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DESCRIÇÃO O Direito Internacional Público (DIP), seu desenvolvimento histórico e sua relação com o Direito Interno. PROPÓSITO Compreender as origens e os fundamentos do Direito Internacional Público é fundamental para que se tenha um entendimento adequado sobre o seu funcionamento e todas as suas manifestações. O conhecimento das diferentes correntes teóricas permitirá aos estudantes entender debates jurídicos diversos, com emprego prático e relevante sobre a aplicação do Direito Internacional Público. PREPARAÇÃO Antes de iniciar o conteúdo, tenha em mãos um Vade Mecum de Direito Internacional ou acesso digital aos principais tratados internacionais. OBJETIVOS MÓDULO 1 Reconhecer a sociedade internacional, o papel do Direito Internacional Público no funcionamento dessa sociedade, suas origens e a evolução histórica do Direito Internacional Público MÓDULO 2 Identificar a relação entre o Direito Internacional Público e o Direito Interno a partir das principais correntes teóricas sobre o tema – o monismo e o dualismo MÓDULO 3 Definir os fundamentos do Direito Internacional Público a partir das principais correntes teóricas sobre o tema – o voluntarismo e o objetivismo – e dos ensinamentos de alguns dos principais autores da disciplina INTRODUÇÃO Nesta introdução ao Direito Internacional, buscaremos estabelecer alguns conceitos e ideias fundacionais desse importante ramo do Direito. Teremos como objetivo também apresentar a evolução histórica do Direito Internacional Público, assim como alguns de seus principais pensadores. Compreender as principais discussões teóricas sobre os fundamentos do Direito Internacional Público, assim como aquelas sobre a relação entre o Direito Internacional e o Direito Interno, será fundamental para o nosso estudo. Por exemplo, é impossível entender o processo de internalização de tratados internacionais ou compreender as fontes do Direito Internacional Público sem essa base teórica. MÓDULO 1 Reconhecer a sociedade internacional, o papel do Direito Internacional Público no funcionamento dessa sociedade, suas origens e a evolução histórica do Direito Internacional Público A SOCIEDADE INTERNACIONAL E O SISTEMA NORMATIVO INTERNACIONAL Se o Direito Internacional se define como aquele aplicável à sociedade internacional, é importante compreender esse conceito. Parte-se do reconhecimento de que as relações internacionais são definidas pela existência de Estados – comunidades políticas independentes, com governo próprio e afirmação de soberania sobre um território e um grupo de pessoas. Essa é também uma construção histórica. EXEMPLO Em outros momentos, a dita sociedade internacional era composta por cidades-Estado, como na Grécia Antiga, ou pelas monarquias helenísticas após o fim do Império de Alexandre, o Grande (BULL, 2002, p. 22). No momento atual, os Estados têm a primazia como modelo de organização política. UM SISTEMA DE ESTADOS (OU SISTEMA INTERNACIONAL) SE FORMA QUANDO DOIS OU MAIS ESTADOS TÊM SUFICIENTE CONTATO ENTRE SI, COM SUFICIENTE IMPACTO RECÍPROCO NAS SUAS DECISÕES, DE TAL FORMA QUE SE CONDUZAM, PELO MENOS ATÉ CERTO PONTO, COMO PARTE DE UM TODO. (BULL, 2002, p. 14) A medida que determinará a efetiva existência de um sistema é, portanto, a intensidade da interação entre os Estados, não necessariamente a sua qualidade. Essa interação pode, inclusive, ser direta ou indireta, assumir a forma de conflito ou de cooperação, abranger uma ampla gama de atividades (políticas, econômicas, culturais, sociais etc.) ou apenas uma delas. Basta que haja interação. A existência de uma sociedade internacional ou de uma sociedade de Estados pressupõe características adicionais que não estarão presentes, necessariamente, em todos os sistemas internacionais. De acordo com Bull (2002, p. 19), “existe uma ‘sociedade de estados’ quando um grupo de Estados, conscientes de certos valores e interesses comuns, formam uma sociedade no sentido de se considerarem ligados, no seu relacionamento, por um conjunto comum de regras, e participam de instituições comuns”. Atribui papel central, portanto, ao Direito Internacional como manifestação dos esforços de cooperação e regulação nas interações entre os Estados. O sistema normativo internacional se consubstancia por uma ampla rede de normas e princípios jurídicos que desempenham um papel na realização dos diversos objetivos compartilhados da sociedade internacional. Entre esses objetivos, destacam-se a preservação do próprio sistema e da sociedade de Estados, a manutenção da independência dos Estados individuais, a manutenção da paz e a limitação da violência (BULL, 2002, p. 23-26). CONCEITO, OBJETO E FUNDAMENTO DO DIREITO INTERNACIONAL PÚBLICO O Direito Internacional Público pode ser conceituado, de acordo com Valério Mazzuoli (2010, p. 55), da seguinte forma: (...) CONJUNTO DE PRINCÍPIOS E REGRAS JURÍDICAS (COSTUMEIRAS E CONVENCIONAIS) QUE DISCIPLINAM E REGEM A ATUAÇÃO E A CONDUÇÃO DA SOCIEDADE INTERNACIONAL (FORMADA PELOS ESTADOS, PELAS ORGANIZAÇÕES INTERNACIONAIS INTERGOVERNAMENTAIS E, TAMBÉM, PELOS INDIVÍDUOS), VISANDO ALCANÇAR AS METAS COMUNS DA HUMANIDADE E, EM ÚLTIMA ANÁLISE, A PAZ, A SEGURANÇA E A ESTABILIDADE DAS RELAÇÕES INTERNACIONAIS. Esse é um conceito que abarca os sujeitos intervenientes, as matérias reguladas e as fontes normativas consideradas, não se restringindo a um ou a outro critério. É importante distinguir o Direito Interno do Direito Internacional: DIREITO INTERNACIONAL javascript:void(0) Refere-se ao conjunto de normas jurídicas não pertencentes a uma ordem interna, regulando e regendo as relações entre os Estados e o complexo das atividades envolvendo organizações internacionais e indivíduos. DIREITO INTERNO Consubstancia-se no conjunto de normas em vigor em dado Estado. ATENÇÃO As Constituições estatais (normas de Direito Interno) preveem regras para a aplicação interna do Direito Internacional (MAZZUOLI, 2010, p. 62-63). Ao longo do último século, principalmente, notou-se uma progressiva expansão do âmbito de alcance do Direito Internacional. O seu objeto se expandiu, portanto, para incluir questões e temáticas não originalmente afetas à sua abrangência. Deixou de tratar apenas de questões de guerra e paz e comércio, passando a adentrar arenas como meio ambiente, direitos humanos, saúde, meios de comunicação e transporte, questões monetárias e financeiras, terrorismo, crime organizado, entre tantas outras. Conforme as relações internacionais se tornaram mais complexas (tanto em termos temáticos, quanto em relação aos atores envolvidos), também mais diversas se tornaram as normas de Direito