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Referenciais da Filosofia Africana Em busca da intersubjectivação (José P Castiano) (z-lib org)

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REFERENCIAIS 
DA FILOSOFIA
AFRICANA:
EM BUSCA DA
INTERSUBJECTIVAÇÃO
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REFERENCIAIS 
DA FILOSOFIA
AFRICANA:
EM BUSCA DA
INTERSUBJECTIVAÇÃO
José P. Castiano
prefácio de
Rogério J. Uthui
referenciais_flosofia_africana_p1a256:Layout 1 10/07/13 16:52 Page 5
Colecção Horizonte da Palavra
	F i c h a 	 t é c n i c a
	 Título:			REFERENCIAIS	DA	FILOSOFIA	AFRICANA:	
	 	 EM	BUSCA	DA	INTERSUBJECTIVAÇÃO
	 Autor:		José	P.	Castiano
	 Revisão:		Hipólito	Segulane,	José	Tomo,	Nilza,	Gerson	Muchevo
	 Tiragem:		1500	exemplares
	 	 1ª	edição,	Agosto	2010
	 Capa:		Publifix,	Lda.
	 Foto	da	capa:	 José	P.	Castiano
	 Paginação:		Publifix,	Lda.
	 Impressão:		Kadimah	-	Cape	Town
	 Registo:		6423/RLINLD/2010
	 ISBN:		9789024796526
	
	 	 Sociedade	Editorial	Ndjira,	Lda.
	 	 Uma	editora	do	grupo	Leya
	 	 Av.	Julius	Nyerere	nº	46,	r/c.,	Maputo
	 	 Email:	editorandjira@leya.com
	 	 www.editora-ndjira.blogspot.com
	 	 www.leya.com
Esta obra foi publicada pela UDEBA,
Universidade de Desenvolvimento da Educação Básica na Província de Gaza, Moçambique.
Índice
Prefácio (por Rogério José Uthui) . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 13
Parte I
Objectivação e Subjectivação . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 25
Parte II
Referenciais de Objectivação . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 45
Referencial I: As Etnociências . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 50
Referencial II: A Etnofilosofia . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 64
A Ontologia da «Força Vital» . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 66
Filosofia por trás da Religião . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 80
A Crítica . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 94
A Crítica Radical . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 106
Crítica da «Crítica» . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 115
Parte III
Referenciais de Subjectivação . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 121
Referencial III: A Afrocentricidade . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 124
Referencial IV: O Ubuntuismo . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 147
Da Descolagem Conceptual à Descolonização . . . . . . . . . . . . . . . . . 171
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Parte IV
Referenciais de Intersubjectivação . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 187
Referencial V: A Liberdade . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 192
Referencial VI: A Interculturalidade . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . . 220
A Construção de Espaços de Intersubjectivação . . . . . . . . . . . . 231
Universidade como Espaço de Intersubjectivação . . . . . . . . . . . . . . . 243
8 Filosofia Africana: Em Busca da Intersubjectivação
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Devo profundo agradecimento a muitas pessoas que deram suas
contribuições materiais e espirituais que, no seu todo, tornaram a pre-
sente obra possível. Queeneth Mkabela chamou a minha atenção para
o afrocentricidade e o ubuntuismo como referenciais teóricos e práti-
cos ensinando-me a celebrar o espírito das coisas africanas. O reitor
Rogério Uthui, que tem uma impressionante predisposição para um
bom debate, tomou os destinos da nossa Universidade Pedagógica
declarando que quer fazer dela, uma das melhores em África. Com
Severino Ngoenha e Filimone Meigos fiz longos passeios peripatéti-
cos na linda marginal de Maputo e demonstraram ambos que uma
amizade pessoal pode ser também edificante para a academia. Devo às
colegas Felizmina Mathombe, «dona» Alexandrina, Valéria, Tânia,
Conceição, dona Arlinda, Khensani, Celeste, Sr. Fernando, Sr. Carlos e
Sr. Bernardo muita cumplicidade, reconfortante paciência e com-
preensão silenciosa sempre que tive de «sumir» para reflexões e leitu-
ras (recordam-se dessas ocasiões?). As colegas da DC, Amélia Lemos
e Paula Cruz, foram pacientes e cúmplices dos meus sumiços e, em
silêncio, via nelas um olhar benévolo e profundamente reconfortante.
A delegação da UP-Montepuez proporcionou uma semana de refle-
xão naquelas maravilhosas terras quando me convidou para uma
palestra sobre Diálogo entre Culturas; pois, foi lá onde escrevi as pági-
nas derradeiras deste livro. As minhas irmãs, os meus irmãos e fami-
liares Belinha, Genito, «tia» Paulina, Sandra, Florêncio, Elsa, Simão,
Isabel, Manuel, Dó, Agostinho e outros proporcionaram, cada um
deles e sempre que nos encontrámos, momentos agradáveis de refle-
xão sobre aspectos culturais e políticos; as suas opiniões sobre esses
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assuntos iluminaram mais do que poderão imaginar algumas das
ideias defendidas neste livro. Os meus filhos Jubel, Zildo e Ivandro
estiveram sempre presentes em cada parágrafo que escrevia; na
 verdade, enquanto escrevia, imaginava a tentar explicar-lhes cada
parágrafo. Agradeço à Nilza, ao Tomo, ao Sengulane e ao Gerson por
terem-se prontificado a rever o manuscrito e por o terem feito de
forma muito responsável.
Os meus pais deram-me o prazer e a responsabilidade de nascer
nesta maravilhosa África, continente do futuro.
Não teria começado um livro com este tema sem aqueles inciden-
tes que, embora curtos e breves, fazem-nos aceitar o desafio que os
mesmos nos colocam. É este o caso de uma pergunta disparada por
Hildizina Dias (a «caçadora de paradigmas», como eu em silêncio a
chamo) que, na verdade, me estimulou a pensar durante anos sobre o
assunto que acabei por responder neste livro e em alguns artigos.
Dizem que há paradigmas científicos em África ou paradigmas afri canos —
disse ela um dia olhando atentamente para mim — Não os vejo; onde
estarão? Engoli em seco porque não tinha resposta, pelo menos naquela
altura, para lhe mostrar os «paradigmas» africanos no sentido de Kuhn,
que ela certamente empregara. Pensei ser óbvio ela não os puder «ver»,
porque não os há, pelo menos enquanto africanos ou da ciência africana.
Justamente naquele sentido eu não podia responder. Mas apressei logo
uma resposta para mim mesmo: «quem deve procurar estes paradigmas
somos nós mesmos, trata-se de uma responsabilidade intelectual
nossa!» O certo é que eu acabei não procurando «paradigmas» africa-
nos. Adoptei o termo «referenciais». Também acabei reduzindo as
minhas reflexões não para a Ciência Africana, mas confinando-as apenas
para a área da filosofia africana. Talvez esta pergunta da Hildizina este-
ja a pairar no seio de muitos dos nossos intelectuais…
Para responder a esta e outras questões que trato neste livro tive
o apoio de alguns colegas que me emprestaram seus livros quase que
«eternamente». Este é o caso de Paulus Gerdes e Emília Afonso,
ambos à frente do Centro de Estudos Moçambicanos e Etnociências
(CEMEC) da UP. Agradeço-lhes também os «debates» informais ilu-
minantes sobre algumas das posições minhas defendidas neste livro.
Um abraço carinhoso a todos os colegas da Universidade Pedagógica
pelo vosso maravilhoso espírito de luta e justiça social.
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É aos meus estudantes dos cursos de licenciatura e de mestrado
em ensino da filosofia (alguns deles são colegas no Departamento de
Filosofia) que devo a motivação para este livro. Algures em 2007,
convidaram-me para uma palestra onde, do nada (porque não era o
tema e nem vinha a propósito), comecei a defender a necessidade de,
nós docentes de diferentes cadeiras, difundirmos cientistas africanos
como um dos caminhospara desenvolver o gosto pelo pensamento e
ciência produzidos por africanos. Na referida palestra, eu apelara os
docentes universitários para que se esforçassem em incluir obras cien-
tíficas escritas por africanos em cada uma das cadeiras que leccionam.
O que diferenciava uma aula de filosofia, de sociologia, de matemática
ou de outra disciplina qualquer a decorrer em Moçambique e, diga-
mos, duma aula a decorrer numa capital europeia? — perguntava eu. 
E, como resposta, apelava: devemos começar por introduzir temas
sobre África e, o mais importante, autores africanos nos nossos planos
de estudos. Ou seja, temos de começar a introduzir no debate aca -
démico, nas nossas universidades, obras escritas por pensadores e
 cientistas africanos para dar a oportunidade ao nosso estudante de
con frontar-se com referenciais teóricos africanos, defendia eu. 
Depois da palestra, colegas docentes, sobretudo estudantes, cha-
maram-me à responsabilidade, dizendo mais ou menos assim: nós não
conhecemos africanos que escreveram sobre isto ou aquilo e nem
temos textos [em português] que podem suportar teoricamente as
nossas teses. Na impossibilidade de eu poder apresentar textos que
saciassem a fome que eles diziam ter em conhecer o pensamento filo-
sófico africano [em português], pensei em responder resumindo
alguns referenciais que achei serem suficientemente sistematizados. 
Este livro, portanto, pretende dar respostas não acabadas aos
estudantes de filosofia e aos colegas docentes que buscam referenciais
«africanos» e que, na base deles, pretendam embarcar num diálogo
intersubjectivo. É a minha contribuição no combate pela intersubjec-
tivação da filosofia profissional africana!
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Prefácio
Por Rogério José Uthui
«…Na verdade imaginava a tentar lhes explicar o sentido de
cada parágrafo…» refere o autor nos agradecimentos aos seus filhos,
quase a começar…ou a concluir. E aqui reside, talvez, o primeiro cho-
que com que nos deparamos ao ler o livro «Referenciais da Filosofia
Africana: Em Busca da Intersubjectivação» de José Paulino Cas tia no
(J. P. Castiano como gosta de ser chamado).
