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1 Julyana de Aquino Guerreiro Araújo PINESC I Sistema único de saúde: princípios doutrinários e organizacionais Introdução O Sistema Único de Saúde (SUS), criado pela Lei no 8.080, de 19 de setembro de 1990, também chamada de "Lei Orgânica da Saúde", é a tradução prática do princípio constitucional da saúde como direito de todos e dever do Estado e estabelece, no seu artigo 7o, que "as ações e serviços públicos de saúde e os serviços privados contratados ou conveniados que integram o Sistema Único de Saúde (SUS) são desenvolvidos de acordo com as diretrizes previstas no art. 198 da Constituição Federal, obedecendo ainda aos seguintes princípios: I. universalidade de acesso aos serviços de saúde em todos os níveis de assistência; II. integralidade de assistência, entendida como conjunto articulado e contínuo das ações e serviços preventivos e curativos, individuais e coletivos, exigidos para cada caso em todos os níveis de complexidade do sistema; III. preservação da autonomia das pessoas na defesa de sua integridade física e moral; IV. igualdade da assistência à saúde, sem preconceitos ou privilégios de qualquer espécie; V. direito à informação, às pessoas assistidas, sobre sua saúde; 2 Julyana de Aquino Guerreiro Araújo VI. divulgação de informações quanto ao potencial dos serviços de saúde e a sua utilização pelo usuário; VII. utilização da epidemiologia para o estabelecimento de prioridades, a alocação de recursos e a orientação programática; VIII. participação da comunidade; IX. descentralização político-administrativa, com direção única em cada esfera de governo: a) ênfase na descentralização dos serviços para os municípios; b) regionalização e hierarquização da rede de serviços de saúde; X. integração em nível executivo das ações de saúde, meio ambiente e saneamento básico; XI. conjugação dos recursos financeiros, tecnológicos, materiais e humanos da União, dos Estados, do Distrito Federal e dos Municípios na prestação de serviços de assistência à saúde da população; XII. capacidade de resolução dos serviços em todos os níveis de assistência; e XIII. organização dos serviços públicos de modo a evitar duplicidade de meios para fins idênticos. XIV. Sendo assim, os princípios e diretrizes do Sistema único de Saúde (SUS) constituem as bases para o funcionamento e organização do sistema de saúde em nosso país, afirmando direitos conquistados historicamente pelo povo brasileiro e o formato democrático, humanista e federalista que deve caracterizar sua materialização. Neste sentido, os princípios e diretrizes do SUS devem ser compreendidos a partir de uma perspectiva histórica e epistemológica, constituindo-se como um produto resultante de um processo político e que expressa concepções sobre saúde e doença, direitos sociais, gestão, as relações entre as esferas de governo do país, entre outros. 3 Julyana de Aquino Guerreiro Araújo A base legal do SUS é constituída fundamentalmente por três documentos que expressam os elementos básicos que estruturam e organizam o sistema de saúde brasileiro. São eles: 1 - A Constituição Federal de 1988, na qual a saúde é um dos setores que estruturam a seguridade social, ao lado da previdência e da assistência social (Brasil, 1988). 2 - A lei 8.080, de 19 de setembro de 1990, também conhecida como a Lei Orgânica da Saúde e que dispõe principalmente sobre a organização e regulação das ações e serviços de saúde em todo território nacional (Brasil, 1990a). 3 - A lei 8.142, de 28 de dezembro de 1990, que estabelece o formato da participação popular no SUS e dispõe sobre as transferências intergovernamentais de recursos financeiros na área da saúde (Brasil, 1990b). Ao lado do conceito ampliado de saúde, o SUS traz dois outros conceitos importantes: o de sistema e a ideia de unicidade. A noção de sistema significa que não estamos falando de um novo serviço ou órgão público, mas de um conjunto de várias instituições, dos três níveis de governo e do setor privado contratado e conveniado, que interagem para um fim comum. Na lógica do sistema público, os serviços contratados e conveniados são seguidores dos mesmos princípios e das mesmas normas do serviço público. Os elementos integrantes do sistema referem-se, ao mesmo tempo, às atividades de promoção, proteção e recuperação da saúde. Este sistema é único, ou seja, deve ter a mesma doutrina e a mesma forma de organização em todo o país. Mas é preciso compreender bem esta ideia de unicidade. Num país com tamanha diversidade cultural, econômica e social como o Brasil, pensar em organizar um sistema sem levar em conta estas diferenças seria uma temeridade. O que é definido como único na Constituição é um conjunto de elementos 4 Julyana de Aquino Guerreiro Araújo doutrinários e de organização do sistema de saúde, os princípios da universalização, da equidade, da integralidade, da descentralização e da participação popular. Estes elementos se relacionam com as peculiaridades e determinações locais, por meio de formas previstas de aproximação da gerência aos cidadãos, seja com a descentralização político-administrativa, seja através do controle social do sistema. O SUS pode, então, ser entendido a partir da seguinte imagem: um núcleo comum (único), que concentra os princípios doutrinários, e uma forma de organização e operacionalização, os princípios organizativos. Princípios Doutrinário Universalização Historicamente, quem tinha direito à saúde no Brasil eram apenas os trabalhadores segurados do INPS e depois do INAMPS. Com o SUS, isto mudou: a saúde passa a ser um direito de cidadania de todas as pessoas e cabe ao Estado assegurar este direito. Neste sentido, o acesso às ações e serviços deve ser garantido a todas as pessoas, independentemente de sexo, raça, renda, ocupação ou outras características sociais ou pessoais. O SUS foi implantado com a responsabilidade de tornar realidade este princípio. Equidade O objetivo da equidade é diminuir desigualdades. Mas isso não significa que a equidade seja sinônimo de igualdade. Apesar de todos terem direito aos serviços, as pessoas não são iguais e, por isso, têm necessidades diferentes. Equidade significa tratar desigualmente os desiguais, investindo mais onde a carência é maior. Para isso, a rede de serviços deve estar atenta às necessidades reais da população a ser atendida. A equidade é um princípio de justiça social. Integralidade O princípio da integralidade significa considerar a pessoa como um todo, atendendo a todas as suas necessidades. Para isso, é importante a 5 Julyana de Aquino Guerreiro Araújo integração de ações, incluindo a promoção da saúde, a prevenção de doenças, o tratamento e a reabilitação. Ao mesmo tempo, o princípio da integralidade pressupõe a articulação da saúde com outras políticas públicas, como forma de assegurar uma atuação intersetorial entre as diferentes áreas que tenham repercussão na saúde e qualidade de vida dos indivíduos. Princípios