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CULTURA BRASILEIRA AULA 4 Profª Edna Gambôa Chimenes 2 CONVERSA INICIAL Olá, seja bem-vindo! Nesta aula, iremos conhecer e refletir sobre a configuração do poder, a construção da consciência racial (que vem sendo discutida há muito tempo), a diferença entre indivíduo e pessoa (apresentada por DaMatta, 1997), e todos esses elementos como parte de uma compreensão da formação da sociedade brasileira. Além disso, analisaremos o mito da democracia racial e algumas informações mais atuais, mostrando como está, ainda hoje, a postura da sociedade e das leis com relação às questões raciais, incluindo o exemplo do sistema de cotas, adotado nas universidades públicas. CONTEXTUALIZANDO A formação da sociedade brasileira é analisada por vários autores ao longo da história. Raymundo Faoro, Gilberto Freyre e Roberto DaMatta apresentam novas visões sobre o período da colonização e a influência que o povo europeu – especialmente os portugueses – teve na formação do país, além dos demais povos que contribuíram para tal construção. Faoro (1958) traz, em sua obra, uma visão de que os reis de Portugal se viam como donos da nação, e isso acabou influenciando na formação da cultura brasileira e na configuração das camadas de poder, que foram sendo estabelecidas posteriormente. Freyre (2003) faz uma análise da formação do Brasil, mostrando que os problemas históricos vão além da formação das diferentes classes sociais e marcando, em especial, uma postura de racismo ao se colocar o negro em uma posição de inferioridade frente aos demais – fato que influencia, ainda hoje, leis e ações que encontramos na sociedade moderna. DaMatta (1997) complementa esse pensamento apresentado pelos referidos autores, na tentativa de compreender a sociedade e suas desigualdades, analisando festividades religiosas, populares etc. e mostrando o estilo do “jeitinho brasileiro” e o “sabe com quem está falando?” que permanecem presentes na sociedade atual, contemplando uma parte da sociedade que usa esse jeito malandro para conseguir atingir seus objetivos e manter uma hierarquização. 3 Partindo de todos esses estudos e considerando a democracia racial, é possível verificar diversos eventos desde a época colonial, se estendendo não só a questões de cor da pele, mas também a gênero, posição social, econômica etc., gerando o mito da democracia racial, que permanece na busca de algo que, apesar dos movimentos e das leis, parece ainda estar longe de ser atingido. Pesquisa Os donos do poder: Raymundo Faoro; A democracia racial: Gilberto Freyre; Malandros e heróis: Roberto DaMatta; Crítica ao mito da democracia racial I; Crítica ao mito da democracia racial II – a sociedade atual. TEMA 1 – OS DONOS DO PODER: RAYMUNDO FAORO Raymundo Faoro (1925-2003), considerado um dos grandes pensadores do Brasil, publicou, em 1958, a obra Os Donos do Poder, pela editora Globo, em Porto Alegre, na qual realiza uma análise acerca da formação do patronato público e do patrimonialismo brasileiro que, apesar de sua formação jurista, demonstrou seu efetivo perfil de historiador e cientista social. Apresenta, em seu texto, a imagem de que os reis de Portugal se consideravam donos do país e da nação, ideia que criou raízes em nossa cultura, ao longo dos anos, criando a concepção de Estado soberano. Nas duas edições dessa obra, é visível a forma de “denúncia” apresentada no enredo, levando, de certa forma, a um julgamento, mostrando provas e evidências de todas as ações cometidas pelo Estado, desde a época da colonização portuguesa até os tempos de Getúlio Vargas, mostrando, inclusive, a postura calada da grande massa da população. A intenção é pensar o Brasil levando em consideração o Estado Patrimonial e seu desenvolvimento, refletindo sobre cada apontamento colocado pelo autor e as críticas recebidas a sua teoria, que se estabelece como uma espécie de teoria da origem da nação brasileira. Segundo Faoro (1958, p. 41): “O patrimonialismo – com a sua criatura, o estamento burocrático – continha, no próprio seio, o germe do suicídio econômico. Desenvolvera uma concepção de vida avessa ao trabalho produtivo 4 e à rotina, comprazendo-se, exclusivamente, no amor aos postos e empregos públicos.”