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IMAGEM E CONSTRUÇÃO SOCIAL AULA 5 Profª Sionelly Leite da Silva Lucena 2 CONVERSA INICIAL Quando falamos em leitura, logo pensamos em texto, certo? Mas, nesta aula, vamos trabalhar com a leitura de imagens, com base em algumas teorias da imagem, a fim de entender seus significados e impactos com base em sua construção social, técnica e estética. Para tal, vamos conhecer e debater teorias dos autores Boris Kossoy, Henri Cartier-Bresson e Roland Barthes, grandes nomes entre os pensadores críticos dessa área. Bons estudos! CONTEXTUALIZANDO Para entendermos o poder da imagem, é preciso aprofundar nossas experiências sensíveis sobre as interpretações da imagem. Um exemplo simples: um círculo pode ter diversos significados quando pensado em diferentes contextos sociais. • Podemos relacioná-lo à representação do infinito, quando pensando em circularidade e movimento sem fim. Exemplo: a aliança que une, por meio de um anel de ouro (que é circular), um casal. • O Deus Sol é representado por um círculo desde os tempos mais remotos, como na civilização egípcia. Assim, entendemos que uma “simples” imagem pode carregar preciosos e diversos significados. Pesquisa Confira quais temas trabalharemos nesta aula: 1. Introdução à leitura da imagem; 2. Teorias da imagem 1: Boris Kossoy; 3. Teorias da imagem 2: Henri Cartier-Bresson; 4. Teorias da imagem 3: Roland Barthes; 5. Análise e crítica fotográficas. TEMA 1 – INTRODUÇÃO À LEITURA DA IMAGEM Você se lembra da menina vietnamita ferida, fotografada por Huynh Cong Ut em 1972? Ela se chama Phan Thị Kim Phúc e é personagem de uma das 3 imagens mais icônicas da história, vencedora do prêmio Pulitzer, um dos maiores do mundo: Crédito: AP PHOTO/NICK UT. Essa mesma fotografia, saindo do campo do fotojornalismo, estampou uma campanha publicitária sobre a liberdade de imprensa, mudando, assim, seu contexto usual. Fonte: <https://clios.com/awards/winner/10462>. Acesso em: 12 dez. 2019. Para analisar ou ler uma imagem (aqui estudaremos a fotografia, referente a uma imagem estática) devemos entender dois conceitos fundamentais, derivados da conceituação semiológica de Roland Barthes, que classifica o sentido em dois: • Denotativo: é o sentido literal, que se refere a uma descrição dos objetos num determinado contexto e espaço. A descrição de uma 4 palavra no dicionário, por exemplo, é um sentido denotativo, pois denota determinado significado a cada verbete. • Conotativo: refere-se a um sentido metafórico, mais subjetivo, em que se devem analisar as mensagens numa imagem/num texto, na forma como a informação aparece, escondida ou reforçada por meio de elementos e recursos visuais/textuais Para entender esses conceitos na prática, vamos analisar a imagem a seguir: Créditos: Epicstockmedia/Shutterstock. • Sentido denotativo: praia, mar, água, onda, céu azul, nuvens, montanha, surfista e surfe. • Sentido conotativo: pode representar aventura, a “melhor onda”, adrenalina, homem e natureza. Para Umberto Eco, a conotação é a soma de todas as unidades culturais que o significante pode evocar institucionalmente na mente do destinatário. Assim, há de se entender quais são os elementos que compõem a imagem e agrupá-los de forma a construir significados denotativos e conotativos. 5 Por exemplo, vamos analisar a imagem a seguir: Créditos: BPlanet/Shutterstock. É possível ver uma cena de futebol, mais precisamente um gol, certo? Essa resposta é resultado da primeira visão, que seria global. Agrupamos os elementos “bola”, “movimento”, “rede” e “gramado verde” e montamos um significado geral: gol. Apenas depois de um tempo é que reparamos nesses “detalhes”, ou seja, os elementos à parte. Cada um dos elementos será parte da soma, que gerará resultados, levando-se em conta que o objeto/a cena pode suscitar diferentes emoções e experiências. Há vários teóricos que se dedicam às teorias da imagem. Entre eles, vamos entender alguns sistemas, ao menos de forma introdutória, para compreensão das formas de interpretação da imagem, em específico da fotografia. Nos próximos temas, vamos falar de Boris Kossoy, Henri Cartier- Bresson e Roland Barthes. TEMA 2 – TEORIAS