Baixe o app para aproveitar ainda mais
Prévia do material em texto
TEORIA e PRÁTICA da FORMAÇÃO do LEITOR leitura e literatura na sala de aula Lena Lois L834t Lois, Lena. Teoria e prática da formação do leitor : leitura e literatura na sala de aula / Lena Lois. – Porto Alegre : Artmed, 2010. 151 p. ; 23 cm. ISBN 978-85-363-2297-1 1. Leitura – Técnicas. 2. Formação de leitores. 3. Educação. I. Título. CDU 028.1 Catalogação na publicação: Renata de Souza Borges CRB-10/1922 Quando falamos sobre o livro e a leitura, hoje, não percebemos que estamos tratando de um conteúdo que possui muita história para contar. Uma história que vai desde a evolução dos materiais que conduziam o texto escrito, passa pela imprensa e vai até o monopólio do texto como forma de poder. Ter um texto e saber ler era privilégio de poucos e era, também, uma forma de exercer poder. Deixar uma marca registrada em algum lugar é assegurar nossa existência, garantir que a memória não nos traia e, acima de tudo, é uma forma de imortalidade: alguém, muito depois de nós, poderá ler aquelas palavras e conhecer nossas ideias, nossas lutas e nossos desejos. O ho- mem deixa marcas desde os tempos das cavernas. Quando historiadores vasculham civilizações perdidas, não encontram livros e papéis, na forma que conhecemos atualmente, mas não retornam de suas pesquisas de campo sem que tenham visto alguma marca, algum traço, algum registro que conte a história daquele povo. Todo desenho e todo texto quer con- tar sobre algo, seja sobre a saga de um povo, a cultura de um lugar, as disputas de poder ou as fantasias e ficções. Se recorrermos à história do livro no Brasil, teremos que passar pela colonização dos índios, pela corte portuguesa e pelas sucessivas rupturas que aconteceram na nossa constituição de cidadão brasileiro. Parece incrível, mas não há como falar de uma história da leitura sem se fazer referência a disputas de terra, de poder e, principalmente, de identidade. A corte afirmava que toda literatura produzida aqui era por tuguesa já que a colonização do Brasil era feita por ela. É algo como: “O que você pensa fomos nós quem concebemos!”. Por isso os romances Breve retrospectiva histórica 1 12 Lena Lois indianistas foram tão importantes. O índio era um assunto absolutamen- te nacionalista. O texto falava das raízes, dos nativos, de realidades que não pertenciam a Portugal. Toda produção com essas características era inquestionavelmente brasileira. Além de tentar um domínio ideológico, existia outro de ordem mais objetiva e concreta: a imprensa. O Brasil começou a ser colonizado em 1500. Até 1808 toda iniciativa ligada a impressão de textos era proibida pela colônia. Portanto, foram 300 anos de controle do texto escrito para que não se divulgasse opiniões e notícias não desejadas pela corte. Em 29 de outubro de 1810 foi inaugurada a Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro com um acervo formado por livros vindos de Portugal e com acesso limitado aos estudiosos e, mesmo assim, através de consenti- mento régio. Nesse mesmo ano foi publicado o primeiro romance – Ma- rília de Dirceu, de Tomás Antônio Gonzaga – e em 1818 é lançada a pri- meira revista que se tem notícia – Variedades em literatura (BA). Em 29 de outubro de 1910, 100 anos depois, a Biblioteca Nacional abria as portas de sua nova sede: um belíssimo prédio de cinco andares que abriga hoje quase 9 milhões e meio. É a maior biblioteca da América Latina e possui títulos raríssimos. O livrO infAntil nO BrASil: umA hiStóriA AnteS e depOiS de lOBAtO Quem assistiu ao Sítio do Pica-pau Amarelo na década de 1970 mui- tas vezes desconhece que o criador de Emília, Narizinho, Visconde de Sabugosa, Pedrinho, D. Benta e Tia Nastácia representa na história da li- teratura, da política e da indústria editorial brasileira, um grande nome. Monteiro Lobato foi um marco na história do Brasil. Antes das histórias do “Sítio”, esse paulista batalhador pelo espaço do livro no Brasil, fez pesquisas sobre as nossas lendas (trazendo à cena o Saci-Pererê, pouco conhecido nas cidades grandes) e publicou Urupês, conquistando e gerando polêmicas com seu personagem Jeca-Tatu. Seu texto sempre foi recheado de muitas ironias, o que mantinha uma cone- xão direta com sua tendência esquerdista. Jeca-Tatu não aparecia para falar das belezas da pátria ou do idealismo romântico, mas para denun- ciar uma situação reveladora da realidade do país e da miséria em que muitos viviam. Teoria e prática da formação do leitor 13 Suas inclinações e seu temperamento