Organizativos Para organizar o SUS a partir dos princípios doutrinários apresentados e considerando-se a ideia de seguridade social e relevância pública, existem algumas diretrizes que orientam o processo. Na verdade, trata-se de formas de concretizar o SUS na prática. Regionalização e Hierarquização A regionalização e a hierarquização de serviços significam que os serviços devem ser organizados em níveis crescentes de complexidade, circunscritos a determinada área geográfica, planejados a partir de critérios epidemiológicos, e com definição e conhecimento da clientela a ser atendida. Como se trata aqui de “princípios”, de indicativos, este conhecimento é muito mais uma perspectiva de atuação do que uma delimitação rígida de regiões, clientelas e serviços. A regionalização é,na maioria das vezes, um processo de articulação entre os serviços existentes, buscando o comando unificado dos mesmos. A hierarquização, além de proceder à divisão de níveis de atenção, deve garantir formas de acesso a serviços que componham toda a complexidade requerida para o caso, no limite dos recursos disponíveis em dada região. Deve ainda incorporar-se à rotina do acompanhamento dos serviços, com fluxos de encaminhamento (referência) e de retorno de informações ao nível básico do serviço (contrarreferência). Estes caminhos somam a integralidade da atenção com o controle e a racionalidade dos gastos no sistema. Descentralização e Comando Único Descentralizar é redistribuir poder e responsabilidades entre os três níveis de governo. Na saúde, a descentralização tem como objetivo prestar serviços com maior qualidade e garantir o controle e a fiscalização pelos cidadãos. Quanto mais perto estiver a decisão, maior a chance de acerto. No SUS, a responsabilidade pela saúde deve ser descentralizada até o 6 Julyana de Aquino Guerreiro Araújo município. Isto significa dotar o município de condições gerenciais, técnicas, administrativas e financeiras para exercer esta função. A decisão deve ser de quem executa, que deve ser o que está mais perto do problema. A descentralização, ou municipalização, é uma forma de aproximar o cidadão das decisões do setor e significa a responsabilização do município pela saúde de seus cidadãos. É também uma forma de intervir na qualidade dos serviços prestados. Para fazer valer o princípio da descentralização, existe a concepção constitucional do mando único. Cada esfera de governo é autônoma e soberana em suas decisões e atividades, respeitando os princípios gerais e a participação da sociedade. Assim, a autoridade sanitária do SUS é exercida na União pelo ministro da Saúde, nos estados pelos secretários estaduais de Saúde e nos municípios pelos secretários ou chefes de departamentos de Saúde. Eles são também conhecidos como “gestores” do sistema de saúde. Estratégia de saúde da família: caráter substitutivo, integralidade das ações e hierarquização, territorialização, equipe multiprofissional, atenção centrada na família, visita domiciliar e vigilância em saúde. Atenção Primaria a saúde (APS), foi criado pelo Ministério da Saúde (MS) a partir de 1994 o Programa de Saúde da Família (PSF), que mais adiante recebeu o nome de Estratégia Saúde da Família (ESF), visando a reorganização do SUS, incorporando os seus princípios, propõe a participação da comunidade e prioriza ações de universalidade, equidade, integralidade, descentralização, hierarquização e participação da comunidade. A equipe da ESF é orientada a conhecer a realidade das famílias pelas quais é responsável, tornando-se mais sensível às suas necessidades. Assim, os profissionais de saúde e a população estabelecem vínculos, o que facilita a identificação e o atendimento dos problemas de saúde da comunidade. Caráter substitutivo Não significa a criação de novas estruturas de serviços, exceto em áreas desprovidas, e sim a substituição às práticas convencionais de assistência 7 Julyana de Aquino Guerreiro Araújo por um novo processo de trabalho, cujo eixo está centrado na vigilância à saúde. O modelo hegemônico da prática médica flexneriana tem por base o conceito de saúde como ausência de doença, no entanto, PSF assume o conceito de saúde como qualidade de vida”. Enquanto o modelo clássico organiza sua prática dirigida às pessoas doentes, o PSF tem como eixo de atenção à pessoa saudável, além de quebrar o modelo tradicional ainda centrado no indivíduo, passando a integrar o coletivo. Integralidade e hierarquização A USF está inserida no primeiro nível de ações e serviços do sistema local de saúde, denominado atenção primária. O programa deve estar vinculado à rede de serviços de forma que garanta atenção integral aos indivíduos e familiares e seja asseguradas a referência e contra-referência para os diversos níveis do sistema, sempre que for requerida maior complexidade tecnológica para a resolução de situações. No entanto, para Brasil (2001a) é um erro pensar que as equipes de SF são responsáveis apenas pelas visitas domiciliares e atividades coletivas ou individuais de prevenção a doenças, enfermidades, patologias em geral, enquanto a assistência curativa continua sob responsabilidade de outros profissionais do modelo tradicional. Essa grave distorção põe em terra pontos básicos do PSF, que são a integralidade e a resolutividade: nos territórios onde estejam implantadas, as USF são responsáveis por toda atenção básica das comunidades. As principais responsabilidades da Atenção Básica a serem executadas pelas equipes de SF de acordo com a Norma Operacional de Assistência à Saúde - NOAS 2001: Ações de saúde da criança (vigilância nutricional, imunização, assistência às doenças prevalentes na infância, assistência e prevenção às patologias bucais); Ações de saúde à mulher (pré-natal, prevenção de câncer de colo de útero, planejamento familiar, prevenção dos problemas odontológicos em gestantes); Controle da hipertensão (diagnóstico de casos, cadastramento dos portadores, busca ativa de casos, tratamento dos casos, diagnóstico precoce de complicações, primeiro atendimento de urgência, atendimento à saúde bucal, medidas preventivas); Controle dos Diabetes Mellitus (diagnóstico de casos, cadastramento dos portadores, busca ativa de casos, tratamento dos casos, monitorização dos níveis de glicose do paciente, diagnóstico precoce de complicações, primeiro atendimento de urgência, encaminhamento dos casos graves para 8 Julyana de Aquino Guerreiro Araújo outro nível de complexidade, medidas preventivas e de promoção da saúde); Controle da tuberculose (busca ativa de casos, notificação de casos, diagnóstico clinico de casos, acesso a exames para diagnóstico e controle, cadastramento dos portadores, tratamento dos casos BAAR +, medidas preventivas); Eliminação da Hanseníase (busca ativa de casos, notificação, diagnóstico clínico de casos, cadastramento dos portadores, tratamento supervisionado dos casos, controle das incapacidades físicas, medidas preventivas); Ações de saúde bucal (cadastramento de usuários, planejamento, execução e acompanhamento de ações). Territorialização e adscrição da clientela A Portaria 648, de 2006, recomenda que cada equipe de SF acompanhe entre 600 e 1000 famílias, não ultrapassando o limite máximo de 4000 pessoas, sendo a média recomendada de 3000 pessoas. Segundo Brasil (2003), deve haver 1 Agente Comunitário de Saúde (ACS) para no mínimo 400 e no máximo 750 pessoas e cobertura de 100% da população da área de responsabilidade da equipe. Ressalta, também, que a proporção é definida pelo risco que a região representa para a saúde da comunidade. Onde o risco é maior, recomenda-se que a população atendida seja menor, para que a ESF possa se dedicar adequadamente ao seu trabalho. Equipe multiprofissional Apesar de se reconhecer a forte presença do profissional médico gerado pelo modelo clássico, de acordo com Souza (2001, p.45) “no PSF há uma inversão desse valor, a equipe passa a ter claras suas competências, cujas responsabilidades ultrapassam a ciência da medicina”. O trabalho multiprofissional é uma das metas do programa, e para isso luta-se bastante pela inclusão de diversas áreas profissionais no mesmo. Souza (2001, p.37) vem demonstrar sobre “a necessidade essencial de desmistificar em alguns municípios brasileiros o PSF como estratégia de médico de família, e sim de Saúde da Família”. Em que a equipe multiprofissional tem a co- responsabilidade social de enfrentar os desafios de uma nova produção de saúde, tendo como base a atenção às famílias. A equipe da Unidade de Saúde da Família é composta por um enfermeiro, um médicogeneralista ou de família, um auxiliar de enfermagem e agentes comunitários de saúde (ACS). Além desses, odontólogos, assistentes sociais 9 Julyana de Aquino Guerreiro Araújo e psicólogos, dentre outros, devem fazer parte tanto nessas equipes quanto nos Núcleos de Apoio à Saúde da Família (NASF). Todos esses profissionais devem desenvolver suas atividades laborais, tanto nas unidades quanto na comunidade, devendo ter gosto pelo trabalho em equipe, facilidade no trato com pessoas, habilidade em trabalhar com planejamento e programação em saúde; capacidade em adaptar-se a situações novas e qualificação profissional adequada às práticas de saúde pública. atenção centrada na família Um dos atributos da Atenção Primária à Saúde (APS) é a centralidade da família como foco da atenção, sendo necessário conhecê-la em sua dinâmica e assisti-la em suas necessidades individuais e de grupo em interação. O contexto familiar é o espaço primeiro de identificação e explicação do adoecimento de seus membros e onde os fenômenos da saúde e da doença adquirem maior relevância. O impacto da doença recai sobre todos os membros da família, assim como a interação familiar exerce influência sobre a sua cura. Tais características tornam a família uma unidade de cuidados que deve ser compreendida pelos profissionais de saúde em suas inter-relações, ao mesmo tempo em que é uma unidade prestadora de cuidados, podendo tornar-se parceira dos serviços de saúde no cuidado de seus membros. A Estratégia Saúde da Família (ESF) tem como proposta estabelecer uma parceria com a família, tornando-a mais autônoma e independente, contribuindo assim para a construção de sua cidadania. Implantada inicialmente como um programa destinado a populações desassistidas, a Saúde da Família foi posteriormente alçada à condição de estratégia para reorganização da APS no Brasil, sendo ponto de partida para a reestruturação do sistema de saúde. Na ESF, a unidade familiar é central. Entretanto, cabe distinguir se a apregoada centralidade na família de fato é parte de um novo modelo de atenção ou se a atenção individual está sendo reproduzida no espaço familiar. Visita domiciliar 10 Julyana de Aquino Guerreiro Araújo A AD tem se expandido progressivamente no mundo e no Brasil por apresentar características que possibilitam a articulação de vários pontos da Rede de Atenção à Saúde (RAS), a otimização do uso de leitos e recursos hospitalares, a ampliação do acesso aos serviços por usuários acamados ou domiciliados, além de representar uma solução importante para a sobrecarga das portas de urgência. Desde a perspectiva do usuário, busca a humanização do cuidado e a ampliação da autonomia, promovendo maior qualidade e resolutividade do cuidado. Segundo o Ministério da Saúde (BRASIL, 2017), define-se Atenção Domiciliar (AD) como modalidade de atenção à saúde, integrada à Rede de Atenção à Saúde (RAS), prestada em domicílio e caracterizada por um conjunto de ações de prevenção e tratamento de doenças, reabilitação, paliação e promoção à saúde, garantindo continuidade de cuidados. É uma atividade que se constrói fora do espaço hospitalar e dos ambulatórios de especialidades, promovendo a Saúde atendimento mais humanizado e personalizado, possibilitando maior rapidez na recuperação dos pacientes, maior autonomia e otimização dos leitos hospitalares. A AD realizada no âmbito da Atenção Primária também envolve o reconhecimento do cuidador não só como peça angular do cuidado a quem necessita dela, mas também como sujeito que demanda atenção e cuidado da equipe, uma vez que ele deve cuidar de famílias e não apenas de indivíduos. Figura que muitas vezes passa despercebida, o cuidador deve ser alvo de atenção a cada visita, a fim de que sejam identificados precocemente sinais de esgotamento, além de orientados cuidados com a própria saúde, como repouso adequado e revezamentos (respiros). vigilância em saúde Atualmente, a construção e a consolidação da Vigilância em Saúde são produtos vitoriosos herdados pela institucionalização do SUS, em 1988; pela criação do Centro Nacional de Epidemiologia (CENEPI), em 1990; pela estruturação do financiamento das ações de vigilância e controle de doenças e, mais recentemente, pela criação da Secretaria de Vigilância em Saúde (SVS) do Ministério da Saúde – em 2003 –, que coordena o Sistema Nacional de Vigilância em Saúde em todo o território brasileiro. O acesso universal, igualitário e ordenado às ações e serviços de saúde, se inicia pelas portas de entrada do SUS e se completa na rede regionalizada e 11 Julyana de Aquino Guerreiro Araújo hierarquizada, de acordo com a complexidade do serviço, contendo: Atenção Primária; urgência e emergência; atenção psicossocial; atenção ambulatorial especializada e hospitalar; Vigilância em Saúde. Os níveis de saúde da população expressam a organização social e econômica do país. A definição ampliou-se, sendo que a Vigilância em Saúde é responsável por todas as ações de vigilância, prevenção e controle de agravos, prioritariamente com ações de promoção à saúde, com o monitoramento epidemiológico das doenças transmissíveis e não transmissíveis, de atividades sanitárias programáticas, de vigilância em saúde ambiental e saúde do trabalhador, elaboração e análise de perfis demográficos epidemiológicos, proposição de medidas de controle etc. A Vigilância encontra-se