É que o livro é escrito na tentativa de «explicar» aos filhos
menores de idade, o significado de cada parágrafo e ao mesmo tempo,
tentar alinhar uma perspectiva teórica para a ciência do conhecimento
africano.
A exposição, desenrolada aqui com objectivo duplo, de atingir
tanto o estudante iniciado em filosofia (ou outras ciências), como os
«filósofos profissionais», obriga de certa maneira a seguir a metodo-
logia das conversas socráticas, com discurso de método de permeio
numa mistura com uma desorganização organizada sui generis, como a
ciência do caos.
A propósito do caos. Sou físico de formação e aceitei de bom
grado o desafio de prefaciar um livro não clássico, como é o de filoso-
fia africana, sem a avaliação prévia necessária, da confusão que iria
trazer, nem das dificuldades que iria enfrentar. Assim, e para diminuir
o caos, irei escalonar as minhas ideias em secções.
Aviso desde já que serei longo porque leigo na matéria.
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Do Autor
O perfil académico de José Castiano é o de um pensador irreve-
rente. Professor de História de sua formação básica, formado na
Faculdade de Educação — I, da Universidade Eduardo Mondlane
(presentemente temos o que se pode chamar Faculdade de Educação II),
cedo passou pelas escolas de distritos de Sofala, Manica, Inhambane,
etc. tendo tido oportunidade de olhar para aspectos essenciais do dia -
-a-dia das populações rurais de Moçambique.
O percurso académico posterior incluiu, a Licenciatura em Filo -
sofia (Universidade de Greifswald) e o Doutoramento em Sociologia
(Universidade de Hamburg), ambos com a especialidade na área de
educação.
A origem modesta talhou-lhe o carácter, a frequência da alta-
roda do conhecimento mundial aguçou-lhe o método e o contacto per-
manente com a Natureza e as populações rurais, disponibilizou-lhe o
objecto de estudo científico.
J.P. Castiano é desde 2005 Director Científico da Universidade
Pedagógica, onde contribui com opiniões importantes para o desen-
volvimento do ensino de pós-graduação e da investigação na insti -
tuição e no país. Talvez esta seja a sua maior contribuição para o
estabelecimento de conhecimento novo e para o protagonismo cientí-
fico que merecidamente detém.
Na reforma do currículo para o ensino básico de há 5 anos atrás,
o Ministério da Educação e Cultura introduziu uma inovação: inspi-
rando-se numa ideia geralmente aceite em todo o mundo e num
 discurso político mais virado para a auto-estima e valorização do na -
ci onal, decidiu-se que uma percentagem substancial do tempo lectivo
passaria a ser dedicada a aspectos de currículo local.
Se a ideia foi oportuna, já a sua implementação não tem sido con-
seguida sem muitos desafios. E os desafios residem, em primeiro
lugar, na definição de quão locais são os aspectos que, muitos profes-
sores empreendedores na matéria consideram prioritários entrarem
sob essa umbrella: os locais geográficos?, o clima?, a fauna?, os con-
tos?, os provérbios, as técnicas de cultivo?, o que mais?
Os desafios estendem-se ainda para as outras áreas ou conceitos,
ou ainda, permito-me o estrangeirismo, approaches: quem é a fonte
14 Filosofia Africana: Em Busca da Intersubjectivação
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principal desse conhecimento? Como se transmite? Para quê transmi-
ti-lo? E, talvez, a pergunta vencedora…O que é que o aluno, o(a)
comunidade/aldeia/país ganham em introduzir esse currículo local?
Acredito que os problemas de défice epistemológico nesta área
que o J.P. Castiano cedo abraçou para tema central de sua «investiga-
ção-para-a-vida» impeliram-no a procurar, viajar, conversar com
velhos, jovens e comunidades, criar redes de investigadores nacionais,
regionais e internacionais (incluindo fazer parte do corpo editorial da
INDILINGA, uma Revista de Sistemas de Conhecimentos Indígenas,
sediada na Universidade de Kwazulu Natal).
E, acredito, que, em tentando sistematizar os inúmeros «objec-
tos» de valor extraordinário para a sua colecção de currículo local,
incluindo a omnipresente gonadzololo — planta afrodisíaca muito
usada na zona central do país, Castiano esbarrou-se neste défice teóri-
co subjacente a toda a vontade política de trazer a perspectiva local
para o currículo global da escola primária (uma perspectiva glocal
como diz o próprio autor).
Assim, este livro aparece para dar cobro à falta de um quadro
teórico e, até, para legitimar a iniciativa pragmática de estudo de con-
ceitos e práticas locais no ensino.
Não nos admiremos, pois, se dentro de pouco tempo, nos apa -
recer um livro teórico-pedagógico sobre o currículo local citando
extensivamente o presente livro.
Será, definitivamente, uma grandiosa contribuição epistemológi-
ca para a filosofia do ensino ou, mesmo, para o ensino da filosofia.
Da Objectivação e Subjectivação
O autor recuou para os primórdios do Renascimento Africano,
com a luta pela abolição da escravatura no século XIX naquela que foi,
talvez, a maior nação esclavagista — os Estados Unidos da Amé rica
— para começar a análise da génese e, porque não, do genótipo da
primeira tentativa de inscrição de qualquer referencial africano no
livro humano do conhecimento da modernidade. 
Nesta análise J. P. Castiano fundamenta a necessidade que desde
sempre se sentiu de legitimar o discurso do escravo, neste caso um
Prefácio 15
referenciais_flosofia_africana_p1a256:Layout 1 10/07/13 16:52 Page 15
discurso abolicionista, através da subjectivação, ou seja, da colocação
do próprio escravo no centro do discurso, ou, melhor ainda, como o
sujeito do discurso. Pegando o para o exemplo concreto de Mo çam -
bique, o autor não esconde o seu desalento com a forma como se pro-
cessou o processode objectivação no nosso país. 
Analisando o trabalho do incontornável Padre Henri Junod, mis-
sionário suíço que viveu longos anos do final do século XIX e inícios
do século XX no sul de Moçambique, Castiano questiona i) o método
etnográfico, ao pôr em causa a apropriação de conhecimento alheio
(popular) pelo missionário, chegando ao cúmulo de influenciar a taxo-
nomia vegetal e animal da região; ii) o plágio e o baixo rigor científico
da obra de Junod, em termos modernos, baseado no facto de não reco-
nhecer a existência prévia de qualquer saber e, de forma indivi dua -
lista, e de desprezo até, pelas principais fontes de saber que ele
investiga; iii) o espírito aventureiro científico de Junod ao interferir
inclusive na taxonomia social, geográfica e política da região: inven-
tou usos e costumes comuns a certos grupos e até criou tribos e
etnias (a «tribo» tsonga, no caso).
Neste capítulo introdutório, Castiano coloca a questão pós-mo -
der na que se atribui ao surgimento de uma certa geração cheetah de
novos africanos, pouco interessados em serem objectivados, no sen -
tido de «…não permitirem que alguém escreva a sua história de mo -
men to ou, mais interessante, que alguém mantenha o seu futuro
refém do passado histórico dos libertadores». Esta é uma citação do
livro do economista Africano Ayittey.
Embora Castiano defenda mesmo a intersubjectivação (falaremos
mais adiante desta ideia), uma achega apenas a esta tendência pós-
moderna de certos economistas e politólogos tentarem dar um novo
curso à história Africana (de novo uma tentativa de objectivação), ao
tentar de forma muito radical fazer a ruptura, baseados em análises
econométricas, entre o estágio actual de desenvolvimento do conti-
nente negro e o seu passado de continente-colónia.
A perspectiva, para mim, é bastante clara, e persegue três princi-
pais objectivos: i) retirar a culpa do colonizador pelo atraso sócio-eco-
nómico africano; ii) desacreditar e demonizar os governos africanos
pós-independência e, acima de tudo, iii) desvalorizar os movimentos de
libertação e os nacionalistas africanos de meados do século passado,
16 Filosofia Africana: Em Busca da Intersubjectivação
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afim de preparar um terreno mais fértil com a geração cheetah, para
uma cultura global. Em suma perpetuar uma terceira morte da nação
africana, se assumirmos que a primeira morte deu-se aquando da
escravatura (com a desnaturalização e morte nalguns casos física), a
segunda com a inédita Conferência de Berlin em que a régua e esqua-
dro se destruíram nações (e não tribos) e agora a tercerira, que é a
aculturação e a negação do EU, pelos tais cheetah.
Dos Referenciais de Objectivação
Castiano aponta dois referenciais ou, até, duas tendências impor-
tantes da objectivação, isto é, do estudo dos assuntos africanos (povos,
etnia, clãs, culturas, religiões, crenças, etc.): as etnociências e a etnofi-
losofia. A tendência unanimista, isto é, generalizadora de certas
características que se atribuem a certos grupos sociais africanos, é a
prática comum, senão o método de trabalho destes referenciais. Mais
ainda, a tentativa de se olhar para a sociedade africana com «óculos
europeus», constitui, talvez, a maior fraqueza destas disciplinas cien-
tíficas.
O autor explora e questiona de forma bastante metódica e filosó-
fica vários aspectos adjacentes a toda a argumentação apresentada:
Até que ponto os estudos africanos são realmente africanos? Por
serem feitos por africanos ou por serem sobre África?
Porquê a aberrante distinção entre sociologia e antropologia? 
A antropologia, que literalmente significa «estudo do homem», se
estabelece como o estudo da sociedade do homem atrasado, do africa-
no. O próprio termo já deve ser visto numa perspectiva de objectivar
os «atrasados». O método adoptado, é ainda mais desolador: há uma
notória «pressa» científica em agrupar ou seja, descobrir característi-
cas semelhantes, atribuir um nome e rotular os povos africanos.
