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Universidade Federal do Sul da Bahia (UFSB) Centro de Formação em Ciências Humanas e Sociais (CFCHS) Programa de Pós-Graduação em Estado e Sociedade (PPGES) Emmanuel Mendes Ferraz Soares A Relação da Multiplicidade de Competências Administrativas em Coroa Vermelha (BA) Com as Omissões do Estado: o Consórcio Público como Instrumento Jurídico de Diálogo e de Ação Porto Seguro 2022 Emmanuel Mendes Ferraz Soares A Relação da Multiplicidade de Competências Administrativas em Coroa Vermelha (BA) Com as Omissões do Estado: o Consórcio Público como Instrumento Jurídico de Diálogo e de Ação Dissertação apresentada ao Programa de PósGraduação em Estado e Sociedade da Univesridade Federal do Sul da Bahia, em cumprimento às exigências para obtenção do título de Mestre em Estado e Sociedade. Orientador: Dr. Roberto Muhájir Rahnemay Rabbani Coorientador: Dr. Antonio Armando Ulian Do Lago Albuquerque Coorientador: Spensy Kmitta Pimentel Porto Seguro 2022 DEDICATORIA O que é a ciência senão uma linguagem apta a traduzir os mistérios da natureza e da humanidade, um exercício dialético com a força motora do universo que está à nossa volta e dentro de nós. Dedico este estudo aos acadêmicos, à todos que nos inspiram a buscar o saber incessantemente. Mas, sobretudo, dedico este trabalho ao arquiteto da vida, que me alimenta do querer essencial, das questões motivadoras, dos sonhos e ideais, que me fez nascer e renascer, para o mundo e para mim mesmo inúmeras vezes. AGRADECIMENTOS Diria a Heráclito que voltei ao rio. Vim para me reencontrar. Não com o eu de outrora, mas com o nascido de novas águas, de águas correntes que não param, que fluem como o tempo de Cazuza e Arnaldo. Neste mergulho a correnteza foi abrandada pelo sempre constante e sapiente apoio do queridíssimo professor Roberto Rabbani, meu orientador. Sua gentileza, seu incentivo, seu cuidado jamais serão esquecidos. E lembrar do seu papel fundamental na minha jornada acadêmica é como posso agradecer por toda a dedicação. A escolha de um tema com complexidades e de caráter interdisciplinar me oportunizou conhecer os queridos professores Spensy Pimentel e Armando Albuquerque, meus coorientadores. Ambos acrescentaram novas percepções, novas leituras, novas humanidades que me permitiram convergir em meio às controvérsias e construir um estudo mais plural, mais humano e mais absorvente. Todos aqueles que ministraram os componentes curriculares pelos quais transitei foram água corrente e transformadora, por isso, agradeço especialmente aos professores Márcio Lima, Eliana Povoas, May Waddington, e, novamente, Roberto Rabbani, cujos componentes, indubitavelmente, trouxeram novos sentidos e percepções da realidade, da história, da ciência e do direito. Colhi dos meus pares, mestrandos, a arte de bem conviver. Sou grato também à esses colegas, pelas trocas de conhecimento, de apoio, de afetuosidade. Estou certo de que a pandemia nos furtou muito, mas nós soubemos desafiá-la, nós conseguimos, mesmo à distância, seguir fazendo ciência e amizade, plantando ideias e fraternidade, colhendo saber e respeito. O bom humor com que sempre tratamos o mau aventurado governo que nos assola foi refúgio na indignação, foi riso em meio à tristeza de um país em um grave surto reacionário. Agradeço à todos os colegas na pessoa do querido e sempre solícito Fábio Faria, por meio do qual, também agradeço à todos os servidores da UFSB, cujo labor torna esta universidade acolhedora, eficiente e participativa. Eu era estudante secundarista quando a UFSB era ainda apenas uma ideia. Como militante do movimento estudantil, dirigindo a entidade secundarista da minha cidade, participei das primeiras audiências públicas que plantaram a semente de uma Universidade Federal no Extremo Sul da Bahia. Tenho muito orgulho em ter acreditado. Sonhava que a universidade pública seria a minha oportunidade de superar os imensos desafios sociais e econômicos contra os quais sempre guerriei. No entanto, a vida nem sempre corresponde aos nossos sonhos, às vezes ela dá voltas para nos surpreender com algo ainda melhor. Foi com o PROUNI que dei o meu primeiro passo em direção a uma vida mais digna, e, muitos anos depois, já no exercício do Direito, entrei na UFSB como estudante de mestrado, e tenho muito orgulho em ter sido coadjuvante, mesmo que distante, na movimentação social que deu origem à UFSB. Por isso, agradeço aos precursores desta instituição de ensino, na pessoa do saudoso Zezéu Ribeiro, meu primeiro voto para deputado federal, meu primeiro depósito de esperança e fé na educação como instrumento de transformação social e pessoal. Agradeço aos ilustres professores que disponibilizaram seu tempo, seus conhecimentos, sua vontade e sua ciência na composição das bancas de qualificação e de defesa. Estes são os momentos em que temos a oportunidade de absorver percepções inéditas e diferenciadas, de colher um diálogo de fora para dentro que é fundamental para ajustar o foco e lapidar a pedra bruta que sonhamos em ver somada à edificação da ciência. Mas todas as nossas interações, todas as nossas relações, toda a vida que vivemos na academia, nas assembleias, nas praças e na lida, dependem de uma outra dimensão da existência. É na intimidade do lar, da família, dos amigos íntimos, que um outro eu tem lugar. É neste espaço que nossas principais virtudes, e nossos mais obscurecidos pecados são reconhecidos, e com a minha sorte, exaltados e perdoados. Para mim, nesse repouso está a fonte de renascimento, de reconstruções, de sentido pessoal. Por isso, agradeço às mulheres da minha vida. À minha esposa, Melina Ferraz, cujo doce no olhar não é menos amado do que a sua força sobrenatural, a sua resiliência, a sua vocação para amar, o seu carinho que acalma a minha alma e traz felicidade para a minha existência. À minha mãe querida, Dirce Ferraz, sem medo de errar, minha eterna fã. Sou muito grato por muitas vezes ter lutado e ter vencido com o propósito de lhe fazer orgulhosa, de dar significado às suas lutas. Neste ano, encarei ao lado delas a finitude da minha existência, venci algo que nunca imaginei que pudesse estar escrito no meu roteiro, e jamais conseguiria se não fosse o amor imenso que encontrei. Os cuidados de minha mãe, o amparo, a luta, e a dedicação da minha esposa, que compartilha comigo o querer pela vida, sonhos e ideais, foram balsas de travessia, pelas águas mais turbulentas que já cruzei. Por fim, agradeço àquele que não sabemos explicar, àquele que não sabemos nominar, àquele cuja existência transcende as religiões, aquele em quem busco o meu socorro, aquele que acredito ser autor do eu e do rio, para o qual o tempo não existe, aquele que se revela por meio da ciência, pela qual conhecemos as suas obras e a sua linguagem. Muitíssimo Grato. “Eles serravam os galhos em que estavam sentados. E gritavam uns para os outros as suas experiências. De como se poderia serrar mais depressa. E os que olhavam para eles abanavam a cabeça, num ato de reprovação. E continuavam serrando os galhos.” (Bertolt Brecht) RESUMO A Terra Indígena de Coroa Vermelha é palco de uma intrincada rede de regulamentações protetivas, no entanto, é evidente que vive um quadro de ocupação urbana desordenada e de omissão estatal generalizada. Indagou-se então quais são as competências institucionais existentes em Coroa Vermelha? Como funciona o sistema de competências materiais comuns neste território? E, se o instituto jurídico do Consórcio Público é uma ferramenta de diálogo e de efetivação de políticas públicas capaz de mitigar as condutas omissivas supostamente decorrentes da fragmentação de responsabilidades, em especial as relacionadas à questões ambientais e urbanísticas. A partir de um problema de Direito Público, este ensaio jurídico contextualizou a ocupação humana do território analisado, delimitou geograficamente as afetações existentes, demonstrou a existência de uma ocupação urbana desordenada e extraiudados de conflitos fundiários judicializados que, juntos, constituem a realidade de fundo do problema. Com levantamentos bibliográficos e legislativos, expôs-se os regimes jurídicos aos quais o território está submetido, bem como, discutiu-se a competência comum como configuração jurídico-política voltada à proteção ambiental e urbanística, com enfoque na constatação de uma relação entre a simultaneidade de competências e a omissão estatal, para, por fim, distinguir e sistematizar soluções para a gestão de áreas com conflitos de competência, apontando a gestão consorciada aliada a participação social como alternativa promissora em áreas com impasses similares. Assim, a solução dos conflitos de competência existentes entre os órgãos públicos envolvidos (FUNAI, IBAMA, IPHAN, SPU, INEMA, DNIT, Marinha, órgãos municipais), a demonstração da não efetividade de múltiplas proteções legais sobre um mesmo território e, ao mesmo tempo, a apresentação de uma alternativa juridicamente viável como a gestão consorciada do território analisado e de outros em circunstâncias similares, correspondem aos resultados alcançados. Palavras-Chave: Competência ambiental; Conflito de competências administrativas; Coroa Vermelha; Indígenas em contexto urbano; Competência Comum; Consórcio Público. Abstract The Coroa Vermelha Indigenous Land is the scene of an intricate network of protective regulations, however, it is evident that it lives in a context of disordered urban occupation and generalized state omission. It was then asked what are the existing institutional competences in Coroa Vermelha? How does the system of common material skills work in this territory? And, if the legal institute of the Public Consortium is a tool for dialogue and implementation of public policies capable of mitigating the omissive conduct supposedly resulting from the fragmentation of responsibilities, especially those related to environmental