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Leitura comentada de Senhora, de José de Alencar

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#87 SENHORA, JOSÉ DE ALENCAR
Olá, ouvintes! Este é o Literatura Oral, podcast de leitura comentada e de sugestões literárias. Eu sou Sabrina Siqueira. Sejam bem-vindos!
Como é que vocês estão?
No último episódio, li o poema O apanhador de desperdícios, de Manoel de Barros. Hoje eu vou dar início à leitura comentada de Senhora, de José de Alencar. Então, te inscreve no canal e bora revisitar esse clássico da literatura brasileira.
Há alguns meses eu fiz uma enquete no perfil do insta do Literatura Oral pra saber se vocês querem episódio com José de Alencar ou não, em função de se saber de algumas escolhas do autor, de ele ter falado coisas que colaboram pra perpetuar preconceitos, ter sido a favor da continuidade da escravidão, por exemplo. E aí a maioria das pessoas que respondeu a enquete disse sim, vamos ter episódio com Alencar, e eu concordo com vocês. Acho que vale comentar a obra desse autor, que afinal escreveu bastante, tem títulos importantes na literatura brasileira, mas vale comentar também desse aspecto da personalidade dele, até como forma de instigar esse debate e reforçar o quanto errado ele estava. Até porque a gente sabe que o racismo não é uma questão resolvida, a gente ainda precisa falar sobre isso, e nada melhor que a literatura pra canalizar esse debate. Então vamos assim, eu comento aqui e vocês comentam no canal, e a gente vai fazendo essa troca e aprendendo junto, combinado?
Primeiro, vamos saber um pouco sobre o autor e o tempo de produção da obra. José Martiniano de Alencar foi escritor, advogado, trabalhou como jornalista e político também. Nasceu em 1829, no Ceará, e morreu em 1877, com apenas 48 anos, no RJ. 
Foi um dos principais autores do romantismo brasileiro, tendo publicado tanto na fase indianista quanto na fase romântica. Da fase indianista, destaque para Iracema e O guarani, sendo que O guarani serviu de inspiração para a ópera de mesmo nome, do maestro Carlos Gomes. Alencar participou da Academia Brasileira de Letras, indicado por Machado de Assis. O pai do José de Alencar foi senador do Império, então a família muda para o RJ quando ele ainda é criança. Na política, Alencar defendia um governo forte e a abolição gradativa da escravatura. Daí as críticas atuais ao escritor, que não teve um posicionamento humanitário. 
Alencar escreveu romances históricos, indianistas, regionalistas, mas Senhora é de uma fase de textos urbanos, quer dizer, que têm como cenário a cidade. Senhora é um perfil feminino, e Alencar escreveu outras protagonistas femininas, como Iracema e Lucíola. Senhora é de 1875, portanto um dos últimos livros dele, publicado pouco antes de morrer. Aliás, mesmo ano de lançamento do romance realista O crime do padre Amaro, de Eça de Queiroz, que eu fiz a leitura comentada aqui no LO entre os episódios #70 e #81. A protagonista de O crime é Amélia e a de Senhora é Aurélia, se eu confundir, já sabe que é porque fiquei viciada lá do outro romance. Então, olha só, em Portugal tava começando o realismo e aqui ainda bombando o romantismo romântico, a segunda geração do romantismo, que foi o período literário que antecedeu o realismo e ao qual o realismo se opõe. Lembra quais são as diferenças entre o romantismo e o realismo? No romantismo as relações são idealizadas, as mulheres são belíssimas e às vezes inatingíveis, e as narrativas contam com umas soluções pouco verossímeis, como alguém recebe uma herança e fica muito rico, as personagens têm personalidades muito extremadas, então se alguém é bondoso, é muito bondoso, se algum personagem é o vilão, então é muito malvado. Já no realismo é mais a vida como ela é. As mulheres são descritas mais semelhantes ao que são em realidade, uma manca, a outra é feia, assim vai. As personagens sofrem com as vicissitudes da vida, não acontece mágica pra tornar a trajetória da personagem maravilhosa. As personagens não são tão planas, no sentido de ou boas ou más. São mais redondas, os mesmos que ora são bons, apresentam defeitos. Assim como a gente é. Lembra que a Amélia, de O crime do padre Amaro, tem buço, não é uma boneca de porcelana perfeita. E Amaro não era um cara ruim, mas foi ficando mal caráter, foi se corrompendo. E vocês, preferem narrativas do romantismo ou do realismo?