Os dois approaches assumem-se antagónicos, ao tentar, clara-
mente, minimizar, desconsiderar e ridicularizar o atrasado, por um
lado e, por outro, de sobrevalorizar, idolatrar, humanizar. Por exem-
plo, a análise do reverendo Mbiti sobre as religiões africanas, coloca-
as num patamar romântico e humanista exagerado ao descortinar 
as «suas cinco principais características»: associadas às tradições,
Prefácio 17
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 «eternas» (este termo é meu, para referenciar que uma vez membro
dessa religião, nunca te reconverterás), não expansionistas, naturalis-
tas, não messiânicas nem apocalípticas.
A tentativa maviosa de inscrever nas ciências naturais positivas o
conhecimento local existente e em uso pelas diferentes comunidades,
ocorre com deturpações claras de método científico e de objecto de
análise. Castiano questiona o real papel das etnociências e, pior ainda,
o real objectivo ao tentar descortinar os conhecimentos, julgados
latentes pelos etnocientistas, existentes nas comunidades. A célebre
«Escola Moçambicana» de Etnomatemática liderada pelo Pro -
 fessor Paulus Gerdes é também posta em causa.
Até que ponto as ciências positivas, convencionais, ocidentais de
uma maneira geral, não se chamam também «etno», tendo em conta
que, nalgum instante, surgiram de um certo lugar geográfico e depois
se afirmaram universalmente através de um processo muito longo que
inclui, interalia, a satisfação de uma grelha cada vez mais sofisticada
de legitimação. Para as ciências convencionais existe uma série de ins-
tituições dedicadas (desde universidade, academias de ciências, agên-
cias de registo de patentes e etc.) que legitimam o conhecimento e o
catalogam devidamente, enquanto que para as etno-ciências, restam-
nos apenas dois métodos: o livro do etno-cientista escrito à lupa da
ciência ocidental ou, mais importante talvez, a aplicação incondicional
de um certo conhecimento por uma certa comunidade. A questão da
medicina tradicional esclarece melhor este problema: um nyanga é
bom se tiver muita afluência de pacientes para o consultarem. E, já
agora, será que a tentativa de se formalizar a AMETRAMO (As so -
ciação Moçambicana de Médicos Tradicionais) e as práticas de medi-
cina tradicional em Moçambique pode ser vista como um esforço
(neste caso encomendado por círculos de poder) para legitimá-la
usando as instituições da ciência convencional?
A generalização de D’Ambrosio de que «… o programa das etno-
ciências não deve se limitar ao estudo do conhecimento em si, mas sim
alargar-se para o tipo de estudos que contemplem sobretudo a dinâmica
cultural na qual esses conhecimentos se desenvolvem e dos quadros
conceptuais internos usados em cada cultura…. », é bastante oportuna.
No referencial da etnofilosofia, Castiano navega através de um
naipe variado de obras e autores de diversas épocas, desde Tempels, 
18 Filosofia Africana: Em Busca da Intersubjectivação
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o fundador, com a sua teoria de «Força Vital», John Mbiti e o tratado
sobre as religiões africanas e a filosofia, para terminar num «close-
-up» sobre o «Struggle for Meaning» de Hountondji. Neste referen-
cial, Castiano mostra-se inconformado com esta perspectiva de inscri-
ção do conhecimento africano e tranquiliza-se com a crítica-crítica de
«Hountondji II», que estabelece uma fundação muito importante que
Castiano mais tarde usa para apoiar o seu nóvel paradigma de inter-
subjectivação.
A grande contribuição epistemológica deste capítulo, considero
como sendo a periclitante chamada de atenção para a necessidade de
uma análise cuidada do discurso moderno dos clichés globalizantes
tais como: desenvolvimento; desenvolvimento sustentável; objectivos
de desenvolvimento do milénio; pobreza; pobreza absoluta, só para
citar alguns e a forma como eles se enquadram no discurso mais
nacional e aglutinante como: unidade nacional, pátria, povo moçambi-cano, etc. Um eminente antropólogo, por sinal missionário, radicado
no Niassa há mais de 30 anos, tendo estudado um dos dialectos do
Emakhuwa, e tendo traduzido a bíblia, organizado uma colectânea de
contos nessa língua (não me recordo dela), teria chegado à conclusão
de que, nesse dialecto, o conceito de «riqueza» não existia. Ora a
perspectiva moderna de associar o desenvolvimento ao desempenho
económico, à acumulação de riqueza e melhoria do índice de desenvol-
vimento humano, pode ser ab initius posta em causa por este pequeno
clã falante desta língua… e, até que ponto a pulverização sistemática
de estudos sociais direccionados a pequeníssimos grupos da popula-
ção, ou seja, a micro-etnografia feita até ao nível das «dez casas» pode
contribuir para melhor conhecermos o Povo Moçambicano e sua cul-
tura ou, pior ainda, para adicionar um bloco de unidade no edifício da
Nação Moçambicana?
Dos Referenciais de Subjectivação
O afrocentrismo e o ubuntuismo aqui apresentados como referen-
ciais de subjectivação baseiam-se em pressupostos bem diferentes.
Enquanto no primeiro, segundo Asante, se «… colocam ideias africanas
no centro de qualquer análise que envolve a cultura e o comportamento
Prefácio 19
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Sublinhado
africanos», o segundo é um movimento mais aberto, que acomoda sem
remorsos valores «estrangeiros» de forma construtiva.
Estes dois referenciais e exactamente na sequência em que são
analisados no livro, mostram claramente a sequência lógica do desen-
volvimento do conhecimento africano, tendo em conta o passado de
colonização e marginalização secular do continente. Não espanta,
pois, que o afrocentrismo seja coetâneo do proto-nacionalismo e do
nacionalismo africanos, fases muito importantes na longa luta pela
libertação de África. 
Assim, os referenciais de subjectivação na filosofia africana são,
de facto, uma teorização das diferentes fases de tomada de consciência
e de acção para a liberdade do continente. Tão somente.
O contrário, de resto, seria de estranhar. Vladimir Lenine, funda-
dor do Estado Soviético, quando indagado, certa vez, porque motivo
os fundamentos da filosofia libertária do operariado na sociedade
capitalista, o marxismo, haviam sido desenvolvidos por filósofos «bur-
gueses» respondeu mais ou menos nos seguintes termos: «nos palá-
cios pensa-se de forma diferente do que nas palhotas», ou seja, o
desenvolvimento mais amplo, menos militante, se quisermos, do pen-
samento científico, só será possível depois de vencermos a fase das
necessidades básicas: da fome e da pobreza em geral, da liberdade
política e da liberdade intelectual.
Apenas a liberdade política é uma realidade para toda a África,
porém, a pobreza é ainda um grande desafio para todos e, em alguns
países, mesmo a liberdade intelectual não foi conseguida.
Para este quadro dominado por muitas prioridades básicas em
África, o ubuntismo, genuinamente africano que é, tem razões muito
mais fortes para se impor:
A fraqueza «fundamental» que Castiano aponta da ausência de
«… um texto ou um conjunto de textos fundadores (do ubuntuismo,
entenda-se)…» é talvez uma força, uma vantagem pois isso atesta
para a sua origem popular, como o são os provérbios, contos, canções,
etc. e, portanto, facilmente assimiláveis por todos e mais provavel-
mente expressando a sabedoria popular;
Sendo ele originário do movimento de consciência negra, da teo-
rização dos propósitos dos movimentos de libertação da África do Sul
e da influência de intelectuais africanos na diáspora durante o regime
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de apartheid, o ubuntuismo é, na sua essência, uma espécie de Pen ta -
têutico de Moisés para os sul-africanos, o Livro das Leis Divinas da
Bíblia.
Tendo origens claramente tradicionais o ubuntu mostrou-se uma
teoria muito válida para remendar o tecido social da África do Sul
pós-apartheid através do princípio de reconhecimento da culpa indivi-
dual e perdão colectivo que caracterizou a Comissão de Verdade e
Reconciliação dirigida pelo emblemático Arcebispo Desmond Tutu.
Da Intersubjectivação
Pois claro. A escola moçambicana de Filosofia Africana, neste
livro retratada por J.P. Castiano e Severino Ngoenha, sendo ela de
estabelecimento mais recente, beneficia-se claramente de todo o
manancial teórico secular das diferentes escolas bem como do facto de
os seus precursores terem tido protagonismo privilegiado nas princi-
pais transformações político-sociais ocorridas no país desde a inde-
pendência em 1975. Ela desenvolve uma visão mais pragmática para a
Filosofia.
Ngoenha introduz o «paradigma libertário» da Filosofia Afri -
cana, caracterizando a existência do Homem africano como um per-
manente processo de procura pela liberdade e apelando para uma
ciência filosófica mais interventiva para o processo de desenvolvi -
mento.
Castiano, sem discordar deste pressuposto, especifica as quatro
liberdades que a Filosofia Africana deve atingir (o essencialismo ou
unanimismo, a religião, debate da validação ou não da oralidade e, por
fim, a língua). Em suma, a Filosofia Africana deve-se libertar de ser
africana.
Ele vê como único caminho para a Filosofia Africana a criação de
espaços de intersubjectivação, através da abertura a um diálogo siste-
mático intercultural filosófico.
Desta maneira a escola moçambicana é pela «glocalização» da
Filosofia tornando-a, ao mesmo tempo, mais interventiva a nível
social e epistemológico. Ela deve se debruçar sobre os problemas
actuais de desenvolvimento do continente.