distribuída em patamares hierárquicos técnico- administrativos, nas esferas federal, estadual, municipal e regional, sendo que a base de todas as informações é a região, mais precisamente a microárea. A Vigilância em Saúde tem um fluxograma de informações e apresenta várias interfaces entre diferentes sistemas: Vigilância; Atendimento (Primário, Secundário e Terciário); laboratórios; centros de pesquisa; centros universitários; outras secretarias etc. A Vigilância em Saúde está incluída no campo de ação do SUS e desenvolve programas relevantes de prevenção e controle, devendo ser utilizada para o estabelecimento de prioridades, alocação de recursos e orientação programática, em várias áreas: 12 Julyana de Aquino Guerreiro Araújo O desenvolvimento de sistemas de vigilância implica o acesso à elevada gama de informações, especialmente as relativas à morbidade, à mortalidade, à estrutura demográfica, ao estado imunitário e nutricional da população, à situação socioeconômica e ao saneamento ambiental, sendo que a Saúde atualmente tem sido a porta de entrada para vários sistemas, tendo íntima relação com a situação social regional. A Vigilância deve trabalhar de forma integrada e harmônica com todas as Unidades de Atendimento à Saúde – também intersetorialmente e intersecretarialmente. Acolhimento: definição, aspectos históricos, importância como estratégia, organização da USF, fluxograma dos usuários, modelagens do acolhimento, avaliação de risco e vulnerabilidades. Definição Existem várias definições de acolhimento, tanto nos dicionários quanto em setores como a saúde. A existência de várias definições revela os múltiplos sentidos e significados atribuídos a esse termo, de maneira legítima, como pretensões de verdade. Ou seja, o mais importante não é a busca pela definição correta ou verdadeira de acolhimento, mas a clareza e explicitação da noção de acolhimento que é adotada ou assumida situacionalmente por atores concretos, revelando perspectivas e intencionalidades. Nesse sentido, poderíamos dizer, genericamente, que o acolhimento é uma prática presente em todas as relações de cuidado, nos encontros reais entre trabalhadores de saúde e usuários, nos atos de receber e escutar as pessoas, podendo acontecer de formas variadas (“há acolhimentos e acolhimentos”). Em outras palavras, ele não é, a priori, algo bom ou ruim, mas sim uma prática constitutiva das relações de cuidado.Sendo assim, em vez (ou além) de perguntar se, em determinado serviço, há ou não acolhimento, talvez seja mais apropriado analisar como ele se dá. O acolhimento se revela menos no discurso sobre ele do que nas práticas concretas. Partindo dessa perspectiva, podemos pensar em modos de acolher a demanda espontânea que chega às unidades de atenção básica. Importância como estratégia O acolhimento aparece, aqui, como forma de inclusão dos usuários, na medida em que pressupõe que não apenas determinados grupos populacionais (portadores de agravos mais prevalentes e/ou recortados a partir de ciclos de vida) são objeto privilegiado do trabalho das equipes, mas também as pessoas que apresentam necessidades de saúde que não estão contempladas nesses critérios. Sendo assim, podem ser cuidados na atenção básica, por exemplo, tanto um portador de hipertensão arterial 13 Julyana de Aquino Guerreiro Araújo como alguém com gastrite. Além disso, a ampliação de acesso se dá, também, uma vez que contempla adequadamente tanto a agenda programada quanto a demanda espontânea, abordando-se cada uma dessas situações segundo as especificidades de suas dinâmicas e tempos. Organização da USF Nesse caso, a implantação de acolhimento da demanda espontânea “pede” e provoca mudanças nos modos de organização das equipes, nas relações entre os trabalhadores e nos modos de cuidar. Para acolher a demanda espontânea com equidade e qualidade, não basta distribuir senhas em número limitado (fazendo com que os usuários formem filas na madrugada), nem é possível (nem necessário) encaminhar todas as pessoas ao médico (o acolhimento não deve se restringir a uma triagem para atendimento médico). Organizar-se a partir do acolhimento dos usuários exige que a equipe reflita sobre o conjunto de ofertas que ela tem apresentado para lidar com as necessidades de saúde da população, pois são todas as ofertas que devem estar à disposição para serem agenciadas, quando necessário, na realização da escuta qualificada da demanda. É importante, por exemplo, que as equipes discutam e definam (mesmo que provisoriamente) o modo como os diferentes profissionais participarão do acolhimento. Quem vai receber o usuário que chega; como avaliar o risco e a vulnerabilidade desse usuário; o que fazer de imediato; quando encaminhar/agendar uma consulta médica; como organizar a agenda dos profissionais; que outras ofertas de cuidado (além da consulta) podem ser necessárias etc. Como se pode ver, é fundamental ampliar a capacidade clínica da equipe de saúde, para escutar de forma ampliada, reconhecer riscos e vulnerabilidades e realizar/acionar intervenções. Fluxograma dos usuários O fluxograma a seguir busca representar um padrão de fluxo dos usuários nas UNIDADES BÁSICAS de SAÚDE (UBS), partindo do pressuposto de que a recepção é o primeiro contato e de que, havendo situações imprevistas cuja avaliação e definição de oferta(s) precisa(s) de cuidado não sejam possíveis na recepção, deve haver um espaço adequado para escuta, análise, definição de oferta de cuidado com base na necessidade de saúde e, em alguns casos, intervenções. 14 Julyana de Aquino Guerreiro Araújo Em boa parte dos serviços, esse espaço é uma sala de acolhimento (lugar especificamente tomado com essa função, mas que deve ser visto como um dos momentos e espaços de acolhimento, sem exclusividade, pois há – ou pode haver – acolhimento antes e depois, com ou sem uma sala específica). Como todo padrão, este, ainda que se aplique a grande número de situações, não pode ser tomado em caráter absoluto, sob pena de gerar problemas decorrentes da falta de mediação e ajuste entre um padrão recomendado e uma realidade com características singulares. O mais importante, nesse desenho, não é a definição da ordem e do local onde cada ação deve ser realizada, mas a lógica dele, que, sinteticamente, supõe: 1) Que usuários com atividades agendadas (consultas, por exemplo) ou da rotina da unidade (vacina, por exemplo) devem ser recebidos e devidamente direcionados, evitando esperas desnecessárias com potencial de confusão na recepção; 2) Que situações imprevistas são inerentes à vida e, nesse caso, requerem certa organização da unidade e do processo de trabalho da equipe, tanto para compreendê-las quanto para intervir sobre elas; 3) Que os trabalhadores encarregados de escutar demandas que surgem espontaneamente (sem agendamento prévio) devem ter: capacidade de analisá-las (identificando riscos e analisando vulnerabilidade), clareza das ofertas de cuidado existentes na UBS, possibilidade de diálogo com outros colegas, algum grau de resolutividade e respaldo para acionar as ofertas de cuidado em tempos e modos que considerem a necessidade dos usuários. É importante lembrar, ainda, que alguns fatores podem exigir ajustes no fluxograma. Por exemplo, o número de equipes de atenção básica da unidade que, quando pequeno (uma ou duas equipes), provavelmente fará com que algum membro da própria equipe de referência do usuário realize a escuta e, possivelmente, algumas intervenções, abreviando o fluxo do usuário na unidade. Isso pode ocorrer em UBS com maior número de equipes que se organizam por meio da modelagem “acolhimento pela equipe de referência do usuário” (descrita em item adiante neste Caderno). Porém a estrutura física da UBS também pode interferir no fluxo. 