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DISSERTAO_FINAL_APROVADA_COM_FICHA_CATALOGRFICA

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Universidade Federal do Sul da Bahia (UFSB)
Centro de Formação em Ciências Humanas e Sociais (CFCHS)
Programa de Pós-Graduação em Estado e Sociedade (PPGES)
Emmanuel Mendes Ferraz Soares
A Relação da Multiplicidade de Competências Administrativas em Coroa
Vermelha (BA) Com as Omissões do Estado: o Consórcio Público como
Instrumento Jurídico de Diálogo e de Ação
Porto Seguro
2022
Emmanuel Mendes Ferraz Soares
A Relação da Multiplicidade de Competências Administrativas em Coroa
Vermelha (BA) Com as Omissões do Estado: o Consórcio Público como
Instrumento Jurídico de Diálogo e de Ação
Dissertação apresentada ao Programa de
PósGraduação em Estado e Sociedade da
Univesridade Federal do Sul da Bahia, em
cumprimento às exigências para obtenção do
título de Mestre em Estado e Sociedade.
Orientador: Dr. Roberto Muhájir Rahnemay
Rabbani
Coorientador: Dr. Antonio Armando Ulian Do
Lago Albuquerque
Coorientador: Spensy Kmitta Pimentel
Porto Seguro
2022
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
DEDICATORIA
O que é a ciência senão uma
linguagem apta a traduzir os
mistérios da natureza e da
humanidade, um exercício dialético
com a força motora do universo que
está à nossa volta e dentro de nós.
Dedico este estudo aos acadêmicos,
à todos que nos inspiram a buscar o
saber incessantemente. Mas,
sobretudo, dedico este trabalho ao
arquiteto da vida, que me alimenta
do querer essencial, das questões
motivadoras, dos sonhos e ideais,
que me fez nascer e renascer, para
o mundo e para mim mesmo
inúmeras vezes.
AGRADECIMENTOS
Diria a Heráclito que voltei ao rio. Vim para me reencontrar. Não com
o eu de outrora, mas com o nascido de novas águas, de águas correntes que
não param, que fluem como o tempo de Cazuza e Arnaldo.
Neste mergulho a correnteza foi abrandada pelo sempre constante e
sapiente apoio do queridíssimo professor Roberto Rabbani, meu orientador.
Sua gentileza, seu incentivo, seu cuidado jamais serão esquecidos. E lembrar
do seu papel fundamental na minha jornada acadêmica é como posso
agradecer por toda a dedicação.
A escolha de um tema com complexidades e de caráter
interdisciplinar me oportunizou conhecer os queridos professores Spensy
Pimentel e Armando Albuquerque, meus coorientadores. Ambos
acrescentaram novas percepções, novas leituras, novas humanidades que me
permitiram convergir em meio às controvérsias e construir um estudo mais
plural, mais humano e mais absorvente.
Todos aqueles que ministraram os componentes curriculares pelos
quais transitei foram água corrente e transformadora, por isso, agradeço
especialmente aos professores Márcio Lima, Eliana Povoas, May Waddington,
e, novamente, Roberto Rabbani, cujos componentes, indubitavelmente,
trouxeram novos sentidos e percepções da realidade, da história, da ciência e
do direito.
Colhi dos meus pares, mestrandos, a arte de bem conviver. Sou
grato também à esses colegas, pelas trocas de conhecimento, de apoio, de
afetuosidade. Estou certo de que a pandemia nos furtou muito, mas nós
soubemos desafiá-la, nós conseguimos, mesmo à distância, seguir fazendo
ciência e amizade, plantando ideias e fraternidade, colhendo saber e respeito.
O bom humor com que sempre tratamos o mau aventurado governo que nos
assola foi refúgio na indignação, foi riso em meio à tristeza de um país em um
grave surto reacionário. Agradeço à todos os colegas na pessoa do querido e
sempre solícito Fábio Faria, por meio do qual, também agradeço à todos os
servidores da UFSB, cujo labor torna esta universidade acolhedora, eficiente e
participativa.
Eu era estudante secundarista quando a UFSB era ainda apenas
uma ideia. Como militante do movimento estudantil, dirigindo a entidade
secundarista da minha cidade, participei das primeiras audiências públicas que
plantaram a semente de uma Universidade Federal no Extremo Sul da Bahia.
Tenho muito orgulho em ter acreditado. Sonhava que a universidade pública
seria a minha oportunidade de superar os imensos desafios sociais e
econômicos contra os quais sempre guerriei. No entanto, a vida nem sempre
corresponde aos nossos sonhos, às vezes ela dá voltas para nos surpreender
com algo ainda melhor.
Foi com o PROUNI que dei o meu primeiro passo em direção a uma
vida mais digna, e, muitos anos depois, já no exercício do Direito, entrei na
UFSB como estudante de mestrado, e tenho muito orgulho em ter sido
coadjuvante, mesmo que distante, na movimentação social que deu origem à
UFSB. Por isso, agradeço aos precursores desta instituição de ensino, na
pessoa do saudoso Zezéu Ribeiro, meu primeiro voto para deputado federal,
meu primeiro depósito de esperança e fé na educação como instrumento de
transformação social e pessoal.
Agradeço aos ilustres professores que disponibilizaram seu tempo,
seus conhecimentos, sua vontade e sua ciência na composição das bancas de
qualificação e de defesa. Estes são os momentos em que temos a
oportunidade de absorver percepções inéditas e diferenciadas, de colher um
diálogo de fora para dentro que é fundamental para ajustar o foco e lapidar a
pedra bruta que sonhamos em ver somada à edificação da ciência.
Mas todas as nossas interações, todas as nossas relações, toda a
vida que vivemos na academia, nas assembleias, nas praças e na lida,
dependem de uma outra dimensão da existência. É na intimidade do lar, da
família, dos amigos íntimos, que um outro eu tem lugar. É neste espaço que
nossas principais virtudes, e nossos mais obscurecidos pecados são
reconhecidos, e com a minha sorte, exaltados e perdoados. Para mim, nesse
repouso está a fonte de renascimento, de reconstruções, de sentido pessoal.
Por isso, agradeço às mulheres da minha vida. À minha esposa,
Melina Ferraz, cujo doce no olhar não é menos amado do que a sua força
sobrenatural, a sua resiliência, a sua vocação para amar, o seu carinho que
acalma a minha alma e traz felicidade para a minha existência. À minha mãe
querida, Dirce Ferraz, sem medo de errar, minha eterna fã. Sou muito grato por
muitas vezes ter lutado e ter vencido com o propósito de lhe fazer orgulhosa,
de dar significado às suas lutas.
Neste ano, encarei ao lado delas a finitude da minha existência,
venci algo que nunca imaginei que pudesse estar escrito no meu roteiro, e
jamais conseguiria se não fosse o amor imenso que encontrei. Os cuidados de
minha mãe, o amparo, a luta, e a dedicação da minha esposa, que compartilha
comigo o querer pela vida, sonhos e ideais, foram balsas de travessia, pelas
águas mais turbulentas que já cruzei.
Por fim, agradeço àquele que não sabemos explicar, àquele que não
sabemos nominar, àquele cuja existência transcende as religiões, aquele em
quem busco o meu socorro, aquele que acredito ser autor do eu e do rio, para
o qual o tempo não existe, aquele que se revela por meio da ciência, pela qual
conhecemos as suas obras e a sua linguagem.
Muitíssimo Grato.
“Eles serravam os galhos em que estavam
sentados. E gritavam uns para os outros as
suas experiências. De como se poderia serrar
mais depressa. E os que olhavam para eles
abanavam a cabeça, num ato de reprovação. E
continuavam serrando os galhos.”
(Bertolt Brecht)
RESUMO
A Terra Indígena de Coroa Vermelha é palco de uma intrincada rede de
regulamentações protetivas, no entanto, é evidente que vive um quadro de
ocupação urbana desordenada e de omissão estatal generalizada. Indagou-se
então quais são as competências institucionais existentes em Coroa Vermelha?
Como funciona o sistema de competências materiais comuns neste território?
E, se o instituto jurídico do Consórcio Público é uma ferramenta de diálogo e de
efetivação de políticas públicas capaz de mitigar as condutas omissivas
supostamente decorrentes da fragmentação de responsabilidades, em especial
as relacionadas à questões ambientais e urbanísticas. A partir de um problema
de Direito Público, este ensaio jurídico contextualizou a ocupação humana do
território analisado, delimitou geograficamente as afetações existentes,
demonstrou a existência de uma ocupação urbana desordenada e extraiudados de conflitos fundiários judicializados que, juntos, constituem a realidade
de fundo do problema. Com levantamentos bibliográficos e legislativos,
expôs-se os regimes jurídicos aos quais o território está submetido, bem como,
discutiu-se a competência comum como configuração jurídico-política voltada à
proteção ambiental e urbanística, com enfoque na constatação de uma relação
entre a simultaneidade de competências e a omissão estatal, para, por fim,
distinguir e sistematizar soluções para a gestão de áreas com conflitos de
competência, apontando a gestão consorciada aliada a participação social
como alternativa promissora em áreas com impasses similares. Assim, a
solução dos conflitos de competência existentes entre os órgãos públicos
envolvidos (FUNAI, IBAMA, IPHAN, SPU, INEMA, DNIT, Marinha, órgãos
municipais), a demonstração da não efetividade de múltiplas proteções legais
sobre um mesmo território e, ao mesmo tempo, a apresentação de uma
alternativa juridicamente viável como a gestão consorciada do território
analisado e de outros em circunstâncias similares, correspondem aos
resultados alcançados.
Palavras-Chave: Competência ambiental; Conflito de competências
administrativas; Coroa Vermelha; Indígenas em contexto urbano; Competência
Comum; Consórcio Público.
Abstract
The Coroa Vermelha Indigenous Land is the scene of an intricate network of
protective regulations, however, it is evident that it lives in a context of
disordered urban occupation and generalized state omission. It was then asked
what are the existing institutional competences in Coroa Vermelha? How does
the system of common material skills work in this territory? And, if the legal
institute of the Public Consortium is a tool for dialogue and implementation of
public policies capable of mitigating the omissive conduct supposedly resulting
from the fragmentation of responsibilities, especially those related to
environmental and urban issues. From a Public Law problem, this legal essay
contextualized the human occupation of the analyzed territory, geographically
delimited the existing affects, demonstrated the existence of a disorderly urban
occupation and extracted data from judicialized land conflicts that, together,
constitute the background reality. of the problem. With bibliographic and
legislative surveys, the legal regimes to which the territory is subject were
exposed, as well as the common competence as a legal-political configuration
focused on environmental and urban protection, focusing on the finding of a
relationship between simultaneity competences and the state omission, to,
finally, distinguish and systematize solutions for the management of areas with
conflicts of competence, pointing out the consortium management allied to
social participation as a promising alternative in areas with similar impasses.