Alencar escreveu outros perfis de mulher: Lucíola, em 1862, Diva, em 1864, e Senhora encerra essa trilogia. Com esses 3 livros, é como se Alencar reforçasse às leitoras quais eram os comportamentos adequados das damas da sociedade, eram manuais de conduta das boas moças. A trilogia também é chamada romances de costumes, quando agrupados com outros títulos do autor, do mesmo período, como Cinco Minutos, de 1856, A viuvinha, de 1857, A pata da gazela, de 1860, e Sonhos D’Ouro, de 1862. Alencar produziu tanto, que existem formas diferentes de classificar sua obra, entre os críticos. 
Como é que era o contexto brasileiro no lançamento de Senhora? Em 1875, o Brasil era Império e a capital era o Rio de Janeiro, então os bailes a que o texto se refere são bailes da corte. A proclamação da República acontece somente em 1889. A economia brasileira era baseada no setor rural e as cidades estavam em crescimento, com muita gente ainda vivendo no campo. O século XIX foi um período de muita mudança no mundo. Foi quando aconteceu a Revolução Industrial, a divisão da África em colônias de países europeus, houve mudanças em todas as áreas de conhecimento, como a publicação de A origem das espécies, de Charles Darwin, surgiram as ciências Psicologia e Sociologia, e o marxismo, a teoria filosófica de Karl Marx. 
A protagonista de Senhora é Aurélia Camargo, uma moça órfã, mas com muita firmeza de caráter. É uma obra da segunda geração do romantismo, portanto é um texto em que as relações são idealizadas. Lembrando que o romantismo teve a fase nacionalista ou indianista, depois a fase ultrarromântica e por fim a fase da geração social, com inspiração em crítica social e mudanças de cunho da organização da sociedade. Dessa última fase Alencar não participou, que aliás ele nem queria mudar nada na sociedade, que ele tava de boas com o Brasil escravocrata. 
O romance Senhora é dividido em quatro partes, nomeadas como transações comerciais: São elas preço, quitação, posse e resgate. José de Alencar está fazendo uma representação de como era a sociedade do RJ no final do século XIX, e o casamento de conveniência era uma das práticas da época. Que que é isso, casamento de conveniência? Nas famílias aristocráticas, nas famílias ricas, as noivas tinham que entregar um dote ao noivo, e assim era como se noivos fossem quase que comprados. Noivos de sobrenome importante não aceitariam dotes ruins, e noivas de famílias mais ricas podiam escolher melhor o noivo. Só que com isso o casamento ia adquirindo um status comercial. Já que tinha altas somas em dinheiro envolvido, os pais tratavam de escolher para os filhos os pares que fossem mais convenientes para alavancar os negócios da família, ou escolhiam juntar noivos cujos pais fossem aliados políticos, e assim por diante. Por isso casamentos de conveniência. Aí, nesses casamentos, não era raro que a afinidade entre os noivos, o sentimento ficasse em segundo plano. Em Senhora, eu acho que dá pra dizer que Alencar tá fazendo uma crítica ao teor comercial dos casamentos dos ricos, nesse período. Lembrando que esse romance está inserido na estética da segunda geração do Romantismo, um período que idealizava o sentimentalismo nas relações. A primeira recepção, os primeiros leitores dessa obra, não devem ter recebido como uma crítica, mas a gente pode ler assim. 
O romance Senhora inicia com uma carta ao leitor, em que ele diz que essa história não é dele, que ele escutou essa narração, e que seria uma história verdadeira. Essa é uma técnica literária pra criar veracidade, pra gerar um efeito de veracidade da história entre os leitores, isso do escritor ter recebido de alguém a narração, como se fosse uma história verdadeira, anunciado no início do romance. E aí o autor diz que até pensou em relativizar alguns exageros do textooriginal, que tem muita exuberância e afouteza da imaginação, bem assim, afouteza, mas que deixou porque pensou que alguns leitores podem gostar exatamente disso. Vocês vão ver que algumas palavras eram escritas e pronunciadas de forma diferente quando essa obra foi escrita. Por exemplo, o narrador usa “cousas” ao invés de “coisas”. E percebam como o narrador se ocupa em descrever o semblante de Aurélia, as mudanças na fisionomia conforme as emoções da protagonista mudam. É um narrador em terceira pessoa, muito atento à protagonista. 
Eu não vou ler a obra na íntegra, só os fragmentos principais e que eu quero comentar. Assim, quem já conhece o livro, relembra, e quem não leu ainda, fica com um panorama e quando for ler vai ter algumas novidades, combinado? Então, vamos à leitura!