. Dessa forma, o patrimonialismo aparece como uma espécie de moeda utilizada na economia política do poder central, configurando um Estado diretamente ligado às suas heranças e tradições. Nessa nova ideia e compreensão da política brasileira, Faoro (1958) mostra a permanência da ligação entre o novo Estado político, criado no Brasil, e o Reino de Portugal. Durante todos os argumentos apresentados, passa-se por séculos da história brasileira, além dos traços da portuguesa, detalhando de forma rica e invejável os momentos do desenvolvimento da história e da formação do país. O autor pretendia evidenciar algo que não é tão enaltecedor (o legado patrimonialista), presente, constantemente, em diversos pontos da formação do capitalismo, que é instalado posteriormente, em épocas modernas, no Brasil. Cria-se uma nação com práticas comerciais e atividades econômicas, vivendo em um país burocrático, marcado, mesmo em tempos mais atuais, por características herdadas dos colonizadores, que, durante muito tempo, foram os “donos do poder” e do Estado no Brasil. Sobre o período colonial, Faoro (1958) apresenta dois importantes aspectos: o primeiro relacionado à utilização de vários capítulos para a descrição e a interpretação do período de colonização e do processo histórico dos portugueses; o segundo sobre o questionamento acerca da colonização, capaz de questionar e averiguar, efetivamente, esse período, de modo a fugir da história tradicional, sem problematização e sempre apresentada de maneira linear. O autor coloca o surgimento da sociedade de classe apenas no final do Império e início da República, emergindo no quadro hierárquico encontrado no período imperial e a supremacia presente na configuração do setor militar. A partir de todos esses tópicos, nota-se um vasto número de fatos da memória da história, interligando os acontecimentos de tempos passados a uma tradição que seja capaz de apresentá-los e defini-los. Isso é perceptível na descrição das guerras de reconquista e ordenação, que ocorreram juntamente ao processo de conquista e expansão do Império de Portugal, configurando o Estado Patrimonial, que estava previamente constituído em Portugal, vetando o desenvolvimento de uma nova classe feudal que fosse independente da economia e do Estado. 5 “Os reis portugueses governaram o reino como a própria casa, não distinguindo o tesouro pessoal do patrimônio público. Seu poder assentava no patrimônio, em torno deste gravitava ele próprio, seus súditos e os interesses públicos da nação” (Faoro, 1958, p. 11). Nesse trecho, o autor deixa a imagem de confusão que ainda hoje existe em nossa cultura acerca da questão do público-privado. O Brasil só poderá ser efetivamente compreendido a partir da herança deixada pelos portugueses, a qual criou uma espécie de “pecado original” que acabou impossibilitando a geração de uma identidade única e original do país. Assim, nota-se a obra de Faoro como um importante marco no surgimento do estilo da historiografia, mostrando um novo olhar da história e da formação do Brasil, com novos detalhes e uma análise mais crítica de toda a influência da colonização portuguesa, seus traços e sua herança, que são, segundo o autor, visíveis até os dias atuais. Leitura Complementar Para saber um pouco mais sobre as reflexões da obra de Faoro Os donos do Poder, leia o artigo “Os donos do poder: sobre a origem da nação brasileira”, disponível em <https://periodicos.ufmg.br/index.php/temporalidades/article/view /5474>. TEMA 2 – A DEMOCRACIA RACIAL:GILBERTO FREYRE Gilberto Freyre (1900-1987), sociólogo, historiador e ensaísta brasileiro, escreveu a obra Casa Grande e Senzala, em 1933, considerada uma das mais importantes na formação da sociedade brasileira, capaz de revolucionar a historiografia. Nessa obra, o autor apresenta alguns registros do cotidiano da construção da nação por meio da história oral, documentos pessoais, manuscritos de arquivos públicos e privados, anúncios de jornais e outras fontes que, na explicação convencional, ainda não haviam sido consideradas, utilizando-as de uma forma bastante inovadora em sua interpretação. Na formação do Brasil, a história do aparecimento de problemas e conflitos vai além da formação de diferentes classes sociais, baseadas no poder aquisitivo (condição material). Desde a época da colonização, o território brasileiro foi fortemente marcado pelo racismo e, principalmente, pela supressão 6 dos negros. Mais do que uma herança dessa época, a questão racial influencia em