Thus, the solution of conflicts of competence existing between the public bodies
involved (FUNAI, IBAMA, IPHAN, SPU, INEMA, DNIT, Navy, municipal bodies),
the demonstration of the ineffectiveness of multiple legal protections over the
same territory and, at the same time, the presentation of a legally viable
alternative such as the consortium management of the analyzed territory and
others in similar circumstances, correspond to the results achieved.
Key words: Environmental competence; Conflict of administrative
competences; Red Crown; Indigenous people in an urban context; Common
Competence; Public Consortium.
Lista de Ilustrações
Figura 1 Litoral da Capitania de Porto Seguro de 1640
Figura 2 Rio Jardim passando pela gleba “B” da TI de
Coroa Vermelha
Figura 3 Edificações na praia do cruzeiro, e em área de
APP
Figura 4 Coroa Vermelha, o bairro
Figura 5 Loteamentos e aldeamentos de Coroa Vermelha
Figura 6 Glebas A e B da TI de Coroa Vermelha
Figura 7 Área da Ponta Grande sob Reivindicação
Revisional
Figura 8 Área de Proteção Ambiental (APA) de Coroa
Vermelha
Figura 9 Zoneamento da Área de Proteção Ambiental (APA)
de Coroa Vermelha
Figura 10 Museu Aberto do Descobrimento (MADE)
Figura 11 Demonstração da Localização dos Terrenos de
Marinha e Adjacências
Figura 12 Mapa Geológico-Geomorfológico simplificado do
trecho Ponta Grande - Ponta Santo Antônio
Figura 13 Unidades Geomorfológicas de Coroa Vermelha
Figura 14 Estruturas Pedológicas de Coroa Vermelha
Figura 15 Traçados da BR367
Figura 16 Mapa de Sobreposição de Áreas em Coroa
Vermelha
Figura 17 Edificações Irregulares entre áreas de praia e a
BR367, no trecho que inclui Coroa Vermelha e a
Ponta Grande
Figura 18 Resíduos de Vegetação Nativa Recém Desmatada
às Margens da BR367, no trecho da Ponta Grande
Figura 19 Edificações residenciais e comerciais às margens
da BR367 e abertura de ruelas realizadas por meio
do desmate da vegetação nativa, no trecho da
Ponta Grande
Figura 20 Galpão da Igreja Adventista e Outras Edificações
cercadas às margens da BR367 no trecho da
Ponta Grande
Figura 21 Ocupação de Calçadas às margens da BR367 por
barracas comerciais precárias e edificações
permanentes obstruindo completamente o conjunto
paisagístico de Coroa Vermelha
Figura 22 Registro de Imagens Relacionadas à Precariedade
das Edificações do Comércio Indígena e do serviço
de limpeza pública no local
Figura 23 Exploração Publicitária Aleatória, Descaracterizada
e sem Padrões Arquitetônicos
Figura 24 Obstrução do Ilhéu de Coroa Vermelha que integra
o conjunto paisagístico de Coroa Vermelha
Tombado
Figura 25 Edificações e Poluição às Margens de Rios e
Córregos situados na TI de Coroa Vermelha e nos
Arredores do Museu Indígena
Figura 26 Ocupação da Faixa de Domínio da BR367 por
Edificações Comerciais de Alvenaria Precária,
Algumas delas com Palafitas sobre o Rio Jardim
Figura 27 Anúncios de Locação de Edificações Comerciais
no Comércio Indígena e nas Áreas de Praia
Ocupadas que Integram a Área da Ponta Grande
como Sendo de Ocupação Tradicional Indígena
Figura 28 Estado de Abandono do Museu Indígena e de
Exposição de Lixo na Parte de Trás do Cruzeiro de
Coroa Vermelha
Figura 29 Edificação de alvenaria comum na área da praia
do bairro Carajás, situado na Gleba “a” da TI de
Coroa Vermelha
Figura 30 Terminal Turístico de Coroa Vermelha (Shopping
dos Brancos) em Condições Precárias de
Conservação e com Usos Múltiplos e
Descaracterizados em Relação à Afetação Original
Figura 31 Edificações Irregulares Realizadas por Não
Indígenas na Faixa de Domínio do DNIT e
Obstruindo a Frente do Terminal Turístico de Coroa
Vermelha (Shopping dos Brancos)
Figura 32 Edificações Irregulares Realizadas por Não
Indígenas na Faixa de Domínio do DNIT
Figura 33 Processos Encontrados: Separação Temática
Figura 34 Processos: Partes Envolvidas
Figura 35 Processos: Objetos Processuais Constatados
Figura 36 Processos: Duração do Trâmite
Figura 37 Processos em Trâmite: Duração
Figura 38 Decisões: Teses Verificadas
Figura 39 Hierarquia normativa aplicável às Terras Indígenas
Figura 40 Representação Gráfica das Faixas Rodoviárias
Lista de Siglas e Abreviações
AGU Advocacia Geral da União
APA Área de Proteção Ambiental
APP Área de Preservação Permanente
CEPLAC Comissão Executiva do Plano da Lavoura Cacaueira
CEPRAM Conselho Estadual do Meio Ambiente
CISCD Consórcio Público Interfederativo de Saúde da Costa do
Descobrimento
CNVC Comissão Nacional para as Comemorações do V
Centenário do Descobrimento do Brasil
CODETUR Coordenação de Turismo da Secretaria de Cultura e
Turismo do Estado da Bahia
CONAMA Conselho Nacional do Meio Ambiente
CONDER Companhia de Desenvolvimento Urbano do Estado da
Bahia
CONDESC Consórcio de Desenvolvimento Sustentável do Território
da Costa do Descobrimento
CONSAÚDE Consórcio Público Interfederativo de Saúde do Extremo
Sul da Bahia
CONSTRUIR Consórcio Público Intermunicipal de Infraestrutura do
Extremo Sul da Bahia
CRA Centro de Recursos Ambientais
DAER/RS Departamento Autônomo de Estradas de Rodagem do
Rio Grande do Sul
DDF Departamento de Desenvolvimento Florestal
DERBA Departamentode Infraestrutura de Transportes da Bahia
DIRUC Diretoria de Unidades de Conservação
DNER Departamento Nacional de Estradas de Rodagem
DNIT Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes
EMBRAPA Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária
FACDESCO Faculdade do Descobrimento
FUNAI Fundação Nacional do Índio
FUNDEB Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação
Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação
IBAMA Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos
Naturais Renováveis
IBDF Instituto Brasileiro de Desenvolvimento Florestal
INEMA Instituto do Meio Ambiente e Recursos Hídricos
INEMA Instituto do Meio Ambiente e Recursos Hídricos
INTERBA Instituto de Terras da Bahia
IPHAN Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional
JK Juscelino Kubitschek
LC Lei Complementar
MADE Museu Aberto do Descobrimento
OIT Organização Internacional do Trabalho
PNGATI Política Nacional de Gestão Territorial e Ambiental de
Terras Indígenas
RPPN Reserva Particular do Patrimônio Natural
SECULT Secretaria de Cultura do Estado da Bahia
SEMA Secretaria do Meio Ambiente
SEMARH Secretaria de Meio Ambiente e Recursos Hídricos
SIRGAS Sistema de Referência Geocêntrico para as Américas
SPHAN Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional
SPU Secretaria do Patrimônio da União
STF Supremo Tribunal Federal
STJ Superior Tribunal de Justiça
TI Terra Indígena
UC Unidade de Conservação
SUMÁRIO
INTRODUÇÃO 19
PRIMEIRA PARTE – DIAGNÓSTICO DO CASO DE FUNDO 29
CAPÍTULO 1 – COROA VERMELHA: BREVE HISTÓRICO DEMOGRÁFICO 31
1.1 Sob o Signo da Cruz, O Relatório Antropológico – Dos Primeiros
Registros à Demarcação da Terra Indígena de Coroa Vermelha 31
1.1.1 Registros pré-coloniais da presença indígena. 32
1.1.2 Registros pós-coloniais da presença indígena. 36
1.1.3. A Luta dos Pataxós, a Demarcação e a Consolidação do Contexto
Fundiário de Coroa Vermelha 44
1.2 Reflexões e Contextualizações Complementares 49
1.2.1 Contexto Sociopolítico: O Papel do V Centenário do Descobrimento do
Brasil 50
1.2.2 Investimentos Realizados e Urbanização: O Legado e o “Largado” 53
1.2.3 A historicidade de Coroa Vermelha, os Índios do Descobrimento e os
Pataxós 57
1.3 Coroa Vermelha: O Cenário da Pesquisa 60
CAPÍTULO 2 – OCUPAÇÃO DESORDENADA: ASPECTOS GEOGRÁFICOS E
CONSTATAÇÕES RELEVANTES 64
2.1 Cartografia Aplicada Ao Território De Coroa Vermelha 64
2.1.1 Breves Levantamentos Cartográficos 65
a) Bairro de Coroa Vermelha 65
b) Terra Indígena de Coroa Vermelha 68
b.1) Território da Ponta Grande: Reivindicação Revisional da TI Pataxó de
Coroa Vermelha 71
c) Área de Proteção Ambiental (APA) de Coroa Vermelha 73
d) Museu Aberto do Descobrimento (MADE) e Sítio Histórico do
Descobrimento Tombado Como Patrimônio Histórico Nacional 77
e) Terrenos de Marinha à Leste 80
f) Rodovia BR367: Faixa de Domínio e Reserva de Faixa Não Edificável
83
g) Mapas de Sobreposições 86
2.2 Ocupação Urbana Desordenada: Breves Constatações Visuais 87
2.3 Conflitos Judicializados 101
SEGUNDA PARTE – COMPETÊNCIA MATERIAL COMUM: CONFLITOS,
OMISSÃO E O CONSÓRCIO PÚBLICO COMO INSTRUMENTO DE GESTÃO
108
CAPÍTULO 3 – SOBREPOSIÇÃO DE COMPETÊNCIAS ADMINISTRATIVAS:
COROA VERMELHA 109
3.1 O Sistema de Competências no Estado Federativo Brasileiro 109
3.1.1 Interseção entre Competências: Desembaraços 113
3.1.2 A sobreposição linear dos regimes jurídicos em Coroa Vermelha 120
3.1.2.1 Regime jurídico aplicável ao Território Indígena 121
3.1.2.2 Regime jurídico aplicável aos Terrenos de Marinha 126
3.1.2.3 Regime jurídico aplicável às Faixas de Domínio do DNIT 130
3.1.2.4 Regime jurídico aplicável à área tombada como patrimônio histórico
134
3.1.2.5 Regime jurídico aplicável à Área de Proteção Ambiental - APA de
Coroa Vermelha 137
3.2 Entre desmistificar e desburocratizar: os conflitos aparentes de
competência no contexto de Coroa Vermelha e o quadro de omissão
generalizada 146
CAPÍTULO 4 – A OMISSÃO INSTITUCIONAL COMO RESULTADO DA
SOBREPOSIÇÃO DE COMPETÊNCIAS 153
4.1 Competência Comum e Omissão Institucional: Análise e Breves
Comparativos 153
4.2 Consórcio Público como Alternativa de Gestão Unificada, Representativa
e Participativa 155
4.3 Aplicabilidade ao Caso de Coroa Vermelha e as Questões Fundamentais
Envolvidas 162
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS 174
7. APÊNDICES 194
7.1 LEVANTAMENTO DE DADOS DE PROCESSOS JUDICIAIS
RELACIONADOS À ÁREA DE COROA VERMELHA 194
7.2 LEVANTAMENTO DE DADOS ECONÔMICOS FORNECIDOS PELA
DIRETORIA DE TRIBUTOS DO MUNICÍPIO DE SANTA CRUZ CABRÁLIA
219
INTRODUÇÃO
1.1 Contextualização e problemática
O cenário da investigação proposta situa-se no Estado da Bahia, no
território de identidade do descobrimento do Brasil1, e reúne condições
naturais, históricas, étnicas e socioeconômicas que lhe imprimem uma enorme
singularidade. O lugar é Coroa Vermelha, destino turístico de destaque no
nordeste brasileiro, e palco da memória nacional. Mas, é também local de
conflitos e de contradições que se refletem na decrescente qualidade ambiental
e nas precárias condições de vida da sociedade emergente que o preenche e o
envolve.