Prefácio 21
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Um Ganho Marginal das Teorias «Castianianas»: um Olhar
às Teorias Globais de Desenvolvimento para o Continente
Africano
Facto 1: Fukuyama declarou o fim da história, assumindo que
todos os grandes debates que haviam surgido ao longo do desenvolvi-
mento da sociedade humana haviam se esgotado e marcou o início de
uma nova era.
Facto 2: A partir de meados da década 70 do século passado, as
profundas crises económicas, salientando-se a grande crise de endivi-
damento acelerado dos países do terceiro mundo, fruto do desenvol-
vimento da economia de mercado e da adopção incondicional do
modelo de desenvolvimento sócio-económico baseado nas leis do
mercado, levaram os economistas a pensarem em modelos de recupe-
ração (reajustamento económico) únicos e padronizados, para vencer
as crises.
Facto 3: Em 1982, na Conferência Anual do Banco Mundial,
declarou-se a morte de outras quatro categorias: a ideologia (ao se
constatar que havia acabado a afronta que as teorias marxistas e
outras faziam ao capitalismo); o desenvolvimento (no sentido ante-
riormente acolhido de que o desenvolvimento era resultado de uma
planificação pelo estado, direccionada ao crescimento económico.
Assumiu-se que, dali em diante, o mercado livre seria o único modelo
que sobreviveria); a inflação (tendo em conta que as hiper-inflações de
três ou mais dígitos na América Latina e de dois dígitos na maior
parte dos países desenvolvidos haviam sido controlados e trazidos
para apenas um dígito graças ao ajuste automático do mercado) e a
geografia (com a eliminação de todas as barreiras de deslocação física
e com a aparente convergência a nível dos ideais gerais do mercado
em todo o mundo). 
Estes factos justificaram a imposição tácita (e nalguns casos força-
da) de um único modelo de desenvolvimento para o mundo, baseado
em indicadores econométricos e independente das diferentes realidades
sociais, económicas, políticas e geográficas dos países. O continente
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Africano entrava assim para mais uma longa etapa de objectivação.
Aliás, como sempre.
Os modelos padronizados de reajustamentoeconómico das insti-
tuições de Bretton Woods mostraram-se pouco mais que inválidos
para solucionar qualquer problema de recuperação económica nos
países em desenvolvimento. Em Moçambique, por exemplo, guarda-
mos ainda na memória e são visíveis no dia-a-dia os efeitos da morte
ditada ao sector industrial de caju e à expressiva indústria ligeira.
Noutros lugares do globo a iconização do mercado falhou e
colapsaram alguns dos símbolos do capital. Nos países de mercado
livre nacionalizaram-se bancos…!
Nos países em desenvolvimento, para se atingirem os objectivos
de desenvolvimento do milénio, as economias deverão imprimir um
crescimento económico ininterrupto da ordem dos dois dígitos, coisa
que, sinceramente, não irá acontecer em muitos dos países visados.
Assim, este conceito de desenvolvimento deve estar desajustado: o
desenvolvimento não pode ser analisado apenas como uma empresa
tecnocrática.
Parafraseando Robert Mugabe que diz que «…o ensino superior
é um assunto sério demais para o deixarmos nas mãos dos professores
apenas…», querendo dizer que é necessário abrir as universidades ao
diálogo com toda a sociedade para a definição da agenda do ensino
superior, o conceito de desenvolvimento é sério demais para se redu-
zir à perspectiva econométrica de todas as teorias existentes.
O contexto, a história, a cultura, os valores, são categorias que,
quando trazidas para o conceito de desenvolvimento, contribuem para
a legitimação e estabilidade, tornando-se em parâmetros importantes
na competitividade do país na economia global.
A intersubjectivação da Filosofia Africana aqui proposta por
Castiano e a necessidade de ela ser interventiva e resolver os proble-
mas actuais com que o continente se depara, de acordo com Ngoenha,
são aqui chamados para, sem paixões, ajudar no desenho de um pro-
jecto de desenvolvimento real da África… que irá trazer consigo tam-
bém, o desenvolvimento da própria FILOSOFIA MUNDIAL.
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PARTE I
OBJECTIVAÇÃO 
E SUBJECTIVAÇÃO
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Já no período mais sombrio da história dos negros, mais concre-
tamente durante a escravatura nos Estados Unidos, encontramos
referenciais de objectivação e de subjectivação. Ambos referenciais
procuram dar conta do lugar do negro-escravo na sociedade norte -
-americana. Pois, se por um lado temos abolicionistas brancos que
procuram representar os interesses dos escravos na sua luta para
serem livres do sofrimento e da humilhação que o homem branco -
-esclavagista lhes submetia, encontramos, por outro lado, uma parte
dos aboli cionistas brancos a fazerem esforço em incluir, nas suas
manifestações anti-esclavagistas, os próprios escravos e ex-escravos
«fugidos». Os escravos e ex-escravos são incorporados nas manifesta-
ções organizadas pelos abolicionistas num esforço de emprestar
autenticidade às reivindicações nas quais o escravo é o objecto e as suas
condições de vida são objectivadas em discursos elaborados. 
Se, por um lado, os abolicionistas brancos em inúmeras reuniões
e manifestações repudiam as condições desumanas sob as quais os
negros escravos vindos de África vivem e se solidarizam com a «causa
negra», por outro lado, esses homens e mulheres que sofrem ou
tinham sofrido na sua alma e pele a humilhação de serem escravos,
numa sociedade em que todas as outras cores são homens livres,
fazem um esforço teórico em serem sujeitos na elaboração de um dis-
curso cuja legitimação provinha da pretensa autenticidade original de
pessoas sofredoras. Trata-se, portanto, de esforços de subjectivação que
homens e mulheres fazem, mas somente à medida que o espaço para
contarem as suas heroicidades lhes é dado e controlado pelo abolicio-
nista. O discurso do esforço de subjectivação, nestas circunstâncias de
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controlo, deve obedecer às regras e à ordem preestabelecidas. Não
restam dúvidas que os escravos ou ex-escravos convidados para fala-
rem nas manifestações dos abolicionistas apresentavam-se como
autênticos, como a prova, como sujeitos das narrativas sobre as condi-
ções em que vivem. 
Não restam dúvidas que as condições de vida dos escravos são
pés simas. Eles são submetidos, nesta altura, às condições mais mise-
ráveis e desumanas que a mente humana pudera um dia imaginar (e
que «não vamos esquecer o tempo que passou»), como nos conta o
escravo Frederick Douglass(1). Segundo ele os escravos trabalham
durante todo o dia nas plantações, são chicoteados várias vezes sem
razão plausível. No Verão e no Inverno, não interessa, andam quase
sempre descalços. Eles possuem, para todo o ano, uma calça de linho,
28 Filosofia Africana: Em Busca da Intersubjectivação
(1) Frederick Douglass (1818-1895) é um escravo negro nascido em Tuckahoe (Ma -
ry land) nos Estados Unidos. A mãe, Harriet Baley, é também uma escrava per-
tencente ao Capitão Aaron Anthony. Nunca conhecera o seu verdadeiro pai.
Segundo ele, este teria sido «provavelmente um white man” ou a sua mãe nunca
quisera revelar quem era o seu pai. Frederick desconfia, no entanto que fosse o
pró prio capitão. Entretanto, como é ‘norma’ nesses dias, os filhos dos escravos
assumem o nome do seu senhor. Assim, o nome completo dele era Frederick
Augustus Washington Bailey, nome dado pela sua mãe e que mais tarde ele corta-
ra o apelido Bailey mudando para Douglass. Em 1825, com apenas sete anos,
Frederick foi vendido a um novo senhor (Hugh Ault) como escravo doméstico.
Aqui teve a sorte de ser ensinado o alfabeto pela esposa do seu novo dono (o que
depois foi interrompido abruptamente porque, segundo o seu dono, «if you teach
that nigger how to read, there would be no keeping him. It would forever unfit him to be
a slave. He would at once become unmanageable, and of no value to his master. As to
himself, it could do him no good, but great deal of harm. It would make him discontented
and unhappy» [Douglass 1982,78]). Ele conta que, depois do alfabeto, aprende a
ler e a escrever com os miúdos brancos alunos a quem ele aliciava para tal. En fu -
recido por ele ter aprendido a ler e a escrever, o seu dono manda-lhe para as plan -
ta ções na Filadélfia. Após algumas tentativas falhadas, Frederick consegue
escapar, em 1838, para o norte (Nova York), onde, já como um homem livre,
torna-se um membro activo de um grupo abolicionista dos negros da escravatu-
ra. Transformou-se num leitor muito activo para a Massachusetts Anti-Slavery
Society, em nome da qual viajou para muitos estados e para a Inglaterra para falar
sobre o abolicionismo. Escreve a sua autobiografia intitulada Narrative of the Life
of Frederick Douglass, an American Slave e, em 1847, começa uma carreira de jor-
nalismo editando e publicando os seus próprios jornais. Na sua autobiografia, ele
classifica o facto de ter aprendido a ler e a escrever como sendo o início de uma
«caminhada da escravatura para a liberdade».
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uma camisa e um casaco leve que pouco serve para se protegerem do
frio. Eles dormem no chão. A sua alimentação é constituída quase
sempre por mush (grãos de milho fervido) e poucas vezes por carne.
Os escravos estão constantemente sob o perigo de serem vendidos a
novos donos, dos quais tomam o seu «novo» nome, dado que este é
um sinal de pertença ao seu dono. O consolo encontram nas canções
do período nocturno, muitas das quais com letras de duplo sentido e,
por trás das quais, expressam o seu sonho de liberdade. As suas
angústias são expressas em narrativas orais e dramáticas, uma vez que
não sabem ler e nem escrever (Douglass 1982, 71 pp.).
