atividades ilegais, como "banqueiros do bicho"; uso de "informações privilegiadas", como dados sobre criminalidade e operações policiais, para fins privados, etc. A solução para o problema da simbiose suspeita está talvez na oficialização do bico, mais do que na sua proibição, que é inútil, uma vez que os baixos salários levam os policiais
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