forte lhe renderam uma pri- são em 1941. Dentre outras acusações, Lobato era visto como aquele que queria fazer a cabeça das criancinhas com ideias comunistas e libe- rais, como o divórcio. Apesar disso, ele nunca desistiu de escrever e pu- blicar. Vale dizer que a primeira edição de Narizinho foi publicada em 1921 e possuía um título que sinalizava uma finalidade pedagógica (coi- sa que ele não concordava, mas aceitou colocar para que não lhe impe- dissem a publicação). A literatura infantil era mais uma possibilidade de crescimento no mercado editorial e Lobato agregou sua visão empresarial ao seu poten- cial para produzir textos preocupados em atender a realidade daquele público específico que necessitava de uma linguagem própria no mundo da ficção. Mesmo com todo seu histórico político e empresarial, até hoje seu nome é lembrado como o mestre da literatura infantil. GOvernO de GetuliO vArGAS: entre O creScimentO e A repreSSãO No governo de Getulio Vargas (anos de 1930) houve uma expansão da indústria do livro e um fomento na tradução e publicação de livros estrangeiros. Isso porque, pela primeira vez, os livros importados passa- ram a custar mais que os editados no Brasil. Durante o período da Segunda Guerra Mundial, o índice de leitores no Brasil aumentou, o mercado do livro também, e São Paulo passou a ser um dos maiores parques gráficos do Ocidente. Entre 1936 e 1944 o número de editoras cresceu em, aproximadamente, 50%, mas a vigilân- cia sobre o texto escrito ainda era muito grande. As atividades culturais no governo de Vargas eram vigiadas e a cen- sura ditava o que poderia ser lido, sobretudo aquilo que se referisse à fi- delidade ao nome do presidente. Como era de se esperar, a repressão limita por um lado, mas favore- ce os ideais por outro. E foi também nessa época que a literatura mais floresceu na tentativa de falar, definir e explicar a situação do país e o movimento de ser cidadão. O livro, nesse momento, passa a ser uma gran de arma para redefinir o país. Publicações que se destacaram entre 1930 e 1945: Água-mãe (José Lins do Rego), Grande Sertão: veredas (João Guimarães Rosa); Memórias do Cár- cere (Graciliano Ramos); Marco Zero: a revolução melancólica (Oswald de 14 Lena Lois Andrade); João Miguel (Raquel de Queiroz); Casa-grande e senzala (Gilberto Freyre); Raízes do Brasil (Sérgio Buarque de Holanda), dentre outras. JuScelinO KuBitScheK e A mudAnçA de identidAde nO pAíS Desenvolvimento e modernização eram as palavras de ordem do go- verno de Juscelino e o ponto de partida era o modelo americano. Apesar de isso gerar polêmicas e desconfortos quanto a uma identi- dade ameaçada pela entrada dos produtos americanos, esse período re- presentou crescimento significativo para a indústria do livro. Em 1962, com reduções de impostos e taxas sobre o livro, a produção passou de uma média de 22 milhões de exemplares/ano para 66 milhões. Mais uma vez as discordâncias políticas fizeram surgir movimentos culturais bastante produtivos e preocupados em garantir a marca e a identidade do Brasil. Nos “burburinhos” das universidades, estudantes proclamavam autores nacionais e as palavras que os definiam eram ideo- logia, consciência nacional e realidade. Havia uma desejo de revolução. Publicações que se destacaram entre 1945 e 1964: Casa de pensão, O cortiço e O mulato (Aluízio de Azevedo); Noite na taverna (Álvares de Aze- vedo); Cacau e suor (Jorge Amado), Sagarana e primeira estórias (Guima- rãesRosa); Morte e vida severina (João Cabral de Melo Neto), dentre outras. O pArAdOxO dA fASe militAr Com o regime militar, a expressão ficou mais uma vez comprometi- da. A censura se tornou persecutória com as publicações, principalmente com a imprensa periódica e vários livros foram proibidos. Foi iniciado um período de muita perseguição para alguns escritores e editores. Paradoxalmente, o setor livreiro foi beneficiado com os incentivos governamentais para implemento de infraestrutura. Com isso, a produ- ção cultural, apesar de censurada e proibida, viveu um período áureo: o Brasil teve seu nome destacado em publicações (houve um período que ficou entre os 10 maiores produtores do mundo no mercado editorial) e na produção de filmes. Todo esse crescimento esteve atrelado, também, ao investimento fei to pelo governo para combater o analfabetismo. Houve aumento do Teoria e prática da formação do leitor 15 público leitor e a classe média ganhou um pouco de “fôlego” para inves- tir mais na formação cultural de seus filhos. Publicações que se destacaram entre 