Para o público, no entanto, são os brancos abolicionistas que, por
solidariedade, articulam de forma escritae oral, as dramáticas e humi-
lhantes condições em que os negros escravos vivem. Os negros escra-
vos, as suas condições de vida, a sua desumanização são objecto nos
encontros e nos escritos dos brancos abolicionistas e que, por isso
mesmo, são considerados «progressistas». Entretanto, os próprios
abolicionistas brancos, cedo se dão conta que faltam as vozes internas
dos próprios escravos, e que faltam também testemunhos vivos dos
próprios escravos, para complementar às suas vozes e escritos.
Na óptica dos abolicionistas, os negros deveriam ser incorpora-
dos nestes encontros e manifestações, já que a sua presença ao vivo
daria «credibilidade» e autenticidade aos seus esforços de lutarem
contra a escravatura. W. M. Lloyd Garrison — um abolicionista que
escrevera o prefácio do Narrative — conta que, quando participou na
Convenção Anti-Escravatura em Agosto de 1841 em Nantucket, não
pôde esconder a sua «alegria» ao saber que Frederick Douglass, em
pessoa, iria prestar um testemunho sobre a escravatura:
«(Douglass) era uma pessoa desconhecida para quase todos os
membros daquela agremiação; mas, tendo escapado recentemente
da sua casa-prisão no Sul, sentindo a sua excitante curiosidade para
perceber os princípios e as medidas do abolicionismo — do qual,
enquanto ainda escravo, ele havia ouvido vagamente falar — ele foi
induzido para participar na convenção.» (Cfr. Douglass 1982,33)
A participação em carne e osso dos próprios escravos nas con-
venções e manifestações organizadas pelos brancos abolicionistas
Objectivação e Subjectivação 29
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empresta uma tónica realista ao movimento, tanto mais que os parti-
cipantes, muitas vezes, se fazem em lágrimas ao escutar os eloquentes
e estarrecedores relatos sobre o tratamento desumano a que o negro -
-escravo está submetido por parte do seu «senhor» branco. Garrison
confessa:
«Nunca esquecerei a sua [de Douglass] primeira intervenção na
convenção — a emoção extraordinária que provocou na minha
alma — a impressão poderosa que criou num auditório muito
cheio, completamente levado pela surpresa — os aplausos que se
seguiram do início até ao fim da sua intervenção. Penso que
nunca odiei a escravatura tão intensamente como naquele mo -
men to.» (Cfr. Douglass 1982,34)
Escutar as histórias da escravatura pela boca do próprio ex-escra-
vo fugido era algo «especial» e muito mais convincente. A manifesta-
ção seria também uma espécie de palco de representação, um espaço de
apresentação de discursos de objectivação e de subjectivação.
Neste processo, os próprios escravos tomam consciência de que
deveriam ser eles próprios a contar ao mundo da época e ao posterior
sobre o seu sofrimento, e não outros. Até que isso não sucedesse, o
abolicionismo liderado pelos brancos continuaria a correr o risco de
ser pretty much the same (Douglass 1982,8). Havia que incluir uma
narra tiva crítica a partir dos próprios afro-americanos para não con -
tinuar a ser a «mesma coisa». Assim se explica o surgimento, entre
1820 e 1860, de narrativas escritas pelos ex-escravos e publicadas em
diversas edições americanas2, tendo estas sido traduzidas para outras
línguas como o alemão, o céltico, etc. São narrativas que dão conta
desta instituição peculiar americana, a escravatura, na sua complexida-
de, nos seus efeitos físicos e psicológicos e exigem, de forma inequívo-
ca, a abolição da tirania. O padrão das narrativas dos ex-escravos é
quase comum: começa-se por descrever as atrocidades da escravatura,
30 Filosofia Africana: Em Busca da Intersubjectivação
(2) Refiro-me especialmente às obras The Interesting Narrative of the Life of Olaudah
Equino or Gustavus Vassa, the African publicada em 1789, A Narrative of Moses Roper’s
Adventures and Escape from American Slavery publicada em 1837, The Narrative of
William Wells Brown e The Narrative of Solomon Northup estas últimas publicadas
em 1847. Estas narrativas foram vendidas aos milhares, ainda naquela altura.
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logo descreve-se a «longa e heróica marcha» da fuga dos escravos
para a liberdade e, finalmente, explica-se a natural aderência e dedica-
ção aos princípios e objectivos do abolicionismo.
Os relatos que o escravo Frederick Douglass e outros escrevem,
indicam que os negros americanos tomam consciência de si no senti-
do de que não devem continuar a ser meros objectos das acções liberta-
doras dos brancos abolicionistas; em outras palavras, não podem
continuar eternamente a ser objectivados se quisessem ser livres à
semelhança das outras raças vivendo nas Américas. Eles próprios,
numa fase primária, prestam suas declarações oralmente (como «tes-
temunhos» vivos) e depois, constroem a sua própria narrativa crítica,
ou seja, passam a ser sujeitos na construção do discurso sobre a sua
condição de existência social e política como escravos. 
Mais uma vez, reparamos que de um esforço de objectivação pas-
sou-se para um esforço de subjectivação da condição material e inte-
lectual dos afro-americanos. É esta a tendência geral na forma como
os africanos entram na chamada História Universal? E será que a
sub jectivação é o fim? Como é que a filosofia africana, como uma dis-
ciplina que pretende resumir o tempo no conceito (emprestando a
definição hegeliana) ou, se quisermos, uma filosofia que o seu trabalho
é o de criar conceitos, como pretendem Deleuze e Guatari, se deu
conta destes referenciais narrativos na sua evolução e que lugar esta-
tutário ocupam hoje estes referenciais de objectivação e de subjectiva-
ção? São algumas perguntas que me inquietam ao longo deste livro.
Ainda para lá da história no tempo colonial, desta vez o «palco»
não é dos abolicionistas americanos mas sim Moçambique, deparamo -
-nos com o mesmo cenário de objectivação sobre como os nativos afri-
canos vivem e pensam, pelos europeus, desta feita missionários. Um
exemplo bastará.
E vamos pegar o exemplo de Henri-Alexandre Junod, um missio-
nário suíço que estuda e divulga a mensagem da missão suíça em
Moçambique e na África Austral nos séculos XIX e XX. Junod não é
somente missionário como também interessa-se pelas línguas locais,
pela geografia, pela botânica e fauna e, enfim, pelos hábitos e costumes
dos povos desta região austral africana. Junod tem um particular pra-
zer em coleccionar borboletas e plantas da região outrora conhecida
Objectivação e Subjectivação 31
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como Delagoa Bay (hoje Maputo, depois de ter sido Lourenço Mar -
ques). Hoje ele é conhecido como tendo «descoberto» muitas plantas
«novas» durante os anos que viveu nesta região. Ele é também reco-
nhecido como um dos pioneiros da exploração botânica da região da
África Austral, chegando a corresponder-se com muitos botânicos
famosos da sua época. (Harries 2007,150).
A dedicação de Junod pelas espécies das plantas faz-lhe merecer
ser perpetuado na denominação de uma boa parte delas. Tal é o caso
do género Junodia Praxis e é também o caso de cerca de trinta plantas
diferentes, incluindo a Gladiolus Junodi. Na floresta do que é hoje a
Marracuene é atribuído a Junod ter descoberto «lagartas raras e um
grande número de escaravelhos da madeira» e uma «variedade de
árvores e arbustos». Conta-se que foram necessários somente sete
anos para Junod poder reunir cerca de 184 espécies diferentes das 200
espécies de borboletas, mais de metade da totalidade das espécies que
na altura se crê que a África Austral poderia ter. Ele dá nome a 479
es pécies de escaravelhos, entre os quais o Psammodes Junodi, gafanho-
tos e louva-a-deus. Esta actividade teria sido tão intensa que muitos
insectos e plantas ostentam hoje o nome de Junod, o da sua esposa, o
das muitas estações missionárias da Missão Suíça, etc.
Enquanto o museu de História Natural de Neuchâtel lhe envia
frascos, instrumentos de dissecação, cianeto e redes, Junod fornece de
volta a este museu uma imensa variedade de animais,insectos, mo -
luscos, em troca de «alguma remuneração» (Harries 2007,154). Nos
re gistos do museu nota-se que Junod, somente em 1911, teria envia -
do uma preciosa colecção de Hemiptera e, em 1912, 187 insectos do
gé nero Orthoptera e Hymanoptera. Conchas do mar, ovos e ninhos,
ouriços-do-mar, cobras, lagartos, rãs, um crocodilo e vários mamífe -
ros tam bém fizeram parte da encomenda enviada por Junod para
Neuchâtel.
Como seria possível que um só homem pudesse ser capaz de
recolher tantos ouriços, ovos, ninhos e outros animais e plantas por aí
fora? A resposta é muito simples: Junod não podia prescindir da ajuda
e dos bons préstimos dos nativos que vivem na região e que a conhe-
cem muito bem. Estes prestam mais do que «ajuda» ao nosso cientis-
ta. Conta-se que, por exemplo, num belo dia de 1891, «um dos
assistentes trouxe-lhe uma magnífica borboleta Swallowtail» e que
32 Filosofia Africana: Em Busca da Intersubjectivação
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este «tinha apanhado a borboleta na floresta de Morakwene [hoje
Marracuene]»; Junod rapidamente mandou-a para a África do Sul
para a sua identificação e classificação. Esta borboleta foi baptizada
pelo nome Papilio Junodi, conhecida hoje por Swordtail de Junod
(Harries 2007,152 p.). Conta-se ainda que em Rikatla ele tem mais difi-
culdades em descobrir espécies raras, mas em dois anos, ele treina
«nativos inteligentes» que lhe auxiliam a reconhecer insectos exóti-
cos e a descobrir os seus habitats. Entretanto os «nativos inteligentes»
não eram colectores cegos. Eles possuem os seus próprios nomes
pelos quais denominam os insectos e a sua própria forma de classifica-
ção dos escaravelhos e outros animais. E, o que parece ser mais
importante para Junod, os nativos possuem uma certa «noção de
ordem» nesta classificação dos animais. Junod fica particularmente
fascinado com a semelhança da classificação nativa com a europeia em
géneros e espécies de animais e plantas.