and urban issues. From a Public Law problem, this legal essay contextualized the human occupation of the analyzed territory, geographically delimited the existing affects, demonstrated the existence of a disorderly urban occupation and extracted data from judicialized land conflicts that, together, constitute the background reality. of the problem. With bibliographic and legislative surveys, the legal regimes to which the territory is subject were exposed, as well as the common competence as a legal-political configuration focused on environmental and urban protection, focusing on the finding of a relationship between simultaneity competences and the state omission, to, finally, distinguish and systematize solutions for the management of areas with conflicts of competence, pointing out the consortium management allied to social participation as a promising alternative in areas with similar impasses. Thus, the solution of conflicts of competence existing between the public bodies involved (FUNAI, IBAMA, IPHAN, SPU, INEMA, DNIT, Navy, municipal bodies), the demonstration of the ineffectiveness of multiple legal protections over the same territory and, at the same time, the presentation of a legally viable alternative such as the consortium management of the analyzed territory and others in similar circumstances, correspond to the results achieved. Key words: Environmental competence; Conflict of administrative competences; Red Crown; Indigenous people in an urban context; Common Competence; Public Consortium. Lista de Ilustrações Figura 1 Litoral da Capitania de Porto Seguro de 1640 Figura 2 Rio Jardim passando pela gleba “B” da TI de Coroa Vermelha Figura 3 Edificações na praia do cruzeiro, e em área de APP Figura 4 Coroa Vermelha, o bairro Figura 5 Loteamentos e aldeamentos de Coroa Vermelha Figura 6 Glebas A e B da TI de Coroa Vermelha Figura 7 Área da Ponta Grande sob Reivindicação Revisional Figura 8 Área de Proteção Ambiental (APA) de Coroa Vermelha Figura 9 Zoneamento da Área de Proteção Ambiental (APA) de Coroa Vermelha Figura 10 Museu Aberto do Descobrimento (MADE) Figura 11 Demonstração da Localização dos Terrenos de Marinha e Adjacências Figura 12 Mapa Geológico-Geomorfológico simplificado do trecho Ponta Grande - Ponta Santo Antônio Figura 13 Unidades Geomorfológicas de Coroa Vermelha Figura 14 Estruturas Pedológicas de Coroa Vermelha Figura 15 Traçados da BR367 Figura 16 Mapa de Sobreposição de Áreas em Coroa Vermelha Figura 17 Edificações Irregulares entre áreas de praia e a BR367, no trecho que inclui Coroa Vermelha e a Ponta Grande Figura 18 Resíduos de Vegetação Nativa Recém Desmatada às Margens da BR367, no trecho da Ponta Grande Figura 19 Edificações residenciais e comerciais às margens da BR367 e abertura de ruelas realizadas por meio do desmate da vegetação nativa, no trecho da Ponta Grande Figura 20 Galpão da Igreja Adventista e Outras Edificações cercadas às margens da BR367 no trecho da Ponta Grande Figura 21 Ocupação de Calçadas às margens da BR367 por barracas comerciais precárias e edificações permanentes obstruindo completamente o conjunto paisagístico de Coroa Vermelha Figura 22 Registro de Imagens Relacionadas à Precariedade das Edificações do Comércio Indígena e do serviço de limpeza pública no local Figura 23 Exploração Publicitária Aleatória, Descaracterizada e sem Padrões Arquitetônicos Figura 24 Obstrução do Ilhéu de Coroa Vermelha que integra o conjunto paisagístico de Coroa Vermelha Tombado Figura 25 Edificações e Poluição às Margens de Rios e Córregos situados na TI de Coroa Vermelha e nos Arredores do Museu Indígena Figura 26 Ocupação da Faixa de Domínio da BR367 por Edificações Comerciais de Alvenaria Precária, Algumas delas com Palafitas sobre o Rio Jardim Figura 27 Anúncios de Locação de Edificações Comerciais no Comércio Indígena e nas Áreas de Praia Ocupadas que Integram a Área da Ponta Grande como Sendo de Ocupação Tradicional Indígena Figura 28 Estado de Abandono do Museu Indígena e de Exposição de Lixo na Parte de Trás do Cruzeiro de Coroa Vermelha Figura 29 Edificação de alvenaria comum na área da praia do bairro Carajás, situado na Gleba “a” da TI de Coroa Vermelha Figura 30 Terminal Turístico de Coroa Vermelha (Shopping dos Brancos) em Condições Precárias de Conservação e com Usos Múltiplos e Descaracterizados em Relação à Afetação Original Figura 31 Edificações Irregulares Realizadas por Não Indígenas na Faixa de Domínio do DNIT e Obstruindo a Frente do Terminal Turístico de Coroa Vermelha (Shopping dos Brancos) Figura 32 Edificações Irregulares Realizadas por Não Indígenas na Faixa de Domínio do DNIT Figura 33 Processos Encontrados: Separação Temática Figura 34 Processos: Partes Envolvidas Figura 35 Processos: Objetos Processuais Constatados Figura 36 Processos: Duração do Trâmite Figura 37 Processos em Trâmite: Duração Figura 38 Decisões: Teses Verificadas Figura 39 Hierarquia normativa aplicável às Terras Indígenas Figura 40 Representação Gráfica das Faixas Rodoviárias Lista de Siglas e Abreviações AGU Advocacia Geral da União APA Área de Proteção Ambiental APP Área de Preservação Permanente CEPLAC Comissão Executiva do Plano da Lavoura Cacaueira CEPRAM Conselho Estadual do Meio Ambiente CISCD Consórcio Público Interfederativo de Saúde da Costa do Descobrimento CNVC Comissão Nacional para as Comemorações do V Centenário do Descobrimento do Brasil CODETUR Coordenação de Turismo da Secretaria de Cultura e Turismo do Estado da Bahia CONAMA Conselho Nacional do Meio Ambiente CONDER Companhia de Desenvolvimento Urbano do Estado da Bahia CONDESC Consórcio de Desenvolvimento Sustentável do Território da Costa do Descobrimento CONSAÚDE Consórcio Público Interfederativo de Saúde do Extremo Sul da Bahia CONSTRUIR Consórcio Público Intermunicipal de Infraestrutura do Extremo Sul da Bahia CRA Centro de Recursos Ambientais DAER/RS Departamento Autônomo de Estradas de Rodagem do Rio Grande do Sul DDF Departamento de Desenvolvimento Florestal DERBA Departamentode Infraestrutura de Transportes da Bahia DIRUC Diretoria de Unidades de Conservação DNER Departamento Nacional de Estradas de Rodagem DNIT Departamento Nacional de Infraestrutura de Transportes EMBRAPA Empresa Brasileira de Pesquisa Agropecuária FACDESCO Faculdade do Descobrimento FUNAI Fundação Nacional do Índio FUNDEB Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação IBAMA Instituto Brasileiro do Meio Ambiente e dos Recursos Naturais Renováveis IBDF Instituto Brasileiro de Desenvolvimento Florestal INEMA Instituto do Meio Ambiente e Recursos Hídricos INEMA Instituto do Meio Ambiente e Recursos Hídricos INTERBA Instituto de Terras da Bahia IPHAN Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional JK Juscelino Kubitschek LC Lei Complementar MADE Museu Aberto do Descobrimento OIT Organização Internacional do Trabalho PNGATI Política Nacional de Gestão Territorial e Ambiental de Terras Indígenas RPPN Reserva Particular do Patrimônio Natural SECULT Secretaria de Cultura do Estado da Bahia SEMA Secretaria do Meio Ambiente SEMARH Secretaria de Meio Ambiente e Recursos Hídricos SIRGAS Sistema de Referência Geocêntrico para as Américas SPHAN Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional SPU Secretaria do Patrimônio da União STF Supremo Tribunal Federal STJ Superior Tribunal de Justiça TI Terra Indígena UC Unidade de Conservação SUMÁRIO INTRODUÇÃO 19 PRIMEIRA PARTE – DIAGNÓSTICO DO CASO DE FUNDO 29 CAPÍTULO 1 – COROA VERMELHA: BREVE HISTÓRICO DEMOGRÁFICO 31 1.1 Sob o Signo da Cruz, O Relatório Antropológico – Dos Primeiros Registros à Demarcação da Terra Indígena de Coroa Vermelha 31 1.1.1 Registros pré-coloniais da presença indígena. 32 1.1.2 Registros pós-coloniais da presença indígena. 36 1.1.3. A Luta dos Pataxós, a Demarcação e a Consolidação do Contexto Fundiário de Coroa Vermelha 44 1.2 Reflexões e Contextualizações Complementares 49 1.2.1 Contexto Sociopolítico: O Papel do V Centenário do Descobrimento do Brasil 50 1.2.2 Investimentos Realizados e Urbanização: O Legado e o “Largado” 53 1.2.3 A historicidade de Coroa Vermelha, os Índios do Descobrimento e os Pataxós 57 1.3 Coroa Vermelha: O Cenário da Pesquisa 60 CAPÍTULO 2 – OCUPAÇÃO DESORDENADA: ASPECTOS GEOGRÁFICOS E CONSTATAÇÕES RELEVANTES 64 2.1 Cartografia Aplicada Ao Território De Coroa Vermelha 64 2.1.1 Breves Levantamentos Cartográficos 65 a) Bairro de Coroa Vermelha 65 b) Terra Indígena de Coroa Vermelha 68 b.1) Território da Ponta Grande: Reivindicação Revisional da TI Pataxó de Coroa Vermelha 71 c) Área de Proteção Ambiental (APA) de Coroa Vermelha 73 d) Museu Aberto do Descobrimento (MADE) e Sítio Histórico do Descobrimento Tombado Como Patrimônio Histórico Nacional 77 e) Terrenos de Marinha à Leste 80 f) Rodovia BR367: Faixa de Domínio e Reserva de Faixa Não Edificável 83 g) Mapas de Sobreposições 86 2.2 Ocupação Urbana Desordenada: Breves Constatações Visuais 87 2.3 Conflitos Judicializados 101 SEGUNDA PARTE – COMPETÊNCIA MATERIAL COMUM: CONFLITOS, OMISSÃO E O CONSÓRCIO PÚBLICO COMO INSTRUMENTO DE GESTÃO 108 CAPÍTULO 3 – SOBREPOSIÇÃO DE COMPETÊNCIAS ADMINISTRATIVAS: COROA VERMELHA 109 3.1 O Sistema de Competências no Estado Federativo Brasileiro 109 3.1.1 Interseção entre Competências: Desembaraços 113 3.1.2 A sobreposição linear dos regimes jurídicos em Coroa Vermelha 120 3.1.2.1 Regime jurídico aplicável ao Território Indígena 121 3.1.2.2 Regime jurídico aplicável aos Terrenos de Marinha 126 3.1.2.3 Regime jurídico aplicável às Faixas de Domínio do DNIT 130 3.1.2.4 Regime jurídico aplicável à área tombada como patrimônio histórico 134 3.1.2.5 Regime jurídico aplicável à Área de Proteção Ambiental - APA de Coroa Vermelha 137 3.2 Entre desmistificar e desburocratizar: os conflitos aparentes de competência no contexto de Coroa Vermelha e o quadro de omissão generalizada 146 CAPÍTULO 4 – A OMISSÃO INSTITUCIONAL COMO RESULTADO DA SOBREPOSIÇÃO DE COMPETÊNCIAS 