A contraposição entre um espaço que, embora elevado à condição
de Área de Proteção Ambiental, de patrimônio histórico nacional, e, com
trechos gravados como Terra Indígena, Terrenos de Marinha e faixa de reserva
de domínio não edificável, e, ao mesmo tempo, no plano dos fatos, se
apresenta como território de exploração desordenada e descontrolada do solo,
é circunstância que indica uma latente omissão das instituições do Estado e
reclama por uma investigação acerca da relação desta com o contexto de
sobreposição de competências decorrentes das múltiplas características de
Coroa Vermelha.
O homem é um ser de relações: relaciona-se consigo mesmo, com
os outros, com o transcendente, e com a natureza, da qual faz parte, tendo, ao
mesmo tempo, a capacidade de dispor sobre ela (GOMES, 2018, p.19) 2.
Considerando a posição do ser humano dentro e em relação à
natureza, e, observando as intrincadas questões ambientais, sociais e
econômicas que, trazidas pela modernidade3 em decorrência dos problemas
atrelados à sociedade de mercado e consumo, e, da prevalência de uma ética
3 Adota-se aqui a concepção weberiana acerca do conceito de modernidade: o conjunto de
fenômenos culturais eurocêntricos, considerados universais que formataram a sociedade
racionalista, pautada pela ética capitalista que marca a civilização ocidental (SOUZA, 2019, p.
270-271).
2 Ney Fayet Júnior (2013) apud GOMES, 2018, p. 19.
1 O Estado da Bahia foi dividido administrativamente em 27 áreas, sendo uma delas
denominada de Território de Identidade Costa do Descobrimento, criada como uma unidade
regional pela Lei nº 12.630, de 14 de fevereiro de 2012, sendo constituída por oito municípios,
cujo principal direcionamento é reduzir as desigualdades e promover o desenvolvimento
socioeconômico integrado e sustentável.
19
ambiental antropocêntrica (VIEJA, 1997, p. 188-127), torna-se cada vez mais
premente a necessidade de vigiar o ambiente que nos cerca, sob pena de
comprometer nossa própria preservação, em desprezo à sábia constatação de
José Ortega y Gasset que nos legou a seguinte máxima: “Eu sou o que me
cerca. Se eu não preservar o que me cerca, eu não me preservo”4.
Assim, na esteira de raciocínio formulado pela professora Marlene
de Paula Pereira (2013, p. 53) surge o problema central desta investigação:
Existe relação entre a sobreposição de competências e a omissão estatal? Ou
ainda, em um caráter mais genérico, entre o quadro omissivo generalizado e a
super regulamentação incidente sobre um mesmo território? Na órbita desta
questão precípua questiona-se: Quais são as competências institucionais
existentes em Coroa Vermelha? Como funciona o sistema de competências
materiais comuns neste território? O instituto jurídico do Consórcio Público é
uma ferramenta de diálogo e de efetivação de políticas públicas capaz de
mitigar as condutas omissivas supostamente decorrentesda fragmentação de
responsabilidades, em especial as relacionadas à questões ambientais e
urbanísticas
1.2 Justificativa
O pesquisador, como procurador do município de Santa Cruz
Cabrália e morador do entorno de Coroa Vermelha, situa-se em local no qual a
preocupação orteguiana, acima mencionada, impõe-se, principalmente em face
da notoriedade do descontrole ambiental, urbanístico, social e econômico
quanto à ocupação urbana desordenada deste território, o qual é marcado por
um processo de favelização e degradação ambiental em acelerada expansão
(REGO, 2012, p. 64).
As circunstâncias materiais do ambiente a ser investigado
contrastam com o amplo conjunto de normas protetivas e de órgãos
4 Embora ordinariamente convertida ao contexto ambiental pelo raciocínio a que remete, é
importante pontuar que o sentido original da mensagem de Ortega y Gasset refere-se ao
homem orteguiano, enquanto indivíduo, que seria concebido como um todo eu-circunstância,
entendendo que o eu e a circunstância estariam indissoluvelmente coimplicados entre si, de
modo que o eu seria tocado e, muitas vezes, preenchido por sua circunstância, provocando
modificações em si; do mesmo modo que a circunstância seria tocada, influenciada e
modificada pelo eu.
20
incumbidos de realizar a defesa deste território em diversos aspectos, e essa
contradição coloca a questão de direito público já exposta.
1.3 Objetivos - geral e específicos
A problematização nos remete a necessidade de traçar um objetivo
geral e, esse objetivo é o de investigar a relação entre as competências
materiais comuns e a conduta omissiva do Estado em Coroa Vermelha, e
verificar se há correspondência entre os resultados encontrados in loco com
outros espaços em que verificado o exercício de variadas competências
materiais comuns.
Elementar então, em primeiro lugar, conhecer e descrever a
realidade visível e o seu contexto histórico e social, buscando materializar
textualmente a maior parte das variáveis que compõem a formação do cenário
que levou à elaboração do problema. Em prol desta tarefa, o levantamento
bibliográfico e documental foi escolhido por permitir uma exposição que
considere tanto a historiografia oficial, quanto os estudos etnográficos e
pesquisas de campo, em geral realizados por antropólogos e pesquisadores
que estabeleceram um contato direto com a população envolvida, como
também, um estudo de documentos que, por vezes, retratam momentos desse
passado a ser contextualizado.
Considerando, então, o caráter multifacetário de Coroa Vermelha, a
“Aldeia Diferenciada”, segundo André Rego (2012, p. 12), necessário se fez
reconhecer a sua singularidade como objeto de investigação, em relação ao
qual, vários estudos irão se complementar na contextualização da sua
ocupação.
Documentos que integram os processos judiciais relacionados aos
conflitos fundiários neste mesmo território, irão também fornecer informações e
dados valiosos para compreender os processos históricos da formação do
tecido social de Coroa Vermelha, cujo desenvolvimento é subjacente à
realidade atual, a ser demonstrada antes de ser abordada no contexto do cerne
político-jurídico da problemática formulada.
A constatação e materialização da ocupação do território constitui,
então, o enfoque sequencial, exposto no segundo capítulo, e compõe o
21
segundo elemento necessário à compreensão do universo subjacente ao tema.
A representação cartográfica das diversas demarcações que
implicam na incidência de diferentes regimes jurídicos sobre o território de
Coroa Vermelha, bem como, a demonstração da ocupação irregular do solo
urbano e o crescimento desordenado por meio de edificações clandestinas
(REGO, 2012, p. 64), sem acompanhamento técnico-profissional e sem
fiscalização dos órgãos competentes, são questões que necessitam ser
colocadas de maneira objetiva, capaz de identificar, localizar e materializar os
principais dados informativos e ilustrar a existência de fato das questões que
circundam a problemática. Esse processo de precarização urbana será
demonstrado por levantamento descritivo-fotográfico realizado em campo,
especialmente nos focos de maior relevância histórica, ambiental e
socioeconômica, contextualizando com a bibliografia.
Integra este contexto a exposição do panorama das demandas
judicializadas e a demonstração de dados que possibilitem uma melhor
compreensão das matérias levadas à apreciação do Poder Judiciário, bem
como, das teses que constam das decisões acessadas, das partes recorrentes,
e, principalmente, da efetividade do sistema judicial no trato dessas demandas,
analisando, especificamente o tempo de trâmite dos processos, ou seja, de
resposta aos jurisdicionados.
Essa primeira parte da pesquisa, então, engloba a contextualização
das questões materiais que ensejaram a formulação do problema a partir da
compreensão dos processos históricos e da materialização impressa dos fatos
que conduziram à problematização das relações entre sobreposições de
competência e a conduta omissiva do Estado.
A abordagem dessa problemática, no entanto, de maneira mais
direta, ocorrerá na segunda parte da exposição, a iniciar-se pela reflexão sobre
as competências administrativas no tocante à fiscalização urbanística e,
sobretudo ambiental, que tem levantado intenso debate na comunidade jurídica
e acadêmica, a exemplo dos trabalhos desenvolvidos por Talden Farias (2015),
Vinícius Cardona (2021), Alves e França (2020), e Paulo Antunes (2020)5.