DA IMAGEM 1: BORIS KOSSOY Entendemos até aqui que a fotografia traz uma sensação mágica de verdadeiro, enquanto cede espaço para a ficção; além disso, vimos que é nesse hibridismo que a imagem faz ver seu suporte, o qual é somado na hora da interpretação. A fotografia, assim, se aproxima mais da tentativa de tornar visível algum fenômeno, para que se possa tentar compreender a condição humana fenomenal. A credibilidade das fotos quando vistas em jornais, por exemplo, cria a sensação de verdade, que parece vir embutida na essência da fotografia e 6 que é explorada no veículo jornalístico, confundindo fotografia com a realidade subjetiva dos fenômenos. Sobre realidade, podemos definir como as diferentes formas que o homem tem de se relacionar com o mundo. Para Boris Kossoy (1999): A fotografia tem uma realidade própria que não corresponde necessariamente à realidade que envolveu o assunto, objeto de registro, no contexto da vida passada. Trata-se da realidade do documento, da representação, uma segunda realidade, construída, codificada, sedutora em sua montagem, em sua estética, de forma alguma ingênua, inocente, mas que é, todavia, o elo material do tempo e espaço representado, pista decisiva para desvendarmos o passado. (Kossoy, 1999, p. 22) Segundo Kossoy, há diversos aspectos que devem ser levados em conta na análise e leitura fotográfica. Isso porque com o ato fotográfico é construída uma segunda realidade, considerando que a imagem nada mais é do que uma representação a partir do real. Assim, para se compreender a imagem enquanto documento fotográfico, existem elementos constitutivos e coordenadas de situação que permitem à fotografia se materializar, ou seja, tornar-se possível e visível. O autor fala do momento e das circunstâncias que circunscrevem o ato fotográfico. Crédito: Sionelly Leite da Silva Lucena. A fotograficidade revela, assim, o seu poder de articular imagens e suas representações, seja no tempo, nas marcas da história ou nas imagens que constroem o sentido do mundo. O assunto de interesse do fotógrafo se materializa, mediado pela tecnologia, num determinado espaço-tempo. Imperativa, a fotografia esbarra na “leitura da realidade”, mas não passa de uma trama de construções da 7 realidade subjetiva dos fatos. Isso porque é com as imagens do mundo que se constroem e restituem a memória, e se estruturam realidades visuais, próprias para a interpretação. A fotografia apresenta cenários constituídos por objetos imóveis, inanimados, paisagens urbanas ou naturais ou então que abrigam situações; servem de fundo para ações, fatos que têm o elemento humano como personagem. [...] Qualquer que seja o foco de nossa atenção, os elementos que comporão a imagem são transpostos para a sua nova realidade: o retângulo eterno que os abrigarão. Estamos diante de uma nova realidade, uma segunda realidade cujo conteúdo arquitetado em função do novo espaço carrega em si, na longa duração, a visão de mundo de seu operador. (Kossoy, 1999) Vamos analisar mais uma imagem, dessa vez de Robert Doisneau. Você já ouviu falar dele? É o responsável por aquela famosa foto de beijo em Paris. Para mais informações sobre ele, acesse o link a seguir: <http://www.istoe.com.br/reportagens/193954_O+RETRATISTA+DE+PARIS >. A imagem em questão é a seguinte: Crédito: Robert Doisneau/Getty Images. Nessa imagem, é possível ver crianças brincando: uma parada, à esquerda, e outras quatro, à direita, em ponta de pé. Por serem crianças, é fácil identificar que se trata de uma brincadeira,inclusive que se trata de um lugar mais frio, tendo em vista as vestimentas dos personagens. No entanto, não podemos decifrar tão facilmente quem são as crianças, mas podemos imaginar. Por isso, é possível afirmar, de acordo com Kossoy, que a fotografia possui duas realidades: 8 1. A realidade do assunto; 2. A realidade do assunto representado. Podemos ilustrar essa teoria com um exemplo ainda mais simples: a imagem de uma escada, que pode ter diferentes recepções e interpretações. Para a maioria das pessoas, a escada será um elemento identificável. Contudo, para outros, podem representar um trauma de infância (para alguém que, em uma determinada experiência, caiu