nosso dia a dia de diferentes maneiras. Culturalmente, poderíamos elencar um grande número de termos, piadas e ditados que evidenciam a distinção racial encontrada em nosso cotidiano. Um dos principais fatos que demonstram claramente esse problema é quando uma pessoa se autodefine como de pele negra e sente-se deslocado, como se tivesse falado algo extremista, causando certo estranhamento por se remeter a pessoas apenas de pele “muito escura”. Esse tipo de reação, na verdade, demonstra uma indefinição da ideia de diversidade racial que se tenta empregar em nossa sociedade atual. Sabe-se que o conceito de raça é bastante amplo e inconsistente, já que, cientificamente, os indivíduos são únicos e particulares. Mas, se pensarmos na configuração, ao longo da história, os traços genéticos sempre influenciaram na sociedade e nos valores culturais, não considerando as definições criadas pela ciência. Assim, desde o passado é possível verificar problemáticas sobre o modo como o brasileiro lida com a questão da diferença racial. A escravidão dos negros (africanos), criada no Brasil na época da colonização e justificada por questões religiosas, trouxe, ao longo da construção da nação, a ideia de que os negros seriam os responsáveis por atividades subalternas e mais braçais, ligadas à força e à baixa renda. Já, a população de pele branca, desde o período colonial, era responsável pela liderança, tomada de decisão e “desenvolvimento” do país, ou seja, na posição de “mando”, contrária aos negros, que eram colocados como “obedientes”. Na obra Casa Grande e Senzala (Freyre, 2003), aparece um conceito de democracia racial, pelo qual a escravidão passa a ser algo além da simples ideia de dominação. A vida dos escravos é registrada por meio de dados e relatos, mostrando que alguns deles chegavam a viver em posições privilegiadas, de confiança e prestígio, desfrutando de alguns confortos materiais dentro da sociedade colonial. Freyre (2003) apresenta diversos argumentos sobre essas relações estreitadas entre senhores e escravos, criadas antes da Lei Áurea (1888), além do suposto bom caráter do imperialismo português, responsável por impedir o surgimento de categorias raciais que fossem mais rígidas e menos separatistas dentro da sociedade. 7 Além disso, o autor trata a miscigenação como algo contínuo entre as três raças incialmente consideradas – indígenas, descendentes de escravos negros africanos e brancos –, o que levaria a população a uma “meta-raça”, que se orgulharia dessa nova configuração. O que ocorreu foi contrário a isso, e percebeu-se uma forte divisão racial que chega a levar a atos violentos. Entretanto, a miscigenação, apesar de estar fortemente presente na formação do Brasil, não é capaz de excluir os preconceitos que estão presentes em toda a história. Na atual constituição, aprovada em setembro de 1988, a discriminação racial aparece como um crime inafiançável e imprescritível (Brasil, 1988), mas, apesar disso, encontramos uma espécie de racismo velado dentro de um sistema que não julga necessária, no momento, maior mobilização a favor da resolução dessa questão. Curiosidade Conheça o texto da Lei n. 7.716, de 5 de janeiro de 1989, que define os crimes resultantes de preconceito de raça ou de cor. Para leitura da lei completa, acesse: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/LEIS/L7716.htm>. Atualmente, para uma espécie de amenização da discriminação histórica, temos o sistema de cotas e a criação de um ministério que é responsável por cuidar exclusivamente dessa questão, demonstrando o quão grande se tornou esse problema em nosso país. Um fator que evidencia isso é a distinção realizada entre negro e moreno, dentro dos tons de pele, e o corriqueiro discurso de que “todos são racistas, menos eu”, apesar de inúmeras ações e renegações do dia a dia. A democracia racial, utilizada para descrever as relações raciais no país, está relacionada à crença de alguns autores que afirmam que o Brasil não tem mais racismo ou discriminação racial. Esses estudiosos acreditam na ideia de que a população já é capaz de reconhecer o outro como um indivíduo com características particulares, não incluindo atitudes de preconceito racial em suas relações cotidianas. Enquanto a sociedade brasileira permanecer restrita a fatores como gênero, classe e diversidade, a discriminação permanecerá velada e não sendo