***
Esse foi o início de Senhora, de José de Alencar. O romance começa in media res, que é uma expressão latina pra “no meio das coisas”. Essa é uma técnica literária em que as narrativas não começam do início, mas do meio da história, e depois o texto volta no tempo diegético, ou tempo da narrativa, pra contar o início. Começa de um ponto no meio e volta pro início e retoma a história. 
A narrativa acontece em uma época em que mulheres não podiam circular sozinhas, ou seriam mal faladas. O narrador começa a história de Aurélia Camargo como sendo uma história do passado, como a gente vê pelas frases “Há anos raiou no céu fluminense uma estrela” e pra dizer que dona Firmina acompanhava Aurélia porque “a sociedade brasileira naquele tempo não tinha admitido ainda certa emancipação feminina”. Então ficamos sabendo que o espaço onde a narrativa acontece é o Rio de Janeiro e que foi em um tempo passado, e que a sociedade já mudou um pouco em relação às mulheres desde aquele tempo. 
O narrador apresenta Aurélia como linda, mas irônica. E dá pra sentir no tom desse narrador que beleza e ironia são antagônicas, não deveriam aparecer no mesmo corpo. Como se a beleza não suportasse um semblante irônico, ou a ironia não comportasse beleza. E há a pressuposição do narrador de que toda moça é um anjo casto e puro. Aurélia apresenta muita maturidade pra sua idade. Ela sabe, por exemplo, que as pessoas que a cercam admiram o seu dinheiro, não ela como ser humano. Considerava o ouro um vil metal que rebaixava os homens. Nos próximos episódios a gente vai saber que tem motivo pra Aurélia pensar assim. E é um hábito dela atribuir determinado valor a cada um dos pretendentes, já que todos eles só se interessam por ela pelo dinheiro. 
A linguagem desse romance é um tanto rebuscada, com palavras que já caíram no desuso. Muitas frases estão fora da ordem direta, o que pode dar um cansaço na gente. E no início do romance, na descrição de Aurélia, a linguagem busca um refinamento, uma grandiloquência, que pode soar estranha ao leitor contemporâneo. É uma linguagem muito formal, mas a gente tem que lembrar que é um texto de 1875. É anterior, por exemplo, aos clássicos do Machado de Assis, Memórias póstumas de Brás Cubas e Dom Casmurro. Reparem que a descrição da mulher que acompanha Aurélia, a Dona Firmina, é a de uma senhora quase idosa, e ela é uma mulher de 50 anos. Porque naquele tempo uma mulher de 50 anos já era muito envelhecida. E houve mudança na nomenclatura das refeições, porque chamam a refeição das 9h da manhã de almoço.
Aurélia comunica o tio e tutor de que decidiu por um noivo, só que o dito cujo está comprometido com outra. Aurélia sabe que essa moça prefere outro noivo, que é pobre e, por isso, a família não aceita. Muito providencial que tivesse um outro noivo pra essa moça. Isso porque estamos vendo uma obra do romantismo. Fosse no realismo o desenvolvimento do enredo poderia ser outro, com as coisas não se resolvendo tão redondinhas assim. Fosse um romance realista, a outra menina ia ficar a ver navios. 
O tutor é o tio de Aurélia, e ele fica impressionado com a clareza que ela tem sobre negócios. E aí o narrador diz algo que era um consenso da época, de que mulheres eram mais coração e homens mais cérebro, e que Aurélia contraria essa máxima. Vejam quanto machismo está embutido nessa mentalidade, de que mulher é apenas sensibilidade e de que homem não poderia ser sensibilidade, e que mulher não racionaliza e homem somente racionaliza. 
O casamento é apresentado como o ponto alto da vida da mulher, e quando Aurélia toma a decisão, o narrador diz que é uma decisão que pode sacrificar irremediavelmente todo o seu futuro. Quer dizer, uma mulher decente, naquele contexto social, uma vez casada, não teria chance de mudar de ideia, se separar, nada. O divórcio só foi oficialmente instituído no Brasil em 1977, e a narrativa em Senhora, apesar de ter sido publicada em 1875, se refere ainda a um tempo anterior, porque o narrador usa as expressões “naquele tempo” e o próprio autor diz que recebeu essa história de alguém que soube, quer dizer, é algo de um passado remoto, em que as possibilidades de mudança na vida de uma mulher casada eram pequenas. Ou seja, o tempo dos acontecimentos em Senhora é mais de 100 anos anterior ao direito de divórcio no Brasil, daí a importância que a decisão do casamento tinha na vida da mulher. 