Internacional. Isso, naturalmente, se deu em um processo de tensão com aquilo que era entendido como uma esfera exclusivamente doméstica de atuação e competência do Estado. Determinar o fundamento do Direito Internacional Público equivale a identificar os motivos que justificam e dão causa à sua legitimidade e obrigatoriedade. É um esforço que pretende identificar quais as origens, os fatores (fatos, valores) de onde emanam a imposição de respeito de suas normas e seus princípios. Basicamente, questiona-se por que o Direito Internacional Público se impõe aos Estados, entidades soberanas. Diversas doutrinas oferecem respostas divergentes para este conjunto de questões fundamentais. Vejamos: DOUTRINA VOLUNTARISTA Atribui a obrigatoriedade do Direito Internacional Público ao consentimento, à vontade comum dos Estados, expressa tácita ou explicitamente. O fundamento do Direito Internacional Público seria, essencialmente, o consentimento. Povos, ao realizar o princípio da autodeterminação, javascript:void(0) que se organizam sob a forma de Estados e ingressam em uma comunidade internacional sem estrutura centralizada, subordinam-se apenas ao Direito que livremente reconheceram ou construíram. DOUTRINA OBJETIVISTA Prevê a existência de princípios e normas superiores aos do ordenamento jurídico, os quais teriamprevalência sobre as vontades e os interesses dos Estados. Atribui, principalmente, ao direito natural as raízes da obrigatoriedade de normas que poderiam ser extraídas, a partir da razão humana, do que é observado como a ordem natural (e moral). DOUTRINA OBJETIVISTA TEMPERADA Reconhece que o Direito Internacional se baseia em princípios jurídicos alçados a um patamar superior ao da vontade dos Estados, mas sem que esta seja deixada completamente de lado. [O CONSENTIMENTO] NÃO É NECESSARIAMENTE CRIATIVO (COMO QUANDO SE TRATA DE ESTABELECER UMA NORMA SOBRE A EXATA EXTENSÃO DO MAR TERRITORIAL, OU DE ESPECIFICAR O ASPECTO FISCAL DOS PRIVILÉGIOS DIPLOMÁTICOS). ELE PODE SER PERCEPTIVO, QUAL SE DÁ QUANDO OS ESTADOS CONSENTEM EM TORNO DE NORMAS QUE FLUEM INEVITAVELMENTE DA PURA RAZÃO HUMANA, OU QUE SE APOIAM, EM MAIOR OU MENOR MEDIDA, NUM IMPERATIVO ÉTICO, PARECENDO IMUNES À PRERROGATIVA ESTATAL DA MANIPULAÇÃO. (REZEK, 2010, p. 3) Uma regra objetiva fundamental, fundada no consentimento perceptivo, que justifica a existência e a validade do Direito Internacional é a pacta sunt servanda, que impõe aos Estados o dever de cumprir com as obrigações aceitas livremente no exercício de sua soberania. Teria como razão de ser a sua própria indispensabilidade para a conservação da sociedade internacional e, como finalidade, a proteção do bem comum pela promoção da harmonia e das boas relações entre os povos (MAZZUOLI, 2010, p. 92-93). Essa regra foi, inclusive, posteriormente positivada na Convenção de Viena sobre Direito dos Tratados. Prevê o art. 26 que “Todo tratado em vigor obriga as partes e deve ser cumprido por elas de boa-fé”. CONVENÇÃO DE VIENA SOBRE DIREITO DOS TRATADOS A Convenção de Viena foi incorporada ao nosso sistema jurídico por meio do Decreto nº 7.030, de 14 de dezembro de 2009. No vídeo a seguir, o professor Guilherme France fala sobre conceito, objeto e fundamento do Direito Internacional Público. Vamos assistir! ORIGEM E EVOLUÇÃO HISTÓRICA DO DIREITO INTERNACIONAL PÚBLICO javascript:void(0) Um ponto de esclarecimento necessário e anterior à discussão sobre a história do Direito Internacional é sobre o condicionamento da sua existência à presença de Estados. É importante reconhecer que manifestações do Direito Internacional – entendido como um “direito intersocial” ou “intergrupal” – já se faziam presentes antes mesmo dos Estados Modernos surgirem na Europa Ocidental a partir do século XVI. E essas manifestações oferecem indícios de práticas e costumes que ganhariam força e expressão propriamente jurídica com o surgimento desses Estados (DINH et al., 2003, p. 44). Mesmo entre os impérios da Antiguidade – Egito, Babilônia, Assíria, Pérsia – já era possível identificar a presença de alguns institutos que seriam reconhecidos posteriormente como partes integrantes e fundamentais do Direito Internacional. Apesar de a guerra e a violência representarem condições permanentes que desafiavam o estabelecimento de relações pacíficas (e reguladas), criavam também condições para que determinados instrumentos fossem instituídos. Compromissos “internacionais” eram firmados por meio do mecanismo de tratados, lidando com questões como alianças ofensivas e defensivas, delimitações territoriais e acordos de paz. Acordos comerciais também eram comuns. Esses tratados se fundamentavam, em alguma medida, na base da igualdade entre as partes. A regra da pacta sunt servanda – a obrigatoriedade de se cumprir o acordado – era acompanhada (e reforçada) por juramentos religiosos. Também nesse período já era possível identificar uma rede de relações diplomáticas compostas por enviados dos reis e imperadores, os quais gozavam de determinados privilégios e prerrogativas (DINH et al., 2003, p. 46). Foto: Shutterstock.com Na Grécia Antiga, as relações “internacionais” davam-se com base em outra unidade constitutiva: as cidades-Estado. Além dos tratados comerciais e aqueles em volta da guerra e do conflito – alianças militares e tratados de paz –, nota-se o surgimento dos primeiros indícios de um direito de guerra baseado em condições humanitárias. A arbitragem emerge com uma importante inovação, sendo colocada em prática de modo recorrente para (tentar) dirimir conflitos. Mesmo no âmbito de “organizações internacionais”, alguns indícios são relevantes, como as anfictionias, agrupamentos de cidades para administrar templos religiosos, e as symmachias, organizações de defesa coletiva. Já no Império Romano, vale mencionar o surgimento do jus gentium ou Direito das gentes, que se aplica às relações entre romanos e não romanos. Ainda que essencialmente privado, já inaugura a compreensão de um Direito comum da humanidade, aplicável a todos e baseado em princípios da razão universal (DINH et al., 2003, p. 47-48). No contexto da Idade Média, a confusão e a insegurança dos conflitos internos predominaram por grande parte do continente europeu. As relações de suserania e vassalagem impõem uma lógica de subordinação e não de coordenação, como o Direito Internacional pressupõe. Há, ainda, a figura do papa, com sua pretensão de domínio universal sobre todos os monarcas e nobres. Movimentos importantes no final da Idade Média, a partir do século XV, contribuem para transformar esse cenário: Imagem: Kano Naizen / Wikimedia commons / Domínio público. AS GRANDES NAVEGAÇÕES Imagem: Armstrong and Company; Baker, Joseph E / Wikimedia commons / Domínio público. O INÍCIO DO PROCESSO DE COLONIZAÇÃO Martinho Lutero. Imagem: Netmundi.org. A REFORMA PROTESTANTE SAIBA MAIS O direito da guerra e o direito da paz, assim como o conceito de guerra justa e o próprio direito do mar, foram imprescindíveis para oferecer orientações e, principalmente, uma justificativa para as guerras de conquista nas Américas e no restante do Novo Mundo. Pensadores que se debruçaram sobre essas questões, como Francisco de Vitória, Hugo Grócio e Suárez, são responsáveis por estabelecer as bases do Direito Internacional como o conhecemos hoje. Também se fortalecem as relações comerciais (e as regras em cima das quais essas se assentam), especialmente entre as cidades mercantis do norte da Europa, que formam as ligas, e aquelas desenvolvidas pelos mercadores italianos com regiões distantes como a China e a Índia. Com a Reforma Protestante, o questionamento da autoridade papal abre espaço para que os monarcas centralizem o poder e passem a exercer a plenitude das funções estatais sobre um território claramente constituído. Os Tratados de Vestfália (1648), que colocam fim à Guerra dos Trinta Anos, representam um marco para a nova ordem interestatal europeia. Reconhecem, afinal, a soberania e a igualdade entre os Estados que estavam em processo de formação. Nos séculos que se seguem, nota-se, na Europa Ocidental, um processo de concentração dos poderes nas mãos dos monarcas, que se tornam soberanos absolutos. Os processos de formação e unificação dos Estados naquela região se estendem até o final do século XIX, com a unificação da Itália e da Alemanha (DINH et al., 2003, p. 50-54). A Primeira e a Segunda Guerras Mundiais tiveram impacto profundo sobre o desenvolvimento do Direito Internacional Público, impulsionando os Direitos Humanos e a construção de um sistema de segurança coletiva destinado a prevenir novos conflitos globais. Com os séculos XIX e XX, ganham importância as organizações internacionais, entendidas como sujeitos de Direito Internacional independentes dos Estados que as compõem. A Organização das Nações Unidas é o maior símbolo desse processo. Processos de integração regional são empreendidos, principalmente a partir da segunda metade do século XX, e a União Europeia representa o processo mais ousado de integração política, econômica e social. Também os indivíduos ascendem como sujeitos titulares de direitos e deveres perante o Direito Internacional. Foto: Patrick Gruban / Wikimedia commons / CC BY-SA 2.0. Assembleia Geral das Nações Unidas,localizada na sede da organização, em Nova York, EUA. VERIFICANDO O APRENDIZADO 1. ASSINALE A ALTERNATIVA QUE NÃO CORRESPONDE À QUESTÃO E TEMÁTICA AFETAS À ABRANGÊNCIA DO DIREITO INTERNACIONAL: A) Paz B) Guerra C) Direitos Humanos D) Meio ambiente E) Organização social e política de Estados 2. QUAL TRATADO MARCA O PRINCÍPIO DE UMA NOVA ORDEM INTERNACIONAL, MARCADA PELA EXISTÊNCIA DE ESTADOS SOBERANOS: A) Tratado de Versalhes B) Carta de São Francisco C) Tratados de Vestfália D) Protocolo de Quioto E) Tratado de Paris GABARITO 1. Assinale a alternativa que não corresponde à questão e temática afetas à abrangência do Direito Internacional: A alternativa "E " está correta. Não há qualquer previsão para o Direito Internacional regular como um Estado politicamente (presidencialismo ou parlamentarismo, por exemplo), visto tratar-se de matéria de soberania de cada Estado, ou seja, afeta única e exclusivamente por estes. 2. Qual tratado marca o princípio de uma nova ordem internacional, marcada pela existência de Estados soberanos: A alternativa "C " está correta. Ao colocar fim à Guerra dos Trinta Anos, os Tratados de Vestfália simbolizaram o início de um novo período em que os monarcas eram soberanos sobre seus territórios e populações. MÓDULO 2 Identificar a relação entre o Direito Internacional Público e o Direito Interno a partir das principais correntes teóricas sobre o tema – o monismo e o dualismo RELAÇÕES INTERNACIONAIS, SOBERANIA E AUTODETERMINAÇÃO DOS ESTADOS As relações internacionais – e o próprio sistema internacional – são marcados pela horizontalidade, já que deles participam mais de 190 Estados independentes e teoricamente iguais, sem reconhecer nenhuma autoridade superior à sua. Enquanto nos sistemas domésticos a estrutura jurídica é hierárquica, no plano internacional são os próprios Estados que criam as regras que deverão (ou não) obedecer, afinal, são todos dotados de soberania (SHAW, 2010, p. 5). Existem diversas correntes teóricas com explicações próprias e conceitos-chave para as relações internacionais: realismo, liberalismo, marxismo, construtivismo, feminismo, pós- modernismo, pós-colonialismo, entre outras. Vem da perspectiva realista o conceito de anarquia, central para a definição das relações internacionais. Nessa perspectiva, anarquia não se refere propriamente ao caos, mas “à ausência de uma autoridade suprema, legítima e indiscutível que possa ditar as regras, interpretá-las, implementá-las e castigar quem não as obedece” (NOGUEIRA; MESSARI, 2005, p. 26). Nas relações internacionais, coexistem múltiplos soberanos que não podem abrir mão do uso legítimo da força em favor de um terceiro. O chamado monopólio do uso da força, que existe no sistema doméstico, nem se vislumbra no cenário internacional. De fato, é a multiplicidade de unidades – Estados – com possibilidade (e disponibilidade) de usar da força para resolver controvérsias e conflitos que gera a necessidade de regras mínimas de convívio. O objetivo inicial do Direito Internacional é, afinal, evitar a guerra. Vejamos dois tipos de soberania, cientes de que ambos existem no plano normativo e no plano factual (BULL, 2002, p. 13): Soberania interna Corresponde à supremacia que os Estados têm em relação ao seu território e à sua população. Soberania externa Diz respeito à independência em relação a autoridades externas. O princípio da autodeterminação dos povos remonta, em seu entendimento político e histórico, ao século XIX, mas ganha força e relevância jurídica principalmente a partir do fim da Primeira Guerra Mundial. Perpassam, naquele momento, os 14 Pontos de Wilson, apresentados pelo então presidente norte-americano, Woodrow Wilson, como as bases para um sistema de paz duradouro. Apesar de não ser incorporado diretamente na Carta da Liga das Nações, ele foi empregado para abordar uma série de questões relativas a minorias que haviam surgido com o desmantelamento dos impérios multiétnicos do século XIX – o Império Austro-Húngaro e o Império Otomano. Foto: Harris & Ewing / Wikimedia commons / Domínio público. Woodrow