1964 e 1985: os livros didáticos foram responsáveis por mais da metade do mercado editorial dessa época. fim dO militAriSmO: mOmentO de nOvAS deScOBertAS Após os anos de 1980, o mercado editorial descobriu um novo pú- blico: o jovem. Era a hora de iniciá-lo num novo momento histórico e aproximá-lo do livro. As tecnologias e o marketing aguçado permitiram uma aproximação per sonalizada do “gosto” literário de cada um. O livro deixou de ser um ins tru mento apenas do aprendizado e do saber, para fazer parte de mais um item de consumo de uma camada permanente de leitores e apreciado- res des se objeto. Ele passou a atrair pela forma, tanto quanto pelo seu con- teúdo. O Brasil é imenso em território e não menos extenso em contradi- ções e diversidade cultural. Esse breve passeio por um assunto tão amplo e tão entrelaçado com vários outros pontos da nossa história pretende si- nalizar para a importância de reconhecermos, nesse percurso, o ponto em que nos encontramos hoje. A descoberta do público jovem, a liberdade de expressão e a evolu- ção tecnológica garantiram para o livro uma abertura de mercado e um maior poder de sedução sobre a leitura. Entretanto, com tantas disputas editoriais em relação a qualidade e beleza do livro, esse “objeto de dese- jo” também se tornou mais caro, o que provocou uma menor acessibili- dade por parte de algumas camadas sociais. A leitura continua sendo um ponto forte a ser trabalhado. Até por- que o mundo não para e a velocidade das informações, assim como a ex- pansão da internet, permite uma aproximação com culturas de territó- rios remotos e inimagináveis, mas a falta de uma exercício de leitura constituído impede que esse jovem se posicione diante da tela e reconhe- ça criticamente a direção de sua navegação. O conceito de leitura remete inicialmente ao ato de “aprender a ler”. Não é de hoje que esse tema faz parte das discussões de intelectuais, professores e autoridades governamentais. Frases como: “a população tem que se alfabetizar”; “o índice de analfabetismo deve cair”; “o país precisa investir melhor na alfabetização de crianças e jovens”; “os jovens não leem”; “os estudantes leem mal” e etc. são recorrentes na história da leitura no Brasil. Entretanto, de que leitura estamos falando? O que é ler? O que está em jogo nesse amplo conceito tão representativo para o sujeito e para a sociedade? Existem mais leituras sobre a leitura do que se pode imaginar. Abor- dar esse assunto, hoje, extrapola o território do reconhecimento sígnico e abre espaços para todos os campos de conhecimento humano. Da ma- te mática à filosofia, a leitura se situa como o primeiro degrau para todos os outros que se seguem. Há, sem dúvida, na aproximação alfabética do código escrito um im portante passo para o que vai acontecer adiante na relação texto/lei- tor. Entre saber e não saber ler existe uma linha divisória significativa. O gesto da leitura funciona como um “ritual de passagem” para uma nova eta pa da vida do estudante e representa (ainda que em fantasia) o mo- mento mais difícil (e mais sedutor) da sua infância. Saber o que dizem aqueles símbolos negros sobre o papel é quase como ganhar o mundo. Quase não. Na verdade é uma das formas de ganhar o mundo, porquanto representa autonomia, liberdade e poder para uma série de coisas. Mas, se ler é assim tão especial na direção da descoberta do mundo, por que, então, não existe um número maior de estudantes verdadei ramen- novas visões sobre a leitura2 te envolvidos com a prática da leitura? O que falta para que a se dução do livro se estabeleça definitivamente entre crianças e jovens? Nas próximas páginas, você encontrará a leitura ao lado de outros conceitos. Compartimentalizar o encontro do conceito de leitura com outros temas foi apenas uma maneira encontrada para favorecer a sua leitura e chamar sua atenção para questões que estão ao seu lado, na sua sala de aula, mas que podem passar despercebidas. Sugiro seguir a leitura acompanhado por sua memória. Tente lem- brar um pouco de seu processo alfabetizador: o que lhe era solicitado na escola; que mensagens sobre leitura sua professora lhe passava, as explí- citas e as implícitas; como as letras surgiram para você; qual o momento mais importante do seu dia na escola e o que lhe era mais fascinante na descoberta do código escrito. leiturA, AlfABetizAçãO e letrAmentO O conceito de leitura do passado (e sabemos que não é tão passado assim!) tinha como princípio a organização da subjetividade do leitor em formação. Essa ideia comungava com uma