5 Respectivamente: Competência ambiental legislativa e administrativa; Competências
constitucionais e responsabilidade ambiental dos entes públicos no brasil: Reflexões para uma
nova repartição; Fiscalização ambiental no federalismo brasileiro de cooperação: a aplicação
22
Transitar-se-á, assim, para os conflitos de competência como fator essencial
para a questão principal, que é o quadro de omissão do poder público em
consequência de uma super regulação incidente sobre a área, observando-se
esta como determinante para o quadro geral de incapacitação das
comunidades inseridas neste contexto, em exercer os direitos inerentes à vida
urbana6.
Adentrando assim, no problema teórico, inicialmente, se
estabelecerá, por meio de consulta à normatização aplicável, e, das discussões
bibliográficas sobre o panorama normativo e os conceitos à ele relacionados,
uma discussão voltada à compreensão dos processos que envolvem a
fiscalização urbanística e ambiental, especialmente no que concerne à fixação
de competências e responsabilidades administrativas, com enfoque maior na
competência comum em matéria ambiental, passando por uma análise crítica
dessa competência comum como instrumento do federalismo cooperativo
(FARIAS, 2015, p. 80), em especial no modelo escolhido para a Política
Nacional de Meio Ambiente.
Esta abordagem, no entanto, diferente de outras pesquisas
realizadas sobre o tema, se contextualiza com as particularidades de Coroa
Vermelha, investigando as competências relacionadas ao licenciamento e
fiscalização ambiental em área indígena e nas áreas limítrofes ao território
indígena, bem como, estudando o papel dos órgãos federais, municipais e
estaduais no tocante à ocupação do solo, considerando-se a existência de
outras especificidades neste território, tais como: terrenos de marinha com
regulação própria; faixas de domínio do DNIT com regulamentação específica;
Área de Proteção Ambiental (APA) com normatização estadual; tombamento da
paisagem como patrimônio histórico e cultural nacional, com proteção
administrada pelo IPHAN; conflitos fundiários constantes; conflitos entre
comunidade e poder público, e, especialmente, a existência de uma aparente
crise de legitimidade institucional entre os órgãos públicos perante a
comunidade, capaz de desembocar em conflitos interinstitucionais e na
ineficiência fiscalizatória decorrente de uma omissão generalizada (CARDONA,
6 Art. 2º do Estatuto das Cidades (Lei 10.257 de 10 de julho de 2001).
da lei complementarn° 140/2011; Federalismo e Proteção do Meio Ambiente: o papel do
federalismo cooperativo.
23
2021, p. 129), a qual contribui decisivamente para o crescimento desordenado
da ocupação urbana do território.
Por fim, após o desenho do panorama material e teórico que envolve
as competências administrativas no território objeto de estudo, insere-se o
debate acerca da super regulamentação e do papel da sobreposição de
competências na construção de um quadro omissivo generalizado (CARDONA,
p. 129), verificando-se comparativamente, por meio de levantamento
bibliográfico, a recorrência desta relação em realidades distintas, e, finalmente,
apontando alternativas de minimização dos conflitos positivos e negativos de
competência, à exemplo da atuação consorciada combinada com a gestão
participativa de territórios nesse contexto de sobreposição de competências
(MARTINS, 2019, p. 17; 30; 31), voltando ao final, à uma reflexão específica
sobre a aplicabilidade desta alternativa ao ambiente de fundo: o caso de Coroa
Vermelha.
As conclusões alcançadas no processo de investigação acadêmica
buscaram sintetizar o processo dialógico exercitado no desenvolvimento da
pesquisa, apontando às hipóteses confirmadas, concebendo uma resposta
refletida, porém, objetiva e sugestiva, ao problema formulado, franqueando ao
final, à comunidade e aos órgãos interessados, o aproveitamento do esforço
acadêmico realizado.
1.4 Metodologia
Os dados e os conteúdos coletados foram preparados e submetidos
à uma descrição analítica do conteúdo por meio de uma interpretação indutiva,
focada nas características da mensagem, no seu valor informacional, e nas
palavras, argumentos e ideias expressas, visando contextualizar
qualitativamente documentos, fotografias e mapas cartográficos com a
legislação e a normatização aplicável, com os conceitos acadêmicos
envolvidos e com as informações teóricas trazidas pela bibliografia, ao ponto
de viabilizar a exposição das conclusões a partir da apresentação de um
resumo das análises centrais, explicitando, inclusive, as alternativas que
possam contribuir com a melhoria do quadro que ensejou a pesquisa.
Para tanto, se fez necessário realizar um amplo levantamento
24
documental e bibliográfico, valendo-se primordialmente de pesquisas
eletrônicas, em especial nos seguintes mecanismos de buscas: Plataforma
SciELO; Portal Google Acadêmico; Portal Periódicos da CAPES; Biblioteca
Digital Brasileira de Teses e Dissertações (BDTD); Biblioteca Digital Z-library;
Portal Domínio Público; entre outros.
As palavras-chave preponderantemente utilizadas nas buscas
bibliográficas por intermediação das tecnologias de informática foram: Coroa
Vermelha; Indígena; Contexto urbano; Turismo; Demarcação; Conflitos
fundiários; Competência comum; Conflitos negativos e positivos; Omissão;
Sobreposição; Ocupação Desordenada; Meio ambiente; V centenário do
descobrimento; Consórcio Público; entre outras, com diferentes combinações
anagramáticas.
Mediante contato pessoal com agentes públicos envolvidos com o
tema, obteve-se a indicação de sítios eletrônicos especializados como
terrasindigenas.org.br, cimi.org.br, survivalbrasil.org, pib.socioambiental.org, os
quais revelaram-se bastante promissores como canais de acesso a fontes
documentais e bibliográficas relacionadas aos temas conexos à abordagem a
ser realizada, de modo que, cada trabalho ou pesquisa acessada abriu também
um novo leque de indicações referenciais que puderam ser buscadas de forma
direta e objetiva, ampliando então o arcabouço bibliográfico apto a fornecer
elementos para a investigação realizada.
A constatação da existência de processos judiciais noticiados na
imprensa eletrônica e, por meio desta, o acesso à numeração destes
processos seguida de consulta à íntegra de processos judiciais no Sistema de
Processo Judicial Eletrônico (PJE) do TRF1, relacionados ao território de Coroa
Vermelha, também oportunizou o acesso a documentos e informações
imprescindíveis.
Foi por meio de consulta eletrônica ao portal escavador.com, com o
uso simultâneo das palavras chave “Coroa Vermelha” e “Pataxó”, que se
obteve informações mais abrangentes sobre as ações judiciais existentes e
relacionadas direta ou indiretamente ao tema, e, foi a partir do acesso parcial
ou integral aos autos que foi possível estratificar dados capazes de descortinar
as características gerais das demandas jurídicas relacionadas ao território de
25
Coroa Vermelha, em especial quanto ao tempo de trâmite, as partes
envolvidas, o objeto das lides e as principais teses precárias ou definitivas
fixadas pelo poder judiciário no universo pesquisado.
Houve ainda, durante a pesquisa, a realização de diálogos informais
com a comunidade, servidores públicos e atores políticos locais, que
oportunizaram o acesso à documentos e fontes bibliográficas, bem como o
acesso ao território de Coroa Vermelha, especialmente na área indígena, para
obter o registro fotográfico e geográfico que se mostrou necessário para
oferecer concretude à realidade descrita, a qual, provocou a problematização.
Apesar do ensaio jurídico preponderar como característica da
pesquisa, estes contatos e a presença física em campo, certamente,
colaboraram para negar, em alguns casos, e confirmar, em outros, algumas
impressões pré-concebidas, e, ao mesmo tempo, promoveu uma visão crítica
ponderada pela realidade verificada in loco.
1.5 Afastamento de discussões conexas
Coroa Vermelha vivencia muitas contradições que reclamam
debates profundos e intensos sobre temas que reúnem em si substância
suficiente para discussões autônomas. À exemplo do que tem sido noticiado
em relação ao norte do país, em relação a indígenas associados à garimpeiros,
oprimindo os próprios indígenas, Coroa Vermelha vive o seu capítulo próprio da
cooptação capitalista.
A associação de índios e brancos no desmate da mata atlântica para
exploração do comércio de praia, a existência de facções do tráfico de drogas
dentro das aldeias situadas em Coroa Vermelha, o incentivo migratório por
razões político partidárias, e a especulação imobiliária praticada por alguns
indígenas em relações comerciais com o homem branco, são alguns dos
aspectos espinhosos que ampliam o leque de questões que merecem ser
debatidas.
No entanto, adentrar em todas essas questões com profundidade
encontra obstáculos metodológicos de difícil transposição. São temas
autônomos, controversos, que reclamam um olhar a partir do seu próprio eixo.
Desse modo, apesar de referências pontuais à essas questões conexas, há
26
que se reconhecer a impossibilidade de tratá-las com a densidade necessária
no âmbito deste estudo, visto que constituem temáticas autônomas, extensas,
e dispensáveis para alcançarmos os objetivos traçados nesta pesquisa.
1.6 Hipóteses e resultados
A hipótese geral, colocada em xeque, apontava a existência de uma
relação entre a sobreposição de competências administrativas e a omissão do
estado no território de Coroa Vermelha, em especial quanto à ocupação
desordenada do solo e os consequentes gravames ambientais e urbanísticos
dela decorrentes.
Confirmada esta hipótese localmente, porém, com uma
característica múltipla, e não mais sobreposta, verificou-se a existência desta
relação também em outros contextos, como nos estudos realizados por
Bitencourt (2005) e Tougueiro (2008), respectivamente nos municípios de
Florianópolis (SC) e Macaé (RJ).
No plano prático, essa abordagem expôs de forma mais clara a
identificação dos órgãos sobre os quais deve recair a pressão social e as
provocações administrativas e jurídicas que visam a mitigação de danos e a
restauração da qualidade ambiental e urbanística do território de Coroa
Vermelha, referindo-se não só aos aspectos jurídico-formais, mas,
essencialmente, às questões sociais, históricas e econômicas que envolvem a
gestão deste local fortemente afetado pelo turismo de massa, pelo fenômeno
do indígena em contexto urbano e pelo quadro de ocupaçãodesordenada e de
mercantilização atípica da vida indígena (REGO, 2012, p.10 e 53).