considerada relevante na configuração social. Hoje, percebe-se uma crítica acerca das relações raciais brasileiras, questionando a real existência de uma democracia racial e ponderando que esse conceito foi criado por uma elite 8 branca dominante para ofuscar as formas de opressão racial que existem em nossa sociedade. TEMA 3 – MALANDROS E HERÓIS: ROBERTO DAMATTA Roberto DaMatta (Niterói, 1936) atua como antropólogo, consultor, conferencista, colunista de jornal e produtor brasileiro de TV. Bacharel em História, especialista em Antropologia Social, mestre e doutor pela Universidade de Harvard, lança seu livro clássico Carnavais, Malandros e Heróis: para uma sociologia do dilema brasileiro, em 1979, no qual apresenta importantes e inovadoras contribuições para a explicação e a análise da construção do Brasil. O autor buscou compreender a sociedade brasileira e suas desigualdades de uma forma bastante particular, por meio de algumas festividades religiosas, populares, entre outras, incluindo o carnaval. Além disso, mostra alguns conflitos sociais, comportamentais etc. e a expressividade e o pensamento da sociedade sobre si mesma, incluindo o retrato do “jeitinho brasileiro” e do “sabe com quem está falando?”, que encontramos ainda hoje. Outro ponto a ser observado é que o “sabe com quem está falando?” não parece ser uma expressão nova, mas velha, tradicional entre nós. [...] a expressão “sabe com quem está falando?” passou a ser mais utilizada, para que os superiores pudessem marcar suas diferenças e continuassem a viver no mundo hierarquizado. É possível, pois, que o uso do “sabe com quem está falando?” tenha ficado muito mais comum nessas eras de mudanças e de “desenvolvimento”, justamente porque hoje não se tem mais a antiga e “boa consciência” de lugar. (DaMatta, 1997, p. 198) Um importante ponto apresentado por Da Matta (1997) é que o povo brasileiro passa por uma situação em que encontramos a oscilação entre duas diferentes unidades sociais: o indivíduo, ligado às leis universais e igualitárias; e a pessoa, ligada às relações sociais e à hierarquização estabelecida. Dentro dessa configuração, a população, muitas vezes, tem dificuldade em atuar frente às regras, pois são criadas para todos, de forma geral, mas cada um é criado em um espaço diferenciado e com especificidades próprias. De acordo com Fraga (2012), em seus comentários sobre a obra de DaMatta, a ideia de indivíduo e de pessoa apresenta as seguintescaracterísticas (Quadro 1): 9 Quadro 1 – Características da ideia de indivíduo e de pessoa Indivíduo Pessoa Livre, tem direito a um espaço próprio. Presa à totalidade social à qual se vincula de modo necessário. Igual a todos os outros. Complementar aos outros. Tem escolhas que são vistas como o seu direito fundamental. Não tem escolhas. Tem emoções particulares. Tem emoções sociais. A consciência é individual. A consciência é social. A amizade é básica no relacionamento = escolhas. A amizade é residual e juridicamente definida. Faz as regras do mundo onde vive. Recebe as regras do mundo onde vive. Não há mediação entre ele e o outro. A segmentação é a norma. Fonte: Fraga, 2012. A obra Carnavais, malandros e heróis busca entender além do que já foi posto historicamente, propondo compreender aquilo que permaneceu ao longo do desenvolvimento da história, analisando a cultura e o caráter de uma sociedade. Além disso, o texto analisa o impasse entre os aspectos mais autoritários, hierarquizados e violentos, e a busca por um mundo mais democrático e menos conflituoso na sociedade brasileira. Do lado autoritário e hierarquizado, nota-se pelo menos três grandezas: uma ordem social baseada em posições e status, na qual não existiriam conflitos e cada indivíduo saberia “o seu lugar”; uma oposição entre as pessoas com privilégios e os demais, em um universo onde as leis funcionem como uma espécie de organismo opressor e controlador; e uma sociedade em que haveria uma equalização entre os indivíduos, já que todos são “filhos de Deus”, mas tentando manter, ao mesmo tempo, a estrutura hierárquica de santidade. Todos esses aspectos de opressão, procissões, “você sabe com quem está falando?” etc. ritualizam e evidenciam aspectos hierárquicos e autoritários da sociedade brasileira. Em contraponto, as festas populares (como o carnaval) e os heróis dramatizam o oposto. A festa popular do carnaval, em especial, passa para o mundo da “rua” a utopia de relações afetivas, espontâneas e que são contrárias à imagem hierárquica. Outro fator que aparece para retratar um pouco mais da sociedade e suas características ao longo da história é a figura do malandro, que, ao contrário do herói, não quer dominar a estrutura do poder, mas demonstra rejeição frente ao sistema apresentado, não o aprovando nem o reprovando, mas buscando criar seu próprio espaço, com seus próprios valores e um estilo de vida peculiar. 