da escada ou teve vertigens no alto, por exemplo); pode rememorar uma nova visão de mundo, sendo o acesso para um lugar mais alto; entre outras experiências individuais, armazenadas de forma singular. A segunda realidade da fotografia, assim, são essas lembranças suscitadas, sensações peculiares de cada um que transformam a interpretação resultante da imagem. Leitura obrigatória Acesse o link a seguir e leia o texto “O paradigma da fotografia”, de Boris Kossoy, escrito em 1994. Disponível em: <http://boriskossoy.com/wp- content/uploads/2014/11/paradigma_pt.pdf>. Acesso em: 13 jan. 2020. TEMA 3 – TEORIAS DA IMAGEM 2: HENRI CARTIER-BRESSON Veja esta fotografia: Fonte: <http://www.magnumphotos.com/C.aspx?VP3=CMS3&VF=MAGO31_10_VForm&ERID=24KL 53 ZMYN>. Acesso em: 12 dez. 2019. 9 A imagem vista acima é uma fotografia feita por Henri Cartier-Bresson, considerado por uma larga maioria o grande mestre da fotografia mundial. Tão fácil quanto ver a correria da criança registrada na imagem é associá-la à brincadeira e à energia que normalmente as crianças têm. É possível fazer algumas considerações a respeito de sua composição e assim sua leitura: • A criança, bem ao centro da imagem tomada na horizontal, parece envolta nas sombras, também distribuídas ao centro. • Contornando o lado esquerdo, podemos reparar nas escadas e na charmosa portinha de acesso à casa. • No lado direito temos a solidez da porta, que preenche todo o lado direito da imagem. • O lugar onde a criança se encontra equilibra todas as formas, luzes e sombras; ao centro, ela traz também movimento e se torna a protagonista. Considerado o pai do fotojornalismo, Bresson possui importantes contribuições na produção de imagens e na teoria do que chamou de “instante decisivo” (1952), em que defende que não há nada que faça o tempo voltar ou que restitua o passado. Assim como o fogo, o tempo consome a madeira e nada faz ela voltar ao que era antes. É como a imagem quando capturada na fotografia: uma vez registrada no filme/sensor, os sais de prata/pixels são sensibilizados pela luz e a imagem se fixa para então se tornar o registro de uma lembrança que será dali para frente rememorada. Trabajamos en unicidad com el movimiento como algo premonitório de cómo la vida misma se desarrolla y mueve. Pero dentro del movimiento hay um momento en el cual los elementos que se mueven logran um equilíbrio. La fotografia debe capturar este momento y conservar estático su equilíbrio. (Cartier- Bresson, 1952, p. 229) Para Bresson (1908-2004), há um instante no tempo em que os elementos se encontram em perfeita harmonia, um ponto exato inscrito na banalidade do cotidiano, um enquadramento de elementos banais transformados em uma cena “nova”. Aquilo que o fotógrafo chama de “momento decisivo” é o momento único do tempo num determinado espaço, em que é possível registrar com equilíbrio a composição dos elementos no quadro, das formas geométricas que compõem a linguagem visual. 10 Observado como uma estratégia de composição do quadro, o decisivo momento de apertar o botão se enquadra em um instante “mágico”, em que os elementos ganham sentido e equilíbrio quando enquadrados no devido tempo. Um exemplo clássico de instante decisivo bressoniano está na enigmática imagem “Atrás da Estação Saint Lazare”, tirada em Paris no ano de 1932. Fonte: <http://www.magnumphotos.com/C.aspx?VP3=CMS3&VF=MAGO31_10_VForm&ERID=24KL 53 ZMYN>. Acesso em: 12 dez. 2019. Nesta emblemática imagem, temos como instante decisivo o salto numa poça de água no exato momento em que o pé do sujeito quase toca a superfície da água, o que gera harmonia com o anúncio dos acrobatas ao fundo, com a escada e com os anéis de metal, que fazem referência ao circo. Sem contar as outras formas geométricas, espalhadas por todo o quadro. Há quem diga que o mestre da fotografia pediu para que o personagem simulasse o pulo, outros alegam a autenticidade do salto. Verdadeira ou não, a imagem remonta ao cálculo exato de apertar o botão e fazer poesia com os elementos que se somam. Bresson impressionava com a habilidade de ver beleza na periferia das grandes cidades. Por forma eu entendo uma organização plástica rigorosa