No plano teórico, promoveu-se uma compreensão dos espaços
multicontextuais, como também, espaços de múltiplas lutas sociais, onde
naturalmente proliferam-se normas e regulamentações diversas, como
respostas do Estado às demandas sociais de diferentes matizes que brotam
por múltiplas militâncias entrecruzadas nas suas origens e objetivos, a ponto de
alcançar expressão suficiente para se fazerem ouvir no ambiente legislativo e
normatizador, reconhecendo que esse é o contexto da super regulamentação
de competências, e que esse é o caso da área geográfica de Coroa Vermelha,
no município de Santa Cruz Cabrália, Estado da Bahia, palco de questões
27
étnicas, ambientais, econômicas e sociais, e ainda, de tradicional patrimônio
histórico nacional (REGO, 2012, p.10).
Assim, a pesquisa diagnostica parte fundamental da problemática
local, contribuindo para a atuação da comunidade local e dos diversos órgãos
com atribuições de proteção e fiscalização na área de Coroa Vermelha, e
ainda, certamente se coloca como um instrumento singular de conhecimento,
isto porque, o paralelo entre o excesso de proteção legislativa e institucional no
plano jurídico e a omissão dos órgãos públicos competentes no plano fático, é
ainda muito pouco abordado e tende a ser verificado em outros contextos de
fragmentação de poder (QUINTAS, 2006; p. 10), como comunidades das
periferias metropolitanas, comunidades tradicionais, e regiões fronteiriças em
disputa.
28
PRIMEIRA PARTE – DIAGNÓSTICO DO CASO DE FUNDO
Inauguramos nosso estudo com uma diagnose do caso de fundo
escolhido: Coroa Vermelha.
É preciso ter em perspectiva as dimensões histórica, humana,
econômica, ambiental e social que alcançam este território, o qual se
apresenta como um espaço geográfico com múltiplas afetações jurídicas,
cuja multiplicidade decorre justamente da sua característica multifacetada.
No primeiro capítulo abordaremos a contextualização histórica da
ocupação demográfica de Coroa Vermelha.
Palco do primeiro encontro entre indígenas e europeus em terras
brasileiras, trata-se de um espaço geográfico cunhado no imaginário nacional
como berço da nação. É neste pequeno trecho litorâneo que se concentra a
gênese da conciliação imaginada dos povos que deram origem à população
brasileira, e, é neste mesmo espaço que até os dias atuais, as contradições
étnicas, econômicas e sociais impõe sérias e inevitáveis discussões que
colocam em questão a frustrada ideia de unidade nacional há muito
difundida.
Apesar da presença de povos originários desde 1.500 d.C., foi em
meados de 1970 que o povoamento indígena de Coroa Vermelha passou a
delinear os contornos do que viria a se tornar na atualidade, um centro
urbano consolidado e complexo. Desde a descrição de Caminha (1.500) até
o assentamento dos primeiros habitantes e o desenvolvimento de um bairro
populoso e altamente comercial, muita história se passou, especialmente
com relação aos povos indígenas que deram característica de massa a
ocupação definitiva do local.
Para compreendermos a discussão jurídica que se pretende
realizar neste estudo, antes é preciso conhecer como se deu a ocupação do
território, as lutas fundiárias, a afetação jurídica aplicada à geografia, e,
principalmente, a forma em que se materializou a ocupação desordenada
que marca Coroa Vermelha como um espaço de crescente degradação
ambiental, de violação do patrimônio histórico nacional, mas também, de
reprodução de desigualdades, de apropriação privada de bens públicos, e da
29
utilização de pautas sociais legítimas para a viabilização dessa apropriação.
Se o primeiro capítulo retrata o passado, o segundo nos remete
ao presente. Nos demonstra como de fato se desenvolveu a ocupação de
Coroa Vermelha e o resultado nos dias de hoje. Como está o entreposto
comercial que se tornou, e cuja exploração é exercida por ações
consorciadas entre indígenas e não indígenas.
É neste ponto que delineamos as afetações jurídicas aplicadas à
geografia de Coroa vermelha para ilustrar a complexa sobreposição de
regimes jurídicos e de competências comuns.
Ao mesmo tempo, demonstramos em registro fotográfico a
degradação ambiental e do patrimônio histórico, a reprodução de dinâmicas
capitalistas em meio a sujeição dos Pataxós à um ambiente de turismo de
massa, e, notabilizamos a omissão do Estado em relação às várias tutelas
que ali deveriam se aplicar, analisando, inclusive, em breve levantamento, a
natureza e as teses envolvidas nos conflitos judicializados em a relação
Coroa Vermelha.
30
CAPÍTULO 1 – COROA VERMELHA: BREVE HISTÓRICO DEMOGRÁFICO
“Pensar o passado para compreender o presente e idealizar o
futuro” recomendava o historiador grego Heródoto.
Com essa premissa, visando compreender o presente na primeira
parte deste estudo, precisamos antes refletir sobre o que se passou em
Coroa Vermelha e como este espaço veio a se tornar o que é atualmente.
Neste compasso, este primeiro capítulo apresenta uma breve
contextualização da história demográfica da área em que foi realizada a
investigação.
A abordagem inicial centra-se em 3 pontos principais:
a) Os primeiros registros de ocupação humana e o contexto da
demarcação da Terra Indígena de Coroa Vermelha (1.1);
b) As reflexões e contextualizações complementares sobre o
contexto sociopolítico, o próprio papel do V Centenário do
Descobrimento do Brasil e o legado material dessas
comemorações e do posterior abandono, além da relação
entre o território, os pataxós e a figura idealizada dos índios do
descobrimento (1.2);
c) A compreensão da complexidade multifacetária de Coroa
Vermelha como cenário da pesquisa (1.3).
1.1 Sob o Signo da Cruz, O Relatório Antropológico – Dos Primeiros
Registros à Demarcação da Terra Indígena de Coroa Vermelha
O registro histórico antropológico indispensável para a
compreensão do reconhecimento pelo Estado brasileiro da atual situação
territorial de Coroa Vermelha é constituído pelo Relatório Circunstanciado de
Identificação e Delimitação da Terra Indígena Pataxó de Coroa Vermelha.
Este estudo foi realizado pelo Grupo Técnico instituído pela Portaria nº 860
de 14 de agosto de 1995, da Presidência da Fundação Nacional do Índio
(FUNAI), coordenado pelo antropólogo José Augusto Laranjeiras Sampaio.
Apesar da existência de outros estudos antecedentes, que fazem
31
parte do processo de reconhecimento e demarcação da TI de Coroa
Vermelha, o documento intitulado “Sob o Signo da Cruz”, coordenado por
Sampaio, se destaca por ser justamente o relatório chancelado pelo Estado
brasileiro para fins de demarcação.
Em que pese a existência de variados estudos antropológicos
mais recentes, para o propósito desta pesquisa, a articulação deste relatório
com estudos realizados por André Godim do Rego, Rodrigo de Azeredo
Grunewald, Maria Rosário de Carvalho, Sandro Campos Neves, Francisco
Eduardo Torres Cancela, dentre vários outros a serem referenciados, se
mostra um passo essencial para realizar uma breve caracterização de Coroa
Vermelha. É o ponto de partida para realizar uma releitura dos
acontecimentos que precederam a demarcação da Terra Indígena de Coroa
Vermelha que é um aspecto central no povoamento do território que é objeto
desse estudo.
Com este amparo fundamental é que iremos percorrer os registros
pré-coloniais da presença indígena (1.1.1), os registros pós-coloniais da
presença indígena, e a luta dos pataxós (1.1.2), a demarcação e a
consolidação do contexto fundiário de Coroa Vermelha (1.1.3).
1.1.1 Registros pré-coloniais da presença indígena.
Segundo Sampaio (2011, p. 98) o primeiro registro escrito da
presença indígena no território de Coroa Vermelha produzido pelos
portugueses, sabidamente a Carta de Pero Vaz de Caminha (1500), não
indicava os traços étnicos dos habitantes encontrados pela expedição de
Pedro Álvares Cabral.
Algumas fontes, no entanto, indicam que os povos Tupishabitavam ao longo da faixa litorânea, inclusive do território hoje identificado
como Sul e Extremo Sul da Bahia (NOBREGA, 1998 [1555], p. 24; SOUZA,
1971 [1587], p. 29, 47, 54, 57, 58, 277, 279; CARDIM 1978 [1625], p. 196,
197), o que, segundo Sampaio (2011, p. 98), é corroborado pelos dados
etnográficos fornecidos pelo relato de Caminha (1500), mais precisamente
quanto à indumentária, utensilhagem, habitação e hábitos.
32
Com amparo nos relatos de cronistas coloniais, Sampaio (2011, p.
98) afirma que os Tupiniquins, grupo pertencente ao tronco Tupi, teriam, nos
séculos imediatamente anteriores à conquista lusitana, desalojado os povos
que ali viviam e que eram designados genericamente de “Aymoré”. Esses
viviam em pequenos grupos itinerantes, subsistindo da caça e da coleta, sem
constituir grandes aldeias como o povo Tupi (SOUZA, op cit).
Os Aymoré se caracterizavam pela vasta fragmentação tribal, com
múltiplos nomes, cultural e linguisticamente vinculados, pertencentes à
ampla sociedade Macro-Jê, tradicionalmente nômades e estavam tanto em
conflito com grupos Tupi, quanto com os grupos de colonizadores
(OLIVEIRA, 2007, p. 4). Suas memórias são vivenciadas entre os Krenak,
em Minas Gerais, e em ramificações dos Pataxós, dos Pataxós Hã-Hã-Hãe,
na Bahia (OLIVEIRA, 2007, p. 4; SAMPAIO, 2011, p. 101) e, dentre outros,
entre os Machacali e os Botocudos, em trechos do norte do Espírito Santo e
do sul da Bahia (SAMPAIO, 2011, p. 101).
O relatório aponta que não são raros os registros da convivência,
quase sempre conflituosa, entre os Tupi e os Aymoré, e entre estes e outros
povos indígenas neste mesmo território (Sampaio, 2011, p. 99).
Sampaio (2011, p. 99) ressalva que a definição de faixas de
território originalmente ocupadas pelos "Aymoré" e pelos Tupi, em se
tratando de povos tribais, não pode adotar concepções rígidas quanto aos
limites geográficos, que, claramente, não se encontravam regulamentados
entre os diversos grupos coabitantes daquele espaço. Mesmo assim, é
possível caracterizar o território efetivamente ocupado por um povo indígena,
mesmo nas épocas pré-colonial e pós-colonial, em face da apropriação
econômica exercida sobre um ecossistema ou ecossistemas e dos padrões
culturais próprios. Essa caracterização não exclui, necessariamente, a
possibilidade de coabitação de mais de um povo sobre um mesmo território
(SAMPAIO, 2011, p. 99) – tomando-a aqui como uma unidade cultural
discreta, e não como unidade política, o que dificilmente ocorre neste tipo de
sociedade – (SAHLINS, 1970, apud SAMPAIO, 2011, p. 99).