15 Julyana de Aquino Guerreiro Araújo Modelagens do acolhimento Quando falamos do acolhimento como atitude e tecnologia de cuidado, como mecanismo de ampliação do acesso e como dispositivo de (re)organização do processo de trabalho das equipes, imprimimos sentidos e perspectivas a ele que são fundamentais aos sujeitos em ação que pretendem constituir novos modos de receber e escutar os usuários na atenção básica. No entanto, sobretudo quando estamos falando do acolhimento à demanda espontânea, é fundamental traduzir tais sentidos 16 Julyana de Aquino Guerreiro Araújo e perspectivas em arranjos e práticas concretas, mesmo que provisoriamente. Também é importante colocar essa tradução concreta em análise (identificando alcances e limites, problemas e potencialidades) e fazer os ajustes necessários, pois isso faz parte do dia a dia do trabalho. Nesse sentido, apesar de ser frequente o êxito do “Acolhimento pela equipe de referência do usuário”, principalmente em termos de vinculação e responsabilização, cabe dizer que não existe uma única e melhor forma de acolher a demanda espontânea para todos os contextos, a priori. Há, antes, diferentes possibilidades de modelagens, cuja experimentação propicia tanto o ajuste à realidade de cada unidade como o protagonismo dos trabalhadores na implementação do acolhimento, de forma dialogada e compartilhada. A participação dos trabalhadores na análise e decisão sobre os modos de acolher a demanda espontânea é fundamental, também, para a sustentabilidade desse tipo de iniciativa, na medida em que aumenta as chances de autoria e pertencimento coletivos. Como exemplos, listamos algumas modelagens de acolhimento utilizadas em diferentes lugares, a saber: 1) Acolhimento pela equipe de referência do usuário: a principal característica é que cada usuário é acolhido pelos profissionais de suas equipes de referência, de modo que um ou mais profissionais de cada equipe realizam a primeira escuta, negociando com os usuários as ofertas mais adequadas para responder às suas necessidades. Há diversas maneiras de desenvolver esta modelagem; apenas para citar algumas: a) o enfermeiro de cada equipe realiza a primeira escuta, atendendo à demanda espontânea da população residente na sua área de abrangência e também os seus usuários agendados; nestas situações, o médico faz a retaguarda para os casos agudos da sua área e também atende os usuários agendados; b) mais de um profissionalestá simultaneamente realizando a primeira escuta dos usuários de sua área de abrangência organizando o acesso dos usuários num determinado momento, posteriormente assumindo suas demais atribuições; c) em algumas equipes, o enfermeiro realiza a primeira escuta do acolhimento até determinada hora, a partir da qual desempenha outras atribuições, passando a primeira escuta do acolhimento a ser realizada pelo técnico de enfermagem, estando o enfermeiro e o médico na retaguarda. A principal vantagem dessa modelagem é a potencialização do vínculo e responsabilização entre equipe e população adscrita, e uma das 17 Julyana de Aquino Guerreiro Araújo dificuldades é a conciliação com atividades da equipe fora da unidade (visita domiciliar, por exemplo), bem como com os atendimentos programados nos dias em que a demanda espontânea é muito alta. 2) Equipe de acolhimento do dia: em unidades com mais de uma equipe, o enfermeiro e/ou técnico de enfermagem de determinada equipe ficam na linha de frente do acolhimento, atendendo os usuários que chegam por demanda espontânea de todas as áreas/equipes da unidade. O médico da equipe do acolhimento do dia fica na retaguarda do acolhimento. Todos os profissionais da equipe de acolhimento ficam com suas agendas voltadas exclusivamente para isso. Os profissionais das outras equipes da unidade, quando não estão “escalados”, não precisam reservar agenda para o acolhimento, somente atendendo aos casos agudos em situações excepcionais em que a quantidade de pessoas com tal necessidade exceder a capacidade de atendimento da equipe do acolhimento do dia. A principal vantagem dessa modelagem é que as equipes que não estão “escaladas” podem realizar as atividades programadas com mais facilidade, e as desvantagens são a menor responsabilização e vínculo entre equipe e população adscrita (quando comparado com o acolhimento por equipe) e a sobrecarga da equipe que está no acolhimento do dia, sobretudo em dias de maior demanda. 3) Acolhimento misto (equipe de referência do usuário + equipe de acolhimento do dia): em unidades com mais de uma equipe, estipula-se determinada quantidade de usuários ou horário até onde o enfermeiro de cada equipe acolhe a demanda espontânea da sua área, bem como uma quantidade de casos agudos encaminhados pelo acolhimento que o médico irá atender de pacientes de sua área durante o turno. Um dos enfermeiros fica a cada dia sem atendimentos agendados, para atender à demanda espontânea de todas as áreas a partir do momento que ultrapasse a quantidade ou horário previamente estipulados para acolhimento das equipes; um dos médicos também sem atendimentos agendados para, independentemente da área, atender aos casos agudos encaminhados pelo acolhimento que excederem a quantidade predeterminada a que cada um dos outros médicos atenderiam. Essa modelagem se apresenta como intermediária entre o acolhimento por equipe e o acolhimento do dia, mas requer comunicação mais intensa entre equipes e alguns instrumentos para facilitar a gestão das agendas. 