através da qual, exclusivamente, nossas concepções e emoções tornam-se 11 concretas e transmissíveis. Em fotografia, esta organização só pode ser o fato de um sentimento espontâneo dos ritmos plásticos. (Cartier-Bresson, 2004, p. 25) O instante decisivo da fotografia, em que a cena é registrada, é decisivo, pois servirá de registro único. Para trazer à mente do leitor o impacto desejado, a fotografia deve alcançar a percepção do leitor com efeitos de sentido que afetem, comovam ou mostrem os fenômenos, inclusive os que são anulados pelo repetitivo. Sugestão de leitura Acesse o link a seguir e leia o texto “O instante decisivo”, de Henri Cartier Bresson: <http://www.uel.br/pos/fotografia/wp-content/uploads/downs- uteis-o-instante-decisivo.pdf>. Acesso em: 13 jan. 2020. TEMA 4 – TEORIAS DA IMAGEM 3: ROLAND BARTHES A Fotografia não diz (forçosamente) aquilo que já não é, mas apenas e de certeza aquilo que foi. Esta sutileza é decisiva. Diante de uma foto, a consciência não segue necessariamente a via nostálgica da recordação [...], mas, para toda a fotografia existente no mundo, a via da certeza: a essência da fotografia é ratificar aquilo que representa. (Barthes, 1980, p. 95-96) Roland Barthes, em “A Câmara Clara” (1980), afirma que a fotografia é o atestado de que aquilo que se vê na imagem de fato aconteceu: é a esse referente “real”, existente, que ele chama de “isto foi”. Sendo a essência da fotografia a ratificação da cena que apresenta, haveria a certeza daquilo que foi presenciado e registrado pelo fotógrafo. Barthes (1980, p. 87) afirma ainda que “ao contrário dessas imitações [referentes à pintura], na Fotografia nunca posso negar que a coisa esteve lá”. A base do “isto foi” se refere ao noema da fotografia, a essa certeza de que aquilo que se atesta na imagem foi algo registrado por alguém que presenciou o fenômeno e o captou em registro. “A grande noema da Fotografia será então o ‘isto foi’ ou, ainda, o inacessível”, estende Barthes (1980, p. 97). O que Barthes chama de o “referente fotográfico” consiste no objeto que colocado diante da objetiva, sem o qual não existiria fotografia. No caso da pintura, o referente pode ter origem na imaginação do pintor, o que não acontece com a fotografia. Essa autenticação seria o grande diferencial da 12 fotografia entre os outros meios de reprodução visual, sendo essa convicção de existência do objeto o seu grande noema. O que ela [a fotografia] produz em mim não é o de restituir aquilo que é abolido (pelo tempo, pela distância), mas o de confirmar aquilo que vejo que existiu realmente. Trata-se, portanto, de um efeito verdadeiramente escandaloso. (Barthes, 1980, p. 92) Outros dois conceitos designados por Roland Barthes (1980), o óbvio e o obtuso, ajudam a segregar as diferentes modalidades de reconhecimento e interpretação dos signos. A imagem seria, pois, pontuada por dois vieses de leitura: • O leitor,ao fazer uma avaliação “ingênua”, identifica os elementos constitutivos da narrativa, clareando a possível mensagem: é a fase da leitura óbvia, que consiste no reconhecimento dos elementos. • Outra fase na assimilação da imagem é o caráter obtuso, a partir do qual o leitor decodifica os elementos dando-lhes sentidos conotativos, ao subverter a leitura com base nos seus conhecimentos culturais e agregando a eles seu conhecimento e sua interpretação com base em suas experiências anteriores. Com isso, nasce a diversidade das interpretações da imagem de forma geral. Nessas duas categorias, Roland Barthes faz menção a mais dois termos, ainda no livro A câmara clara (1980): o studium e o punctum. • Studium: trata-se da análise com objetivos definidos, algo que engloba a metodologia para a abordagem da imagem. • Punctum: seria algo além do que o olhar busca, ferindo o leitor com algo que sobressai à imagem. Enquanto o studium "tem a ver como afeto médio" (1980, p. 45), é um "campo muito vasto" (ibidem, p. 47), um detalhe (p. 69); o punctum seria "amor extremo" (ibidem, p. 25) e de "interesse geral" (ibidem, p. 47), um "pequeno corte" (ibidem, p. 46), um detalhe ao acaso: Sinto que a sua presença por si só modifica a minha leitura, que é uma nova foto que contemplo, marcada, aos