Para Sampaio (2011, p. 99), tudo indica, que nas faixas de litoral
ocorreu uma ocupação simultânea e culturalmente diferenciada, mas não
33
isenta de conflitos, exercida pelos povos Tupi e não Tupi.
O domínio Tupi em relação ao litoral e a habitação itinerante dos
Aymoré na parcela de terra mais interior é uma composição demográfica que
passa a se tornar mais nítida a partir de relatos de viajantes estrangeiros
como Spix e Martius (1971[1831]), Wied-Neuwied (1958[1817]), e nacionais
como Navarro (1846[1808]) (SAMPAIO, 2011, p. 100).
Sampaio (2011, p. 100) concluirá que os Pataxós habitavam o
trecho litorâneo compreendido entre o Rio Santa Cruz, hoje denominado
como Rio João de Tiba, e o Rio Mucuri, fazendo referência textual à
constatação de Wied-Neuwied (1958[1817], p. 222) em relação à presença
dos Pataxós na região:
[...] esta costa, desde o Prado até o Rio do Frade, era
considerada muito perigosa por causa dos selvagens, e
ninguém se aventurava a percorrê-la sozinho (...), mas,
presentemente a população está em boas relações com os
Patachós e não os teme, embora, não sendo total a
confiança, preferia-se sempre viajar em comitiva numerosa
[...]
Conforme se pode verificar nas referências trazidas pelo relatório
circunstanciado que fundamentou a demarcação da Terra Indígena de Coroa
Vermelha, os Pataxós ficavam em território que fazia divisa ao norte e ao sul
com diversos bandos de Botocudos, ficando a fronteira do norte claramente
expressa no relato de Wied-Neuwied (1958[1817], p. 229):
[...] os Botocudos vagueiam pelo Alto Santa Cruz. Mais perto
do litoral, porém o rio lhes demarca os limites do território,
vivendo os Patachós e os Machacaris na região situada à
margem sul [...]
Os Pataxós, segundo Wied-Neuwied (1958[1817], p. 216), os
Machacali e outros pequenos grupos mantinham alianças para proteger o
território onde hoje se situa a faixa litorânea do Extremo Sul da Bahia,
especialmente contra os Botocudos, que eram mais numerosos ao Norte e
ao Sul.
34
Fonte: Guia Geográfico História da Bahia (ALBERNAZ, 1640)7
Em uma análise geral do relatório circunstanciado, não se verifica
que tenha sido realizada por Sampaio uma associação direta entre o
território objeto da demarcação em Coroa Vermelha e os registros primitivos
da presença indígena, em especial dos Pataxós, ficando, porém, evidente
que uma área muito mais abrangente constituía o espaço de coexistência de
variados grupos indígenas que fragmentariamente ocupavam
tradicionalmente todo o Extremo Sul da Bahia. No entanto não é possível
apontar claramente qual grupo étnico habitava cada trecho específico deste
território mais amplo em tempos pré-coloniais, inclusive porque à exemplo do
ocorrido no sul do país, nas constatações de Tommasino (2002, p. 40-42) a
interação entre esses grupos, as relações inter étnicas, e a alternação na
ocupação dos espaços ao longo do tempo, admite a presunção de que não é
possível conectar taxativa e precisamente uma determinada etnia ou grupo e
uma dada delimitação geográfica8.
É importante então observar que apesar da existência de
8 Para o cumprimento dos critérios constitucionais para delimitação de área de habitação
permanente com caráter tradicional considera-se também as áreas de perambulação.
7 Mapa do Atlas de João Teixeira Albernaz, de 1640, mostra o litoral da Capitania de Porto
Seguro. Disponível em
https://www.historia-brasil.com/bahia/mapas-historicos/porto-seguro.htm.
35
informações dissonantes, que contestam a versão oficial do “descobrimento”
em vários aspectos, tanto em relação ao local, tempo e autor do “achamento”
(COUTO, 2011, p. 176-181), quanto em relação à natureza de conquista ou
invasão das terras habitadas pelos povos indígenas (MOLLER; SÁ;
BEZERRA, 2003, p. 405; 406), consolidou-se na história oficial do Brasil a
narrativa colonial do “Brasil descoberto” em 22 de abril de 1500 d.C. Essa
versão foi oficializada mesmo sabendo-se que os indígenas residiam no
território da América do Sul e do Brasil desde os tempos pré-históricos, com
uma população que em 1500, se estima, ao menos, em 5 milhões de
pessoas no que viria a constituir o território brasileiro (HERSCHMANN, 2000,
p. 6).
A famosa “Carta do Achamento do Brasil”, redigida para informar à
coroa portuguesa do “achamento” da nova terra, é considerada o primeiro
documento escrito do Brasil” (COUTINHO, 1968, v.1, p. 110; CASTELLO,
1999, p. 52), e, por meio do Decreto nº 1.874 de 22 de abril de 1996, é
reconhecida como a primeira descrição geográfica do Brasil (BRASIL, 1996).
Nela registrou-se a realização da primeira celebração cristã no
Brasil, na data de 26 de abril de 1500 no território que é objeto dessa
pesquisa: Coroa Vermelha. Este evento, desde então, constitui, sob o prisma
cultural e religioso, um dos principais marcos da conquista portuguesa,
europeia e cristã na América do Sul (BEZERRA, 2008, p. 25). Ainda hoje, a
primeira missa do Brasil é rememorada em celebração festiva realizada em
Coroa Vermelha, todos os anos. Reafirmando-se a importância histórica
daquele momento e daquele território como sendo da máxima relevância
para a memória nacional.
A participação ativa dos indígenas nessas comemorações
revela-se um misto de autoafirmação enquanto primeiros habitantes da terra
e protagonistas da memória do “descobrimento”, e ao mesmo tempo, como
partícipes do enaltecimento do evento que inaugura oprocesso de
colonização do território brasileiro, marcado por inúmeras violências contra
os povos indígenas. É uma contradição própria de uma história marcada por
ambivalências.
O próprio registro inicial da presença indígena no Território de
36
Coroa Vermelha é carregado de uma certa ambivalência, na medida em que
se confunde também com o registro histórico da própria existência do
território brasileiro como território colonial que viria a se tornar posteriormente
um estado-nação. É justamente no mesmo documento em que o Brasil foi
oficialmente descrito territorialmente pela primeira vez, que se dá também, o
registro claro e preciso, inclusive quanto ao local, dos primeiros contatos dos
portugueses, “descobridores” e “invasores”, com os indígenas que ali, há
muito já residiam.
1.1.2 Registros pós-coloniais da presença indígena.
Já na segunda metade do século XVIII, na esteira do reformismo
pombalino, os indígenas abrangidos pela antiga Capitania de Porto Seguro
ficaram à mercê de um conjunto de regras voltadas a reproduzir na prática
cotidiana deles um modelo comportamental compatível com os padrões
“civilizacionais” portugueses. Isso implicava em grandes mudanças em seus
valores e costumes.
A política de controle cultural, pautada nas diretrizes do Diretório
dos Índios de 1757 (FERNANDES, 2019, 48-49) e nas Instruções para o
governo dos índios de Porto Seguro, projetava-se como uma forma de
viabilizar a própria colonização (CANCELA, 2015, p. 44), isso porque, a
transformação das populações indígenas locais, consideradas selvagens, em
“homens sociáveis e civis” seria um passo importante para o povoamento do
território com súditos leais à coroa (ARQUIVO HISTÓRICO ULTRAMARINO,
1777, D. 9494, apud CANCELA, 2013, p. 146).
Para os intelectuais e estadistas daquela época, a civilidade
importava no desgarramento da população indígena de seus referenciais
culturais, e representava a possibilidade de consolidação de uma “sociedade
de homens que viviam debaixo de certas leis”. Esse processo garantiria um
comportamento compatível com o de “cidadãos ou membros do Estado
secular, regulado pelo soberano”, em outras palavras, a transformação dos
indígenas em “cidadãos portugueses”, católicos e servos obedientes do rei,
37
consistia em um passo importante do projeto de colonização (BLUTEAU,
1789, p. 277).
Contudo, a assimilação integral dos indígenas à sociedade
encontrou obstáculos não só na resistência indígena em renegar certos
traços da sua cultura tradicional, como também, na preservação do espaço
privilegiado do colonizador nesta sociedade que se formava. Não havia
espaço para uma perspectiva de ascensão dos indígenas, vistos
principalmente como mão de obra essencial à reestruturação econômica
daquelas terras (SILVA, 2012, p. 2).
Em que pese a inauguração de uma nova e promissora etapa no
desenvolvimento econômico da região de Porto Seguro, sob a gerência de
José Xavier Machado Monteiro, muitos indígenas residentes na antiga
Capitania de Porto Seguro fugiram para outras capitanias para livrarem-se da
imposição rigorosa do trabalho, da frequência às escolas e do combate à
ociosidade ali implantado, o qual era maior do que nas capitanias
circunvizinhas de Ilhéus e Espírito Santo (SILVA, 2012, p. 8).
Tais circunstâncias se acentuam no século XIX, em virtude do
interesse em se estabelecer um livre trânsito entre o litoral nordestino e a
região das minas. A presença de índios “selvagens” neste território passou a
representar um obstáculo à unidade nacional em uma época marcada por
conflitos internacionais, o que implicou em uma forte animosidade dos
colonizadores para com os indígenas (SAMPAIO, 2011, p. 103).
Em meados do século XIX já era constatada uma redução
significativa dos aldeamentos ao longo da costa do Extremo Sul, ficando à
cargo de Antônio da Costa Pinto, Presidente da Província da Bahia, a
iniciativa de distanciar os “selvagens” das vilas (CANCELA, 2020, p. 36, 37).
Assim, propôs a fixação das famílias indígenas em uma única aldeia situada
em um ponto intermediário entre as vilas de Prado e de Porto Seguro. A
fundação desta aldeia foi autorizada em 1861 pelo diretor geral dos índios e,
conforme se absorve da tradição oral dos Pataxós contemporâneos
(GRUNEWALD, 2001, 89, 99), e da descrição da costa feita em 1905 pelo
Capitão-Mor de Porto Seguro (ALMEIDA, 1918, p. 241, apud CARVALHO,
1977, p. 82, apud SAMPAIO, 2011, p. 104), o local escolhido foi o mesmo no
38
qual hoje situa-se a Aldeia de Barra Velha, reconhecido como ponto
importante de afluência dos antigos Pataxós.