10 DaMatta (1997) afirma que, no Brasil, “as leis só se aplicam aos indivíduos e nunca às pessoas” (p. 237), justificando que isso ocorre devido à configuração atual de uma “sociedade em que o conflito e o interesse dos diversos grupos podem se transformar num instrumento de aprisionamento da massa que deve seguir a lei, sabendo que existem pessoas bem relacionadas que nunca obedecem” (p. 237). Isso mostra certa desigualdade presente na sociedade, frente a leis que deveriam atuar de maneira a eliminar esse tipo de relações. Assim, nota-se um tom de revelação de questionamentos e reflexões sobre a hierarquização e o autoritarismo ainda presentes em boa parte do Brasil, mesmo com a atual busca de uma sociedade em que todos são iguais. TEMA 4 – CRÍTICA AO MITO DA DEMOCRACIA RACIAL (I) No Brasil, mesmo nos dias atuais, ainda encontramos dificuldade na vivência da democracia racial. Esse mito ganhou maior proporção nos anos 1930, principalmente devido a algumas publicações do educador Gilberto Freyre, que, apesar de não ter mencionado essa expressão de forma explícita em seus textos, foi o responsável por iniciar a disseminação desse pensamento de que o Brasil seria um país onde a sociedade não teria barreiras para a ascensão social de pessoas negras e/ou afrodescendentes a cargos oficiais, posições de prestígio ou de riqueza, configurando-se, assim, como uma sociedade em que todos têm oportunidades. O racismo, da forma que conhecemos hoje, é uma prática recorrente desde a época da colonização, e se estende não só a questões de cor, mas também a gênero, posição social etc. Após esse período, durante a ditadura militar, esse pensamento se fortaleceu no momento em que as relações raciais param de ser o foco e o racismo é visto como uma prática individual. Sobre a democracia racial brasileira como um “mito”, uma “ideologia racista”, alvo de muitos movimentos negros, é possível encontrar alguns estudos que apontam, principalmente, esse aspecto de mito como formador da nacionalidade. Isso ocorre porque se acredita que, historicamente, os brancos no Brasil não tinham uma real consciência racial, e a miscigenação era aceita apenas se estes fossem “bem-educados” – nesse caso, poderiam ser incorporados à sociedade das elites. Porém, dentro de toda essa análise, é preciso considerar que o mito não é só uma “falsa consciência”, mas, além disso, é um conjunto de valores que 11 atuam diretamente nas práticas dos indivíduos. Assim, o mito da democracia racial não pode ser visto apenas como uma utopia, pois, ainda nos dias atuais, serve como uma ferramenta para amenizar preconceitos existentes. Ao considerar esse novo aspecto do “mito”, pode-se iniciar uma nova análise da democracia racial como algo relacionado à construção cultural e ao compromisso político e social, historicamente marcado, como apresentado por Nascimento (1978, p. 41): [...] erigiu-se no Brasil o conceito de democracia racial; segundo esta, pretos e brancos convivem harmoniosamente, desfrutando iguais oportunidades de existência. [...] A existência dessa pretendida igualdade racial constitui o “maior motivo de orgulho nacional” [...]. No entanto, devemos compreender democracia racial como significando a metáfora perfeita para designar o racismo estilo brasileiro: não tão óbvio como o racismo dos Estados Unidos e nem legalizado qual o apartheid da África do Sul, mas eficazmente institucionalizado nos níveis oficiais de governo assim como difuso no tecido social, psicológico, econômico, político e cultural da sociedade do país. Quando consideramos a acentuação social do racismo, trazida após o fim da escravidão, nota-se uma consolidação das bases teóricas do mito da democracia no imaginário social. A democracia racial, de forma geral, representa um sistema que é desprovido de qualquer discriminação, preconceito ou manifestações raciais negativas. A