Wilson. Na Carta da ONU (1945 (Promulgada no Brasil. Decreto nº 19.841, de 22 de outubro de 1945 ) ), o princípio da autodeterminação dos povos é, finalmente, reconhecido explicitamente: ART. 1º. OS PROPÓSITOS DAS NAÇÕES UNIDAS SÃO: 2. DESENVOLVER RELAÇÕES AMISTOSAS ENTRE AS NAÇÕES, BASEADAS NO RESPEITO AO PRINCÍPIO DE IGUALDADE DE DIREITOS E DE AUTODETERMINAÇÃO DOS POVOS, E TOMAR OUTRAS MEDIDAS APROPRIADAS AO FORTALECIMENTO DA PAZ UNIVERSAL. Naquele momento histórico, contudo, o princípio representava mais uma sinalização de intenções e não autorizava, propriamente, que minorias ou grupos étnicos se separassem de um Estado soberano ou que povos coloniais buscassem a independência (BIAZI, 2015, p. 183). Havia, de modo geral, uma disputa sobre a interpretação desse dispositivo e seu alcance, opondo países ocidentais que ainda detinham colônias e países latino-americanos, africanos e asiáticos, principalmente, que já haviam obtido sua independência, aos quais se somavam os países socialistas. A evolução do entendimento daquilo que seria visto como princípio da autodeterminação dos povos pode ser rastreada nas resoluções da Assembleia Geral da ONU (AGNU) – fórum no qual as principais discussões sobre o tema foram realizadas. Entre elas, destaca-se a Resolução 1514, de 1960, intitulada Declaração sobre a concessão da independência aos Países e Povos coloniais, por meio da qual se reiterou o direito à autodeterminação e se proclamou a necessidade de pôr fim ao colonialismo. O princípio da autodeterminação dos povos desdobra-se em dois aspectos (BIAZI, 2015, p. 191): ASPECTO EXTERNO Refere-se à independência em relação ao domínio de Estados ou autoridades não legitimamente reconhecidos como representativos daquele povo. ASPECTO INTERNO Diz respeito ao direito de um povo de determinar seu próprio regime econômico e político. Como resultado do fortalecimento deste princípio, entende-se que houve, também, uma flexibilização dos requisitos para o reconhecimento de Estados. Existem diversos requisitos formais para o reconhecimento de um novo Estado, o qual deve possuir: javascript:void(0) javascript:void(0) Imagem: Shutterstock.com TERRITÓRIO BEM DEFINIDO Foto: Shutterstock.com POPULAÇÃO PERMANENTE Foto: Shutterstock.com GOVERNO OU CAPACIDADE DE EXERCÍCIO EFETIVO DE AUTORIDADE SOB AQUELA POPULAÇÃO NAQUELE TERRITÓRIO Na prática, diversos Estados foram reconhecidos por representarem a culminação de esforços para garantir a independência de certos povos, ainda que fosse limitado o controle efetivo da autoridade política emergente sobre aquele território (SHAW, 2010, p. 152-154). Nesse sentido, a Declaração 1514 da AGNU explicita que “a falta de preparação no domínio político, social ou educativo não deve jamais servir de pretexto para atrasar a independência”. DUALISMO Em resumo, a teoria dualista propõe que o Direito Interno e o Direito Internacional são sistemas jurídicos distintos que, apesar de algum contato, não se sobrepõem jamais. Como regulam relações diferentes, é impossível que haja conflito entre suas fontes (TRIEPEL, 1923, p.83). De acordo com Carl Triepel (1923, p. 80-82), um dos principais expoentes do dualismo, a distinção principal entre o Direito Interno e o Direito Internacional Público refere-se às relações sociais que eles regem. Vejamos: Direito Interno É aquele estabelecido dentro de uma comunidade política nacional – incluindo Direito estatal positivo, Direito costumeiro e Direito privado. Direito Internacional Regula as relações entre os Estados, e apenas entre os Estados iguais. As relações entre os Estados e suas subdivisões políticas não estariam incluídas. Tampouco as relações com os indivíduos, que não estariam sujeitos ao Direito Internacional. É, portanto, pela razão de que regula diferentes relações (apenas entre os Estados), queo Direito Internacional é diferente do Direito Interno. As fontes do Direito Internacional não poderão jamais substituir as do Direito Interno, que devem agir por elas próprias. Um tratado internacional não é meio de criação do Direito Interno; no máximo constitui convite para que os legisladores domésticos criem seu Direito, como um ato particular de vontade do Estado. Não se pode dizer, por exemplo, que a publicação do texto de um tratado gera obrigações para os sujeitos do Direito Doméstico – pode ser, no máximo, que a publicação constitua forma de manifestação da vontade estatal e, assim, gere essas obrigações. Uma fonte de Direito Internacional não poderá, jamais, criar regras de Direito Interno, da mesma forma que uma regra de Direito Interno não poderá criar Direito Internacional (TRIEPEL, 1923, p. 84). As comunicações entre as duas ordens só poderiam se realizar por meio de processos próprios a cada ordem jurídica e pela transformação da norma internacional em norma interna, ou vice- versa. Ou seja, um tratado não seria recebido pelo ordenamento interno, a não ser que passasse pelo processo de introdução formal que, ao seu fim, o “transformaria” em norma interna. ATENÇÃO Ao ser parte de um tratado, o Estado se obriga perante as outras pessoas jurídicas estrangeiras, sem que isso influencie seu ordenamento jurídico interno. Para que se fale em recepção, é necessário que a regra estatal corresponda, de forma exata, ao conteúdo da norma internacional – qualquer modificação impossibilita essa referência. Quando um Estado, para cumprir com obrigações internacionais, cria determinadas normas destinadas aos indivíduos, claramente não está reproduzindo fielmente a norma internacional (TRIEPEL, 1923, p. 98). A fonte do Direito Interno pode ser obrigada ou autorizada pelo Direito Internacional a criar (ou não) o direito. É a imposição de um dever internacional ao Estado. Para concretizar essa tarefa, o Direito Internacional precisa recorrer ao Direito Interno – afinal, só assim poderá realizar aquela obrigação na vida interna do Estado (TRIEPEL, 1923, p. 106). Em um cenário de dualismo puro, o processo de produção da norma de Direito Interno, ainda que prevista ou autorizada pelo Direito Internacional, começará do zero, assim como a produção de qualquer outra norma fora da influência do Direito Internacional. Trata-se de um processo legislativo completamente independente. Na prática, para o dualismo puro, o que se exige para a efetiva recepção da norma de Direito Internacional no plano doméstico – entendida como uma norma separada, diferente e independente – é o seguinte processo: A norma internacional (ex.: um tratado), para que vincule o Estado no plano internacional, deve passar pelo processo de ratificação que, na maioria dos casos, exige uma manifestação positiva do Congresso