Após fundada a aldeia planejada por Costa Pinto, os indígenas de
toda a região foram ali confinados e isolados da população regional, tanto
que, não se encontram registros de outros aldeamentos na região a partir da
década de sessenta do século XIX, circunstância que se justifica também em
razão da entrada em vigor da Lei de Terras de 1850, da qual se seguiram
medidas restritivas aos territórios e aldeamentos indígenas em todas as
províncias nordestinas (CUNHA, 1992, p. 144, 145).
Existe o registro, em 1939, de uma expedição aérea sob o
comando de Gago Coutinho9, ter cruzado a região e visitado a aldeia de
Barra Velha, constatando não só a presença dos Pataxós, mas também o
seu estado de miséria e abandono. Nesta mesma época já havia na região
uma comissão encarregada pelo Presidente da República de determinar o
ponto exato do descobrimento do Brasil (CASTRO, 1940, p. 193, apud
SAMPAIO, 2011, p. 105), ocasião em que se originaria a primeira proposta
de criação de um parque na área, que viria, décadas mais tarde, a se
materializar no Parque Nacional de Monte Pascoal.
No entanto, é na verdade, em 1951, que, pelo noticiário da
imprensa regional, veio à tona a situação de precariedade e miséria em que
viviam os Pataxós, a partir do movimento que ficou conhecido na imprensa
como “A Revolta dos Caboclos de Porto Seguro” (CARVALHO, 1977, p. 84-5
apud SAMPAIO, 2011, p. 105), e marcado na memória do povo Pataxó como
“O Fogo de 51”.
Oliveira (2001), Carvalho (1977) e Kohler (s/d), descrevem o
evento relatando a invasão policial à aldeia de Barra Velha em decorrência
de um crime ocorrido contra um comerciante local (apud NEVES, 2012, p.
27). A violência da ação policial, então, se tornou um episódio simbólico para
o povo Pataxó, tanto pela evasão causada na aldeia de Barra Velha, como
por ser um fato marcado como gatilho para o movimento que viria a se tornar
9 Carlos Viegas Gago Coutinho foi um geógrafo/cartógrafo, oficial da Marinha Portuguesa,
navegador e historiador. Juntamente com o aviador Sacadura Cabral, tornou-se um pioneiro da
aviação ao efetuar a Primeira travessia aérea do Atlântico Sul, no hidroavião Lusitânia em
1922.
39
a luta pela terra para aquele povo.
Em decorrência da repressão policial e da perseguição imposta a
partir desse evento, muitos indígenas abandonaram a aldeia de Barra Velha
e iniciaram uma dispersão que viria a se consolidar com a implantação do
Parque Nacional de Monte Pascoal, em 1960, tendo o seu território
sobreposto à área da Aldeia de Barra Velha.
A partir de então, o direito dos indígenas ao acesso e uso da terra
conforme sua tradição entrou em contraposição com os propósitos
conservacionistas do parque. Impedidos de caçar e de pescar e, também, de
plantar no território do parque, no qual também se situava a aldeia de Barra
Velha, restou aos indígenas como meio de subsistência, apenas a coleta de
mariscos e caranguejos em um mangue próximo (AGOSTINHO, 1980, p. 19).
A repressão da recém implantada guarda florestal ao uso da terra conforme
os costumes dos indígenas, impulsionou ainda mais o fluxo migratório
(GRUNEWALD, 2001, p. 110; NEVES, 2012, p. 25).
Muitos indígenas se deslocaram para a “Fazenda Guarani” em
Minas Gerais, onde funcionava um posto do Serviço de Proteção aos Índios,
o que pode indicar também algum grau de estímulo do órgão indigenista a
estas migrações (SAMPAIO,2011, p. 107). Apesar do relato de Sampaio
neste sentido, importa ressaltar que consta em relatório da Comissão
Nacional da Verdade10 que a Fazenda Guarani, no fundo, era onde
funcionava, no regime ditatorial brasileiro, uma espécie de campo de
concentração e de aprisionamento de indígenas rebeldes11 com abrangência
nacional (BRASIL, 2014, p. 245), sendo, portanto, controverso que a
diáspora de Barra Velha tenha desembocado em migrações espontâneas
para a Fazenda Guarani, o que permite supor que tais afluxos possam ter
sido compulsórios.
Com a construção da BR 101 e da BR 367, a partir dos anos
sessenta, iniciou-se um período de profundas transformações econômicas na
região, marcado, especialmente, pela exploração madeireira, e,
principalmente, na década de setenta, pelo destaque dos municípios de
11 Indígenas que reivindicavam direitos.
10 Comissões da Verdade\Comissão Nacional da Verdade\Volume II\Texto 5 - Violações de
direitos humanos dos povos indígenas.
40
Porto Seguro e Santa Cruz Cabrália como pólos turísticos de crescente
relevância (SAMPAIO, 2011, p. 107).
Com a abertura desse novo mercado, e, com a inviabilização da
tradicional economia indígena que já não podia mais explorar a área do
parque de Monte Pascoal, os Pataxós migraram novamente, com o apoio de
autoridades regionais, para dois núcleos indígenas próximos ao fluxo de
turistas: um primeiro fixado à entrada do Parque de Monte Pascoal, e um
segundo, situado junto ao local onde ocorreu a primeira missa do Brasil: a
praia de Coroa Vermelha. Em ambos os casos, voltaram-se à produção e
comercialização de artesanatos destinados ao mercado turístico que se
abria, utilizando-se de técnicas e práticas apreendidas com um chefe de
posto da FUNAI (REGO, 2012, p. 53).
A conjunção de circunstâncias e interesses que ensejaram a
migração dos Pataxós é descrita por Sampaio (1993, p. 23, apud SAMPAIO,
2011, p. 108):
(...) as privações vividas pelos Pataxó em Monte Pascoal
seguramente se aliaram aos interesses da emergente
indústria turística local, para a qual se deve ter engendrado,
como um engenhoso chamariz, a ideia de que houvesse
índios vendendo artesanato junto ao recém inaugurado
marco que parece pretender confusamente celebrar tanto a
celebração ali da primeira missa do Brasil, em 1500, quanto
a inauguração em 1974, das rodovias BR 101 e BR 367,
viabilizadoras do auspicioso fluxo turístico que se anunciava.
Esta narrativa é minimizada por Grunewald (2001, p. 156), que
afirmou que a prefeitura e os empresários locais não tinham interesse na
permanência dos índios na Coroa Vermelha na década de setenta, e que se
eventualmente tiverem recebido alguma ajuda, esta teria se dado em
momentos em que a área seria visitada por governantes de maior
importância.
É possível presumir que tanto Sampaio quanto Grunewald tenham
realizado suas conclusões a partir de diferentes perspectivas e de fotografias
separadas pelo tempo, por isso, não se pode afirmar uma contradição entre
ambos. É bastante plausível que políticos e empresários tenham oscilado
quanto a apoiar ou não a permanência dos indígenas, tanto pelos variados
interesses econômicos que podem motivar cada segmento empresarial em
41
direções divergentes, quanto pelos ventos da política partidária que em
janelas eleitorais sopram em direções quase sempre desprezadas em
períodos não eleitorais.
Grunewald (2001, p. 156), afirma ainda, que não foram cedidos
lotes para os índios e que, conforme os relatos do Capitão da Marinha,
Raimundo dos Santos Coelho, e dos próprios índios, a prefeitura e os
empresários sempre combateram a sua presença naquele local para que
fosse viabilizada a instalação de um polo turístico sem a presença de
moradias indígenas. Assim, o que teria viabilizado, na verdade, alguns
benefícios, teria sido o interesse nos votos existentes na comunidade, que a
esta altura já possuía por volta de 157 eleitores.
O registro exato da instalação do povo Pataxó em Coroa
Vermelha está afirmado em Rogedo et al. (1985, p. 18, apud SAMPAIO,
2011, p. 107), que assim descreve:
A ocupação Pataxó em Coroa Vermelha começou
precisamente no dia 17 de novembro de 1972, quando o
Senhor Alberto Espírito Santo Matos, cognominado Cacique
Itambé, transferiu-se com seus familiares para o Ilhéu de
Coroa Vermelha, pressionado em Monte Pascoal pela
política genocida do IBDF, que vê nos índios os
depredadores do meio ambiente, quando é o próprio órgão
que faz vistas grossas à devastação em áreas sob sua
jurisdição.
Consta ainda do registro de Rogedo et al. (idem, apud SAMPAIO,
2011, p. 108), que Itambé, em 1973, obteve da Capitania dos Portos de Porto
Seguro e do Departamento Nacional de Estradas e Rodagens (DNER)
autorização para edificar uma moradia permanente no local que viria a se
tornar, no ano seguinte, a BR 367.
Em seguida, se instalaram ali também as famílias de Zé Lapa e de
Francisco Alves da Silva (ROGEDO et al., apud SAMPAIO, 2011, p. 108),
conhecido como Chico Branco, o qual viria a dividir, nos anos seguintes, a
liderança da comunidade emergente, se tornando principal impulsionador da
chegada de novos contingentes indígenas.
Coroa Vermelha àquela época tornara-se um entreposto
comercial, tempos antes da atividade turística e do comércio de artesanato
ganharem força. Tal conclusão é manifesta por Neves (2012, p. 26),
42
fundando-se no relato de Itambé, colhido por ele próprio:
Hoje em dia tem aqui aqueles que se acham no poder, mas
não sabem dizer como foi que se preparou esse lugar. Eu sei
contar porque quando eu cheguei práqui não tinha ninguém.