visão reducionista de um en- sino que acreditava no processo de aprendizagem como uma sequência de repetições. O estudante era visto como um ser em formação, e sua ba- gagem não era muito considerada na construção de seu conhecimento. Ele não era escutado. Estava ali apenas para receber informações e me- morizá-las, sem a possibilidade de um exercício da crítica. Dentro dessa perspectiva educacional, a leitura ficava restrita a ser sinônimo de alfabetização, ou melhor, de decodificação. Alfabetizar era tor nar o estudante apto a decifrar e decodificar o signo escrito e ter fluên cia sobre ele. A escola perdia de vista que a linguagem é uma forma de interação social e tornava a leitura uma mera repetição técnica. Seu papel se resumia em ser sistematizadora de trivialidades: regras, normas e aproximação fugaz da leitura. Rigidez era a palavra de ordem e dis- ciplina era confundida com ausência de questionamento. O estudante deveria se encaixar numa bitola de formato definido pelo regime vigente. Caso contrário, castigos físicos eram empregados. Durante muito tempo, esse foi o quadro da educação e do “aprender a ler”. O texto, em sua totalidade e contextualidade, se perdia para dar lu- gar a um objeto passivo e sem nenhum tipo de diálogo com o “leitor em formação”. Ele estava ali apenas para ser fragmentado, desconstruído e Teoria e prática da formação do leitor 17 18 Lena Lois para treinar o estudante em seu aprendizado de regras gramaticais. A insistência quantitativa num tipo de leitura mecânica e a memorizadora evidenciava um caráter adestrador da leitura. A compreensão e inter- pretação do texto, por sua vez, possuía o limite das palavras do autor. O leitor ideal era aquele que conseguisse esgotar o percurso do autor (nesse caso, dono de uma verdade irrefutável), adivinhar suas intenções e tudo que ele pretendeu dizer ao escrever aquelas linhas. Pensando dessa forma, várias campanhas do governo federal dedi- caram-se ao combate do analfabetismo. Era preciso criar um país de lei- tores. Trabalhou-se a leitura. De fato caiu o índice de analfabetismo. Mas o problema da leitura continuou e continua a rondar como um fantasma sem moradia. Isso porque a leitura foi vista e tratada durante muito tempo apenas em seu aspecto decodificador sem que se considerassem os aspectos socioculturais doato de ler. A alfabetização, verdadeira e eficiente, garante autonomia na vida do indivíduo. O código escrito, preexistente a esse sujeito que hoje está na es cola, é uma porta de acesso ao mundo dos adultos e aprendê-lo em suas fun ções é um dos passos para assimilação dos valores da sociedade. En tretanto, se ao ensinar a ler, a escola limitar a criança na reprodução e re petição daquilo que já existe, sem o devido incentivo para a construção de um pensamento crítico e renovador, ela estará promovendo seu estu- dante ao lugar de analfabeto funcional: aquele que decodifica a escrita, sabe ler, mas não possui competências para utilizar essa técnica na sua prática diária. Ao falar em analfabetismo funcional, não podemos deixar de abor- dar um conceito, muito pertinente nesse momento de reflexões sobre o ato de ler e escrever. Trata-se do letramento, muito bem descrito por Magda Soares (1999, p. 40-45): [...] um indivíduo alfabetizado não é necessariamente um indivíduo letra- do; alfabetizado é aquele indivíduo que sabe ler e escrever; já o indivíduo le trado, o indivíduo que vive em estado de letramento, é não só aquele que sabe ler e escrever, mas aquele que usa socialmente a leitura e a escrita, pra tica a leitura e a escrita, responde adequadamente às demandas sociais de leitura e escrita. [...] À medida que o analfabetismo vai sendo superado, que um número cada vez maior de pessoas aprende a ler e a escrever, e à medida que conco- mitantemente, a sociedade vai se tornando cada vez mais centrada na es- crita (cada vez mais grafocêntrica), um novo fenômeno se evidencia: não basta apenas aprender a ler e a escrever. Teoria e prática da formação do leitor 19 Possuir um contingente de alfabetizados e não letrados é (talvez!) a forma mais evidente de paralisar o desenvolvimento social. Se a prática da leitura não está incorporada, o desenvolvimento da cidadania tam- bém fica comprometido. Se não se lê, não se pode aumentar o repertório crítico. Sem a crítica, o poder de julgamento fica limitado e a capacidade de intervenção e inserção cultural, também. Ou seja, está no papel do alfabetizador, hoje, incorporar o sentido de letramento na sua prática diá ria, ou permanecer numa