153 4.1 Competência Comum e Omissão Institucional: Análise e Breves Comparativos 153 4.2 Consórcio Público como Alternativa de Gestão Unificada, Representativa e Participativa 155 4.3 Aplicabilidade ao Caso de Coroa Vermelha e as Questões Fundamentais Envolvidas 162 5. CONSIDERAÇÕES FINAIS 174 7. APÊNDICES 194 7.1 LEVANTAMENTO DE DADOS DE PROCESSOS JUDICIAIS RELACIONADOS À ÁREA DE COROA VERMELHA 194 7.2 LEVANTAMENTO DE DADOS ECONÔMICOS FORNECIDOS PELA DIRETORIA DE TRIBUTOS DO MUNICÍPIO DE SANTA CRUZ CABRÁLIA 219 INTRODUÇÃO 1.1 Contextualização e problemática O cenário da investigação proposta situa-se no Estado da Bahia, no território de identidade do descobrimento do Brasil1, e reúne condições naturais, históricas, étnicas e socioeconômicas que lhe imprimem uma enorme singularidade. O lugar é Coroa Vermelha, destino turístico de destaque no nordeste brasileiro, e palco da memória nacional. Mas, é também local de conflitos e de contradições que se refletem na decrescente qualidade ambiental e nas precárias condições de vida da sociedade emergente que o preenche e o envolve. A contraposição entre um espaço que, embora elevado à condição de Área de Proteção Ambiental, de patrimônio histórico nacional, e, com trechos gravados como Terra Indígena, Terrenos de Marinha e faixa de reserva de domínio não edificável, e, ao mesmo tempo, no plano dos fatos, se apresenta como território de exploração desordenada e descontrolada do solo, é circunstância que indica uma latente omissão das instituições do Estado e reclama por uma investigação acerca da relação desta com o contexto de sobreposição de competências decorrentes das múltiplas características de Coroa Vermelha. O homem é um ser de relações: relaciona-se consigo mesmo, com os outros, com o transcendente, e com a natureza, da qual faz parte, tendo, ao mesmo tempo, a capacidade de dispor sobre ela (GOMES, 2018, p.19) 2. Considerando a posição do ser humano dentro e em relação à natureza, e, observando as intrincadas questões ambientais, sociais e econômicas que, trazidas pela modernidade3 em decorrência dos problemas atrelados à sociedade de mercado e consumo, e, da prevalência de uma ética 3 Adota-se aqui a concepção weberiana acerca do conceito de modernidade: o conjunto de fenômenos culturais eurocêntricos, considerados universais que formataram a sociedade racionalista, pautada pela ética capitalista que marca a civilização ocidental (SOUZA, 2019, p. 270-271). 2 Ney Fayet Júnior (2013) apud GOMES, 2018, p. 19. 1 O Estado da Bahia foi dividido administrativamente em 27 áreas, sendo uma delas denominada de Território de Identidade Costa do Descobrimento, criada como uma unidade regional pela Lei nº 12.630, de 14 de fevereiro de 2012, sendo constituída por oito municípios, cujo principal direcionamento é reduzir as desigualdades e promover o desenvolvimento socioeconômico integrado e sustentável. 19 ambiental antropocêntrica (VIEJA, 1997, p. 188-127), torna-se cada vez mais premente a necessidade de vigiar o ambiente que nos cerca, sob pena de comprometer nossa própria preservação, em desprezo à sábia constatação de José Ortega y Gasset que nos legou a seguinte máxima: “Eu sou o que me cerca. Se eu não preservar o que me cerca, eu não me preservo”4. Assim, na esteira de raciocínio formulado pela professora Marlene de Paula Pereira (2013, p. 53) surge o problema central desta investigação: Existe relação entre a sobreposição de competências e a omissão estatal? Ou ainda, em um caráter mais genérico, entre o quadro omissivo generalizado e a super regulamentação incidente sobre um mesmo território? Na órbita desta questão precípua questiona-se: Quais são as competências institucionais existentes em Coroa Vermelha? Como funciona o sistema de competências materiais comuns neste território? O instituto jurídico do Consórcio Público é uma ferramenta de diálogo e de efetivação de políticas públicas capaz de mitigar as condutas omissivas supostamente decorrentesda fragmentação de responsabilidades, em especial as relacionadas à questões ambientais e urbanísticas 1.2 Justificativa O pesquisador, como procurador do município de Santa Cruz Cabrália e morador do entorno de Coroa Vermelha, situa-se em local no qual a preocupação orteguiana, acima mencionada, impõe-se, principalmente em face da notoriedade do descontrole ambiental, urbanístico, social e econômico quanto à ocupação urbana desordenada deste território, o qual é marcado por um processo de favelização e degradação ambiental em acelerada expansão (REGO, 2012, p. 64). As circunstâncias materiais do ambiente a ser investigado contrastam com o amplo conjunto de normas protetivas e de órgãos 4 Embora ordinariamente convertida ao contexto ambiental pelo raciocínio a que remete, é importante pontuar que o sentido original da mensagem de Ortega y Gasset refere-se ao homem orteguiano, enquanto indivíduo, que seria concebido como um todo eu-circunstância, entendendo que o eu e a circunstância estariam indissoluvelmente coimplicados entre si, de modo que o eu seria tocado e, muitas vezes, preenchido por sua circunstância, provocando modificações em si; do mesmo modo que a circunstância seria tocada, influenciada e modificada pelo eu. 20 incumbidos de realizar a defesa deste território em diversos aspectos, e essa contradição coloca a questão de direito público já exposta. 1.3 Objetivos - geral e específicos A problematização nos remete a necessidade de traçar um objetivo geral e, esse objetivo é o de investigar a relação entre as competências materiais comuns e a conduta omissiva do Estado em Coroa Vermelha, e verificar se há correspondência entre os resultados encontrados in loco com outros espaços em que verificado o exercício de variadas competências materiais comuns. Elementar então, em primeiro lugar, conhecer e descrever a realidade visível e o seu contexto histórico e social, buscando materializar textualmente a maior parte das variáveis que compõem a formação do cenário que levou à elaboração do problema. Em prol desta tarefa, o levantamento bibliográfico e documental foi escolhido por permitir uma exposição que considere tanto a historiografia oficial, quanto os estudos etnográficos e pesquisas de campo, em geral realizados por antropólogos e pesquisadores que estabeleceram um contato direto com a população envolvida, como também, um estudo de documentos que, por vezes, retratam momentos desse passado a ser contextualizado. Considerando, então, o caráter multifacetário de Coroa Vermelha, a “Aldeia Diferenciada”, segundo André Rego (2012, p. 12), necessário se fez reconhecer a sua singularidade como objeto de investigação, em relação ao qual, vários estudos irão se complementar na contextualização da sua ocupação. Documentos que integram os processos judiciais relacionados aos conflitos fundiários neste mesmo território, irão também fornecer informações e dados valiosos para compreender os processos históricos da formação do tecido social de Coroa Vermelha, cujo desenvolvimento é subjacente à realidade atual, a ser demonstrada antes de ser abordada no contexto do cerne político-jurídico da problemática formulada. A constatação e materialização da ocupação do território constitui, então, o enfoque sequencial, exposto no segundo capítulo, e compõe o 21 segundo elemento necessário à compreensão do universo subjacente ao tema. A representação cartográfica das diversas demarcações que implicam na incidência de diferentes regimes jurídicos sobre o território de Coroa Vermelha, bem como, a demonstração da ocupação irregular do solo urbano e o crescimento desordenado por meio de edificações clandestinas (REGO, 2012, p. 64), sem acompanhamento técnico-profissional e sem fiscalização dos órgãos competentes, são questões que necessitam ser colocadas de maneira objetiva, capaz de identificar, localizar e materializar os principais dados informativos e ilustrar a existência de fato das questões que circundam a problemática. Esse processo de precarização urbana será demonstrado por levantamento descritivo-fotográfico realizado em campo, especialmente nos focos de maior relevância histórica, ambiental e socioeconômica, contextualizando com a bibliografia. Integra este contexto a exposição do panorama das demandas judicializadas e a demonstração de dados que possibilitem uma melhor compreensão das matérias levadas à apreciação do Poder Judiciário, bem como, das teses que constam das decisões acessadas, das partes recorrentes, e, principalmente, da efetividade do sistema judicial no trato dessas demandas, analisando, especificamente o tempo de trâmite dos processos, ou seja, de resposta aos jurisdicionados. Essa primeira parte da pesquisa, então, engloba a contextualização das questões materiais que ensejaram a formulação do problema a partir da compreensão dos processos históricos e da materialização impressa dos fatos que conduziram à problematização das relações entre sobreposições de competência e a conduta omissiva do Estado. A abordagem dessa problemática, no entanto, de maneira mais direta, ocorrerá na segunda parte da exposição, a iniciar-se pela reflexão sobre as competências administrativas no tocante à fiscalização urbanística e, sobretudo ambiental, que tem levantado intenso debate na comunidade jurídica e acadêmica, a exemplo dos trabalhos desenvolvidos por Talden Farias (2015), Vinícius Cardona (2021), Alves e França (2020), e Paulo Antunes (2020)5. 