18 Julyana de Aquino Guerreiro Araújo 4) Acolhimento coletivo: no primeiro momento do funcionamento da unidade, toda a equipe se reúne com os usuários que vieram à unidade de saúde por demanda espontânea e, nesse espaço coletivo, fazem-se escutas e conversas com eles (se necessário ou mais apropriado, essa escuta é feita num consultório). Além do acolhimento, aproveita-se a ocasião para explicar à população o modo de funcionamento da unidade e o processo de trabalho das equipes, bem como se realizam atividades de educação em saúde. Para todos os profissionais da equipe poderem estar no acolhimento coletivo e atenderem aos casos agudos identificados, é necessário que o agendamento seja feito por hora marcada, não sendo agendados pacientes para o início do turno. Após o momento de acolhimento coletivo realizado pela equipe, para garantir acesso a usuários que cheguem durante o turno, segue-se o trabalho com outra modelagem de acolhimento associada. O acolhimento coletivo permite envolver toda a equipe na realização da primeira escuta, possibilita identificar usuários com risco e sofrimento mais evidentes e pode contribuir para o aumento da capacidade de autoavaliação dos riscos pelos usuários, mas apresenta como principal inconveniente o constrangimento das pessoas, que podem se sentir expostas na sua intimidade e privacidade, além de não oportunizar uma adequada avaliação dos riscos não evidentes e da vulnerabilidade, devendo, por isso, ser necessariamente articulada à escuta individualizada (GOMES; MELO; PINTO, 2005). Avaliação de risco e vulnerabilidades A fila e a cota de “consultas do dia” (senhas limitadas), além de submeterem as pessoas à espera em situação desconfortável e sem garantia de acesso, são muitas vezes o contrário do princípio da equidade, na medida em que o critério mais comum de acesso, nesses casos, é a ordem de chegada. Dessa forma, o acesso com equidade deve ser uma preocupação constante no acolhimento da demanda espontânea. A equidade, como princípio de justiça, baseia-se na premissa de que é preciso tratar diferentemente os desiguais (diferenciação positiva) ou cada um de acordo com a sua necessidade, corrigindo/evitando diferenciações injustas e negativas. Como fazer isso no cotidiano dos serviços, onde muitas vezes chegam, ao mesmo tempo, várias pessoas com necessidades distintas? Uma estratégia importante de garantia de acesso com equidade é a adoção da avaliação/estratificação de risco como ferramenta, possibilitando 19 Julyana de Aquino Guerreiro Araújo identificar as diferentes gradações de risco, as situações de maior urgência e, com isso, procedendo às devidas priorizações. Para isso, o trabalho em equipe é fundamental. Já na recepção da unidade, uma atendente, um porteiro ou um segurança podem identificar situações que apresentam maior risco ou que geram sofrimento intenso. Por exemplo, uma criança com febre alta, um adulto com cólica renal, um usuário agitado, uma pessoa com dificuldade de respirar, um idoso com dor no peito. O reconhecimento desses e de outros sinais de risco pelos trabalhadores que comumente circulam ou permanecem nas áreas de recepção/esperas pode e deve ser apoiado. Além disso, é recomendável que os demais profissionais façam ativamente esse tipo de observação, sobretudo nos horários em que a unidade de saúde estiver mais cheia. As atividades de “sala de espera”, por exemplo, são também oportunidades de identificação de riscos mais evidentes. Mas é importante garantir espaços mais reservados para escuta e identificação de riscos, como o atendimento individual de enfermagem. Tanto porque o limiar de dor e o modo de manifestação de sofrimento variam entre as pessoas (nem sempre o risco é facilmente reconhecível), quanto porque há situações em que a exposição pública do sofrimento (ou do motivo da procura) intimida ou desrespeita os usuários. Por exemplo, um jovem com corrimento uretral, uma mulher com amenorreia, uma pessoa mais tímida ou retraída provavelmente reagirá de forma diferente na sala de espera e no consultório. A estratificação de risco vai orientar não só o tipo de intervenção (ou oferta de cuidado) necessário, como também o tempo em que isso deve ocorrer. Na atenção básica, diferentemente de um pronto-socorro, não é necessário adotar limites rígidos de tempo para atendimento médico (após acolhimento inicial), a não ser em situações de alto risco, nas quais a intervenção médica imediata se faz necessária (junto com os outros membros da equipe). Porém, em certas situações, é importante priorizar o atendimento, sob pena de manter a pessoa em sofrimento, por tempo prolongado. E a estratificação de risco pode ser bastante útil nesse sentido. No entanto, não basta olhar o risco em termos biológicos. É essenciallembrar que há algumas condições que aumentam a vulnerabilidade das pessoas e que o acolhimento representa grande oportunidade de incluí-las, de inseri-las em planos de cuidado. Como uma criança desnutrida que não 20 Julyana de Aquino Guerreiro Araújo é levada às consultas de puericultura há oito meses, um homem de 50 anos que vai a um serviço de saúde pela primeira vez depois de muitos anos, uma mulher em idade fértil (sem realizar Papanicolau há quatro anos) que trabalha como diarista (sem carteira assinada) e cuida sozinha de três filhos menores de idade. Se eles procuram a unidade com um problema clinicamente simples e de baixo risco, esse momento é oportuno também para ofertar ou programar outras possibilidades de cuidado. Em alguns casos, o tato, a competência técnica, o bom senso e a sensibilidade são suficientes para avaliar os casos atendidos, considerando o risco e a vulnerabilidade. No entanto, pode haver dificuldades na estratificação, seja de cunho técnico, seja em termos da aceitação/suporte pelos colegas de trabalho. Por isso é importante que as equipes discutam, que haja troca de conhecimentos, que sejam pactuados critérios e sinais que sirvam de subsídios para a classificação do risco, bem como para o entendimento da vulnerabilidade (que, muitas vezes, requer exceção ao que está padronizado). Tem sido cada vez mais comum, principalmente nos serviços de urgência/emergência, a adoção de protocolos de estratificação de risco. A utilização de tais protocolos e suas respectivas escalas têm impacto importante na qualidade do acesso desses serviços. Esses protocolos podem ser referência, mas necessariamente precisam ser ressignificados e ajustados quando se trata da atenção básica. A natureza da atenção básica, na qual as noções de vinculação, responsabilização, clínica ampliada e gestão do cuidado são fundamentais, exige, de forma bastante evidente, a combinação do olhar sobre riscos e vulnerabilidades. Por várias razões, entre as quais destacamos algumas: • A presença de condições geradoras de grande vulnerabilidade (riscos sociais ou subjetivos) pode requerer intervenções no mesmo dia (médicas ou não), agendamento para data próxima ou construção de projeto terapêutico singular em curto prazo, mesmo com risco biológico baixo; •As classificações devem ser encaradas de maneira dinâmica, já que pode haver mudança no grau de risco de um usuário, estando na unidade ou após ter saído dela; • Pode haver necessidade de mais de um tipo de intervenção (oferta de cuidado) no mesmo dia ou de programar outra(s) intervenção(ões). Por exemplo, uma criança com febre de 38,5 graus e dispneia leve pode receber 21 Julyana de Aquino Guerreiro Araújo um antitérmico ou compressa fria (pelo enfermeiro) antes de ser avaliada pelo médico (combinando previamente). Além disso, escutar a avaliação que os usuários fazem da sua situação é uma atitude de respeito e