Nacional, anterior ao depósito do instrumento de ratificação. Um novo processo legislativo se desencadeia para que a norma doméstica, com as devidas adaptações, seja discutida, deliberada e aprovada pelo Congresso (e pelo chefe do poder Executivo) e entre em vigor no plano doméstico. O dualismo moderado reconhece a necessidade de um ato formal de internalização, mas não, necessariamente, a “repetição” dos processos legislativos. Assim, no plano doméstico brasileiro, que adota esta corrente, exige-se a promulgação interna do tratado, por meio de um decreto presidencial executivo, que deve ser publicado ao final do processo de ratificação, para que aquela norma internacional adquira vigência plena no ordenamento doméstico (MAZZUOLI, 2010, p. 70). Esta promulgação (interna) ocorre em paralelo ao processo externo, em que os instrumentos de ratificação são depositados ou trocados, de acordo com a previsão do tratado em específico. Foto: Shutterstock.com MONISMO Em resumo, a teoria monista sustenta que o Direito Internacional tem aplicação direta na ordem jurídica dos Estados, sem depender de qualquer processo de transformação ou incorporação das normas internacionais. O Direito Internacional e o Direito Interno seriam dois ramos dentro de um mesmo sistema jurídico. Hans Kelsen (1926, p. 267-268), um dos principais defensores do monismo, postula a unidade do sistema normativo porque seria impossível reconhecer o caráter obrigatório a dois sistemas jurídicos realmente diferentes (que decorram de duas fontes diferentes). Efetivamente, opera- se apenas com um sistema de normas – assim, não existiriam conflitos insolúveis entre normas e obrigações. Todos os conflitos aparentes poderiam ser resolvidos pelos seguintes critérios: CRITÉRIO CRONOLÓGICO Uma lei posterior derroga uma lei anterior. CRITÉRIO HIERÁRQUICO javascript:void(0) javascript:void(0) Quando uma norma não respeitar sua norma superior, formal ou materialmente, ela será considerada nula. Existiriam duas formas de relacionamento entre sistemas normativos: a coordenação e a subordinação. COORDENAÇÃO SUBORDINAÇÃO ATENÇÃO Como a coordenação também implica uma subordinação (dos dois sistemas coordenados a um terceiro que subordina aqueles), é ela que importa na prática. Quando um sistema se subordina ao outro, quer dizer que o sistema inferior busca seu fundamento de validade em uma norma do superior, sendo sua fonte strictu sensu. Essa norma fundamental fará parte dos dois sistemas, portanto. O que haveria, ao final das contas, não são dois sistemas subordinados, mas um único sistema, com uma mesma fonte no topo da pirâmide, sendo impossível um conflito de normas entre eles (há apenas conflitos aparentes que serão resolvidos de acordo com a aplicação dos critérios já enunciados) (KELSEN, 1926, p. 269-271). Kelsen critica o dualismo porque este implicaria uma negação da natureza jurídica do Direito Internacional, afinal, seria impossível o reconhecimento mútuo da natureza obrigatória das regras de dois sistemas distintos. Assim, o Direito Internacional seria apenas uma forma de moral ou uma manifestação do direito natural. Na sua construção lógica, uma regra não pode ser considerada jurídica se não tiver como fonte de validade outra norma jurídica. Kelsen também critica a ideia de que não haveria conflitos porque os Direitos Interno e Internacional se ocupariam de objetos diferentes. A realidade é que sempre o objeto corresponderá às relações entre indivíduos, com a determinação de obrigações e direitos. Mesmo as relações entre Estados e entre Estado e indivíduos são, no fundo, relações entre indivíduos – indivíduos cujas obrigações ou direitos são imputados, por qualquer razão, ao Estado. O fato de que a conduta pode ou não ser imputada ao Estado não muda em nada a natureza da relação jurídica – são relações estabelecidas pelo direito entre atos individuais (KELSEN, 1926, p. 275-282). As normas de Direito Internacional regulariam, portanto, diretamente as relações jurídicas entre os indivíduos. Nesse contexto de aplicação direta, seria inútil e até contraditório estabelecer mecanismos e processos, no Direito Doméstico, para que as normas internacionais se tornassem aplicáveis. Não haveria, portanto, processo de recepção formal para que as normas internacionais adentrassem o ordenamento doméstico (DINH et al., 2003, p. 96). EXEMPLO Não faria sentido, em um modelo puramente monista, todo o processo doméstico de ratificação dos tratados internacionais que envolve, no caso do Brasil, o envio do tratado pelo Presidente da República ao Congresso Nacional, a tramitação de um projeto de decreto legislativo pela Câmara dos Deputados e pelo Senado Federal, a sua promulgação e publicação pelo Presidente do Congresso e, posteriormente, a promulgação e publicação do decreto executivo pelo Presidente (art. 49, I; 84, VIII da Constituição Federal). Importante norma internacional endossa o entendimento monista: o art. 27 da Convenção de Viena sobre Direito dos Tratados prevê que “uma parte não pode invocar as disposições de seu Direito Interno para justificar o inadimplementode um tratado.” Situações de conflitos são possíveis nesse contexto de um sistema jurídico único comportando normas internas e internacionais e, para tais conflitos, soluções são oferecidas por três correntes: INTERNACIONALISTA OU RADICAL MODERADA NACIONALISTA INTERNACIONALISTA OU RADICAL Propõe a supremacia do Direito Internacional sobre o Direito Interno. Nesse contexto, recorrendo à imagem da pirâmide, a própria Constituição estaria sujeita e buscaria sua legitimidade no Direito Internacional, sendo a norma fundamental pacta sunt servanda o ápice daquela pirâmide de normas. O Direito Interno, portanto, deriva do Direito Internacional e deverá ceder, em caso de conflito, em favor da ordem internacional. MODERADA Equipara hierarquicamente o Direito Interno e o Internacional, sujeitando a resolução dos conflitos ao critério cronológico (lex posterior derogat priori). Não haveria primazia de uma ordem jurídica sobre a outra, mas sim concorrência. NACIONALISTA Defende a primazia do Direito Nacional de cada Estado soberano, sendo a adoção dos preceitos do Direito Internacional uma faculdade discricionária. (...) OS MONISTAS NACIONALISTAS ACEITAM A INTEGRAÇÃO DO PRODUTO EXTERNO CONVENCIONAL AO DIREITO INTERNO, MAS SOB O PONTO DE VISTA DO PRIMADO DA ORDEM JURÍDICA ESTATAL, VALENDO TAL INTEGRAÇÃO SOMENTE NA MEDIDA EM QUE O ESTADO RECONHECE COMO VINCULANTE EM RELAÇÃO A SI A OBRIGAÇÃO CONTRAÍDA. (MAZZUOLI, 2010, p. 78) A Constituição teria primazia e o Direito Internacional só é internamente obrigatório na medida em que e porque o Direito