5 Respectivamente: Competência ambiental legislativa e administrativa; Competências constitucionais e responsabilidade ambiental dos entes públicos no brasil: Reflexões para uma nova repartição; Fiscalização ambiental no federalismo brasileiro de cooperação: a aplicação 22 Transitar-se-á, assim, para os conflitos de competência como fator essencial para a questão principal, que é o quadro de omissão do poder público em consequência de uma super regulação incidente sobre a área, observando-se esta como determinante para o quadro geral de incapacitação das comunidades inseridas neste contexto, em exercer os direitos inerentes à vida urbana6. Adentrando assim, no problema teórico, inicialmente, se estabelecerá, por meio de consulta à normatização aplicável, e, das discussões bibliográficas sobre o panorama normativo e os conceitos à ele relacionados, uma discussão voltada à compreensão dos processos que envolvem a fiscalização urbanística e ambiental, especialmente no que concerne à fixação de competências e responsabilidades administrativas, com enfoque maior na competência comum em matéria ambiental, passando por uma análise crítica dessa competência comum como instrumento do federalismo cooperativo (FARIAS, 2015, p. 80), em especial no modelo escolhido para a Política Nacional de Meio Ambiente. Esta abordagem, no entanto, diferente de outras pesquisas realizadas sobre o tema, se contextualiza com as particularidades de Coroa Vermelha, investigando as competências relacionadas ao licenciamento e fiscalização ambiental em área indígena e nas áreas limítrofes ao território indígena, bem como, estudando o papel dos órgãos federais, municipais e estaduais no tocante à ocupação do solo, considerando-se a existência de outras especificidades neste território, tais como: terrenos de marinha com regulação própria; faixas de domínio do DNIT com regulamentação específica; Área de Proteção Ambiental (APA) com normatização estadual; tombamento da paisagem como patrimônio histórico e cultural nacional, com proteção administrada pelo IPHAN; conflitos fundiários constantes; conflitos entre comunidade e poder público, e, especialmente, a existência de uma aparente crise de legitimidade institucional entre os órgãos públicos perante a comunidade, capaz de desembocar em conflitos interinstitucionais e na ineficiência fiscalizatória decorrente de uma omissão generalizada (CARDONA, 6 Art. 2º do Estatuto das Cidades (Lei 10.257 de 10 de julho de 2001). da lei complementarn° 140/2011; Federalismo e Proteção do Meio Ambiente: o papel do federalismo cooperativo. 23 2021, p. 129), a qual contribui decisivamente para o crescimento desordenado da ocupação urbana do território. Por fim, após o desenho do panorama material e teórico que envolve as competências administrativas no território objeto de estudo, insere-se o debate acerca da super regulamentação e do papel da sobreposição de competências na construção de um quadro omissivo generalizado (CARDONA, p. 129), verificando-se comparativamente, por meio de levantamento bibliográfico, a recorrência desta relação em realidades distintas, e, finalmente, apontando alternativas de minimização dos conflitos positivos e negativos de competência, à exemplo da atuação consorciada combinada com a gestão participativa de territórios nesse contexto de sobreposição de competências (MARTINS, 2019, p. 17; 30; 31), voltando ao final, à uma reflexão específica sobre a aplicabilidade desta alternativa ao ambiente de fundo: o caso de Coroa Vermelha. As conclusões alcançadas no processo de investigação acadêmica buscaram sintetizar o processo dialógico exercitado no desenvolvimento da pesquisa, apontando às hipóteses confirmadas, concebendo uma resposta refletida, porém, objetiva e sugestiva, ao problema formulado, franqueando ao final, à comunidade e aos órgãos interessados, o aproveitamento do esforço acadêmico realizado. 1.4 Metodologia Os dados e os conteúdos coletados foram preparados e submetidos à uma descrição analítica do conteúdo por meio de uma interpretação indutiva, focada nas características da mensagem, no seu valor informacional, e nas palavras, argumentos e ideias expressas, visando contextualizar qualitativamente documentos, fotografias e mapas cartográficos com a legislação e a normatização aplicável, com os conceitos acadêmicos envolvidos e com as informações teóricas trazidas pela bibliografia, ao ponto de viabilizar a exposição das conclusões a partir da apresentação de um resumo das análises centrais, explicitando, inclusive, as alternativas que possam contribuir com a melhoria do quadro que ensejou a pesquisa. Para tanto, se fez necessário realizar um amplo levantamento 24 documental e bibliográfico, valendo-se primordialmente de pesquisas eletrônicas, em especial nos seguintes mecanismos de buscas: Plataforma SciELO; Portal Google Acadêmico; Portal Periódicos da CAPES; Biblioteca Digital Brasileira de Teses e Dissertações (BDTD); Biblioteca Digital Z-library; Portal Domínio Público; entre outros. As palavras-chave preponderantemente utilizadas nas buscas bibliográficas por intermediação das tecnologias de informática foram: Coroa Vermelha; Indígena; Contexto urbano; Turismo; Demarcação; Conflitos fundiários; Competência comum; Conflitos negativos e positivos; Omissão; Sobreposição; Ocupação Desordenada; Meio ambiente; V centenário do descobrimento; Consórcio Público; entre outras, com diferentes combinações anagramáticas. Mediante contato pessoal com agentes públicos envolvidos com o tema, obteve-se a indicação de sítios eletrônicos especializados como terrasindigenas.org.br, cimi.org.br, survivalbrasil.org, pib.socioambiental.org, os quais revelaram-se bastante promissores como canais de acesso a fontes documentais e bibliográficas relacionadas aos temas conexos à abordagem a ser realizada, de modo que, cada trabalho ou pesquisa acessada abriu também um novo leque de indicações referenciais que puderam ser buscadas de forma direta e objetiva, ampliando então o arcabouço bibliográfico apto a fornecer elementos para a investigação realizada. A constatação da existência de processos judiciais noticiados na imprensa eletrônica e, por meio desta, o acesso à numeração destes processos seguida de consulta à íntegra de processos judiciais no Sistema de Processo Judicial Eletrônico (PJE) do TRF1, relacionados ao território de Coroa Vermelha, também oportunizou o acesso a documentos e informações imprescindíveis. Foi por meio de consulta eletrônica ao portal escavador.com, com o uso simultâneo das palavras chave “Coroa Vermelha” e “Pataxó”, que se obteve informações mais abrangentes sobre as ações judiciais existentes e relacionadas direta ou indiretamente ao tema, e, foi a partir do acesso parcial ou integral aos autos que foi possível estratificar dados capazes de descortinar as características gerais das demandas jurídicas relacionadas ao território de 25 Coroa Vermelha, em especial quanto ao tempo de trâmite, as partes envolvidas, o objeto das lides e as principais teses precárias ou definitivas fixadas pelo poder judiciário no universo pesquisado. Houve ainda, durante a pesquisa, a realização de diálogos informais com a comunidade, servidores públicos e atores políticos locais, que oportunizaram o acesso à documentos e fontes bibliográficas, bem como o acesso ao território de Coroa Vermelha, especialmente na área indígena, para obter o registro fotográfico e geográfico que se mostrou necessário para oferecer concretude à realidade descrita, a qual, provocou a problematização. Apesar do ensaio jurídico preponderar como característica da pesquisa, estes contatos e a presença física em campo, certamente, colaboraram para negar, em alguns casos, e confirmar, em outros, algumas impressões pré-concebidas, e, ao mesmo tempo, promoveu uma visão crítica ponderada pela realidade verificada in loco. 1.5 Afastamento de discussões conexas Coroa Vermelha vivencia muitas contradições que reclamam debates profundos e intensos sobre temas que reúnem em si substância suficiente para discussões autônomas. À exemplo do que tem sido noticiado em relação ao norte do país, em relação a indígenas associados à garimpeiros, oprimindo os próprios indígenas, Coroa Vermelha vive o seu capítulo próprio da cooptação capitalista. A associação de índios e brancos no desmate da mata atlântica para exploração do comércio de praia, a existência de facções do tráfico de drogas dentro das aldeias situadas em Coroa Vermelha, o incentivo migratório por razões político partidárias, e a especulação imobiliária praticada por alguns indígenas em relações comerciais com o homem branco, são alguns dos aspectos espinhosos que ampliam o leque de questões que merecem ser debatidas. No entanto, adentrar em todas essas questões com profundidade encontra obstáculos metodológicos de difícil transposição. São temas autônomos, controversos, que reclamam um olhar a partir do seu próprio eixo. Desse modo, apesar de referências pontuais à essas questões conexas, há 26 que se reconhecer a impossibilidade de tratá-las com a densidade necessária no âmbito deste estudo, visto que constituem temáticas autônomas, extensas, e dispensáveis para alcançarmos os objetivos traçados nesta pesquisa. 