forma de reprodução de analfabetismo, tal- vez, a mais grave, porque disfarçada. A constatação do analfabetismo funcional deve existir como uma ala vanca para repensarmos nossa postura em sala de aula. O que pos- so proporcionar ao meu leitor, além de uma capacidade técnica de de- co dificar a língua escrita? Que tipo de professor eu sou diante dos aspectos socioculturais da leitura e da escrita? Penso na leitura co- mo conteúdo escolar ou como único meio possível para se chegar a to- dos os conteúdos do mundo? Penso que a leitura resume-se à deco di- ficação da escrita? O poder maior que a leitura dá ao cidadão não deve estar apenas em sua autonomia para atividades da vida diária, mas em seu poder de escolha: ler para ampliar sua bagagem, expressar sua subjetividade e ir adiante em sua contribuição social. Ser letrado é estar vivo ao que a cultura tem a nos oferecer. É não se contentar só com a leitura dos livros. É poder ver além do escrito. É demarcar seu território. Assumir a própria palavra é não deixar que ela seja a reprodução da palavra do outro. Ler o mundo é o primeiro passo para se querer saber do mundo. Se respeitarmos que existe um sujeito que aprende e não é passivo diante dos conteúdos escolares, que já lê antes da apresentação formal da es crita, estaremos afirmando sua singularidade e sua responsabilidade dian te de seu processo de conhecimento, conforme nos ensina a teoria construtivista. Assim deveria se desenvolver o verdadeiro ofício do ensinar. leiturA e livrOS didáticOS Ao longo da história do livro no Brasil, percebemos que a produção de livros didáticos transformou-se quase em uma indústria à parte. Em- bora tivesse, num primeiro momento, o objetivo de acelerar o cumpri- mento do currículo, chegar mais próximo ao estudante e resolver a má 20 Lena Lois formação do corpo docente, a situação do livro didático mudou de rumo e trouxe alguns entraves para a leitura na escola. A primeira delas diz respeito às fragmentações que, inevitavelmente, passaram a existir nessas publicações. O livro didático foi, durante muito tempo, um livro de recortes de textos, de textos incompletos, interpre- tações pré-fixadas e respostas prontas, pouco reflexivas. Isso sem levar em consideração a seleção desses textos: geralmente, pobres e sem mui- tos desafios para o leitor. O autor do livro didático compila e seleciona, segundo seus próprios critérios, aquilo que deverá ser lido e estudado pelo estudante. Não se trata de condenar o uso do livro didático ou considerá-lo sem utilidade a partir de agora. Sabemos que em muitos casos, é o único livro presente na vida do estudante. A questão é: ainda que esse recurso facilite o dia a dia na sala de aula e oriente quanto aos assuntos do currí- culo escolar, ele não se propõe a ser um material pleno, completo e sempre demandará outras pesquisas e outras leituras. Através da sua própria leitura crítica, o professor deve separar aqui- lo que facilita o trabalho daquilo que o limita. Caminhar com as pergun- tas do estudante e perceber quando é necessário ir a outras fontes (li- vros, filmes, museus e todos os espaços onde existam a marca do ho- mem). Pesquisar. Percorrer trilhas que os autores dos livros didáticos não fizeram (até porque eles não podem dar conta de tudo). Concordar. Dis- cordar. Multiplicar ideias e, acima de tudo, ampliar leituras. leiturA e tecnOlOGiA Leitura e escrita nasceram de um processo tecnológico. Foram in- ven tadas. Não nasceram biologicamente com homem, vieram com a evo- lução da espécie, movida pela necessidade de documentação e comu ni- cação. As novas tecnologias, principalmente a internet, também são in- ven ções do homem e também surgiram com o objetivo da comunicação. Portanto, é estéreo tentar defini-las como vilões dos livros. É importante perceber a importância e contribuição da tecnologia em todas as áreas do conhecimento. Trata-se de uma nova forma de lin- guagem que promove uma nova forma de leitura. Entretanto, se não construirmos com os estudantes uma visão crítica, capaz de filtrar todas as informações contidas naquele vasto universo, estaremos incentivando a cópia e a repetição do já dito. Teoria e prática da formação do leitor 21 Lévy (1997, p. 48) defende que: [...] os dispositivos hipertextuais nas redes digitais desterritorializaram o texto. Fizeram emergir um texto sem fronteiras nítidas sem interioridade definí vel. Não há mais um texto, dicernível e individualizável, mas apenas texto, assim como não há mais uma água e uma areia, mas apenas água e areia. O