Interno o reconhece como vinculante. No vídeo a seguir, o professor Guilherme France trata dos conceitos e das distinções entre monismo e dualismo. Vamos assistir! VERIFICANDO O APRENDIZADO 1. QUAL CORRENTE TEÓRICA PRESSUPÕE A EXISTÊNCIA DE DOIS SISTEMAS JURÍDICOS DISTINTOS – UM NO PLANO DOMÉSTICO E OUTRO NO PLANO INTERNACIONAL – QUE NÃO SE SOBREPÕEM? A) Objetivismo B) Voluntarismo C) Dualismo D) Positivismo E) Monismo 2. QUAL AUTOR DEFENDE O MONISMO? A) Hans Kelsen B) Carl Triepel C) Santo Agostinho D) Hugo Grócio E) Woodrow Wilson GABARITO 1. Qual corrente teórica pressupõe a existência de dois sistemas jurídicos distintos – um no plano doméstico e outro no plano internacional – que não se sobrepõem? A alternativa "C " está correta. “Em resumo, a teoria dualista propõe que o Direito Interno e o Direito Internacional são sistemas jurídicos distintos que, apesar de algum contato, não se sobrepõem jamais. Como regulam relações diferentes, é impossível que haja conflito entre suas fontes” (TRIEPEL, 1923, p.83). 2. Qual autor defende o monismo? A alternativa "A " está correta. Kelsen é um dos principais proponentes do monismo. MÓDULO 3 Definir os fundamentos do Direito Internacional Público a partir das principais correntes teóricas sobre o tema – o voluntarismo e o objetivismo – e dos ensinamentos de alguns dos principais autores da disciplina VOLUNTARISMO E OBJETIVISMO NO DIREITO INTERNACIONAL A discussão sobre a fundamentação do Direito Internacional Público é um esforço para determinar os fatos que atribuem a natureza obrigatória, no senso jurídico, às normas e aos princípios do Direito Internacional. A doutrina voluntarista tem uma base positivista e extrai a obrigatoriedade do Direito Internacional do consentimento ou da vontade comum dos Estados. O Direito Internacional Público seria obrigatório porque os Estados, expressa ou tacitamente, assim o desejam e querem. Como afirma Mazzuoli (2010, p. 90), “o seu fundamento encontra suporte na vontade coletiva dos Estados ou no consentimento mútuo destes, sem qualquer predomínio da vontade individual de qualquer Estado sobre os outros”. ATENÇÃO O voluntarismo se confunde com o estatismo: se o direito se baseia na vontade do Estado, só existem regras positivas fundadas sobre a sua vontade que são expressa e regularmente formuladas pelos órgãos do Estado que têm competência para exprimir esta vontade, independentemente da sua constituição. O critério central é a competência do órgão que elabora o direito e a regularidade do procedimento utilizado para esse fim. Nota-se uma preocupação muito maior com o seu aspecto formal do que com o material, afinal, a força obrigatória do direito advém da sua origem e não da conformidade do seu conteúdo. A vontade criadora do direito é autônoma na medida em que não está subordinada ao seu conteúdo, mas o domina. A autonomia desta vontade é absoluta (DINH et al., 2003, p. 101). No plano do Direito Internacional, essa corrente teórica enfrenta o desafio de explicar se o Estado soberano se vincula apenas à sua própria vontade. Surgem teorias para explicar este dilema. Vejamos duas delas: AUTOLIMITAÇÃO DO ESTADO VONTADE COMUM AUTOLIMITAÇÃO DO ESTADO Teoria de Georg Jellinek, a qual propõe a origem do Direito Internacional na disposição dos Estados de se autolimitar na relação com outros Estados, fazendo isso em seu próprio interesse para atender às necessidades da sociedade internacional da qual é membro (por exemplo, impedir conflitos e promover a cooperação). VONTADE COMUM Teoria de Heinrich Triepel, a qual funda o Direito Internacional Público não na vontade individual dos Estados, mas na vontade comum, resultado da fusão de vontades dos membros da sociedade internacional (DINH et al., 2003, p. 102). COMENTÁRIO Há importantes críticas ao voluntarismo. Primeiramente, implica uma ausência de limitação aos poderes do Estado, visto que só se vinculam por atos voluntários. Tudo seria permitido. É inconcebível – e de fato não é o que se observa na prática – que entidades, ainda que soberanas, coexistam sem regras jurídicas mínimas que lhes imponham limites às suas expressões de vontade. A noção de jus cogens, como será visto, é exemplo disso (DINH et al., 2003, p. 104-105). Já a doutrina objetivista afirma o seguinte: (...) A OBRIGATORIEDADE DO DIREITO INTERNACIONAL ADVÉM DA EXISTÊNCIA DE PRINCÍPIOS E NORMAS SUPERIORES AOS DO ORDENAMENTO JURÍDICO ESTATAL, UMA VEZ QUE A SOBREVIVÊNCIA DA SOCIEDADE INTERNACIONAL DEPENDE DE VALORES SUPERIORES QUE DEVEM TER PREVALÊNCIA SOBRE AS VONTADES E OS INTERESSES DOMÉSTICOS DOS ESTADOS. (MAZZUOLI, 2010, p. 91) Buscar a obrigatoriedade do Direito Internacional fora da vontade dos Estados leva a um esforço de análise que envolve outras disciplinas não jurídicas, como a Sociologia e a História, desembocando, também, no direito natural. Aqueles que se atêm ao direito natural dão primazia a valores morais, extraídos da ordem natural, utilizando conceitos mais ou menos vagos, como, por exemplo: Conceitos mais vagos Justiça e ética Conceitos menos vagos Obrigação de respeitar os compromissos assumidos e reparar danos injustamente causados Os defensores do positivismo sociológico explicam a obrigatoriedade do Direito Internacional em função das necessidades sociais, a partir das quais surgem normas que se tornam jurídicas pela sua aceitação coletiva, o que poderia ser transposto para o plano internacional (DINH et al., 2003, p. 107). PRINCÍPIOS DO DIREITO INTERNACIONAL PÚBLICO E JUS COGENS Os princípios gerais de Direito são reconhecidos como uma das fontes do Direito Internacional Público pelo próprio Estatuto da Corte Internacional de Justiça que oferece uma lista balizada de fontes em seu artigo 38. A sua importância repousa na necessidade de se preencher eventuais lacunas que poderiam impedir a resolução de controvérsias – é a chamada proibição do non liquet (Não está claro.) . ATENÇÃO Toda situação internacional é passível de determinação, enquanto questão de Direito, mesmo que não haja uma norma obviamente aplicável. Uns afirmam tratar-se de postulados do direito natural que estariam por trás do sistema de Direito Internacional e constituiriam o critério de validade das normas positivas. Outros, principalmente os positivistas, tratam dos princípios como reiterações, subitens do direito costumeiro e dos tratados,sem trazer, por si, inovações significativas. De modo geral, se reconhece que os “princípios gerais de direito reconhecidos pelas nações civilizadas” são fontes autônomas do Direito Internacional, mas com alcance limitado, como é reconhecido pela jurisprudência da Corte Internacional de Justiça (SHAW, 2010, p. 79). Nessa