A protagonista se refere ao casamento como a sua única possibilidade de felicidade. Para a maioria das mulheres do século XIX as possibilidades de felicidade eram bem restritas mesmo. Elas não podiam ter uma carreira, não podiam ser artistas, não podiam ser criativas, não podiam ser inovadoras em nenhum campo de ação. Sobrava só casar. E como descasar não era uma opção, ai de quem não casasse bem. Que tempos!
Aurélia comenta que teve a experiência de ser pobre por 18 anos e só é rica recentemente. Pela leitura do próximo episódio, vamos saber como se deu essa transição de extrato social, que também não era algo muito comum no período dramatizado. E vamos saber também qual é a história por trás da escolha do marido de Aurélia. Ela escolheu um certo homem, que ainda não sabemos o nome, mas corrige o tio quando ele fala que será um casamento romântico e trata do assunto como uma transação comercial o tempo todo. Inclusive ela quer que o combinado entre ele e o tio fique registrado em contrato. No entanto, parece que ela quer muito este marido especificamente, porque vai até pagar para desmanchar o noivado dele com outra. O que será que aconteceu entre esses dois, ou será que ele nem conhece Aurélia?
O pesquisador de Senhora, Renato Drummond Neto, na sua dissertação de mestrado defendida em 2017, na Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia, escreve que o romance de José de Alencar é praticamente destituído de atrativos pra o leitor contemporâneo. Mas a gente lê pela importância do autor na literatura brasileira, pela sua importância histórica na formação do nosso sistema literário, ou porque a gente pesquisa literatura do século XIX. Enfim, é o tipo de autor e obra que quem é da área tem que conhecer. E eu vou tentar estabelecer algumas relações com a nossa realidade e de que forma esse livro pode desdobrar significados ao leitor do século XXI. 
Hoje eu iniciei a leitura comentada de Senhora, de José de Alencar. No próximo episódio, continuamos com esse clássico água com açúcar. Fiquem bem, um abraço e até lá!
#88 PARTE 2
Olá, ouvinte! Aqui é o Literatura Oral, podcast de leitura comentada e de sugestões literárias. Eu sou Sabrina Siqueira. Como é que vocês estão?
Pessoal, bom dia pra quem sabe que racismo é crime. E uma boa forma de parar o racismo é não alimentando os racistas. Por exemplo, não comprando em empresas que declaradamente financiam governos racistas, como é o caso de uma rede de departamentos. Aí tem essa atriz, que ela e o marido têm discurso antirracista e antifascista, mas ela faz propaganda pra essa loja de departamentos que abertamente apoia Bolsonaro, e a loja é a Riachuelo. E os filhos da moça, adotados e pretos, passaram por uma situação criminosa em que foram vítimas de racismo recentemente, e esse casal tem todo um discurso em defesa dos filhos e contra a atitude criminosa que é o racismo,obviamente. Mas ela faz comercial, empresta sua popularidade pra esse rede, que é parceira e incentivadora do governo federal atual. E aí, será que uma coisa não tem nenhuma relação com a outra? Será a rede de departamentos que apoia o governo Bolsonaro não é racista, faz sentido que se manifeste a favor do governo que é? Ou será que a atriz pensa assim, ah é melhor que o investimento em publicidade dessa loja venha pra mim, que vou fazer um bom uso e investir em conscientização de justiça social. Será que é isso? É a segunda vez que eu falo nesse caso, dessa atriz, aqui no LO. Porque eu acho um contrassenso tão grande, na minha cabeça a conta não fecha. 
Enquanto as empresas que apoiam o governo do qual a gente discorda continuarem lucrando, o governo continua forte. Mais uma vez também eu aqui incentivando o boicote a todas as marcas que se declaram apoiadoras do governo Bolsonaro. O posicionamento da gente, de contrariedade contra o que nos prejudica, deve ser ativo e consciente. Não bobinho e circunscrito a post em redes sociais. Tu fortalece as marcas onde coloca o teu dinheiro e a tua atenção. E por falar em atenção, te inscreve no meu canal e deixa um like neste episódio. Pode parecer que esse assunto não tem nada a ver com o episódio, mas o autor José de Alencar era político no Brasil Império e defendia a manutenção da escravidão, ou uma ruptura vagarosa com as estruturas escravocratas. A nossa abolição tardia e capenga da escravidão é uma das causas do racismo persistente no Brasil, até hoje. Ou seja, Alencar tem tudo a ver com esse assunto. Aliás, se Alencar estivesse vivo, eu adivinho em quem ele votaria em outubro. Mas mesmo assim, a gente não precisa desconsiderar o trabalho literário dele, até mesmo como forma de abordar essas questões sociais. 