Vejamos como nos conta Harries:
«Junod descobriu que os indígenas tinham muito que ensinar aos
cientistas europeus sobre a utilidade das plantas. Em diversas
ocasiões ele convidou os nativos para o seu museu onde, em troca
de uma moeda, eles lhe forneciam os nomes locais e os usos das
plantas. (…) Junod reconheceu que os adivinhos (aqueles que pre-
diziam o futuro), e gobelas (os habilitados em fazer exorcismos
aos espíritos maus) possuíam um conhecimento complexo dos
animais e plantas usados no desenrolar das suas profissões. Junod
admirava especialmente as mulheres velhas e os nangas, ou
curandeiros especialistas, cujo conhecimento das propriedades
medicinais, nutricionais e mágicas das plantas constitui uma
forma rude de classificação.» (Harries 2007,156)
Até hoje existe no museu etnográfico em Neuchâtel uma «farma-
copeia ronga»! Até hoje a glória de ser «sábio» e «cientista» cabe a
Junod: quem se interessará pelo papel dos numerosos informantes,
adivinhos, gobelas, «nativos inteligentes»? Serão eles também sujei-
tos do conhecimento ou simplesmente intermediários, mesmo saben-
do que informaram muito bem sobre os escaravelhos da sua terra?
Hoje não conhecemos os nomes dos «nativos inteligentes» e nem
Objectivação e Subjectivação 33
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sabemos exactamente em que cada um deles teria contribuído para a
elaboração teórica e para as descobertas do seu grande mestre e cien-
tista Junod. Como vimos acima, as referências a estes homens e
mulheres são sempre breves, sem nomes. Sabe-se apenas que são
«informantes» do grande mestre.
Se nos permitirem uma breve comparação, Livingstone também
é considerado pela historiografia eurocêntrica como o grande conhe-
cedor do vale do rio Zambeze que até hoje, em sua homenagem, existe
uma cidade na República da Zâmbia que ostenta o seu nome. Ele teria
oferecido o espólio (em termos de conhecimento e objectos materiais)
à rainha da Inglaterra. No entanto, o que não é dito, é que ele andava
com cerca de cem «informadores» e «ajudantes» locais que lhe iam
alertando sobre os perigos, mostram caminhos da sua marcha e aju-
dam a identificar coisas valiosas do vale. Estes informantes ficam anó-
nimos na História. Se existem alguns relatos com os seus nomes nos
livros de história, estes estão nas notas de rodapé. 
Regressando a Junod, é sabido que ele dedicara muito do seu
talento a escrever sobre os usos e costumes dos bantu. Como ele
recolhia informações sobre esta matéria? Encontramos aqui, de
novo, o mesmo método de usar informantes. José F. Feliciano, que em
1996 prefacia o livro de Junod, classifica o método de trabalho de
Junod por «antropologia social moderna», isto é, trabalho de campo
prolongado por vários meses, observação participante e com recur-
so a «informadores locais». Junod, a propósito, escreve: «os meus
documentos não são livros: são testemunhas vivas, os indígenas...».
Os informadores principais, segundo o próprio mestre Junod
(1996,23pp.), são três: o primeiro é «um ronga de Nondrwana» cha-
mado por Spoon e que domina a «arte de deitar os ossinhos», tem
imaginação muito viva e um sentido mitológico mais desenvolvido
que qualquer um dos outros informadores. O segundo informador é
Tobana, uma personagem importante no clã Mpfumu. Este possui
conhecimentos profundos dos usos da corte e do tribunal. Pela boca
deste Junod informa-se sobre o «sistema tribal dos Rongas». O ter-
ceiro é um homem de nome Mankhelu, filho mais velho de Xi lu -
vana, antigo chefe do clã Ncuna. É ao mesmo tempo general do
exército, médico principal do curral real, um dos conselheiros do
rei, adivinho convicto, sacerdote da fa mília, que domina, portanto,
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«as concepções obscuras do espírito bantu». Mankhelu domina
também a «técnica de deitar os ossinhos» e é bom «fazedor de
 chuvas».
Para além desses três «informadores» de qualidade, Junod usa os
fiéis da missão de Xiluvana para os seus estudos. Como conhece bem
a língua, Junod pôde compreender a maior parte das coisas que lhe
diziam. Junod diz que uma das vantagens que tem com os fiéis assenta
no facto de estes terem sido «pagãos» antes de terem sido convertidos
para a igreja. Daí que estes adultos haviam praticado os ritos sobre os
quais são interrogados: «podiam descrevê-los melhor do que os
pagãos sem educação, pois encontravam-se já a uma certa distância de
vida antiga e podiam julgá-la de maneira mais independente», ajuíza
Junod (1996,22).
Entre os fiéis da missão é Viguet (nome de um professor de teo-
logia de Lausannne que o «velho» recebera no baptismo), que fora
chefe duma aldeia «Tsonga» (nome de «tribo» do sul da África que o
próprio Junod «inventara»), quem dá informações sobre os mistérios
da vida familiar e sobre as cerimónias de iniciação. Há ainda outros
velhos informantes como Maewew (poeta), Simeão Gana, Mbhoza,
etc. Os alunos também são tomados como fontes de informação: todas
as terças-feiras Junod organiza uma reunião «durante a qual um deles
devia contar uma história, descrever um costume, ou então contar um
conto indígena.» Junod conseguiu, através destas «reuniões», colec-
cionar mais de cem contos locais.
Aqui também as mesmas perguntas se colocam: o saber do velho
Viguet (do qual hoje não se sabe o seu nome original), os poemas de
Maewew, os saberes do Simeão Gana, Mbhoza, Makhelo, Tobana e
mais outros, onde estarão hoje fossilizados? Claro que por trás da
sabedoria de Junod e divulgados pelos inúmeros livros de Junod. 
O saber destes informantes está, de certeza, por aí espalhado ou
como notas de rodapé. Esses velhos e jovens foram objectivados, ou
seja, tornados objectos embora na sua condição de sujeitos do conheci-
mento. Dito doutra forma, eles nunca foram apresentados como
sujeitos do seu saber sendo-lhes reservado o lugar de aparecerem
como ilustrações (em forma de fotos), como «provas» da autenticida-
de das informações contidasnos Usos e Costumes e noutros escritos
divulgados por antropólogos missionários e coloniais. Por mais boa
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intenção que Junod tivesse (e teve) essas figuras dos «nossos» sábios
são testemunhas da existência de uma sociedade primitiva atrasada
(ainda fora da história do espírito humano, como diria Hegel) para lá
da Europa, sociedade essa que interessava estudar, conhecer, enfim,
objectivá-la. O termo objectivá-la é empregue aqui em dois sentidos:
no primeiro, tornar a sociedade primitiva objecto de estudo; no
segundo, é que mesmo ela não existindo, tinha que ser construída
tornando-a real, objectiva.
No livro Africa Unscheined o economista africano Ayittey defende
duas teses cuja novidade não reside tanto no seu conteúdo mas sim,
quanto a mim, na constatação que ele faz da existência de uma nova
«classe» de africanos a quem ele deposita a esperança de serem sujeitos
do desenvolvimento em África. Ele chama essa nova classe por cheetah
generation (Ayittey 2004, XIX). Segundo a primeira tese de Ayittey, os
problemas africanos devem ser resolvidos por eles próprios e esses
devem deixar de culpar constantemente ao Ocidente pela existência
desses problemas no seu continente. De facto, para Ayittey, não se
justifica continuarmos hoje a olhar para os erros que nós próprios
somos responsáveis como sendo ainda efeitos da escravatura, do colo-
nialismo ou do neocolonialismo. Continuarmos a apresentar a África
como vítima de um conluio colonial e neocolonial é praticar uma
«ortodoxia externalista», diz ele. Esta ortodoxia já perdeu a sua legi-
timidade e validade como um discurso a que se deve prestar alguma
atenção.
Na sua segunda tese Ayittey repara que a África deve ser desen-
volvida pelos africanos usando o seu próprio modelo de desenvolvi-
mento, e não um modelo copiado dos Estados Unidos, nem da Rússia
e nem de um outro país qualquer.
Embora todo o seu livro procure demonstrar a classe camponesa
africana e as suas formas de vida rural como a fonte a partir da qual o
novo modelo africano de desenvolvimento deverá ser reinventado,
Ayittey constata que nas zonas urbanas a geração dos cheetah é muito
diferente da geração libertadora. Ele escreve que esta nova geração
não tem nenhuma relação com o velho paradigma colonial, não se
interessa muito que lhe seja sempre recordado as condições da escra-
vatura pelas quais os seus antepassados passaram e muito pouco se
interessa pelo que os nacionalistas pós-coloniais como NKrumah,
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Kenyatta ou Kaunda projectaram para a África. Os cheetah têm a
 certeza de uma coisa: que os líderes actuais são corruptos e que os
sistemas de governação que estes líderes montaram em África violam
sistematicamente os direitos humanos. Como nasceram já numa Áfri-
ca independente, não têm interesse em ser permanentemente recorda-
dos que houve um sistema colonial ou mesmo escravatura em África.
De que lhes servirá isso afinal? Por isso não entram no «jogo» do dis-
curso que pressupõe haver um conluio dos antigos colonialistas e
imperialistas para, seja como for, prejudicarem o desenvolvimento do
continente negro. Não têm tempo e nem energias para pensarem em
termos de teorias conspirativas contra África.