abolição da escravidão, com a Lei Áurea, apesar de ter uma proposta de liberdade, representou um dos principais dispositivos de opressão do negro brasileiro, pois a liberdade representava, então, falta de moradia, de colocação no mercado de trabalho, entre outros. Após esse evento, em 1889, com a Proclamação da República, buscou- se uma universalização dos direitos e a garantia do direito de todos à cidadania. Isso ocorreu no âmbito do discurso legal, no qual os negros passariam a usufruir de igualdade de direitos e oportunidades, garantindo sua inserção na vida pública social: educação, moradia, lazer, emprego etc. Porém, todo esse discurso de evolução, pregado nas teorias, era enfraquecido quando vemos que, na Constituição de 1891, art. 70, título IV, era prevista a proibição de direitos políticos da população negra (Brasil, 1981). O que vemos, ao analisarmos esses acontecimentos, é que o negro permaneceu em posição de desvantagem frente aos brancos, sendo a cor um fator determinante para inserção em determinados grupos, evidenciando ainda mais a posição de desigualdade racial. 12 No século XIX, o mito da democracia apresenta traços da herança histórica, trazendo alguns itens que ajudariam em sua construção, como a produção literária dos viajantes que visitavam o Brasil, a produção intelectual e política da elite, os movimentos abolicionistas e o processo de mestiçagem, a imprensa negra, integração de negros com imigrantes etc. Todo esse discurso é bastante marcadoem diversas obras da época, como no livro O Abolicionismo, de Joaquim Nabuco (1938 [1883], p. 22), no qual o autor ilustra o momento afirmando que: A escravidão, por felicidade nossa, não azedou nunca a alma do escravo contra o senhor – falando colletivamente – nem creou entre as duas raças o odio reciproco que existe naturalmente entre oppressores e oprimidos. Por esse motivo, o contacto entre ellas foi sempre isento de asperezas, fora da escravidão, e o homem de côr achou todas as avenidas abertas deante de si. [sic] Esse pensamento foi difundido durante muito tempo, fortalecendo-se no período da ditadura militar, quando as relações raciais passam a ser uma prática analisada individualmente, até que se chega a uma nova discussão, retornando à reflexão sobre o racismo e sua prática coletiva. Com isso, a abolição não representou, efetivamente, uma ação de libertação dos negros, tampouco uma garantia de igualdade para a população escrava no Brasil, pois eles acabaram ficando em uma posição à margem da sociedade, em uma posição negativa, atuando em funções menosprezadas (trabalhos pesados, incertos, brutos, penosos e mal remunerados). Assim, a democracia racial passará a ser realidade apenas quando existir, efetivamente, uma igualdade racial no Brasil, quando a população negra deixar de sofrer qualquer tipo de discriminação, segregação ou estigmatização relacionado tanto a cor de sua pele quanto à sua posição social. Mas, além disso, o negro deve ter consciência de sua posição e emancipação frente à sociedade, deixando de ocupar uma posição preestabelecida historicamente e eliminando injustiças culturais, políticas, educacionais, entre outras. TEMA 5 – CRÍTICA AO MITO DA DEMOCRACIA RACIAL (II) – A SOCIEDADE ATUAL É difícil afirmarmos, ainda hoje, que o Brasil não é um país racista, quando analisamos os dados apresentados pelo Instituto Brasileiro de Geografia e 13 Estatística (IBGE) comparando índices da população branca, ou que assim se intitula, com os das demais raças, conforme apresentado na Figura 1: Figura 1 – Comparação entre índices da população branca e das demais raças Fonte: Adaptado de G1, 2017. Além disso, de acordo com matéria do G1 (2017), dos 12,3 milhões de desempregados em 2017, cerca de 64% eram pardos e negros. Considerando a taxa de desemprego, as mulheres e jovens também aparecem com desvantagem nessa comparação. Em 2017, havia 13,8% de mulheres desempregadas, enquanto entre os homens esse número caía para 10,7%. Os jovens (18-24 anos) representavam 25,9% dos desempregados. Outro ponto que evidencia a existência do racismo há gerações, e que perdura ao longo da história, são os acontecimentos que vivenciamos na sociedade, como nas reportagens apresentadas a seguir: Arouca sofre racismo de santista, rebate e MP já analisa o caso Jogador se pronuncia nas redes após ser chamado de 'preto safado' Mais uma vez o racismo é assunto no futebol. Após a derrota do Palmeiras por 2 a 1 para o Santos, quarta, na Vila Belmiro, um torcedor santista resolveu xingar o volante Arouca de "preto safado" no Twitter. Sua ofensa foi parar no Ministério Público. O jogador do Palmeiras, irritado, chamou o torcedor de idiota e disse que não pretende dar mais espaço para o assunto, já que não existem punições no Brasil. [...] (Batista, 2015). 