1.6 Hipóteses e resultados A hipótese geral, colocada em xeque, apontava a existência de uma relação entre a sobreposição de competências administrativas e a omissão do estado no território de Coroa Vermelha, em especial quanto à ocupação desordenada do solo e os consequentes gravames ambientais e urbanísticos dela decorrentes. Confirmada esta hipótese localmente, porém, com uma característica múltipla, e não mais sobreposta, verificou-se a existência desta relação também em outros contextos, como nos estudos realizados por Bitencourt (2005) e Tougueiro (2008), respectivamente nos municípios de Florianópolis (SC) e Macaé (RJ). No plano prático, essa abordagem expôs de forma mais clara a identificação dos órgãos sobre os quais deve recair a pressão social e as provocações administrativas e jurídicas que visam a mitigação de danos e a restauração da qualidade ambiental e urbanística do território de Coroa Vermelha, referindo-se não só aos aspectos jurídico-formais, mas, essencialmente, às questões sociais, históricas e econômicas que envolvem a gestão deste local fortemente afetado pelo turismo de massa, pelo fenômeno do indígena em contexto urbano e pelo quadro de ocupaçãodesordenada e de mercantilização atípica da vida indígena (REGO, 2012, p.10 e 53). No plano teórico, promoveu-se uma compreensão dos espaços multicontextuais, como também, espaços de múltiplas lutas sociais, onde naturalmente proliferam-se normas e regulamentações diversas, como respostas do Estado às demandas sociais de diferentes matizes que brotam por múltiplas militâncias entrecruzadas nas suas origens e objetivos, a ponto de alcançar expressão suficiente para se fazerem ouvir no ambiente legislativo e normatizador, reconhecendo que esse é o contexto da super regulamentação de competências, e que esse é o caso da área geográfica de Coroa Vermelha, no município de Santa Cruz Cabrália, Estado da Bahia, palco de questões 27 étnicas, ambientais, econômicas e sociais, e ainda, de tradicional patrimônio histórico nacional (REGO, 2012, p.10). Assim, a pesquisa diagnostica parte fundamental da problemática local, contribuindo para a atuação da comunidade local e dos diversos órgãos com atribuições de proteção e fiscalização na área de Coroa Vermelha, e ainda, certamente se coloca como um instrumento singular de conhecimento, isto porque, o paralelo entre o excesso de proteção legislativa e institucional no plano jurídico e a omissão dos órgãos públicos competentes no plano fático, é ainda muito pouco abordado e tende a ser verificado em outros contextos de fragmentação de poder (QUINTAS, 2006; p. 10), como comunidades das periferias metropolitanas, comunidades tradicionais, e regiões fronteiriças em disputa. 28 PRIMEIRA PARTE – DIAGNÓSTICO DO CASO DE FUNDO Inauguramos nosso estudo com uma diagnose do caso de fundo escolhido: Coroa Vermelha. É preciso ter em perspectiva as dimensões histórica, humana, econômica, ambiental e social que alcançam este território, o qual se apresenta como um espaço geográfico com múltiplas afetações jurídicas, cuja multiplicidade decorre justamente da sua característica multifacetada. No primeiro capítulo abordaremos a contextualização histórica da ocupação demográfica de Coroa Vermelha. Palco do primeiro encontro entre indígenas e europeus em terras brasileiras, trata-se de um espaço geográfico cunhado no imaginário nacional como berço da nação. É neste pequeno trecho litorâneo que se concentra a gênese da conciliação imaginada dos povos que deram origem à população brasileira, e, é neste mesmo espaço que até os dias atuais, as contradições étnicas, econômicas e sociais impõe sérias e inevitáveis discussões que colocam em questão a frustrada ideia de unidade nacional há muito difundida. Apesar da presença de povos originários desde 1.500 d.C., foi em meados de 1970 que o povoamento indígena de Coroa Vermelha passou a delinear os contornos do que viria a se tornar na atualidade, um centro urbano consolidado e complexo. Desde a descrição de Caminha (1.500) até o assentamento dos primeiros habitantes e o desenvolvimento de um bairro populoso e altamente comercial, muita história se passou, especialmente com relação aos povos indígenas que deram característica de massa a ocupação definitiva do local. Para compreendermos a discussão jurídica que se pretende realizar neste estudo, antes é preciso conhecer como se deu a ocupação do território, as lutas fundiárias, a afetação jurídica aplicada à geografia, e, principalmente, a forma em que se materializou a ocupação desordenada que marca Coroa Vermelha como um espaço de crescente degradação ambiental, de violação do patrimônio histórico nacional, mas também, de reprodução de desigualdades, de apropriação privada de bens públicos, e da 29 utilização de pautas sociais legítimas para a viabilização dessa apropriação. Se o primeiro capítulo retrata o passado, o segundo nos remete ao presente. Nos demonstra como de fato se desenvolveu a ocupação de Coroa Vermelha e o resultado nos dias de hoje. Como está o entreposto comercial que se tornou, e cuja exploração é exercida por ações consorciadas entre indígenas e não indígenas. É neste ponto que delineamos as afetações jurídicas aplicadas à geografia de Coroa vermelha para ilustrar a complexa sobreposição de regimes jurídicos e de competências comuns. Ao mesmo tempo, demonstramos em registro fotográfico a degradação ambiental e do patrimônio histórico, a reprodução de dinâmicas capitalistas em meio a sujeição dos Pataxós à um ambiente de turismo de massa, e, notabilizamos a omissão do Estado em relação às várias tutelas que ali deveriam se aplicar, analisando, inclusive, em breve levantamento, a natureza e as teses envolvidas nos conflitos judicializados em a relação Coroa Vermelha. 30 CAPÍTULO 1 – COROA VERMELHA: BREVE HISTÓRICO DEMOGRÁFICO “Pensar o passado para compreender o presente e idealizar o futuro” recomendava o historiador grego Heródoto. Com essa premissa, visando compreender o presente na primeira parte deste estudo, precisamos antes refletir sobre o que se passou em Coroa Vermelha e como este espaço veio a se tornar o que é atualmente. Neste compasso, este primeiro capítulo apresenta uma breve contextualização da história demográfica da área em que foi realizada a investigação. A abordagem inicial centra-se em 3 pontos principais: a) Os primeiros registros de ocupação humana e o contexto da demarcação da Terra Indígena de Coroa Vermelha (1.1); b) As reflexões e contextualizações complementares sobre o contexto sociopolítico, o próprio papel do V Centenário do Descobrimento do Brasil e o legado material dessas comemorações e do posterior abandono, além da relação entre o território, os pataxós e a figura idealizada dos índios do descobrimento (1.2); c) A compreensão da complexidade multifacetária de Coroa Vermelha como cenário da pesquisa (1.3). 1.1 Sob o Signo da Cruz, O Relatório Antropológico – Dos Primeiros Registros à Demarcação da Terra Indígena de Coroa Vermelha O registro histórico antropológico indispensável para a compreensão do reconhecimento pelo Estado brasileiro da atual situação territorial de Coroa Vermelha é constituído pelo Relatório Circunstanciado de Identificação e Delimitação da Terra Indígena Pataxó de Coroa Vermelha. Este estudo foi realizado pelo Grupo Técnico instituído pela Portaria nº 860 de 14 de agosto de 1995, da Presidência da Fundação Nacional do Índio (FUNAI), coordenado pelo antropólogo José Augusto Laranjeiras Sampaio. Apesar da existência de outros estudos antecedentes, que fazem 31 parte do processo de reconhecimento e demarcação da TI de Coroa Vermelha, o documento intitulado “Sob o Signo da Cruz”, coordenado por Sampaio, se destaca por ser justamente o relatório chancelado pelo Estado brasileiro para fins de demarcação. Em que pese a existência de variados estudos antropológicos mais recentes, para o propósito desta pesquisa, a articulação deste relatório com estudos realizados por André Godim do Rego, Rodrigo de Azeredo Grunewald, Maria Rosário de Carvalho, Sandro Campos Neves, Francisco Eduardo Torres Cancela, dentre vários outros a serem referenciados, se mostra um passo essencial para realizar uma breve caracterização de Coroa Vermelha. É o ponto de partida para realizar uma releitura dos acontecimentos que precederam a demarcação da Terra Indígena de Coroa Vermelha que é um aspecto central no povoamento do território que é objeto desse estudo. Com este amparo fundamental é que iremos percorrer os registros pré-coloniais da presença indígena (1.1.1), os registros pós-coloniais da presença indígena, e a luta dos pataxós (1.1.2), a demarcação e a consolidação do contexto fundiário de Coroa Vermelha (1.1.3). 1.1.1 Registros pré-coloniais da presença indígena. Segundo Sampaio (2011, p. 98) o primeiro registro escrito da presença indígena no território de Coroa Vermelha produzido pelos portugueses, sabidamente a Carta de Pero Vaz de Caminha (1500), não indicava os traços étnicos dos habitantes encontrados pela expedição de Pedro Álvares Cabral. Algumas fontes, no entanto, indicam que os povos Tupishabitavam ao longo da faixa litorânea, inclusive do território hoje identificado como Sul e Extremo Sul da Bahia (NOBREGA, 1998 [1555], p. 24; SOUZA, 1971 [1587], p. 29, 47, 54, 57, 58, 277, 279; CARDIM 1978 [1625], p. 196, 197), o que, segundo Sampaio (2011, p. 98), é corroborado pelos dados etnográficos fornecidos pelo relato de Caminha (1500), mais precisamente quanto à indumentária, utensilhagem, habitação e hábitos. 32 Com amparo nos relatos de cronistas coloniais, Sampaio (2011, p. 98) afirma que os Tupiniquins, grupo pertencente ao tronco Tupi, teriam, nos séculos imediatamente anteriores à conquista lusitana, desalojado os povos que ali viviam e que eram designados genericamente de “Aymoré”. Esses viviam em pequenos grupos itinerantes, subsistindo da caça e da coleta, sem constituir grandes aldeias como o povo Tupi (SOUZA, op cit). Os Aymoré se caracterizavam pela vasta fragmentação tribal, com múltiplos nomes, cultural e linguisticamente vinculados, pertencentes à ampla sociedade Macro-Jê, tradicionalmente nômades e estavam tanto em conflito com grupos Tupi, quanto com os grupos de colonizadores (OLIVEIRA, 2007, p. 4). Suas memórias são vivenciadas entre os Krenak, em Minas Gerais, e em ramificações dos Pataxós, dos Pataxós Hã-Hã-Hãe, na Bahia (OLIVEIRA, 2007, p. 4; SAMPAIO, 2011, p. 101) e, dentre outros, entre os Machacali e os Botocudos, em trechos do norte do Espírito Santo e do sul da Bahia (SAMPAIO, 2011, p. 101). O relatório aponta que não são raros os registros da convivência, quase sempre conflituosa, entre os Tupi e os Aymoré, e entre estes e outros povos indígenas neste mesmo território (Sampaio, 2011, p. 99). Sampaio (2011, p. 99) ressalva que a definição de faixas de território originalmente ocupadas pelos "Aymoré" e pelos Tupi, em se tratando de povos tribais, não pode adotar concepções rígidas quanto aos limites geográficos, que, claramente, não se encontravam regulamentados entre os diversos grupos coabitantes daquele espaço. Mesmo assim, é possível