O último post do Literatura Oral foi uma faixa bônus, em que conversei com a professora dra. Valéria de Castro Fabrício, sobre a peça grega Lisístrata – A greve do sexo, de Aristófanes. Hoje eu sigo a leitura comentada do romance Senhora, de José de Alencar. 
A gente já viu que a protagonista Aurélia é uma moça rica e órfã, e que ela encarregou o tutor de tratar do seu casamento, sendo que o escolhido é noivo de outra menina e Aurélia vai pagar para ela ter outro noivo. Nada como ter dinheiro, neahm? Senhora é um romance de 1875, inserido na estética da segunda fase do romantismo, que é a fase ultrarromântica. 
A narrativa se desenrola em um outro tempo histórico, em que os casamentos eram arranjados com dotes, as mulheres ficavam debruçadas nas janelas esperando os rapazes passarem. Pra vocês verem como o mundo mudou, que agora tanto moças quanto rapazes não precisam ficar mais na janela, porque ficam nos aplicativos de encontro! Continuamos numa espécie de janela, mas muuuito mais prático! Imagina o vento no inverno, estando na janela! E o sol, no verão! Então, se tu vai fazer vestibular e tem essa obra como indicada, pode vir uma questão relacionando como essa prática social de encontrar parceiros evoluiu. O que antes era exposição das moças na janela e os homens caminhando e olhando as mulheres nas janelas, hoje são os perfis em aplicativos. 
Eu terminei a leitura do último episódio com a apresentação de Seixas, um homem de menos de 30 anos. O narrador inicia a apresentação pela casa dele, pra contrastar entre a pobreza da casa e o luxo com que ele vive. O narrador realça a alvura da pele de Seixas. A descrição do pé, que é arqueado na forma aristocrática. Ser aristocrata significa que a pessoa nasceu em determinada família, com posses e títulos, e isso não tem nada a ver com características físicas. Dizer que o pé, que o arco é na forma aristocrática é tão absurdo quanto quando os nazistas diziam que ter olhos azuis era sintomático de superioridade racial, é uma bobagem preconceituosa. Com essa valorização de determinadas características físicas, principalmente a branquitude, o escritor José de Alencar colabora para reforçar na mentalidade brasileira uma suposta superioridade racial, na qual ele provavelmente acreditava, tendo em vista seu posicionamento diante da manutenção da escravidão. Só que imaginem como é que bate pras gerações e gerações de crianças pretas que precisaram ler esse livro no colégio? 
Quando Lemos visita Fernando Seixas pra fazer a proposta de casamento, ele inventa uma mentira e se apresenta como Ramos. Algumas palavras diferentes que vão aparecer na leitura de hoje são “borbotou”, quando Lemos entra na casa de Seixas, borbotou significa surgir, brotar de uma só vez. Outra palavra é “cautério”, que significa medicamento.
Então vamos à leitura. Seguimos dessa parte em que o narrador fala em Fernando Seixas:
*** 
Na leitura de hoje, vimos que Seixas é mimado pela mãe e pelas duas irmãs e o narrador cita que o que ele possui em obras de arte vale mais que a mobília da casa. Ele frequenta a corte, mas as irmãs, não. Se contentam em perguntar como foi o baile. E ele conhece Aurélia, do tempo em que ela foi pobre e ficava na janela, obrigada pela mãe, pra tentar achar um marido.
Numa parte que eu suprimi da leitura, o narrador conta que Seixas às vezes faz companhia a esposas de figurões para obter favores, conseguidos pela influência das esposas junto aos maridos. Me dá a entender que Seixas agia como gigolô. Mas a mãe e as irmãs eram inocentes e torciam por esses encontros dele, já que ele confidenciava tudo pra família. E aí o narrador faz um comentário machista de que ao confidenciar esses assuntos às irmãs, Seixas podia estar despertando nas moças alguns desejos que mulheres recatadas nunca poderiam ter, mas que graças à educação rígida que as irmãs dele tiveram, ficou tudo bem, elas continuaram abnegadas e a casa continuou como um santuário. E com isso a gente percebe mais um pouco da mentalidade da época da escritura desse romance, que entendia que mulheres não podiam entrar em contato com determinados assuntos para não terem os desejos despertados. E o perigo que representava mulher ter desejo, porque poderiam agir fora do que as regras da sociedade patriarcal determinava. A mulher, para ser considerada correta, não poderia comunicar desejos, muito menos vivenciar esses desejos de ordem sexual. Somente aos homens estava permitido explorar livremente a sexualidade. Mas então os homens iam vivenciar a sexualidade com quem, se as moças estavam proibidas de ter qualquer liberdade com o próprio corpo? Considerando que os homens não fossem ter relacionamentos entre eles, porque os relacionamentos homoafetivos não eram nem mencionados. Percebem que essa mentalidade quase que pressupõe a necessidade da existência da prostituição? Por um lado, eram necessárias mulheres que não fossem as recatadas e do lar para interagir com os moços da sociedade, e por outro lado qualquer menina que desse asas aos seus impulsos e ainda não fosse casada, corria o risco de ser colocada pra fora de casa e, não existindo possibilidades das mulheres se sustentarem, ingressarem no mercado de trabalho, sobrava a essas a prostituição. Prostituição que por sua vez era tabu e era também crime. Ou seja, uma engrenagem social em que a mulher ou é tolhida ou é jogada no que era considerado atividade criminosa. 