14 Brasil, 2018: jornalista é vítima de racismo e recebe ameaças de morte Jornalista baiana foi duplamente vítima de criminosos virtuais. Foi alvo de racismo e, ao expor o caso na rede, recebeu ameaça de morte A jornalista baiana Maíra Azevedo recebeu ameaças depois de expor um comentário racista feito em seu Instagram. Conhecida nas redes sociais como “Tia Má”, ela falava sobre o candomblé em transmissão ao vivo. Uma das pessoas que a assistiam comentou “monkey”, junto a um emoji de macaco. A comunicadora presentou queixa à promotoria de Justiça de Combate ao Racismo do Ministério Público da Bahia. [...] (Oliveira, 2018). Analisando esses e demais casos que presenciamos no dia a dia da sociedade brasileira, percebe-se que o racismo ainda é uma prática institucional bastante exposta entre a população. É uma espécie de prática seletiva que, atualmente, segue uma ideia de “ninguém sabe, ninguém viu”, mesmo com tantos casos evidentes no cenário nacional. Por mais que tenhamos movimentos e inúmeras discussões acerca desse tema, essas práticas transgridem as leis e continuam violando os direitos humanos, em muitos casos. Todos esses dados e informações reforçam a dimensão do problema que ainda está presente na sociedade brasileira e vai além da violência verbal, sendo registrados vários casos de violências físicas a afrodescendentes, como no caso de agressões praticadas por um grupo conhecido como skinhead. Toda essa história não para por aí: ainda temos os casos de perseguições religiosas e culturais, pouca representatividade em importantes cargos e na política, mostrando dificuldades em efetivar ações que permitam combater e acabar com o preconceito e garantir a igualdade social. 5.1 Sistema de cotas O Brasil é um país que se mostra racista, apesar de todas as leis, movimentos e programas de conscientização e busca pela igualdade racial e social. As cotas raciais surgem como um modelo de ação afirmativa, com a finalidade de amenizar as desigualdades sociais, econômicas e educacionais entre as diferentes raças. Esse sistema foi adotado, pela primeira vez, nos Estados Unidos, em 1960, buscando a redução das desigualdades socioeconômicas entre brancos e negros. O cenário da disparidade social entre raças, encontrado no Brasil ocorre em função da diferença de oportunidades, historicamente ligada à escravidão. A 15 abolição, um evento que propôs a liberdade dos negros, trouxe um grande problema para essa população, pois não se procurou criar oportunidades e programas que inserissem os escravos na nova sociedade, deixando-os à margem da sociedade. Esse fato ainda gera muitas discussões e debates na sociedade contemporânea, pois nota-se, ainda, sua herança. No Brasil, o sistema de cotas raciais passa a ser discutido e ganha maior visibilidade a partir do ano 2000, quando se passa a adotar essa medida tanto nos vestibulares quanto em concursos públicos. A Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ) foi a primeira a adotar o sistema, em 2003, considerando uma lei estadual aprovada em 2001, e a Universidade de Brasília (UnB) foi a primeira instituição federal a adotar as cotas, em 2004. A partir daí, muitas universidades passaram a adotar essa ação em seus processos seletivos. A Lei n. 12.711, de 29 de agosto de 2012, ou Lei de Cotas (Brasil, 2012), propõe a reserva de 50% das vagas de todos os cursos em instituições federais de ensino superior, atendendo critérios sociorraciais estabelecidos previamente. Esse sistema de cotas raciais não beneficia apenas os negros, já que temos, em diversas universidades, a reserva de vagas também para indígenas e seus descendentes. Porém, esse tema é, ainda, bastante polêmico na sociedade, gerando reflexões, análises e discussões. Segundo dados do Ministério da Educação, apresentados no Gráfico 1, essa política afirmativa de cotas raciais assegurou o acesso de muitos estudantes negros a instituições de ensino superior. O percentual de jovens negros e pardos entre 18 e 24 anos que cursavam ou haviam concluído o ensino superior, segundo o Instituto de Pesquisas Aplicada (Ipea), apresentou grande avanço com o início da política de cotas. 