de apoio à construção de mais autonomia. Em outras palavras, a avaliação de risco e vulnerabilidade devem ser, preferencialmente, um processo dialógico, não unilateral. Isso contribui para o autocuidado, assim como para a solidariedade entre os usuários. Obviamente, se um paciente estiver inconsciente, com dispneia grave ou com uma dor precordial forte, é importante agir imediatamente e dialogar de acordo com a possibilidade do outro. Ainda, há situações não previstas, como um eventual dia em que a quantidade de atendimentos está abaixo do esperado e os profissionais podem preferir atender pessoas que, em outros momentos de maior demanda, seriam agendadas para atendimento posterior. Isso otimiza a agenda, responde mais rapidamente a necessidades e pode aumentar a vinculação. No fluxograma anteriormente, apresentamos um modo de classificação sintético que correlaciona a avaliação de risco e vulnerabilidade aos modos de intervenção necessários. Nesse caso, adotamos a seguinte classificação: 1) Situação não aguda – condutas possíveis: • Orientação específica e/ou sobre as ofertas da unidade; • Adiantamento de ações previstas em protocolos (ex.: teste de gravidez); • Agendamento/programação de Intervenções. 2) Situação aguda – condutas possíveis: • Atendimento imediato (alto risco de vida): necessita de intervenção da equipe no mesmo momento, obrigatoriamente com a presença do médico. Exs.: PCR, dificuldade respiratória grave, convulsão, RNC, dor severa; • Atendimento prioritário (risco moderado): necessita de intervenção breve da equipe, podendo ser ofertada inicialmente medida de conforto pela enfermagem até a nova avaliação do profissional mais indicado para o caso. Influencia na ordem de atendimento. Exs.: crise asmática leve e moderada, febre sem complicação, gestante com dor abdominal, usuários que necessitam de isolamento, pessoas com ansiedade significativa; • Atendimento no dia (risco baixo ou ausência de risco com vulnerabilidade importante): situação que precisa ser manejada no mesmo 22 Julyana de Aquino Guerreiro Araújo dia pela equipe levando em conta a estratificação de risco biológico e a vulnerabilidade psicossocial. O manejo poderá ser feito pelo enfermeiro e/ou médico e/ou odontólogo, dependendo da situação e dos protocolos locais. Exs.: disúria, tosse sem sinais de risco, dor lombar leve, renovação de medicamento de uso contínuo que já terminou, conflito familiar, usuário que não conseguirá acessar o serviço em outro momento. A situação não aguda e os três tipos de atendimento da situação aguda podem, para fins de visualização e comunicação, ser representados por cores, a exemplo do que é feito nos protocolos de classificação de risco utilizados nos serviços de urgência. É oportuno lembrar ainda que, em qualquer situação, a vulnerabilidade deve ser considerada, com o cuidado de perceber se isso deve ser enfocado de imediato ou num momento posterior (se há alto risco de vida, a prioridade é a preservação da vida, obviamente). Humanização: conceito, princípios, diretrizes, articulação entre o processo de humanização e o processo de trabalho, estratégias de humanização no funcionamento da USF conceito A Política Nacional de Humanização (PNH), idealizada pelo Ministério da Saúde (MS), surgiu como uma proposta para requalificar essa atenção, de modo a manter uma associação entre as formas de produzir saúde e as formas de administrar os processos de trabalho, entre atenção e gestão, entre clínica e política, entre produção de saúde e produção de subjetividade. Esta política objetiva possibilitar inovações nas ações gerenciais e nas ações de produção de saúde, de modo a propor novas formas de organização dos serviços de saúde. As abordagens teóricas e organizativas da PNH demonstram que essa política surgiu para impulsionar a efetivação de um SUS inclusivo, democrático, resolutivo e acolhedor. Apresentam conceitos amplificados sobre a humanização, de forma a agregar valores diversos: ‘organizativo’ porque se refere às formas de organizar os serviços de saúde; ‘gerencial’ por abordar o modo de gestão e a coordenação do trabalho desenvolvido; e ‘relacional’ por referir-se ao relacionamento consolidado entre os indivíduos que participam do processo de trabalho em saúde, que 23 Julyana de Aquino Guerreiro Araújo são os gestores, os trabalhadores e os usuários (MENDES, 2010; VILAR, 2014). Para pôr em prática esses conceitos, a PNH fundamenta-se em algumas diretrizes específicas para a Atenção Básica, que enfatiza: a elaboração de projetos individuais; o incentivo às práticas de promoção da saúde; o acolhimento e a inclusão do usuário no sistema, na perspectiva da garantia do acesso e da resolubilidade, além do trabalho em equipe, para gerar uma maior corresponsabilidade na atenção (BRASIL, 2004). Em documento oficial desta política, o acolhimento é definido por: Processo constitutivodas práticas de produção e promoção de saúde, que implica responsabilização do trabalhador/equipe pelo usuário, desde a sua chegada até sua saída, ouvindo sua queixa, considerando suas preocupações e angústias, fazendo uso de uma escuta qualificada, que possibilite analisar a demanda e, colocando os limites necessários, garantir atenção integral, resolutiva e responsável por meio do acionamento/articulação das redes internas dos serviços (visando à horizontalidade do cuidado) e redes externas, com outros serviços de saúde, para continuidade da assistência quando necessário. (BRASIL, 2004, P. 14). O acolhimento possui três esferas constitutivas: postura, atitude e tecnologia do cuidado; mecanismo de ampliação e facilitação do acesso; e dispositivo de (re)organização do processo de trabalho em equipe (BRASIL, 2010; BRASIL, 2011). Nesta percepção, o acolhimento adquire o discurso de inclusão social em defesa do SUS, subsidiando a geração de reflexões e mudanças na organização dos serviços e na postura dos profissionais, na ideia do acesso universal, na retomada da equipe multiprofissional e na qualificação Princípios entendido como o que causa ou força a ação, ou que dispara um determinado movimento no plano das políticas públicas. São 03, os princípios da PNH: i)- Transversalidade - Aumento do grau de comunicação intra e intergrupos; 24 Julyana de Aquino Guerreiro Araújo - Transformação dos modos de relação e de comunicação entre os sujeitos implicados nos processos de produção de saúde, produzindo como efeito a desestabilização das fronteiras dos saberes, dos territórios de poder e dos modos instituídos na constituição das relações de trabalho. ii)- Indissociabilidade entre atenção e gestão - Alteração dos modos de cuidar inseparável da alteração dos modos de gerir e se apropriar do trabalho; - Inseparabilidade entre clínica e política, entre produção de saúde e produção de sujeitos; - Integralidade do cuidado e integração dos processos de trabalho. iii)- Protagonismo, co-responsabilidade e autonomia dos sujeitos e dos coletivos - Trabalhar implica na produção de si e na produção do mundo, das diferentes realidades sociais, ou seja, econômicas, políticas, institucionais e culturais; - As mudanças na gestão e na atenção ganham maior efetividade quando produzidas pela afirmação da autonomia dos sujeitos envolvidos, que contratam entre si responsabilidades compartilhadas nos processos de gerir e de cuidar. Diretrizes Orientações gerais de determinada política. No caso da PNH, suas diretrizes expressam o método da tríplice inclusão. Diretrizes da PNH: • Clínica Ampliada; • Co-gestão; • Acolhimento; • Valorização do trabalho e do trabalhador; • Defesa dos Direitos do Usuário; • Fomento das grupalidades, coletivos e redes. • Construção da memória do SUS que dá certo. 