texto é posto em movimento, envolvido em um fluxo, vetorizado, meta mór fico. Assim, está mais próximo do próprio movimento do pensa- men to, ou da imagem que hoje temos deste. Perdendo sua afinidade com as ideias imutáveis que supostamente dominariam o mundo sensível, o tex- to torna-se análogo ao universo de processos ao qual se mistura. A relação com o computador e com a internet vem, na verdade, ne- gociar as fronteiras do saber. Os caminhos se abreviaram e uma máquina possui o poder de acumular quase tantas informações, quanto precise- mos. Basta disponibilizar-se à navegação: passear entre todas as possi- bilidades que o hipertexto oferece. Mas, mesmo diante do fascínio da ima gem e da tela de um computador, existe algo que se repete: a relação do texto com o leitor. Não há mais como recuar diante desses novos desafios – e nem te- mos por que. Mais do que um mero equipamento que está chegando, es- sa tecnologia representa um novo suporte de leitura. Ficar de fora é negar uma contingência cultural que vem abalando conceitos e atitudes em todas as áreas. Desde as áreas mais exatas, até as ciências humanas. leiturA e AprendizAGem Desde muito cedo, os olhos curiosos das criançasexploram o mundo na tentativa de compreender o que está à sua volta. Nesse cenário, o adulto desempenha papel fundamental: é pela sua mão e mediação que a criança se aproximará do desconhecido e desenvolverá novas hipóteses sobre a compreensão de algo ainda inominado. Sem uma preocupação pedagógica prévia, a criança começa seu processo de aprendizagem. A definição de aprendizagem encontrada nos dicionários remete à aqui sição de conhecimento através de estudos, observações e experiên- cias. A teoria de Vygotsky (1984) acrescenta a essa definição a impor- tância da interação entre os sujeitos na direção de um objetivo comum. Interagir é comunicar. No aprendizado da leitura também está em jogo a interação, seja entre duas ou mais crianças, ou entre o adulto e a criança. 22 Lena Lois O objetivo comum, nesse caso, é compreender o texto escrito e tirar con- clusões sobre ele. Inicialmente, a linguagem chega na vida da criança através da ora- lidade: para todo gesto há uma palavra que o precede a fim de que a crian ça se aproprie do mundo dos objetos, se organize dentro dele e co mece a perceber as funções da linguagem. As cantigas de ninar, os contos de fada e as cantigas de roda também participam, ativamente, dessa construção. Como produto sociocultural, o aprendizado da leitura, que se segui- rá a toda essa aproximação natural, estará estreitamente ligado à reali- dade da comunidade de origem dessa criança: Ao lermos um texto, qualquer texto, colocamos em ação todo nosso sistema de valores, crenças e atitudes que refletem o grupo social em que se deu nos sa sociabilização primária, isto é, o grupo social em que fomos criados. (Kleiman, 1996, p. 10) Reconhecer a interferência da cultura na aprendizagem da leitura é admitir o sujeito letrado. É afirmar a existência do leitor antes do texto. É não banalizar sua história e a história cultural da qual faz parte. Certa vez uma neurologista solicitou-me que fizesse uma avaliação psicológica para mensurar o QI (quoficiente de inteligência) de uma ga- rota de 12 anos, vinda de uma cidade muito carente do interior da Ba hia. Havia uma suspeita da médica, de um quadro de deficiência mental. Es- clareci que não fazia uma opção de diagnóstico através de testes psico- métricos e que pensava na inteligência do ponto de vista relacional e cul- tural. Por esse motivo, não poderia mensurar o QI dessa garota, mas fa zer um laudo a respeito de suas construções afetivas e cognitivas. Em prin- cípio, a médica aceitou os meus argumentos. Com muita dificuldade para conversar (questões relativas à articula- ção), ela revelou pouca intimidade com os materiais – lápis, papel, hidro- cor, etc. – e compreensão limitada das perguntas que eu fazia sobre seus desenhos*. Suas criações eram titubeantes, sem um fio condutor preciso. Ela respondia às minhas perguntas sem convicção do que estava dizendo. Terminado o teste, ela me perguntou se poderia fazer um desenho para mim. Um que ela escolhesse. Disse-lhe que sim. Foi então que algo sur- preendente aconteceu. * Trata-se do texto psicológico HTP, cuja análise se faz sobre os desenhos da casa, da ár- vores e da figura humana. Após os desenhos, algumas perguntas são feitas sobre eles. Teoria e prática da formação do leitor 23 A menina com suspeita de deficiência mental, e que mal conseguia segurar o lápis