caracterizar o território efetivamente ocupado por um povo indígena, mesmo nas épocas pré-colonial e pós-colonial, em face da apropriação econômica exercida sobre um ecossistema ou ecossistemas e dos padrões culturais próprios. Essa caracterização não exclui, necessariamente, a possibilidade de coabitação de mais de um povo sobre um mesmo território (SAMPAIO, 2011, p. 99) – tomando-a aqui como uma unidade cultural discreta, e não como unidade política, o que dificilmente ocorre neste tipo de sociedade – (SAHLINS, 1970, apud SAMPAIO, 2011, p. 99). Para Sampaio (2011, p. 99), tudo indica, que nas faixas de litoral ocorreu uma ocupação simultânea e culturalmente diferenciada, mas não 33 isenta de conflitos, exercida pelos povos Tupi e não Tupi. O domínio Tupi em relação ao litoral e a habitação itinerante dos Aymoré na parcela de terra mais interior é uma composição demográfica que passa a se tornar mais nítida a partir de relatos de viajantes estrangeiros como Spix e Martius (1971[1831]), Wied-Neuwied (1958[1817]), e nacionais como Navarro (1846[1808]) (SAMPAIO, 2011, p. 100). Sampaio (2011, p. 100) concluirá que os Pataxós habitavam o trecho litorâneo compreendido entre o Rio Santa Cruz, hoje denominado como Rio João de Tiba, e o Rio Mucuri, fazendo referência textual à constatação de Wied-Neuwied (1958[1817], p. 222) em relação à presença dos Pataxós na região: [...] esta costa, desde o Prado até o Rio do Frade, era considerada muito perigosa por causa dos selvagens, e ninguém se aventurava a percorrê-la sozinho (...), mas, presentemente a população está em boas relações com os Patachós e não os teme, embora, não sendo total a confiança, preferia-se sempre viajar em comitiva numerosa [...] Conforme se pode verificar nas referências trazidas pelo relatório circunstanciado que fundamentou a demarcação da Terra Indígena de Coroa Vermelha, os Pataxós ficavam em território que fazia divisa ao norte e ao sul com diversos bandos de Botocudos, ficando a fronteira do norte claramente expressa no relato de Wied-Neuwied (1958[1817], p. 229): [...] os Botocudos vagueiam pelo Alto Santa Cruz. Mais perto do litoral, porém o rio lhes demarca os limites do território, vivendo os Patachós e os Machacaris na região situada à margem sul [...] Os Pataxós, segundo Wied-Neuwied (1958[1817], p. 216), os Machacali e outros pequenos grupos mantinham alianças para proteger o território onde hoje se situa a faixa litorânea do Extremo Sul da Bahia, especialmente contra os Botocudos, que eram mais numerosos ao Norte e ao Sul. 34 Fonte: Guia Geográfico História da Bahia (ALBERNAZ, 1640)7 Em uma análise geral do relatório circunstanciado, não se verifica que tenha sido realizada por Sampaio uma associação direta entre o território objeto da demarcação em Coroa Vermelha e os registros primitivos da presença indígena, em especial dos Pataxós, ficando, porém, evidente que uma área muito mais abrangente constituía o espaço de coexistência de variados grupos indígenas que fragmentariamente ocupavam tradicionalmente todo o Extremo Sul da Bahia. No entanto não é possível apontar claramente qual grupo étnico habitava cada trecho específico deste território mais amplo em tempos pré-coloniais, inclusive porque à exemplo do ocorrido no sul do país, nas constatações de Tommasino (2002, p. 40-42) a interação entre esses grupos, as relações inter étnicas, e a alternação na ocupação dos espaços ao longo do tempo, admite a presunção de que não é possível conectar taxativa e precisamente uma determinada etnia ou grupo e uma dada delimitação geográfica8. É importante então observar que apesar da existência de 8 Para o cumprimento dos critérios constitucionais para delimitação de área de habitação permanente com caráter tradicional considera-se também as áreas de perambulação. 7 Mapa do Atlas de João Teixeira Albernaz, de 1640, mostra o litoral da Capitania de Porto Seguro. Disponível em https://www.historia-brasil.com/bahia/mapas-historicos/porto-seguro.htm. 35 informações dissonantes, que contestam a versão oficial do “descobrimento” em vários aspectos, tanto em relação ao local, tempo e autor do “achamento” (COUTO, 2011, p. 176-181), quanto em relação à natureza de conquista ou invasão das terras habitadas pelos povos indígenas (MOLLER; SÁ; BEZERRA, 2003, p. 405; 406), consolidou-se na história oficial do Brasil a narrativa colonial do “Brasil descoberto” em 22 de abril de 1500 d.C. Essa versão foi oficializada mesmo sabendo-se que os indígenas residiam no território da América do Sul e do Brasil desde os tempos pré-históricos, com uma população que em 1500, se estima, ao menos, em 5 milhões de pessoas no que viria a constituir o território brasileiro (HERSCHMANN, 2000, p. 6). A famosa “Carta do Achamento do Brasil”, redigida para informar à coroa portuguesa do “achamento” da nova terra, é considerada o primeiro documento escrito do Brasil” (COUTINHO, 1968, v.1, p. 110; CASTELLO, 1999, p. 52), e, por meio do Decreto nº 1.874 de 22 de abril de 1996, é reconhecida como a primeira descrição geográfica do Brasil (BRASIL, 1996). Nela registrou-se a realização da primeira celebração cristã no Brasil, na data de 26 de abril de 1500 no território que é objeto dessa pesquisa: Coroa Vermelha. Este evento, desde então, constitui, sob o prisma cultural e religioso, um dos principais marcos da conquista portuguesa, europeia e cristã na América do Sul (BEZERRA, 2008, p. 25). Ainda hoje, a primeira missa do Brasil é rememorada em celebração festiva realizada em Coroa Vermelha, todos os anos. Reafirmando-se a importância histórica daquele momento e daquele território como sendo da máxima relevância para a memória nacional. A participação ativa dos indígenas nessas comemorações revela-se um misto de autoafirmação enquanto primeiros habitantes da terra e protagonistas da memória do “descobrimento”, e ao mesmo tempo, como partícipes do enaltecimento do evento que inaugura oprocesso de colonização do território brasileiro, marcado por inúmeras violências contra os povos indígenas. É uma contradição própria de uma história marcada por ambivalências. O próprio registro inicial da presença indígena no Território de 36 Coroa Vermelha é carregado de uma certa ambivalência, na medida em que se confunde também com o registro histórico da própria existência do território brasileiro como território colonial que viria a se tornar posteriormente um estado-nação. É justamente no mesmo documento em que o Brasil foi oficialmente descrito territorialmente pela primeira vez, que se dá também, o registro claro e preciso, inclusive quanto ao local, dos primeiros contatos dos portugueses, “descobridores” e “invasores”, com os indígenas que ali, há muito já residiam. 1.1.2 Registros pós-coloniais da presença indígena. Já na segunda metade do século XVIII, na esteira do reformismo pombalino, os indígenas abrangidos pela antiga Capitania de Porto Seguro ficaram à mercê de um conjunto de regras voltadas a reproduzir na prática cotidiana deles um modelo comportamental compatível com os padrões “civilizacionais” portugueses. Isso implicava em grandes mudanças em seus valores e costumes. A política de controle cultural, pautada nas diretrizes do Diretório dos Índios de 1757 (FERNANDES, 2019, 48-49) e nas Instruções para o governo dos índios de Porto Seguro, projetava-se como uma forma de viabilizar a própria colonização (CANCELA, 2015, p. 44), isso porque, a transformação das populações indígenas locais, consideradas selvagens, em “homens sociáveis e civis” seria um passo importante para o povoamento do território com súditos leais à coroa (ARQUIVO HISTÓRICO ULTRAMARINO, 1777, D. 9494, apud CANCELA, 2013, p. 146). Para os intelectuais e estadistas daquela época, a civilidade importava no desgarramento da população indígena de seus referenciais culturais, e representava a possibilidade de consolidação de uma “sociedade de homens que viviam debaixo de certas leis”. Esse processo garantiria um comportamento compatível com o de “cidadãos ou membros do Estado secular, regulado pelo soberano”, em outras palavras, a transformação dos indígenas em “cidadãos portugueses”, católicos e servos obedientes do rei, 37 consistia em um passo importante do projeto de colonização (BLUTEAU, 1789, p. 277). Contudo, a assimilação integral dos indígenas à sociedade encontrou obstáculos não só na resistência indígena em renegar certos traços da sua cultura tradicional, como também, na preservação do espaço privilegiado do colonizador nesta sociedade que se formava. Não havia espaço para uma perspectiva de ascensão dos indígenas, vistos principalmente como mão de obra essencial à reestruturação econômica daquelas terras (SILVA, 2012, p. 2). Em que pese a inauguração de uma nova e promissora etapa no desenvolvimento econômico da região de Porto Seguro, sob a gerência de José Xavier Machado Monteiro, muitos indígenas residentes na antiga Capitania de Porto Seguro fugiram para outras capitanias para livrarem-se da imposição rigorosa do trabalho, da frequência às escolas e do combate à ociosidade ali implantado, o qual era maior do que nas capitanias circunvizinhas de Ilhéus e Espírito Santo (SILVA, 2012, p. 8). Tais circunstâncias se acentuam no século XIX, em virtude do interesse em se estabelecer um livre trânsito entre o litoral nordestino e a região das minas. A presença de índios “selvagens” neste território passou a representar um obstáculo à unidade nacional em uma época marcada por conflitos internacionais, o que implicou em uma forte animosidade dos colonizadores para com os indígenas (SAMPAIO, 2011, p. 103). Em meados do século XIX já era constatada uma redução significativa dos aldeamentos ao longo da costa do Extremo Sul, ficando à cargo de Antônio da Costa Pinto, Presidente da Província da Bahia, a iniciativa de distanciar os “selvagens” das vilas (CANCELA, 2020, p. 36, 37). Assim, propôs a fixação das famílias indígenas em uma única aldeia