jurisprudência é possível identificar alguns princípios já explicitados: O dever de reparação em resposta a um ato contrário ao Direito Internacional. O respeito à coisa julgada. O princípio da preclusão. O respeito aos direitos adquiridos. O princípio da boa-fé. DICA Fica evidente que esses princípios reconhecidos se originam tanto dos ordenamentos jurídicos internos dos Estados, quanto do próprio Direito Internacional. O conceito de jus cogens baseia-se na ideia de que existem valores fundamentais e superiores dentro do sistema normativo internacional, os quais não poderiam ser afastados, substituídos ou eliminados a partir de manifestações volitivas por parte dos Estados que o compõem. Encontra-se explicitado no art. 53 da Convenção de Viena sobre Direito dos Tratados: É NULO UM TRATADO QUE, NO MOMENTO DE SUA CONCLUSÃO, CONFLITE COM UMA NORMA IMPERATIVA DE DIREITO INTERNACIONAL GERAL. PARA OS FINS DA PRESENTE CONVENÇÃO, UMA NORMA IMPERATIVA DE DIREITO INTERNACIONAL GERAL É UMA NORMA ACEITA E RECONHECIDA PELA COMUNIDADE INTERNACIONAL DOS ESTADOS COMO UM TODO, COMO NORMA DA QUAL NENHUMA DERROGAÇÃO É PERMITIDA E QUE SÓ PODE SER MODIFICADA POR NORMA ULTERIOR DE DIREITO INTERNACIONAL GERAL DA MESMA NATUREZA. SAIBA MAIS Também entendida como norma imperativa de Direito Internacional, a norma jus cogens não pode ser derrogada nem por uma norma positivada, nem por um costume local ou especial. Apenas outra norma jus cogens teria o condão de modificá-la. Exemplos são a proibição do uso ilícito da força, da prática do genocídio, do tráfico de escravos e da pirataria. Nota-se que constituem normas a partir de valores amplamente compartilhados pela sociedade, mas que são fruto de uma construção histórica: o tráfico de escravos era, por exemplo, prática comum e aceita até o século XIX. Imagem: Johann Moritz Rugendas / Wikimedia commons / Domínio público. Quadro Negres a fond de calle (Navio negreiro), de Johann Moritz Rugendas, 1830. A constituição de uma norma desse tipo se dá em dois estágios: A proposição se firma como uma norma de Direito Internacional geral. Ganha aceitação como uma norma imperativa pelos membros da sociedade internacional. A aceitação universal é fundamental para que esta norma jurídica alcance o estágio de constituição de uma norma jus cogens. Nesse processo de formação e constituição de novas normas de jus cogens, a Convenção de Viena de Direito dos Tratados prevê o que acontecerá com normas anteriores que, porventura, não se coadunem com os seus preceitos – prevê o art. 64: SE SOBREVIER UMA NOVA NORMA IMPERATIVA DE DIREITO INTERNACIONAL GERAL, QUALQUER TRATADO EXISTENTE QUE ESTIVER EM CONFLITO COM ESSA NORMA TORNA-SE NULO E EXTINGUE-SE. No vídeo a seguir, o professor Guilherme France analisa os princípios do Direito Internacional, assim como o jus cogens e a construção de normas desse tipo. Vamos assistir! NATUREZA DO DIREITO INTERNACIONAL: CARL SCHMITT, HANS KELSEN, HERBERT HART E RONALD DWORKIN Carl Schmitt localizou o fundamento do Direito Internacional na necessidade de se ordenar o espaço. De forma geral, o Direito tem uma relação direta com o espaço, determinando como ele é distribuído e como seus recursos são aproveitados. Não é diferente com todas as ordens internacionais na história. A origem do Direito Internacional estaria justamente nas divisões territoriais que delimitam o espaço e diferenciam o interior do exterior, o eu do outro. Durante séculos, até a Primeira Guerra Mundial, uma ordenação centralizada na Europa Ocidental (que dominava o restante do globo), na soberania absoluta e na premência dos Estados territoriais havia vigorado. A partir de 1914, esta ordenação teria caído por terra. No entanto, deu origem à necessidade de novos modelos de organização. A formulação do universalismo humanista da Liga das Nações seria incapaz de oferecer essa ordenação, pois se encontrava entre os dois extremos: não havia constituído um Estado mundial capaz de pôr fim às divisões territoriais, tampouco construiu uma ordem baseada nos Estados soberanos, já que se mostrava por demais idealista (NETO; ZANELLA, 2014). Foto: Benutzer:Filzstift / Wikimedia commons / Domínio público. Palácio das Nações, sede da Liga das Nações, em Genebra, Suíça. Com um realismo particular, Schmitt propôs, assim, uma nova divisão espacial que reconhecesse a hegemonia de determinadas potências sobre regiões do globo. A doutrina Monroe é um exemplo disso. O Direito Internacional deveria funcionar para sustentar determinado status quo territorial. Nesse sentido, “a força jurídica da ordem internacional da modernidade emerge da terra, de uma determinada ordenação que se sente comum e que se entende ser bom conservar”. O sentimento de pertencimento a um espaço comum – ordenado de uma forma particular – obriga o Estado, até porque este está convencido da conveniência de se manter aquela ordenação. Em essência, a finalidade do Direito Internacional é limitar a guerra – não a eliminar, posto que isso era considerado impossível (NETO; ZANELLA, 2014). Ao desenvolver a chamada teoria pura do Direito, Hans Kelsen pretendia despojá-lo de todas as considerações e elementos externos, como a questão da justiça, da política, da Sociologia e da História. Pretendia, assim, definir o Direito unicamente em função de seus elementos internos, como uma ciência normativa, feita de normas que determinam padrões de comportamento. Cada norma depende, para sua validade, de uma norma anterior, de modo que o processo continua até que se alcance a chamada norma fundamental de todo o sistema, que alicerça o sistema jurídico, dando o caráter jurídico às normas que dela dependem (SHAW, 2010, p. 41). Foto: Shutterstock.com COMENTÁRIO No âmbito do Direito Internacional, essa estrutura lógica de validade encontra dificuldades. Kelsen percebe o Direito Internacional como um ordenamento jurídico primitivo, já que inexistem órgãos fortes com função legislativa, judicial e executiva. Assim como em uma sociedade no período anterior à constituição do Estado, a autotutela é a única forma de se fazer garantir os direitos. No plano lógico da busca por uma norma fundamental, no Direito Internacional, esse esforço recai sobre o costume como fonte do Direito e, mais especificamente, sobre a norma costumeira pacta sunt servanda, a qual prescreve que os compromissos assumidos devem ser cumpridos de boa-fé. Sobre esta norma, todo o restante do ordenamento jurídico internacional se assentaria (SHAW, 2010, p. 42). Herbert Hart retoma o positivismo, mas oferece um quadro mais sociológico. Afinal, ele compreende o Direito como um sistema de normas baseado na interação entre normas