corretamente, desenhou uma plantação de feijão com ri- queza de detalhes e começou a me contar coisas sobre seu cultivo. Essa era sua realidade. A história do feijão era a sua história. E sobre isso ela podia falar com propriedade e sabedoria. Mais tarde, somando essa experiência aos estudos sobre leitura, pude compreender melhor sobre o letramento, a identidade cultural e as leituras de mundo que iniciam quando somos tirados do ventre de nossas mães e sentimos, na dor da primeira respiração, a existência de um mundo a ser descoberto. Escrevi um relatório que negava a existência de uma deficiência mental. Falei de uma garota acuada pela cidade grande, cujas perguntas lhe pareciam engraçadas, estranhas ou insensatas. Mas, com um poten- cial de compreensão de seu mundo que lhe permitia estar inserida cultu- ralmente nele e fazer parte daquilo que ela assistia diariamente. Não sei o que a médica fez com meu parecer, mas percebi que ficou desapontada com a falta de um “número” que identificasse o QI de sua paciente. Esse caso não aborda o aprendizado da leitura escrita, mas ilustra sobre a necessidade de se levar em consideração um aprendizado maior dos nossos estudantes: a matéria de que são feitos, o lugar de onde vie- ram e a história que carregam. Isso define muito a maneira como eles participarão da escola e do aprendizado formal. Imaginem, agora, o estudante em sala de aula e acrescentem a essa cena o ensino da linguagem escrita num texto absolutamente distante dele culturalmente. Que possibilidades esse estudante terá de gostar, com- preender ou produzir sentidos sobre esse texto? Provavelmente, nenhu ma. Não por não ser capaz. Mas por não entender em que ponto aquilo pode se relacionar com sua própria cultura. Ninguém se envolve com aquilo que não compreende. E não adianta estabelecer regras pré-fixadas sobre quais os textos deverão ser utilizados no aprendizado da leitura, porque os percursos para a descoberta do mundo da escrita são tantos quantos são os estudantes que existem nu- ma sala de aula – o potencial de aprendizagem, assim como os desejos, variam de acordo com a história de cada um. A homogeneidade na forma de aprender, desejada pelo professor para facilitar a caminhada do grupo, não existe. E, se existisse, geraria uma cria- ção tediosa e monocromática. E é sobre criação que falaremos agora. 24 Lena Lois leiturA e criAçãO O que diferencia o homem de outros animais? A inteligência, res- pon deriam alguns. A categorização entre animais racionais e animais irracionais sempre ficou marcada como o divisor de águas entre o ho- mem e o bicho. Mas a resposta a essa pergunta não pode mais ser res- pondida de maneira tão reducionista. Ela se ramifica em vários aspectos. O homem continua sendo um animal racional. Mas é a na com ple- xidade de sua linguagem que reside sua maior peculiaridade. É a pa lavra e a organização de seu pensamento, em cadeia de significantes (como nos ensina a teoria psicanalítica) que constitui o sujeito e marca sua gran de diferença em relação aos animais. Poderíamos resumir o homem como um ser capaz de transitar entre a razão e a emoção. Ele tenta compreender o significado da sua existên- cia, dando formas às suas sensações. Para cada forma que ele inaugura existe um processo de leitura do mundo, acontecendo. A criação se move nessa direção. Dentre outras definições que existem sobre criação, no dicionário Aurélio, algumas nos interessam particularmente: ato ou efeito de criar; invenção, elaboração. O verbo criar, por sua vez, aparece como: dar exis- tência; produzir, inventar, imaginar, suscitar. A capacidade de criar coisas novas é determinada pelo movimento do homem na busca do significado da vida. Ter consciência da morte, faz com que ele queira (ou precise!) deixar marcas de sua passagem – tornar-se imortal. Cada nova criação representa sua afetividade e sensibilidade materializadas de alguma forma (seja numa coreografia, num texto literário ou na exposição de um pensamento): Nessa busca de ordenações e de significados reside a profunda motivação hu mana de criar. Impelido, como ser consciente, a compreender a vida, o homem é impelido a formar. (Ostrower, 1987, p. 9) A escola assiste, diariamente, ao processo de criação de seus estu- dan tes. Ele está ali, acontecendo bem embaixo dos olhos do professor. Porque a criação acontece desde o processamento do objeto de estudo que está sendo passado até as conclusões que levam a marca pessoal da leitura que cada um fez. Considerando o texto escrito, quando lemos uma história para