Eu não sei gravar nada, acho que é 1966. E nessa época, só
tinha a estrada aqui e o cruzeiro ali, não tinha mais nada. E
eu cheguei aqui, mais minha mulher, meu filho, começamos
a morar e viver. Primeiro trabalhei com um senhor ali
embaixo que era o chamado Tenente Ribeiro e o outro era
Mestre Didi, esses dois foram meus patrão e quando eu saí
do trabalho deles, que chamava de fazenda, eu levei uns 3
meses trabalhando, no máximo uns 4 meses, uns 4 meses e
meio. Nessa saída minha eu desacertei mais o outro patrão
dele lá, e aí não quiseram mais eu na fazenda e eu sai da
fazenda, mas saí ganhando, naquele tempo 270 contos. E aí
eu falei um dia para a mulher, “oh mulher, de hoje em diante,
com a fé em Deus, nem você nem eu vamos trabalhar na
cozinha de ninguém, nem eu vou trabalhar para a fazenda
de ninguém e nem você vai para a cozinha de ninguém, nós
vamos viver, conforme Deus quer e consente, com esse
dinheiro que eu recebi agora. E aí fomo trabalhando e
vivendo, vendendo artesanato, vendendo laranja, vendendo
bolacha, vendendo pão…[…] Aí eu vendia pro povo, o povo
que vinha da roça comprava as coisas na minha mão. […] E
ai eu comecei a ir trabalhando, trabalhando, trabalhando, é
certo de que eu possuí uma condição que fui até um
mercadista.
Como se vê a partir do relato acima, corroborado pelas
conclusões de Grunewald (2001, p. 137), essa ocupação comercial, e
também residencial, se deu inicialmente com Itambé, vindo a ser depois
ampliada a partir da distribuição dos terrenos de praia promovida pela
atuação de Itambé, Chico Branco e Chico Índio. A atuação desses
precursores foi decisiva para que a ocupação da região de praia pelos
indígenas se consolidasse (NEVES, 2012, p. 26).
Segundo Sampaio (1996, p. 22), em linha com Rego (2012, p. 61),
o próprio município de Santa Cruz Cabrália edificou, no local, residências
arredondadas, em forma de oca, com o objetivo de atender aos estereótipos
indígenas acalentados pelos turistas. Tem-se, portanto, que a ocupação em
definitivo pelos Pataxós, das imediações do Ilhéu de Coroa Vermelha, data
do início da década de setenta, como relatado por Rogedo et al. (1985, p. 18,
apud SAMPAIO, 2011, p. 107).
Além desta área de praia, está registrado que os Pataxós
43
utilizavam das matas situadas nos platôs adjacentes para coletar os recursos
necessários à confecção do artesanato que era então comercializado na
área de praia, próximaao monumento de celebração da primeira missa do
Brasil, no qual ocorria o fluxo turístico que consumia os produtos por eles
manufaturados (SAMPAIO, 2011, p. 108 e 109).
Desde a consolidação da ocupação indígena no território de
Coroa Vermelha várias foram as idas e vindas de processos de
regularização, bem como, vários foram os conflitos fundiários que colocaram
em xeque a permanência dos indígenas naquele local. Muitos destes
conflitos relacionados à contraposição da ocupação com o direito de
propriedade, e outros tantos relacionados à destinação obscura de áreas
públicas pelas autoridades locais à atores imobiliários.
Com a mudança do perfil econômico do território, os interesses
incidentes sobre a área reverteram as disposições da sociedade envolvente,
supostamente, no início, relativamente favoráveis à fixação dos Pataxós,
para uma pressão absolutamente adversa à ocupação por eles promovida. A
mesma vocação turística da região que no passado teria prestado certa
contribuição para a migração dos Pataxós das imediações do Parque de
Monte Pascoal para a área de Coroa Vermelha, agora, reclamava espaço
para acomodar o crescente interesse imobiliário, sobretudo nas áreas
próximas à praia.
1.1.3. A Luta dos Pataxós, a Demarcação e a Consolidação do Contexto
Fundiário de Coroa Vermelha
Com a ocupação Pataxó definitiva do território de Coroa
Vermelha, de fato ocorrida a partir da década de setenta, amparada no
comércio de artesanatos e no nascimento de um fluxo turístico estimulado
pela inauguração da BR 367 e, pela instalação de um cruzeiro em
homenagem a primeira missa do Brasil, a presença Pataxó se consolidou
naquele território, e, rapidamente alcançou feições urbanas e comerciais.
Grunewald (2015, p. 416) explica que o imaginário de uma Coroa
Vermelha indígena e, ao mesmo tempo, e na mesma medida, brasileira, se
44
formou ao longo do tempo e se perpetuou como uma premissa ideológica
capaz de reformular o passado colonial e atender a um único interesse
certamente convergente entre índios e não-índios na Coroa Vermelha: a
promoção do turismo. O que demonstra o espírito, em certa medida
mercantilista, que norteou o início da ocupação e o seu desenvolvimento
posterior.
A partir do assentamento definitivo dos indígenas em Coroa
Vermelha, a subsistência destes viria a ser mantida, principalmente, pela
comercialização do artesanato na área da praia, no trecho que dava acesso
da BR 367 ao Cruzeiro, ponto de grande visitação turística, marcado pelas
habitações indígenas edificadas nas laterais do acesso ao Cruzeiro (REGO,
2012, p. 63).
E, para a confecção do artesanato vendido na área de praia, os
indígenas valiam-se da exploração da área de mata, mais no interior, de
onde retiravam a matéria-prima necessária. Além disso, faziam uso do Rio
Jardim como fonte de água e para coleta de mariscos (SAMPAIO, 2011, p.
109).
O desenvolvimento turístico e a valorização do local, então,
despertou o interesse pela ocupação urbana, que viria a ser estimulada pela
prefeitura com a constituição de foreiros sobre diversas áreas que viriam a
ser comercializadas por agentes imobiliários interessados na criação de um
complexo turístico em Coroa Vermelha. Esse projeto motivou divergências
entre os próprios indígenas, visto que alguns deles foram contratados para a
execução de serviços imobiliários (SAMPAIO, 2011, p. 112).
Apesar de várias denúncias dos Pataxós desde 1979, somente
em 1985 a FUNAI faria uma primeira ação, na qual, constituiu um grupo de
trabalho para a identificação da ocupação e indicação ou não da demarcação
de Coroa Vermelha como Terra Indígena (ROGEDO et al., 1985, apud
SAMPAIO, 2011, p. 112).
A partir do relatório produzido, reconhecendo uma relativa
anterioridade da ocupação, mas, sobretudo, amparado nos aspectos
socioeconômicos de subsistência da comunidade Pataxó, foi proposta a
delimitação da Terra Indígena em duas glebas: a da praia, no entorno do
45
Cruzeiro, e a da mata, destinada não só à coleta de matéria-prima para o
artesanato, mas também para as atividades agrícolas (ROGEDO et al., 1985,
apud SAMPAIO 2011, p. 113). Depois disso, após uma averiguação da
proposta junto à comunidade, os limites propostos foram ampliados de modo
a incorporar o Rio Jardim à Terra Indígena a ser demarcada. Um terceiro
relatório do órgão indigenista, ratificou essa alteração (FURTADO, 1986;
SAMPAIO, 1996, apud REGO, 2012, p. 63).
12
Fonte: Modificado de Santa Cruz Cabrália (2016, p. 15)
No entanto, em 1987, o Grupo Interministerial responsável por
autorizar o envio desses processos para homologação presidencial, visitou o
local novamente e requisitou um novo estudo, o qual, finalmente
estabeleceria os limites exatos das propostas realizadas, bem como, a sua
situação fundiária (REGO, 2012, p. 64).
No ano seguinte, mesmo com os estudos produzidos sendo todos
favoráveis à demarcação, o Grupo Interministerial decidiu pelo não
reconhecimento daqueles limites como terra indígena, o que estimulou a
retomada da venda de lotes na área ocupada pelos índios, ameaçando,
inclusive, a derrubada de suas residências (REGO, 2012, p. 64). O impasse
levou, em 1990, a uma espécie de barganha entre índios, empresários e
prefeitura, na qual os indígenas ficariam com uma parte da área de mata e
com alguns lotes individuais na área de praia, em troca do abandono da
pretensão coletiva de demarcação, o que viria a desencadear conflitos e
tensões internas (SAMPAIO, 2011, p. 116 e 117).
12 O Rio Jardim cortando a gleba “B” da Terra Indígena de Coroa Vermelha.
46
A maioria dos indígenas, inclusive, liderados pelo Cacique
Benedito, em oposição a uma minoria liderada pelo índio Itambé, defensor
da demarcação das duas glebas, na verdade, almejava a demarcação da
gleba “B”, da mata, e o recebimento de pouco mais de dois hectares da
gleba “A”, próximo à praia, divididos em lotes para as famílias indígenas
(LEITÃO, 1991, p. 7)13.
Wilma Marques Leitão (1991, p. 8), técnica da FUNAI, registrou
em seu relatório opinião divergente da grande maioria dos indígenas
ressaltando, principalmente, a importância da utilização comum do território
para reunião do grupo indígena, e que os títulos individuais de propriedade
dos lotes, como almejados pelo grupo do cacique Benedito, reproduziria
uma lógica capitalista fincada na propriedade privada, que, se inserida no
seio da comunidade indígena contribuiria para a desagregação do seu
“modus vivendi”. Além disso, ela alertou que tal sistemática abriria espaço
para que os índios alienassem os lotes recebidos.
Neste ínterim, com o intento de exercer o controle sobre a
ocupação do território, a prefeitura promoveu, desordenadamente, a
concessão de lotes em Coroa Vermelha, abrindo espaço para invasões e
construções irregulares, além da sobreposição dominial e uma degradação
ambiental crescente. Essa atuação enfraqueceu a barganha tentada com os
índios e deu início a um processo de favelização às margens da rodovia e no
entorno do Rio Jardim, o qual viria a se acentuar com a intensificação e
diversificação do comércio (REGO, 2012, p. 64).
Um novo grupo de trabalho foi criado em 1991, o qual ratificaria as
propostas anteriormente encaminhadas, no entanto, excluindo parte do lote
denominado “Aldeia Nina”, referente à gleba da praia, que, neste momento,
já estava totalmente alienado aos não-índios (REGO, 2012, p. 64). O
relatório elaborado por este grupo de trabalho, potencialmente, foi um dos
primeiros, senão o primeiro documento a apontar naquela região um caos
fundiário, ambiental e paisagístico. No entanto, a cisão existente na
comunidade entre os que defendiam a barganha proposta por empresários e
13 Relatório de Viagem Área Indígena de Coroa Vermelha. GT Portaria PP/1145/91, FUNAI,
Wilma Marques Leitão. Disponível em: Id. 6508265, processo nº 0002966-22.2006.4.01.3310,
PJE/TRF1 2º grau. Acesso em 04 de jul 2021.
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políticos locais, e, os que defendiam a manutenção do pleito demarcatório,
adiaria

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