Esta mesma geração não se senta e espera que o Ocidente faça
algo para e por ela. Também não fica sentada à espera que o Go ver -
no-do-dia faça algo por eles. Não esperam que o emprego lhes seja
dado pelo Governo, por uma ONG ou ainda caia do céu. Lançam-se
diariamente à rua para começarem um pequeno negócio, apertam-se
diariamente nas ruas da cidade para conseguirem vender qualquer
coisa, lutam para estudarem nas escolas nocturnas e formar-se nas
faculdades, preocupam-se por ensinar às pessoas como devem sobrevi-
ver neste «mundo selvagem». Na verdade eles nasceram na selva
onde cada um luta diariamente para sobreviver. É uma geração de
empreendedores que vêm o seu futuro não hipotecado na política, senão
nas suas próprias mãos e no trabalho árduo. Estes são os sujeitos do
seu próprio destino. Não permitem que sejam objectivados nos dois
sentidos: que alguém escreva a sua história de momento por eles e
que alguém mantenha o seu futuro refém do passado heróico dos
libertadores.
O mais importante é que estes mobilizam a tradição ou a moder-
nidade somente à medida que uma ou outra oferecem um leque de
possibilidades de progresso e sobrevivência. O saber e o seu uso, para
eles, só têm sentido se lhes coloca no ideal do progresso.
O erro da hippo generation — assim chama os cheetah à geração
dos «velhos» libertadores que hoje se transformou em capitalistas,
traindo eles os seus propósitos iniciais — é não ter a coragem de con-
fiar nos mais jovens a liderança das nações africanas. Por causa do
discernimento que esta geração tem em usar as oportunidades para
sobreviver, porque de facto estes não olham os meios para atingirem
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os seus fins, a geração dos hippo teme que não tenham bebido
 suficiente os valores nacionalistas que orientaram o processo das
lutas de libertação.
Essa geração nova dos cheetah representa também um novo esfor-
ço de subjectivação. Paradoxalmente, não é nesta geração e nos seus
ideais que a filosofia profissional africana busca a sua inspiração para
as suas lucubrações intelectuais. Os olhos da filosofia africana estão
virados, pelo contrário, ou no passado tradicional tentando reformu-
lá-lo em função do presente, ou no ocidente onde pensa encontrar os
modelos para o pensar filosófico e o seu ensino formal. Com este livro
queremos celebrar o esforço de intersubjectivação como uma nova
perspectiva do que-fazer filosófico que está no interior da própria filo-
sofia africana. A procura deste esforço de intersubjectivação é feita a
partir do interior dos próprios esforços de objectivação e de subjecti-
vação. Estes últimos são também aqui celebrados como referenciais
da filosofia profissional africana na sua marcha de auto-inscrição na
história universal do pensamento filosófico. Ao fazer isto, pensamos
prestar a estes esforços de criação de uma significação simbólica afri-
cana (objectivação, subjectivação e intersubjectivação) a devida home-
nagem que merecem na academia africana. É um lugar que estes
referenciais devem ocupar para além das linhas divisórias conceptuais
e das diversas críticas que eles têm sofrido ao longo dos tempos e por
parte de diversos pensadores.
A tendência na elaboração intelectual-académica africana, pelo
menos no que diz respeito às ciências sociais e humanas, e à filosofia
em particular, sobre a sua condição de existência na história do pen-
samento, nos últimos três séculos, é caracterizada por tentar conferir
autoridade simbólica ao imaginário colectivo africano. O que esteve
sempre em causa é, no fundo, a busca da liberdade e o reconhecimento
do sujeito africano como actor social e da sua própria história; ou seja,
esteve sempre em jogo a legitimidade do filósofo africano em ser
quem elabora o discurso sobre a significação simbólica que dê conta
do reconhecimento dos africanos como actores da sua história e da
sua identidade como africanos. Este livro dá conta de como este esfor-
ço pela captação do espírito africano no contexto geral da história
universal, esforço este feito pelos africanos e pelos pensadores euro-
peus em África, jogou aos africanos ora como simplesmente objectos
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de estudo, ora destacou-os como sendo sujeitos da sua própria histó-
ria e suas próprias formas de pensar. A pretensão subjacente do livro
vai, porém, mais longe: mostrar que ao mesmo tempo que se faz este
esforço, há simultaneamente um esforço de intersubjectivação que
acompanhaaqueles. Assim, a intersubjectivação como referencial não
deve ser entendida como um ponto de chegada da filosofia profissio-
nal africana. Ela esteve sempre intrínseca. O que este livro faz é
recontar a filosofia profissional africana, a partir da perspectiva dos
esforços de intersubjectivação.
No centro das reflexões da filosofia africana sobre a sua condi-
ção de existência na história e na época contemporânea, ou seja, 
no centro das diferentes formas das tentativas da «auto-inscrição»
(Mbembe 2001) dos intelectuais africanos na história universal, re -
pou sam três eventos-eixo: a escravidão, o colonialismo e a globaliza-
ção. Nestes eventos-eixo o intelectual africano — mesmo que, nestas
duas últimas entre como membro da elite — participa como uma
espécie de porta-voz da condição dos africanos na história da huma-
nidade como escravos, colonizados e globalizados. É, assim, natural
que a preocupação fundamental e o eixo do que-fazer filosófico (oral
e escrito) seja a fundamentação da liberdade, ou seja, o «paradigma
libertário», como sustenta Ngoenha (2005).
Em relação a estes três eventos-eixo nasceram duas tendências
académicas referenciais (quasi paradigmáticas) na filosofia profissional
africana. A primeira tendência referencial da auto-inscrição africana
na história do pensamento filosófico, que chamamos de objectivação,
nasce da ideia de que, como consequência da escravidão, da coloniza-
ção e da globalização, o Eu-africano se alienou a si mesmo a ponto de
se tornar estranho ao seu próprio corpo. O discurso sobre a condição
da sua própria existência, o discurso sobre sua identidade enquanto
africano, é feito, entende-se, a partir do lugar que a história ‘univer-
sal’, elaborada predominantemente numa perspectiva do Ocidente, o
reserva. É essa a base do eurocentrismo no qual o africano sofre um
duplo processo de objectivação: por um lado, como objecto da História
(e não sujeito), construído pela historiografia moderna; por outro, pela
retomada desse mesmo discurso por parte das elites académicas afri -
canas. O Ocidente, nesta historiografia, apresenta-se como uma posi-
ção de localização histórica e científica, como o centro referencial do
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saber tecnocientífico e axiológico. O centro epistémico é ocupado
sucessivamente pelo senhor dos escravos, pelo colonizador e final-
mente pelo globalizador. Este sujeito apropria-se de todas as -referên-
cias simbólicas e tecnocientíficas, incluindo as que encontrara nas
colónias, reelaborando-as e disseminando-as de acordo com o lugar e
o estatuto que reserva ao ‘outro’ africano, como escravo, colonizado e
globalizado. 
A segunda forma auto-referencial da filosofia profissional africa-
na tenta contrapor-se à criação eurocentrista e externa do discurso
sobre a condição de existência do africano na «história universal»,
refugiando-se num discurso do imaginário tradicional, de nostalgia
em relação aos antepassados e de idolatria às chamadas tradições afri-
canas. Mais do que isso, esta forma auto-referencial busca e rebusca a
sua legitimidade nessas tradições a partir das quais prefere e escolhe
elaborar as suas significações e fixar identidades homogeneizantes.
Trata-se, desta feita, do referencial da subjectivação. Este referencial
tenta recentrar o sujeito africano perante a sua história e a si mesmo.
O afrocentrismo e o ubuntuismo apresentam-se neste livro como os
esforços de subjectivação ou seja de recuperação das tradições e dos
valores africanos ‘depositados’ nas comunidades africanas tentando
construir e, por vezes, reconstruir um discurso ‘autenticamente’ afri-
cano.
No entanto, por mais paradoxal que pareça, mas nem por isso
surpreendente, ambas tendências referenciais (objectivação e subjec-
tivação) na filosofia profissional africana representam, no fundo e
como dissemos acima, um esforço de negação do estatuto de inferio-
ridade, de periferia e de subalternização do negro-africano na histó-
ria; ao mesmo tempo é um esforço de afirmação que procura revelar
a necessidade assim como o imperativo da subjectivação do pensa-
mento a partir dos imaginários tradicionais locais. Os dois referen-
ciais da filosofia africana representam ainda, socorrendo-me no
camaronês Eboussi-Boulaga (1977), a crise do Muntu em identifi -
car-se com a sua própria História (alienação) e a desconfiança na sua
própria capacidade de produção de um saber relevante ao seu meio.
Representam a oscilação entre a objectivação e a subjectivação do
Muntu perante as dinâmicas da transformação. A exaltação do
moderno e do tradicional representa a expressão da crise interna da
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identidade, uma crise ontológica e epistemológica do Ser africano3
(Mamdani 1997,152).
Para mim, filosofia é diálogo argumentativo. Ou seja, filosofia só
ganha sentido e significado se ela for elaborada num contexto de um
diálogo intersubjectivo. Entretanto, para que a filosofia possa evoluir,
ela, entanto que processo, deve ser efectivada na forma de diálogo
entre sujeitos; esta interacção entre os sujeitos ou diálogo deve ser na
base tanto de textos escritos como orais. No caso de textos orais,
estes devem ser transcritos para incluí-los no diálogo argumentativo.
Mas a existência de textos escritos não é uma razão suficiente para
excluir os textos orais do debate argumentativo. Pelo contrário, os
textos que deveríamos puxar para o diálogo argumentativo devem
ser, como única condição ou critério, textos críticos. Porque filosofia é,
pela sua natureza, um diálogo crítico intersubjectivo. Vejo os textos
filosóficos como sendo o resultado de uma apropriação individual, sis-
tematizada mas sobretudo crítica dos diferentes argumentos expres-
sos no espaço de diálogo. Assim, para mim, o texto é filosófico se,
desde o ponto do seu autor, esse mesmo texto (escrito ou oral) trata
de questões consideradas como sendo «fundamentais» para avançar o
mesmo diálogo e, desde o ponto de vista dos outros participantes no
debate, o mesmo texto é visto como tratando questões fundamentais
para a análise dos fenómenos, processos ou interpretações em causa.