25 Julyana de Aquino Guerreiro Araújo Na prática, essas diretrizes para qualificar e humanizar a atenção e gestão na saúde se dão por meio dos dispositivos: • Grupo de Trabalho de Humanização; • Câmara Técnica de Humanização; • Colegiado Gestor; • Contrato de Gestão; • Escuta qualificada; • Visita aberta e direito a acompanhante; • Programa de Formação em Saúde do Trabalhador; • Comunidade Ampliada de Pesquisa,; • Equipe Transdiciplinar de Referência e de Apoio Matricial; • Projetos Co-geridos de ambiência; • Acolhimento com classificação de risco, • Projeto Terapêutico singular e projeto de saúde coletiva; • Projeto Memória do SUS que dá certo. • Ambiência Articulação entre o processo de humanização e o processo de trabalho A importância do processo de trabalho em saúde realizado em conjunto pelos membros das equipes de Saúde da Família é ressaltada, uma vez que deve se organizar para garantir o cumprimento dos princípios da integralidade, acessibilidade e universalidade de assistência. Reorganizar o processo de trabalho, de forma que desloque seu eixo central do médico para uma equipe multiprofissional, que se encarrega da escuta qualificada do usuário, comprometendo-se a resolver seu problema de saúde. Desta forma, aumenta o potencial de ação das unidades de saúde, com a possibilidade de intervenção de toda equipe na assistência direta ao usuário. Portanto, é fundamental, no serviço, momentos de reflexão sobre a organização, sobre as ações e resultados do processo de trabalho, e 26 Julyana de Aquino Guerreiro Araújo consequentemente na perspectiva de transformação do saber e do fazer desses profissionais, ou seja, a educação permanente em saúde. Para que o processo de trabalho seja efetivo é necessário que a equipe seja treinada, capacitada, valorizada, oferecido salários dignos, divisão de trabalho, organização, vínculo, comprometimento com a comunidade dentro da ética e acima de tudo, respeito. Alguns desses itens citados, quando não acontecem contribuem para um desarranjo no processo de trabalho, gerando um efeito cascata que potencializa principalmente uma insatisfação inicial do usuário ou da comunidade em geral, seguido de não resolubilidade da situação, além de diversas outras conseqüências e desdobramentos. A discussão do processo de trabalho em saúde remete ao trabalho como prestação de serviços, com características próprias seu objeto e todos os seus componentes são pessoas que atuam e interferem no processo e no resultado final do trabalho. Desta maneira, deve ser salientado que o objeto\sujeito da ação detém um saber próprio que deve ser escutado, acolhido, gerando a necessidade de comunicação eficaz entre quem presta e quem recebe o serviço, buscando uma relação de troca, confiança, cooperação e parceria. Estratégias de humanização no funcionamento da USF A Política Nacional de Humanização defende o Acolhimento, entendido como um processo de inter-relações e atitudes humanas nas práticas de atenção e de gestão, pautadas no respeito, na solidariedade, no reconhecimento dos direitos e no fortalecimento da autonomia dos usuários, trabalhadores e gestores da saúde. Pretende-se que a prática do Acolhimento nos espaços de saúde qualifique a atenção e a gestão, potencializando a garantia do atendimento, a resolutividade, o estabelecimento de vínculo, a promoção da saúde e as alianças entre usuários, trabalhadores e gestores. O acolhimento como postura e prática nas ações de atenção e gestão nas unidades de saúde favorece a construção de uma relação de confiança e compromisso dos usuários com as equipes e os serviços, contribuindo para a promoção da cultura de solidariedade e para a legitimação do sistema 27 Julyana de Aquino Guerreiro Araújo público de saúde. Favorece, também, a possibilidade de avanços na aliança entre usuários, trabalhadores e gestores da saúde em defesa do SUS como uma política pública essencial da e para a população brasileira. Algumas sugestões e reflexões sobre a implantação do acolhimento nos serviços de saúde: • Organizar as unidades de saúde com os princípios de responsabilidade territorial, adscrição de clientela, vínculo com responsabilização clínico-sanitária, trabalho em equipe e gestão participativa, entendendo-se o acolhimento como prática intrínseca e inerente ao exercício profissional em saúde. Tal medida proporciona, assim, a superação da prática tradicional, centrada na exclusividade da dimensão biológica e na realização de procedimentos a despeito da perspectiva humana na interação e na constituição de vínculos entre profissionais de saúde e usuários. • Ampliar a qualificação técnica dos profissionais e das equipes em atributos e habilidades relacionais de escuta qualificada, de modo a estabelecer interação humanizada, cidadã e solidária com usuários, familiares e comunidade, bem como o reconhecimento e a atuação em problemas de saúde de natureza agudas ou relevantes para a saúdepública. A elaboração de protocolos, sob a ótica da intervenção multi e interprofissional na qualificação da assistência, legitima a inserção do conjunto de profissionais ligados à assistência na identificação de risco e na definição de prioridades, contribuindo, assim, para a formação e o fortalecimento da equipe. • Implantar a sistemática de acolhimento na rede SUS de forma integrada, pactuando e explicitando com as várias unidades de saúde suas responsabilidades com a população adscrita e a atenção à demanda não agendada, visando à capacidade resolutiva e à garantia de continuidade da atenção. • Implantar as sistemáticas de acolhimento: a) na Atenção Básica (PSF), compatibilizando o atendimento entre a demanda programada e a não-programada e desenvolvendo atividades de acolhimento na comunidade como rodas de conversas de quarteirão, terapia comunitária, grupos de convivência (artesanato, caminhada), entre outros. 28 Julyana de Aquino Guerreiro Araújo 29 Julyana de Aquino Guerreiro Araújo 30 Julyana de Aquino Guerreiro Araújo 31 Julyana de Aquino Guerreiro Araújo 32 Julyana de Aquino Guerreiro Araújo 33 Julyana de Aquino Guerreiro Araújo 34 Julyana de Aquino Guerreiro Araújo 35 Julyana de Aquino Guerreiro Araújo 36 Julyana de Aquino Guerreiro Araújo
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