situada em um ponto intermediário entre as vilas de Prado e de Porto Seguro. A fundação desta aldeia foi autorizada em 1861 pelo diretor geral dos índios e, conforme se absorve da tradição oral dos Pataxós contemporâneos (GRUNEWALD, 2001, 89, 99), e da descrição da costa feita em 1905 pelo Capitão-Mor de Porto Seguro (ALMEIDA, 1918, p. 241, apud CARVALHO, 1977, p. 82, apud SAMPAIO, 2011, p. 104), o local escolhido foi o mesmo no 38 qual hoje situa-se a Aldeia de Barra Velha, reconhecido como ponto importante de afluência dos antigos Pataxós. Após fundada a aldeia planejada por Costa Pinto, os indígenas de toda a região foram ali confinados e isolados da população regional, tanto que, não se encontram registros de outros aldeamentos na região a partir da década de sessenta do século XIX, circunstância que se justifica também em razão da entrada em vigor da Lei de Terras de 1850, da qual se seguiram medidas restritivas aos territórios e aldeamentos indígenas em todas as províncias nordestinas (CUNHA, 1992, p. 144, 145). Existe o registro, em 1939, de uma expedição aérea sob o comando de Gago Coutinho9, ter cruzado a região e visitado a aldeia de Barra Velha, constatando não só a presença dos Pataxós, mas também o seu estado de miséria e abandono. Nesta mesma época já havia na região uma comissão encarregada pelo Presidente da República de determinar o ponto exato do descobrimento do Brasil (CASTRO, 1940, p. 193, apud SAMPAIO, 2011, p. 105), ocasião em que se originaria a primeira proposta de criação de um parque na área, que viria, décadas mais tarde, a se materializar no Parque Nacional de Monte Pascoal. No entanto, é na verdade, em 1951, que, pelo noticiário da imprensa regional, veio à tona a situação de precariedade e miséria em que viviam os Pataxós, a partir do movimento que ficou conhecido na imprensa como “A Revolta dos Caboclos de Porto Seguro” (CARVALHO, 1977, p. 84-5 apud SAMPAIO, 2011, p. 105), e marcado na memória do povo Pataxó como “O Fogo de 51”. Oliveira (2001), Carvalho (1977) e Kohler (s/d), descrevem o evento relatando a invasão policial à aldeia de Barra Velha em decorrência de um crime ocorrido contra um comerciante local (apud NEVES, 2012, p. 27). A violência da ação policial, então, se tornou um episódio simbólico para o povo Pataxó, tanto pela evasão causada na aldeia de Barra Velha, como por ser um fato marcado como gatilho para o movimento que viria a se tornar 9 Carlos Viegas Gago Coutinho foi um geógrafo/cartógrafo, oficial da Marinha Portuguesa, navegador e historiador. Juntamente com o aviador Sacadura Cabral, tornou-se um pioneiro da aviação ao efetuar a Primeira travessia aérea do Atlântico Sul, no hidroavião Lusitânia em 1922. 39 a luta pela terra para aquele povo. Em decorrência da repressão policial e da perseguição imposta a partir desse evento, muitos indígenas abandonaram a aldeia de Barra Velha e iniciaram uma dispersão que viria a se consolidar com a implantação do Parque Nacional de Monte Pascoal, em 1960, tendo o seu território sobreposto à área da Aldeia de Barra Velha. A partir de então, o direito dos indígenas ao acesso e uso da terra conforme sua tradição entrou em contraposição com os propósitos conservacionistas do parque. Impedidos de caçar e de pescar e, também, de plantar no território do parque, no qual também se situava a aldeia de Barra Velha, restou aos indígenas como meio de subsistência, apenas a coleta de mariscos e caranguejos em um mangue próximo (AGOSTINHO, 1980, p. 19). A repressão da recém implantada guarda florestal ao uso da terra conforme os costumes dos indígenas, impulsionou ainda mais o fluxo migratório (GRUNEWALD, 2001, p. 110; NEVES, 2012, p. 25). Muitos indígenas se deslocaram para a “Fazenda Guarani” em Minas Gerais, onde funcionava um posto do Serviço de Proteção aos Índios, o que pode indicar também algum grau de estímulo do órgão indigenista a estas migrações (SAMPAIO,2011, p. 107). Apesar do relato de Sampaio neste sentido, importa ressaltar que consta em relatório da Comissão Nacional da Verdade10 que a Fazenda Guarani, no fundo, era onde funcionava, no regime ditatorial brasileiro, uma espécie de campo de concentração e de aprisionamento de indígenas rebeldes11 com abrangência nacional (BRASIL, 2014, p. 245), sendo, portanto, controverso que a diáspora de Barra Velha tenha desembocado em migrações espontâneas para a Fazenda Guarani, o que permite supor que tais afluxos possam ter sido compulsórios. Com a construção da BR 101 e da BR 367, a partir dos anos sessenta, iniciou-se um período de profundas transformações econômicas na região, marcado, especialmente, pela exploração madeireira, e, principalmente, na década de setenta, pelo destaque dos municípios de 11 Indígenas que reivindicavam direitos. 10 Comissões da Verdade\Comissão Nacional da Verdade\Volume II\Texto 5 - Violações de direitos humanos dos povos indígenas. 40 Porto Seguro e Santa Cruz Cabrália como pólos turísticos de crescente relevância (SAMPAIO, 2011, p. 107). Com a abertura desse novo mercado, e, com a inviabilização da tradicional economia indígena que já não podia mais explorar a área do parque de Monte Pascoal, os Pataxós migraram novamente, com o apoio de autoridades regionais, para dois núcleos indígenas próximos ao fluxo de turistas: um primeiro fixado à entrada do Parque de Monte Pascoal, e um segundo, situado junto ao local onde ocorreu a primeira missa do Brasil: a praia de Coroa Vermelha. Em ambos os casos, voltaram-se à produção e comercialização de artesanatos destinados ao mercado turístico que se abria, utilizando-se de técnicas e práticas apreendidas com um chefe de posto da FUNAI (REGO, 2012, p. 53). A conjunção de circunstâncias e interesses que ensejaram a migração dos Pataxós é descrita por Sampaio (1993, p. 23, apud SAMPAIO, 2011, p. 108): (...) as privações vividas pelos Pataxó em Monte Pascoal seguramente se aliaram aos interesses da emergente indústria turística local, para a qual se deve ter engendrado, como um engenhoso chamariz, a ideia de que houvesse índios vendendo artesanato junto ao recém inaugurado marco que parece pretender confusamente celebrar tanto a celebração ali da primeira missa do Brasil, em 1500, quanto a inauguração em 1974, das rodovias BR 101 e BR 367, viabilizadoras do auspicioso fluxo turístico que se anunciava. Esta narrativa é minimizada por Grunewald (2001, p. 156), que afirmou que a prefeitura e os empresários locais não tinham interesse na permanência dos índios na Coroa Vermelha na década de setenta, e que se eventualmente tiverem recebido alguma ajuda, esta teria se dado em momentos em que a área seria visitada por governantes de maior importância. É possível presumir que tanto Sampaio quanto Grunewald tenham realizado suas conclusões a partir de diferentes perspectivas e de fotografias separadas pelo tempo, por isso, não se pode afirmar uma contradição entre ambos. É bastante plausível que políticos e empresários tenham oscilado quanto a apoiar ou não a permanência dos indígenas, tanto pelos variados interesses econômicos que podem motivar cada segmento empresarial em 41 direções divergentes, quanto pelos ventos da política partidária que em janelas eleitorais sopram em direções quase sempre desprezadas em períodos não eleitorais. Grunewald (2001, p. 156), afirma ainda, que não foram cedidos lotes para os índios e que, conforme os relatos do Capitão da Marinha, Raimundo dos Santos Coelho, e dos próprios índios, a prefeitura e os empresários sempre combateram a sua presença naquele local para que fosse viabilizada a instalação de um polo turístico sem a presença de moradias indígenas. Assim, o que teria viabilizado, na verdade, alguns benefícios, teria sido o interesse nos votos existentes na comunidade, que a esta altura já possuía por volta de 157 eleitores. O registro exato da instalação do povo Pataxó em Coroa Vermelha está afirmado em Rogedo et al. (1985, p. 18, apud SAMPAIO, 2011, p. 107), que assim descreve: A ocupação Pataxó em Coroa Vermelha começou precisamente no dia 17 de novembro de 1972, quando o Senhor Alberto Espírito Santo Matos, cognominado Cacique Itambé, transferiu-se com seus familiares para o Ilhéu de Coroa Vermelha, pressionado em Monte Pascoal pela política genocida do IBDF, que vê nos índios os depredadores do meio ambiente, quando é o próprio órgão que faz vistas grossas à devastação em áreas sob sua jurisdição. Consta ainda do registro de Rogedo et al. (idem, apud SAMPAIO, 2011, p. 108), que Itambé, em 1973, obteve da Capitania dos Portos de Porto Seguro e do Departamento Nacional de Estradas e Rodagens (DNER) autorização para edificar uma moradia permanente no local que viria a se tornar, no ano seguinte, a BR 367. Em seguida, se instalaram ali também as famílias de Zé Lapa e de Francisco Alves da Silva (ROGEDO et al., apud SAMPAIO, 2011, p. 108), conhecido como Chico Branco, o qual viria a dividir, nos anos seguintes, a liderança da comunidade emergente, se tornando principal impulsionador da chegada de novos contingentes indígenas. Coroa Vermelha àquela época tornara-se um entreposto comercial, tempos antes da atividade turística e do comércio de artesanato ganharem força. Tal conclusão é manifesta por Neves (2012, p. 26), 42 fundando-se no relato de Itambé, colhido por ele próprio: Hoje em dia tem aqui aqueles que se acham no poder, mas não sabem dizer como foi que se preparou esse lugar. Eu sei contar porque quando eu cheguei práqui não tinha ninguém. Eu não sei gravar nada, acho que é 1966. E nessa época, só tinha a estrada aqui e o cruzeiro ali, não tinha mais nada. E eu cheguei aqui, mais minha mulher, meu filho, começamos a morar e viver. Primeiro trabalhei com um senhor ali embaixo que era o chamado Tenente Ribeiro e o outro era Mestre Didi, esses dois foram meus patrão e quando eu saí do trabalho deles, que chamava de fazenda, eu levei uns 3 meses trabalhando, no máximo uns 4 meses, uns 4 meses e