O que estou a sublinhar é que um texto filosófico é sempre resultado
da intencionalidade do autor em escrevê-lo como tal, mas também ele
se torna realmente filosófico quando os destinatários, os contra -
-arguentes, leitores ou ouvintes, o aceitam como filosófico ou têm a
impressão que está «cheio de sabedoria» ou ainda que ele «trata de
questões fundamentais» da vida. 
O texto filosófico, para além de reconhecer ou tomar conta dos
outros textos filosóficos escritos e orais sobre o mesmo assunto, deve
Objectivação e Subjectivação 41
(3) Sobre a crise ontológica e epistemológica Mamdani (1997,52) escreve: «Onto logi cally
we need to ask: What is Africa? A multiplicity of ‘races’? Who is an African? A ra cial being?
(...) If to transcend the legacy of colonialism this racial identity and to humanize fully con-
struct of ‘African’, and if this is not to turn into mere posture, do we not need to ask: What is
the historical process that makes of us, Africans. The ontological question is tied to that of
epistemology. To do African Studies is to be profoundly subversive of the tradition of African
studies. It is to redefine the study of Africa as a study of ourselves in a post-apartheid world». 
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também reflectir uma atitude crítica perante o assunto em causa. 
E, para mim, uma atitude crítica é aquela que vê/interpreta a realida-
de não como algo absoluto ou como uma necessidade, mas como con-
tingência, ou seja, uma alternativa da sua forma de aparição (do
alemão: Erscheinung) perante as nossas categorias de entendimento.
Daí resulta que a essência de uma crítica filosófica é a de apresentar
sempre alternativas de interpretação, de discursos sobre umadeter-
minada realidade social, cultural, política e económica. Se eu quiser
ser resumido, a filosofia tem, por um lado, um momento contemplati-
vo hegeliano de Zeitgeist (espírito da época), ou seja, o «resumo do
tempo (histórico) no pensamento» e, por outro lado, um momento crí-
tico marxiano de ímpeto para «transformar a sociedade». Qualquer
destes momentos é igualmente importante para o crescimento do
debate argumentativo filosófico. Não é por acaso que Marx, criticando
a filosofia de Hegel, por ele considerada «contemplativa», proclama
que die Philosophen haben die Welt nur... interpretiert, es kommt drauf an,
sie zu verändern, ou seja, os filosófos, até agora, limitaram-se a inter-
pretar o mundo, o desafio agora é transformá-lo. Marx reconhece,
sem dúvida, que para que a filosofia possa contribuir no processo da
construção de um mundo melhor, a contribuição da própria filosofia
deve ser feita após uma profunda reflexão e interpretação da singula-
ridade do «seu» tempo histórico; dos «tempos da filosofia», diria
Ngoenha.
Pelo que foi sugerido anteriormente resulta que aquele que tenha
a pretensão de escrever um texto filosófico pesa sobre ele uma tripla
responsabilidade. Em primeiro lugar ele tem a responsabilidade teóri-
ca de escolher os assuntos que pretende pôr ao debate e daí reflectir
sobre o que foi e é dito por colegas filósofos seus sobre o mesmo
assunto; esta é uma responsabilidade que se impõe ao autor obrigan-
do-o a entrar num diálogo argumentativo com os outros de forma fiel,
honesta e justa em relação aos argumentos esgrimidos pelos outros.
Ele deve ter a certeza máxima que compreendeu os argumentos do
outro para poder, de seguida, expor os seus. Em segundo lugar, o
autor do texto filosófico deve ter a responsabilidade de clarificar o seu
ponto de vista e argumentar a favor dele usando os recursos intelec-
tuais e culturais ao seu alcance; os seus pontos de vista devem ser
acerca das questões que ele escolher como sendo fundamentais para o
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debate com os outros. O filósofo deve ter a certeza sobre os pressu-
postos básicos da sua argumentação e clarificá-los no texto escrito ou
oral. Em terceiro lugar, o autor do texto filosófico tem a responsabili-
dade social no sentido de que, o que ele escreve ou diz, deve aparecer
como sendo relevante para os contemporâneos e para as futuras gera-
ções; acho que quando um autor se põe a escrever um texto que pre-
tende ser filosófico tem sempre um público a sua frente com o qual
dialoga. Na maior parte, o público são outros académicos e, muitas
vezes, os seus próprios estudantes. Os textos que resultaram no livro
Discurso Filosófico da Modernidade de Habermas, os textos que fazem
parte do livro African Religions de Mbiti, a própria obra da Filosofia
da História, Fenomenologia do Espírito, de Hegel, ou ainda o texto
Tempos de Filosofia de Ngoenha, em todas estas obras os seus autores
confessam que escrevem para os estudantes e em debate com eles;
então a responsabilidade social resulta daí mesmo: que o autor saiba
que já não será dono absoluto do seu texto ou da sua fala e que será
duplamente responsabilizado, pelo texto que escreveu (ou pelo que
disse) e pelo conjunto de interpretações orais e escritas que daí resul-
tarem. Assim, para mim, o autor do texto filosófico pode reclamar a
elaboração do texto ou da fala, mas já não pode reclamar a autoria
individual do pensamento nele expresso. Pois, o pensamento expresso
no texto ou oralmente, para ser filosófico, deve dar conta dos outros
pensamentos, melhor, deve evoluir dos textos e ditos dos outros tex-
tos e ditos aceites como filosóficos.
Este último público de estudantes explica a metodologia que uti-
lizo na escrita deste texto: em certas partes, o texto é escrito em
forma de diálogo com os autores em estudo, particularmente com
Asante, Hountondji, Ngoenha, Wiredu, Mbiti, Oruka, Ramose e
outros que constituem referências principais para suportar as minhas
ideias. Na verdade, em muitas partes do texto eu estava a conversar,
estava em diálogo com os autores: procuro perceber os seus pontos de
vista, em algumas circunstâncias recorrendo às suas biografias para
iluminar certas formas de pensamento e ideias que defendem, noutras
circunstâncias adiantando a minha opinião ou contrastando com algu-
mas opiniões de outros filósofos e pensadores. Foi por esta razão que
decidi usar o «nós» na escrita deste livro, ao invés do «eu» (como
Hountondji prefere escrever nos seus textos) ou a terceira pessoa
Objectivação e Subjectivação 43
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(como Ngoenha). O «nós» pareceu-me suficientemente adequado e
plausível por uma convicção que, de resto, procuro defender neste
livro com o termo intersubjectivação. 
O «nós», efectivamente, parte da convicção de que o conheci-
mento não se constrói no cogito individual, como Hountondji parece
em algum momento querer sublinhar, mas sim do diálogo com os
outros, mesmo que aparentemente estejamos a cogitar sozinhos no
nosso canto. Acredito que o crescimento intelectual filosófico é
somente possível quando dois ou mais sujeitos entram numa interac-
ção «intersubjectiva». Naturalmente que esta interacção só é efectiva
quando seguida ou entremeada por momentos de reflexão individual.
Mas é o momento e o espaço de intersubjectivação que é fundamental
para o desenvolvimento da filosofia, creio. É esta crença no poder do
diálogo intersubjectivo que tento fundamentar e defender neste livro.
E é esta crença que me impeliu a escrever «nós», daqui em diante.
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PARTE II
REFERENCIAIS 
DE OBJECTIVAÇÃO
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referenciais_flosofia_africana_p1a256:Layout 1 10/07/13 16:52 Page 46
Os diferentes povos africanos, enquanto olhados como colectivi-
dades — sejam elas chamadas por «tribos», «etnias», «clãs» ou
outros nomes construídos — foram e são objecto de estudo das ciên-
cias sociais, naturais e humanas. Em muitos casos, como defende
Hountondji (2008), o estudo das questões africanas foi e está confina-
do nos chamados Centros de Estudos Africanos. Estas ciências, indepen-
dentemente da sua natureza, poucas vezes resistiram à tentação de
tratar os chamados «assuntos» africanos numa perspectiva unanimis-
ta, ou seja, supondo que todos ou quase todos os falantes de uma
determinada língua africana pensam mais ou menos da mesma manei-
ra, adoram e obedecem aos mesmos deuses, acreditam nos mesmos
princípios, seguem, sem poder de resistir, os mesmos rituais tradicio-
nais, etc. Esta tem sido uma posição epistémica de partida de quem,
de forma aberta ou velada, põe como sua tarefa estudar «povos primi-
tivos» como seu objecto. Assim o fizeram os primeiros antropólogos e
assim procedem ainda hoje as diversas correntes etnocientíficas que
estudam os saberes nas «culturas locais» ou tentam descobrir pedaços
de conhecimentos científicos aparentemente escondidos por trás das
práticas e dos artefactos culturais.
Esta forma de «pesquisar» os povos africanos é objecto de muita
paixão, mas também de muita crítica. Muita paixão porque, sem dúvi-
da, através de muitos estudos, em especial dos estudos da área da
antropologia e das etnociências, foi e são ainda fixadas e inventadas
muitas tradições ou são supostamente «descobertos» muitos «conhe-
cimentos científicos» implícitos entre os aldeões. Estas «descobertas»
científicas no seio de povos indígenas não deixaram de ser fascinantes
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para os próprios cientistas assim como o eram e são para o público
consumidor, na sua maioria ocidental, desta maneira de produzir
conhecimento pretensamente científico. 
Noutros casos, porém, esta forma de «fazer» ciência tem mereci-

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