16 Gráfico 1 – Percentual de jovens negros e pardos entre 18 e 24 anos que cursaram ou concluíram o ensino superior Fonte: Adaptado de Vieira, 2016. O censo do Ensino Superior, realizado pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep), também mostra uma evolução no número de matrículas dos estudantesnegros e pardos nos cursos de graduação, chegando, em 2016, ao percentual de 30% de negros matriculados (Vieira, 2016). TROCANDO IDEIAS Os autores apresentados mostram uma nova visão, diferente da convencional, sobre a formação do Brasil, sua cultura e sociedade. As obras colocam importantes reflexões sobre as influências dessas heranças trazidas ao longo da história e que são vistas até os dias atuais. Baseando-se nessas informações e nas discussões apresentadas, reflita sobre quais são essas influências e como elas aparecem na configuração da sociedade brasileira. Além disso, analise se as leis estabelecidas e a atual hierarquização do poder tiveram grande avanço ou representaram uma atualização frente à tentativa de erradicação dos problemas sociais históricos. NA PRÁTICA Leia a reportagem do jornal Gazeta do Povo (Costa, 2017), disponível em <https://www.gazetadopovo.com.br/educacao/estudante-negra-abre-mao-de- 17 cotas-nao-achei-legal-tirar-a-vaga-de-uma-pessoa-que-precisa-mais-do-que- eu-6rvp74eb5mu1h4ekd0304ghtv/>. Considerando as reflexões e os dados apresentados sobre a democracia racial e o mito que existe em torno desse tema, além dos dados do sistema de cotas, elabore um texto opinativo, apontando suas ponderações sobre o atual cenário do sistema de cotas e como ele vem sendo utilizado pelas universidades, considerando sua finalidade. FINALIZANDO São vários os estudos realizados acerca da formação do Brasil, analisando a influência que cada povo teve na construção da cultura, política, sociedade etc. Porém, algumas obras, contrariando a visão mais tradicional, mostram como outros povos, além dos colonizadores, contribuíram para esse processo durante a história. As obras estudadas nesta aula evidenciam exatamente isso: uma reflexão sobre elementos que colaboraram para a formação da sociedade, inclusive representando uma herança que permanece na configuração que temos ainda hoje, como a hierarquização social, “o jeitinho brasileiro” ou os problemas raciais. Este último item – racial – é objeto de constantes discussões ao longo da história, na tentativa de erradicar a diferença social que temos ainda em nosso dia a dia. Além disso, criou-se o mito de uma democratização racial que vem sendo buscada, por meio de novas leis, movimentos e estudos, tentando colocar o negro em um papel mais justo e igualitário. Todos esses aspectos contribuem constantemente para a formação não só do Brasil, mas do cidadão brasileiro, na medida em que reflete as atitudes cotidianas de cada um. 18 REFERÊNCIAS ANALFABETISMO entre pessoas pretas e pardas é mais que o dobro do que entre as brancas, diz IBGE. G1, 21 dez. 2017. Disponível em: <https://g1.globo.com/educacao/noticia/analfabetismo-entre-pessoas-pretas-e- pardas-e-mais-que-o-dobro-do-que-entre-as-brancas-diz-ibge.ghtml>. Acesso em: 20 fev. 2019. BATISTA, D. Arouca sofre racismo de santista, rebate e MP já analisa o caso. Estadão, 12 mar. 2015. Disponível em: <https://esportes.estadao.com.br/noticias/futebol,arouca-sofre-racismo-de- santista-rebate-e-mp-ja-analisa-o-caso,1649620>. Acesso em: 20 fev. 2019. BRASIL. Constituição (1891). Diário Oficial [da] República dos Estados Unidos do Brasil, Rio de Janeiro, 24 fev. 1891. _____. Constituição (1988). Constituição da República Federativa do Brasil. 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Cor ou raça nas instituições federais de ensino superior: explorando propostas para o monitoramento da Lei de Cotas. Brasília: Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira, 2017. VIEIRA, I. Percentual de negros em universidades dobra, mas é inferior ao de brancos. Agência Brasil, 2 dez. 2016. Disponível em: <http://agenciabrasil.ebc.com.br/educacao/noticia/2016-12/percentual-de- negros-em-universidades-dobra-mas-e-inferior-ao-de-brancos>. Acesso em: 20 fev. 2019.
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