Ao longo do romance, a ideia de que o casamento é a solução pra todos os problemas na vida da mulher é reforçada. O casamento é o pote de ouro no fim do arco-íris, na narrativa de Senhora, a garantia de felicidade eterna pra mulher.
É contraditório que Seixas relute em aceitar a proposta, com um dote melhor, sendo que ele só pensava em luxo e em viver bem. Mas essas contradições, quando aparecem nas personagens, podem significar uma composição mais elaborada da personagem, mais aprofundada. 
A mãe de Seixas vive de rendimentos e do aluguel de dois escravos. Isso é dado como normal dentro da narrativa, até porque é algo que acontecia na sociedade brasileira na época em que Alencar escreveu Senhora. O que não pode é passar batido na nossa leitura. Seixas consome sozinho mais que o triplo necessário pra sobrevivência de toda família e vive umadupla identidade, em casa pobre e na rua botando banca. Esse é o crush da Aurélia. 
Aurélia lê George Sand e se entedia um pouco. É interessante essa escolha de Alencar para o que Aurélia está lendo quando Lemos chega na casa dela pra falar sobre o casamento. George Sand é o pseudônimo da escritora francesa Amandine Aurore Lucile Dupin, que viveu no século XIX. Se hoje ainda é mais difícil mulheres conseguirem chamar atenção das editoras, imagina naquela época. Pra conseguir publicar, Amandine, mesmo sendo aristocrata e ousada pra época, precisou recorrer a um pseudônimo masculino. Eu disse que ela foi ousada e moderna porque ela teve coragem de tomar certas atitudes que a maioria das mulheres nem sonhava. Por exemplo, ela se divorciou do primeiro marido, isso em 1836. Aí começou a escrever pro jornal Le Figaro, o que também era uma inovação. Os romances que ela começou a escrever eram publicados primeiro como folhetins no jornal. E nesses romances ela escrevia sobre o direito das mulheres administrarem a própria vida. Só com um pseudônimo masculino pra conseguir publicar algo assim no século XIX. Aurélia, protagonista de Senhora, é uma mulher que administra a própria vida, portanto tudo a ver ela estar lendo essa mulher que já falava sobre isso. A escritora Amandine ainda se vestia com roupas masculinas, pela praticidade, fumava em público, o que não era bem visto, e teve vários relacionamentos, entre eles o músico Chopin. A Aurélia, do Alencar, não chega a tanto. A modernidade da Aurélia fica restrita a administrar a fortuna que ela herdou e a decidir com quem ela quer casar. 
O narrador diz que a voz de Aurélia é como “o ranger de diamante no vidro”, mas quem é que conhece esse som, gente? Essa descrição faz da protagonista uma personagem um tanto quanto fantasiosa, longe do que a gente poderia referenciar em uma pessoa real. Com isso, o autor dá à protagonista uma aura de idealização, que é uma característica da segunda fase do Romantismo, exatamente o período em que Senhora está situado. Lembra das mulheres dos poemas de Álvares de Azevedo, por exemplo, meio fantasmagóricas, irreais, vaporosas. As mulheres da segunda fase do Romantismo não remetem a seres humanos de carne e osso. Lembro a vocês que tem Álvares de Azevedo com Noite na taverna no episódio #21 do LO. 
Lemos pensa que Seixas pede os 20 mil reis para usar no Alcazar – teatro que de fato existiu no RJ inspirado nas casas de espetáculos parisienses. O tutor mente que receber o dinheiro é condição pra Seixas aceitar o casamento, sendo que o trato já estava feito. E retira algumas notas pra si, antes de entregar o dinheiro. Com isso, o narrador nos mostra a personalidade do tutor, que é uma personagem na qual não dá pra confiar. 