meus olhos, por um valor superior. Este “pormenor” é o punctum (aquilo que me fere). (Barthes, 1980, p. 51) 13 Sugestão de leitura Acesse o link a seguir e leia o artigo “Para reler A câmara clara”, de Ronaldo Entler. <http://www.faap.br/revista_faap/revista_facom/facom_16/ronaldo.pdf>. Acesso em: 13 jan. 2020. TEMA 5 – ANÁLISE E CRÍTICA FOTOGRÁFICAS Se toda a imagem é representação, ela deve utilizar, necessariamente, algumas regras de desconstrução e leitura para que possa ser compreendida. Se essas representações devem ser compreendidas pelos leitores, é porque existe entre eles um mínimo de convenção sociocultural. Ao permitir o estudo da articulação da imagem com a semelhança, o vestígio e a convenção é que a teoria da imagem apresenta não apenas a complexidade, mas também a força da comunicação pela imagem. Por isso pareceu necessário fazer tais referências teóricas nas aulas anteriores, antes de qualquer análise interpretativa. Para Martine Joly (1994, p. 45), embasada na teoria semiótica de Charles Sanders Peirce (1839-1914), a proposta de analisar ou de explicar imagens parece, na maior parte das vezes, suspeita e provoca algumas questões: • O que se pode dizer de uma mensagem que, precisamente devido à sua semelhança, parece naturalmente legível? • Uma outra atitude é contestar a riqueza de uma mensagem visual por meio de um inevitável e repetitivo “o autor quis tudo isso?”; • Uma terceira questão diz respeito à imagem considerada como artística, a qual a análise deformaria, porque a arte não seria da ordem do intelecto, mas da ordem afetiva ou emotiva. Assim, é preciso considerar as generalizações e especificidades da fotografia por meio da articulação entre semelhança, vestígio e convenção da imagem e dos seus elementos. Como indicado por Boris Kossoy, a fotografia nos fornece uma segunda realidade, propensa a mil e uma interpretações, o que torna delicado o campo da investigação fotográfica, por três motivos: 1. Não podemos analisar a imagem com os olhos do presente, pois fotografia é passado, mesmo que revivamos o passado no instante presente, o que mais um efeito desse meio visual. 14 2. Não conseguiríamos captar com tanta segurança as intenções do autor, que pode, inclusive, não ter intenção nenhuma. Isso porque às vezes ele tem a “sorte” de capturar um instante decisivo, ou seja, aquele momento em que se está no lugar certo, na hora certa e com a câmera fotográfica a postos. 3. Os símbolos e os elementos da imagem são variáveis e fogem da interpretação coletiva. Com certeza há símbolos universais (expressão redundante no campo da semiótica), mas que, mesmo assim, podem sofrer turbulência dentro de experiências individuais. Depende de como armazenamos o elemento. Diante de tais considerações, para a análise fotográfica, é preciso, portanto, ir com calma. Vamos à análise de caso. O fotodocumentaristas brasileiro Sebastião Salgado fez um de seus registros na Fazenda Giacometti, interior do Paraná (Brasil), em 1996. O trabalho é analisado por José de Souza Martins (2008) no livro “8X Fotografia”, em uma profunda avaliação estética, técnica e sociológica: Fonte: <http://gpestudosemjornalismo.blogspot.com.br/2010/10/jogo-de-visibilidade-e- invisibilidade_26.html>. Acesso em: 12 dez. 2019. A análise de Martins sobre a referida imagem está diluída no artigo “A epifania dos pobres da terra” (2008) e revela além do que o fotógrafo provavelmente pretenderia mostrar. Para o sociólogo Martins, o fingimento teria sido necessário para se conseguir a imagem, pois com a intervenção do fotógrafo na construção e disposição dos elementos na cena, sua atuação seria mais caracterizada como uma direção de cena. 15 Essa fotografia de Salgado, em especial, contém várias e desencontradas mensagens. Contém o que o autor quis mostrar e o que não sabia estar mostrando, mas pode ser visto mediante análise do conteúdo da foto. Ela é extensamente reveladora à luz do que tenho definido como sociologia do conhecimento visual. Essa é a razão da minha escolha. (Martins, 2008) Para essa interpretação, Martins (2008) analisa os elementos da imagem, percebidos e identificados ao percorrer o olhar sobre a foto: • O lugar aparenta