meio. Nessa saída minha eu desacertei mais o outro patrão dele lá, e aí não quiseram mais eu na fazenda e eu sai da fazenda, mas saí ganhando, naquele tempo 270 contos. E aí eu falei um dia para a mulher, “oh mulher, de hoje em diante, com a fé em Deus, nem você nem eu vamos trabalhar na cozinha de ninguém, nem eu vou trabalhar para a fazenda de ninguém e nem você vai para a cozinha de ninguém, nós vamos viver, conforme Deus quer e consente, com esse dinheiro que eu recebi agora. E aí fomo trabalhando e vivendo, vendendo artesanato, vendendo laranja, vendendo bolacha, vendendo pão…[…] Aí eu vendia pro povo, o povo que vinha da roça comprava as coisas na minha mão. […] E ai eu comecei a ir trabalhando, trabalhando, trabalhando, é certo de que eu possuí uma condição que fui até um mercadista. Como se vê a partir do relato acima, corroborado pelas conclusões de Grunewald (2001, p. 137), essa ocupação comercial, e também residencial, se deu inicialmente com Itambé, vindo a ser depois ampliada a partir da distribuição dos terrenos de praia promovida pela atuação de Itambé, Chico Branco e Chico Índio. A atuação desses precursores foi decisiva para que a ocupação da região de praia pelos indígenas se consolidasse (NEVES, 2012, p. 26). Segundo Sampaio (1996, p. 22), em linha com Rego (2012, p. 61), o próprio município de Santa Cruz Cabrália edificou, no local, residências arredondadas, em forma de oca, com o objetivo de atender aos estereótipos indígenas acalentados pelos turistas. Tem-se, portanto, que a ocupação em definitivo pelos Pataxós, das imediações do Ilhéu de Coroa Vermelha, data do início da década de setenta, como relatado por Rogedo et al. (1985, p. 18, apud SAMPAIO, 2011, p. 107). Além desta área de praia, está registrado que os Pataxós 43 utilizavam das matas situadas nos platôs adjacentes para coletar os recursos necessários à confecção do artesanato que era então comercializado na área de praia, próximaao monumento de celebração da primeira missa do Brasil, no qual ocorria o fluxo turístico que consumia os produtos por eles manufaturados (SAMPAIO, 2011, p. 108 e 109). Desde a consolidação da ocupação indígena no território de Coroa Vermelha várias foram as idas e vindas de processos de regularização, bem como, vários foram os conflitos fundiários que colocaram em xeque a permanência dos indígenas naquele local. Muitos destes conflitos relacionados à contraposição da ocupação com o direito de propriedade, e outros tantos relacionados à destinação obscura de áreas públicas pelas autoridades locais à atores imobiliários. Com a mudança do perfil econômico do território, os interesses incidentes sobre a área reverteram as disposições da sociedade envolvente, supostamente, no início, relativamente favoráveis à fixação dos Pataxós, para uma pressão absolutamente adversa à ocupação por eles promovida. A mesma vocação turística da região que no passado teria prestado certa contribuição para a migração dos Pataxós das imediações do Parque de Monte Pascoal para a área de Coroa Vermelha, agora, reclamava espaço para acomodar o crescente interesse imobiliário, sobretudo nas áreas próximas à praia. 1.1.3. A Luta dos Pataxós, a Demarcação e a Consolidação do Contexto Fundiário de Coroa Vermelha Com a ocupação Pataxó definitiva do território de Coroa Vermelha, de fato ocorrida a partir da década de setenta, amparada no comércio de artesanatos e no nascimento de um fluxo turístico estimulado pela inauguração da BR 367 e, pela instalação de um cruzeiro em homenagem a primeira missa do Brasil, a presença Pataxó se consolidou naquele território, e, rapidamente alcançou feições urbanas e comerciais. Grunewald (2015, p. 416) explica que o imaginário de uma Coroa Vermelha indígena e, ao mesmo tempo, e na mesma medida, brasileira, se 44 formou ao longo do tempo e se perpetuou como uma premissa ideológica capaz de reformular o passado colonial e atender a um único interesse certamente convergente entre índios e não-índios na Coroa Vermelha: a promoção do turismo. O que demonstra o espírito, em certa medida mercantilista, que norteou o início da ocupação e o seu desenvolvimento posterior. A partir do assentamento definitivo dos indígenas em Coroa Vermelha, a subsistência destes viria a ser mantida, principalmente, pela comercialização do artesanato na área da praia, no trecho que dava acesso da BR 367 ao Cruzeiro, ponto de grande visitação turística, marcado pelas habitações indígenas edificadas nas laterais do acesso ao Cruzeiro (REGO, 2012, p. 63). E, para a confecção do artesanato vendido na área de praia, os indígenas valiam-se da exploração da área de mata, mais no interior, de onde retiravam a matéria-prima necessária. Além disso, faziam uso do Rio Jardim como fonte de água e para coleta de mariscos (SAMPAIO, 2011, p. 109). O desenvolvimento turístico e a valorização do local, então, despertou o interesse pela ocupação urbana, que viria a ser estimulada pela prefeitura com a constituição de foreiros sobre diversas áreas que viriam a ser comercializadas por agentes imobiliários interessados na criação de um complexo turístico em Coroa Vermelha. Esse projeto motivou divergências entre os próprios indígenas, visto que alguns deles foram contratados para a execução de serviços imobiliários (SAMPAIO, 2011, p. 112). Apesar de várias denúncias dos Pataxós desde 1979, somente em 1985 a FUNAI faria uma primeira ação, na qual, constituiu um grupo de trabalho para a identificação da ocupação e indicação ou não da demarcação de Coroa Vermelha como Terra Indígena (ROGEDO et al., 1985, apud SAMPAIO, 2011, p. 112). A partir do relatório produzido, reconhecendo uma relativa anterioridade da ocupação, mas, sobretudo, amparado nos aspectos socioeconômicos de subsistência da comunidade Pataxó, foi proposta a delimitação da Terra Indígena em duas glebas: a da praia, no entorno do 45 Cruzeiro, e a da mata, destinada não só à coleta de matéria-prima para o artesanato, mas também para as atividades agrícolas (ROGEDO et al., 1985, apud SAMPAIO 2011, p. 113). Depois disso, após uma averiguação da proposta junto à comunidade, os limites propostos foram ampliados de modo a incorporar o Rio Jardim à Terra Indígena a ser demarcada. Um terceiro relatório do órgão indigenista, ratificou essa alteração (FURTADO, 1986; SAMPAIO, 1996, apud REGO, 2012, p. 63). 12 Fonte: Modificado de Santa Cruz Cabrália (2016, p. 15) No entanto, em 1987, o Grupo Interministerial responsável por autorizar o envio desses processos para homologação presidencial, visitou o local novamente e requisitou um novo estudo, o qual, finalmente estabeleceria os limites exatos das propostas realizadas, bem como, a sua situação fundiária (REGO, 2012, p. 64). No ano seguinte, mesmo com os estudos produzidos sendo todos favoráveis à demarcação, o Grupo Interministerial decidiu pelo não reconhecimento daqueles limites como terra indígena, o que estimulou a retomada da venda de lotes na área ocupada pelos índios, ameaçando, inclusive, a derrubada de suas residências (REGO, 2012, p. 64). O impasse levou, em 1990, a uma espécie de barganha entre índios, empresários e prefeitura, na qual os indígenas ficariam com uma parte da área de mata e com alguns lotes individuais na área de praia, em troca do abandono da pretensão coletiva de demarcação, o que viria a desencadear conflitos e tensões internas (SAMPAIO, 2011, p. 116 e 117). 12 O Rio Jardim cortando a gleba “B” da Terra Indígena de Coroa Vermelha. 46 A maioria dos indígenas, inclusive, liderados pelo Cacique Benedito, em oposição a uma minoria liderada pelo índio Itambé, defensor da demarcação das duas glebas, na verdade, almejava a demarcação da gleba “B”, da mata, e o recebimento de pouco mais de dois hectares da gleba “A”, próximo à praia, divididos em lotes para as famílias indígenas (LEITÃO, 1991, p. 7)13. Wilma Marques Leitão (1991, p. 8), técnica da FUNAI, registrou em seu relatório opinião divergente da grande maioria dos indígenas ressaltando, principalmente, a importância da utilização comum do território para reunião do grupo indígena, e que os títulos individuais de propriedade dos lotes, como almejados pelo grupo do cacique Benedito, reproduziria uma lógica capitalista fincada na propriedade privada, que, se inserida no seio da comunidade indígena contribuiria para a desagregação do seu “modus vivendi”. Além disso, ela alertou que tal sistemática abriria espaço para que os índios alienassem os lotes recebidos. Neste ínterim, com o intento de exercer o controle sobre a ocupação do território, a prefeitura promoveu, desordenadamente, a concessão de lotes em Coroa Vermelha, abrindo espaço para invasões e construções irregulares, além da sobreposição dominial e uma degradação ambiental crescente. Essa atuação enfraqueceu a barganha tentada com os índios e deu início a um processo de favelização às margens da rodovia e no entorno do Rio Jardim, o qual viria a se acentuar com a intensificação e diversificação do comércio (REGO, 2012, p. 64). Um novo grupo de trabalho foi criado em 1991, o qual ratificaria as propostas anteriormente encaminhadas, no entanto, excluindo parte do lote denominado “Aldeia Nina”, referente à gleba da praia, que, neste momento, já estava totalmente alienado aos não-índios (REGO, 2012, p. 64). O relatório elaborado por este grupo de trabalho, potencialmente, foi um dos primeiros, senão o primeiro documento a apontar naquela região um caos fundiário, ambiental e paisagístico. No entanto, a cisão existente na comunidade entre os que defendiam a barganha proposta por empresários e 13 Relatório de Viagem Área Indígena de Coroa Vermelha. GT Portaria PP/1145/91, FUNAI, Wilma Marques Leitão. Disponível em: Id. 6508265, processo nº 0002966-22.2006.4.01.3310, PJE/TRF1 2º grau. Acesso em 04 de jul 2021. 47 políticos locais, e, os que defendiam a manutenção do pleito demarcatório, adiaria
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