Quando a mãe de Seixas vai falar no namoro da filha, mais uma vez relacionamento é tratado como negócio dentro da obra, reforçando o caráter comercial que o casamento tem neste livro. A mãe não tem acesso ao dinheiro no Banco. Isso nos diz do papel relegado à mulher no século XIX. 
Seixas assina o ponto na repartição pública e sai, uma crítica ao funcionalismo público que não cumpre o expediente. Quando Seixas vai à casa da noiva, conhecer finalmente com quem ele vai se casar, o tutor da moça mente que ela não sabe do arranjo, então que ele ainda não diga nada, que guarde segredo. E aí ele descobre que vai casar com a moça que via na janela, quando ela era pobre, Aurélia Camargo. Aliás, vocês notaram como todas as personagens neste romance têm sobrenome? É porque a narrativa é sobre uma sociedade na qual o sobrenome importa e muito. A linhagem familiar, as aparências. E no fim é tudo um jogo de aparências, com mentiras, casamentos arranjados, hipocrisia. Será que era assim mesmo na sociedade carioca do Brasil Império? A hipocrisia e o jogo de aparências não terminou completamente, né?
Falando um pouco sobre o autor, José de Alencar, o crítico literário Antonio Candido, no livro Formação da Literatura Brasileira: momentos decisivos, dividiu a obra de Alencar de acordo com as temáticas abordadas em Alencar dos rapazes, Alencar das mocinhas e Alencar dos adultos. Em Alencar dos rapazes entram os livros com aventuras, exploração de territórios diferentes para os leitores do RJ, narrativas heroicas, como O Guarani, Ubirajara, O Sertanejo, O Gaúcho e As Minas de Prata. São romances condizentes com a primeira fase do romantismo, a fase indianista ou regionalista. Em Alencar das mocinhas entram os romances com protagonistas femininas, ao gosto das jovenzinhas da época e classificados dentro da segunda geração do romantismo. Antonio Candido classificou como “das mocinhas” os romances Cinco Minutos, A Viuvinha, Diva, A Pata da Gazela, O Tronco do Ipê e Sonhos d’Ouro. E em Alencar dos adultos, Candido colocou romances em que Alencar teria colocado homens e mulheres em quase um mesmo plano de igualdade, no sentido de um amadurecimento interior. Nessa classificação entram Lucíola e Senhora, de acordo com Candido. Mas percebam que os romances de Alencar para adultos também estão vinculado ao ultrarromantismo ou segunda fase do romantismo. Eu, se fosse fazer essa classificação, colocaria esses dois romances também no balaio das mocinhas, mas a classificação é do Antonio Candido, que ninguém nem me pediu pra classificar nada. De fato, Aurélia é uma mulher um tanto emancipada pras mulheres da época, mas é só porque ela recebe uma herança e pode se mostrar desse jeito. Então, ela não é um tipo que fosse visto na sociedade com frequência, ela continua no plano da idealização feminina da segunda geração romântica. Fora as descrições do narrador, sugerindo que ela oscila entre um ser angelical e um ser fora do comum, como se nem humana fosse. Notem que ela tá bem distante de parecer com alguma mulher comum e que tivesse representação na realidade. E mesmo sendo emancipada no setor da administração das próprias finanças, ela sente a necessidade de ter um marido e acatar o protocolo social da época. E não aparece na sociedade sozinha, precisa da companhia da viúva antes de casar. Quer dizer, ela ainda é submissa às convenções. Candido diz, na pág. 208, que ao usar o seu dinheiro e poder para escolher o noivo que havia trocado ela por outra quando ela era pobre, Aurélia tem um estranho recalque sádico-masoquista. De novo, eu não concordo com Candido quando ele diz “estranho”. Seu Candido, talvez as mulheres fossem mais vingativas, se pudessem, se tivessem dinheiro, o senhor é muito inocente. 
Por hoje, fico por aqui. No próximo episódio, sigo a leitura comentada de Senhora, romance de José de Alencar. 
#89
Olá, ouvinte! Aqui é o Literatura Oral. Eu sou Sabrina Siqueira e estou fazendo a leitura das partes principais de Senhora, romance clássico do cearense José de Alencar. Um autor nordestino, portanto. Assim como Graciliano Ramos, alagoano, e Ariano Suassuana, paraibano. Entre tantos outros talentos nordestinos. Viva o nordeste! 