ser uma fazenda, por estar cercado de vegetação. Há uma região demarcada com estacas e cerca de arame, caracterizando uma área privada, possivelmente uma fazenda. • No centro da imagem, há um homem usando boné e que levanta uma foice à frente de uma multidão. • Todos andam na mesma direção, e o líder, ao atravessar o portão, já dentro da fazenda, aponta o rumo da caminhada. • Há bandeiras que alguns personagens seguram, ao fundo, carregando o símbolo do Movimento Social Sem-Terra, identificando quem são os participantes do ato. • A travessia da porteira, ápice da cena, é identificada como uma ruptura com o sistema. A invasão indica a reivindicação do direito ao alcance de todos. • A linha formada pela multidão conduz o olhar a um passeio por boa parte da fotografia: uma romaria estaria representando simbolicamente a busca da “Terra Prometida”, a narrativa bíblica referente a Moisés e a seus seguidores. Em seguida, em uma análise técnica, o autor descreve o ângulo da tomada: o fotógrafo fez a imagem do alto, de dentro da fazenda, para trazer efeito de profundidade e assegurar ao fundo a vista da multidão insurgente. E é com essa observação que Martins atenta para a entrada do fotógrafo na cena: ao estar do lado de dentro da fazenda, Salgado teria sido o primeiro personagem a entrar no lugar. Com essa antecipação, teria se rompido o clímax e a proposta aparente da imagem: a ocupação “forçada” dos sem-terra na fazenda. O que Martins propõe, por fim, é que ao se aprofundar na leitura dessa imagem são revelados indícios de uma geração de sentido “proposital”, no que se pretende retratar a invasão e o simbolismo da luta do MST. Contudo, à luz da sociologia do conhecimento, os personagens não lutam mais, e sim fazem pose 16 para Salgado fotografá-los, assim como fazem os fotógrafos contratados para registrar um casamento. Assim, vê-se que a análise ou a crítica fotográfica deve avaliar os pontos técnicos-estéticos da fotografia, os elementos artísticos, mais as variações sociais e culturais do fotografado, do fotógrafo e de quem lê a imagem. Portanto, não se trata de uma literalidade ou resumo, mas, sim, de interpretação aprofundada e leitura, embasada em alguma teoria que discuta as teorias da imagem. TROCANDO IDEIAS Fotógrafos e pensadores da fotografiatêm dado grandes contribuições sobre a problematização da imagem. Isso porque é importante perceber a imagem não apenas por seu poder de encantamento, mas também por sua construção simbólica enquanto representação de algo. Esse “algo” e sua significação interessam ao campo da fotografia. As teorias sobre a interpretação da imagem nos ajudam a fortalecer os vínculos de sua representação. E você, analisa as imagens que vê diariamente de forma crítica? NA PRÁTICA Escolha uma série fotográfica (reportagem ou ensaio fotográfico) e faça sua leitura do trabalho, a partir do conceito do autor Roland Barthes (óbvio e obtuso) ou de Henri Cartier-Bresson (instante decisivo). Desenvolva um artigo reflexivo (1 página) lendo as imagens de sua escolha, com base na teoria escolhida. SÍNTESE Para entender a fotografia, é preciso ir além de sua superfície. A estética e a técnica, enquanto elementos constitutivos da produção da imagem, também fornecem indícios da recepção. Se determinada imagem nos choca/comove, é porque há algo no leitor da imagem, que é ferido por essa lembrança, que, por sua vez, é acionada pela fotografia. Além disso, é preciso entender a fotografia enquanto segunda realidade, pois ela não é a coisa em si, mas aciona a coisa a partir de sua representação. 17 A fotografia, assim, constitui uma linguagem, e para lê-la é preciso entender os elementos que fazem parte dela. 18 REFERÊNCIAS BARTHES, R. A câmara clara: nota sobre a fotografia. 13. ed. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2008. CARTIER-BRESSON, H. El instante decisivo. In: FONTCUBERTA, J. (Ed.). Estética fotográfica: uma seleción de textos. Barcelona: Editora Gustavo Gili, 2003. JOLY, M. Introdução à análise da imagem. Lisboa: Ed. 70, 2007. KOSSOY, B. Realidades e ficções na trama fotográfica. Ateliê Editorial: Cotia, SP, 1999. _____. Fotografia & História. São Paulo: Ateliê Editorial, 2001.