primárias e secundárias: NORMAS PRIMÁRIAS Detalham padrões de conduta. NORMAS SECUNDÁRIAS Oferecem os meios pelos quais esses padrões podem ser identificados e desenvolvidos (e alterados). As sociedades primitivas possuíam, de acordo com essa lógica, somente normas primárias, o que geraria incerteza, ineficiência e estagnação. A sofisticação da sociedade levaria ao desenvolvimento de normas secundárias, de modo a identificar a autoridade responsável por ditar as normas de conduta e o processo por meio do qual estas se adaptariam às circunstâncias da vida, de modo ordeiro e previsível (SHAW, 2010, p. 43). O ordenamento jurídico internacional constituiria um exemplo de sociedade primitiva no qual, considerando a ausência de um poder legislativo centralizado, de um conjunto de tribunais com jurisdição compulsória e de meios organizados para a imposição das leis, só existiriam normas primárias. Não haveria, ainda, normafundamental ou de reconhecimento que servisse de parâmetro de validade para todas as outras normas. Em conclusão, Hart postula que as “regras do Direito Internacional não constituem ainda um ‘sistema’, mas configuram tão-somente um ‘conjunto de normas’” (SHAW, 2010, p. 43, grifo nosso). Ronald Dworkin (2013, p. 10) não aceita o consentimento autolimitante dos Estados como a base do Direito Internacional, preferindo um retorno à concepção parcialmente moral da disciplina. No entendimento de Dworkin, os Estados teriam uma obrigação geral de ampliar sua própria legitimidade política. Como o Direito Internacional é parte do sistema coercivo que os Estados impõem aos seus cidadãos, esse dever inclui ampliar a legitimidade da ordem legal internacional. Isso poderia ser feito por um esforço para minimizar as deficiências e os riscos que a soberania sem restrições produz. Mais especificamente, os Estados devem proteger os Direitos Humanos, garantir a assistência da comunidade internacional em caso de invasões ou ameaças externas contra a independência de um Estado, promover a cooperação internacional e promover a participação política das pessoas em seus próprios governos. javascript:void(0) javascript:void(0) Foto: Shutterstock.com O dever de minimizar as imperfeições do sistema estatal baseado na soberania é um princípio estrutural do Direito Internacional, assim com o princípio da saliência, de acordo com o qual o Estado tem o dever de aderir a normas consensuais que emerjam, caso elas contribuam com aqueles objetivos acima referidos. Afinal, isso promoverá a legitimidade da ordem legal internacional. VERIFICANDO O APRENDIZADO 1. AS NORMAS IMPERATIVAS DE DIREITO INTERNACIONAL SÃO CONHECIDAS COMO? A) Rebus sic stantibus B) Jus cogens C) Normas fundamentais D) Normas constitucionais E) Normas primárias 2. A DOUTRINA VOLUNTARISTA EXTRAI A BASE PARA A OBRIGATORIEDADE DO DIREITO INTERNACIONAL DE: A) Direito natural B) Moral e ética C) Guerra D) Consentimento E) Constituições nacionais GABARITO 1. As normas imperativas de Direito Internacional são conhecidas como? A alternativa "B " está correta. Também entendida como norma imperativa de Direito Internacional, a norma de jus cogens não pode ser derrogada nem por uma norma positivada, nem por um costume local ou especial. 2. A doutrina voluntarista extrai a base para a obrigatoriedade do Direito Internacional de: A alternativa "D " está correta. A doutrina voluntarista tem uma base positivista e extrai a obrigatoriedade do Direito Internacional do consentimento ou da vontade comum dos Estados. CONCLUSÃO CONSIDERAÇÕES FINAIS O Direito Internacional Público é alvo de frequentes questionamentos acerca da sua obrigatoriedade e mesmo do seu caráter jurídico. Esses questionamentos acompanham-no desde sua fundação e motivaram inúmeros debates acerca do fundamento de sua obrigatoriedade. A existência de limites à conduta dos Estados – soberanos por definição – é igualmente objeto de questionamentos permanentes. Esses debates foram travados e propiciaram o fortalecimento do Direito Internacional como disciplina jurídica. Ao longo da história, o Direito Internacional Público moldou e foi moldado pelos eventos. A formação dos Estados Modernos, as grandes guerras e a fundação da Organização das Nações Unidas são alguns dos processos que transformaram o Direito Internacional. Aumentaram o seu âmbito de alcance, incluindo novas matérias e temas, e introduziram novos sujeitos, além de colocarem os Direitos Humanos como limitação inescapável aos Estados. Mais recentemente, o fim da Guerra Fria e a guerra contra o terror impuseram novos desafios ao Direito Internacional. Retornar e compreender as suas bases é essencial para compreendê- los e perceber a permanente atualidade e relevância daqueles debates históricos. AVALIAÇÃO DO TEMA: REFERÊNCIAS BIAZI, C. A. S. M. O princípio de autodeterminação dos povos dentro e fora do contexto da descolonização. Revista da Faculdade de Direito UFMG, n. 67, p. 181-212, 2015. BULL, H. A sociedade anárquica: um estudo da ordem na política mundial. São Paulo: Universidade de Brasília, 2002. DINH, N. Q.; DAILLER, P.; PELLET, A. Direito Internacional Público. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian, 2003. DWORKIN, R. A new philosophy for International Law. Philosophy & Public Affairs, v. 41, n. 1, 2013, p. 2-30. KELSEN, H. Les Rapports de Système entre droit interne et le droit international public. RCADI, v. 14, 1926. MAZZUOLI, V. O. Curso de Direito Internacional Público. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2010. NETO, C. E. S.; ZANELLA, I. O Direito Internacional na concepção de Carl Schmitt e o debate entre os conceitos de guerra anglo-saxão e europeu-continental. Revista de Estudos Jurídicos UNESP, v. 18, n. 28, 2014. NOGUEIRA, J. P.; MESSARI, N. Teoria das Relações Internacionais: correntes e debates. Rio de Janeiro: Elsevier, 2005. ORGANIZAÇÃO DAS NAÇÕES UNIDAS. Carta das Nações Unidas. São Francisco, 1945. Consultado na internet em: 20 out. 2021. REZEK, F. Direito Internacional: curso elementar. Rio de Janeiro: Saraiva, 2010. SHAW, M. N. Direito Internacional. São Paulo: Martins Fontes, 2010. TRIEPEL, C. H. Les Rapports entre le droit interne et le droit international. RCADI, v. 1, 1923. EXPLORE+ Procure assistir ao filme O julgamento em Nuremberg, lançado em 1961, com direção de Stanley Kramer. Busque ler o livro A Teoria Pura do Direito, de Hans Kelsen. Conheça o site da Corte Internacional de Justiça. Dedique um tempo para escutar o podcast Direito Internacional Hoje, da profa. Aline Beltrame de Moura, da UFSC. CONTEUDISTA Guilherme France CURRÍCULO LATTES javascript:void(0);
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