crian ças, ainda não alfabetizadas, ou quando o apresentamos paraestu- Teoria e prática da formação do leitor 25 dantes “maiores”, estamos lhes abastecendo de matéria-prima para sua criação. Estamos favorecendo que sua consciência e sua razão se encon- trem com sua sensibilidade, estabeleçam relações com sua experiência de vida e produzam um material de marca própria. A questão recai, mais uma vez, na escuta dessa linguagem criadora. Na valorização das relações que os estudantes fazem, a fim de se sen- tirem seguros em sua criação. Sim, porque a produção existe na medida em que ela é autorizada socialmente, ou melhor, na medida em que passa pelo olhar do outro e ele ratifica sua existência. Imaginem um livro que nunca foi lido por ninguém. Que validação podemos lhe conferir? Agora imaginem um texto criado pelo seu estudante, após duros embates com as palavras (porque sabemos que não é fácil dominar os pensa- mentos e organizar uma escrita formal – sobretudo se for um texto onde ele tenha que expor seus sentimentos a respeito de algo), e que não possua espaço para ser escutado? Onde ele colocará todo seu esforço, sua sensibilidade, percepção, sensações e organização formadora? Refletir sobre leitura e criação é permitir que se abra o espaço do estu- dante escritor. É diminuir a distância entre o fazer artístico e as pa lavras. É deixar cair a ideia de que tudo depende de uma grande ins piração designa- da para poucos. É deixar que se manifeste o potencial sensível de cada um. leiturA e interdiSciplinAridAde O que vem a ser interdisciplinaridade e por que existe, atualmente, por parte das reformas curriculares, uma grande preocupação para intro- duzi-la na educação? Recorrendo (mais uma vez!) ao dicionário Aurélio temos interdis ci- plinar como o que é “comum a duas ou mais disciplinas ou ramos do conhecimento.” Podemos entender, então, a preocupação dos órgãos do governo, dizendo que, se a escola é a primeira instituição onde entramos em contato com o conhecimento formal, nada mais previsível que sair de lá a noção de multiplicidade presente nos conteúdos e disciplinas. Per- feito! Esse deve ser o conceito mais abrangente de escola. Entretanto, para que se estabeleça a interdisciplinaridade nos proje- tos pedagógicos, é necessário que os professores reconheçam o signi- ficado disso, saibam (eles próprios) traçar um estudo interdisciplinar na sua formação e conduta profissional e passeiem pelas áreas de conhe- cimento como quem lê um todo, histórico e cultural. 26 Lena Lois A interdisciplinaridade está para os projetos escolares, assim como as “janelas” estão para o universo virtual do hipertexto: permite a am- pliação de leituras e apontam para uma compreensão do tema num con- texto mais extenso. A leiturA e O mundO, A leiturA dO mundO Certa vez, um garoto de 7 anos, percebeu que estava lendo com fluên cia e que as palavras entravam pelos seus olhos já lidas, num mo- vimento quase automático e involuntário. Ao perceber o fato, ele contou para sua mãe, que reagiu da seguinte forma: Mãe: – Que bom filho. Agora você já pode ler tudo. Garoto: – Você não está entendendo, mãe. Quando eu passo pela rua eu leio tudo que tem escrito, mesmo que eu não queira. Quando eu vejo, já li. Mãe: – Mas quando a gente aprende a ler é isso que acontece. Garoto: – Quer dizer, então que eu vou virar escravo da leitura? Mesmo quan- do eu não quiser ler alguma coisa, eu vou ler? Essa constatação feita pela criança pode parecer engraçada ou curio- sa aos olhos do adulto, mas, provavelmente, no universo desse jovem lei- tor, funciona como um elo definitivo entre ele e o mundo da escrita. Ele se descobriu prisioneiro na condição de leitor automatizado. Seja um texto de jornal, um outdoor, uma escultura, um quadro, ou, basicamente, um texto literário, os estímulos externos atravessam nos sa retina. Entretanto existem dois caminhos para toda essa biblioteca viva que é o mundo: ver, olhar e ler para agregar e interpretar conhecimentos e sentimentos ou ver sem olhar e não se abrir à leitura do mundo. Para essa segunda “opção”, o jornal não poderá informar, o outdoor não comunicará sua mensagem, a escultura será apenas a matéria, o quadro será a li mi- tação da tela e o texto literário não comoverá. A ressalva que faço no compromisso das escolas com a leitura é a de que estejam de olhos bem abertos para perceber que cada matiz representa a história das cores, cada palavra contém um pouco do texto e cada es- tudante pode revelar, a partir de suas leituras um pedaço do mundo.
Compartilhar