Antes de começar o episódio de hoje, deixa eu comentar novamente sobre uma expressão que toda vez que eu leio ou escuto, eu fico achando que pode ser dita de forma mais adequada. Aqui no Literatura Oral, a gente interpreta textos literários com o objetivo de aprimorar a nossa leitura dos textos que nos cercam, não apenas os literários. Então, ficar atenta ao que vem sendo dito e não repetir informações sem pensar criticamente sobre o que a gente tá falando, é também do meu interesse. Com relação àquela opinião de que a Terra seria plana, eu continuo vendo que muitos contrapõem esse argumento dizendo que não é plana porque é redonda. Eu até já falei sobre isso aqui, em outro episódio. O termo mais adequado para contra argumentar sobre a Terra ser plana, me parece que seja dizer que é esférica, cheia, como uma bola de futebol. Porque plana se refere a volume, não à forma. Redonda se refere à forma, esférica se refere a volume. Um objeto pode perfeitamente ser plano e redondo, como uma pizza, ou uma moeda. E esse pessoal defensor de que a Terra seria plana não nega o fato de que ela é redonda. Faz sentido?Se não, se eu tô falando bobagem, deixa teu comentário aqui explicando melhor. Mas isso é só um exemplo de como a gente deve receber cada informação com criticidade e não sair simplesmente repetindo as coisas sem pensar. Bom, já me aventurei em volume dos sólidos, assunto do qual não entendo nada, deixa eu voltar rapidinho pro meu território, que é a Literatura.
No último episódio aqui do LO, vimos que Seixas conhece a noiva Aurélia e ela finge que não sabe do arranjo do casamento. Arranjo esse determinado por ela própria, que queria oferecer um dote a Seixas porque ele havia a rejeitado anos atrás, quando ela era pobre. Aí reviravoltas de romance romântico, Aurélia ganha uma herança, fica podre de rica e manda o tutor arrumar o casamento com esse crush do passado. 
O romance Senhora foi publicado em 1875 e pertence à segunda geração do romantismo, que é a fase de ultrarromantismo, com relações idealizadas e mulheres descritas muito diferentemente do que são as mulheres da realidade. José de Alencar fez parte da elite política e intelectual do Brasil Império, e escrevia sobre os costumes e as práticas desse grupo, como os casamentos arranjados. 
Na dissertação O Império e a Senhora: memória, sociedade e escravidão em José de Alencar, Renato Tapioca Neto escreve que os romances do autor permitem avaliar, por exemplo, os comportamentos que provavelmente eram adotados pelas mulheres durante o período do segundo império. E aí ele contrasta esse ideal alencariano de feminilidade, que devia ser o ideal patriarcal da época, com o que pensavam algumas mulheres oitocentistas, como as que tinham oportunidade de se expressar por meio da imprensa. E uma dessas mulheres citadas na dissertação dele é Josefina Álvares de Azevedo, que no final do século XIX esteve à frente do jornal A família, e escrevia defendendo o direito da mulher não apenas votar, mas ser votada, ocupar cargos públicos, ser eleita. O episódio #56 do LO é sobre a Josefina. Se tu ainda não escutou, depois de ouvir este, procura o episódio sobre a peça dela, O voto feminino, que tá bem legal. Por falar nisso, aproveita, te inscreve no canal e deixa teu like pra que este episódio chegue a mais pessoas. E uma outra mulher influente no final do século XIX e que contraria o ideal de feminilidade alencariano é Nísia Floresta. O ideal de feminino que as heroínas de Alencar ensinam é a mulher que só atua na vida privada e quando aparece na esfera pública é como um enfeite nos bailes. Ou ela aparece pra arrumar marido ou para ser um acessório do marido. E Nísia Floresta, assim como Josefina, pessoas reais que circulavam pelo RJ enquanto Alencar escrevia seus romances, era emancipada. Nísia fundou colégios para meninas e morou em vários Estados. Mas, claro, essas duas mulheres eram exceções na sociedade do segundo reinado. Aqui no LO também tem episódio sobre Nísia Floresta. É o episódio #41. 
No início do romance Senhora, o narrador conta que recebeu essa história de alguém que testemunhou os acontecimentos, o que é uma forma de aproximar a narrativa fictícia da realidade e a narrativa teria acontecido em um tempo no passado. Alencar escreve Senhora numa época em que havia de fato uma corte no RJ, porque o Brasil vivia o segundo império, que é o reinado de Dom Pedro II. Em relação à corte imperial, existia por parte da maioria da população uma certa curiosidade e devaneio sobre os bailes e festas. Então, situar a narrativa na corte busca convencer o leitor de uma possível veracidade, já que os reles mortais não sabiam direito o que se passava nos bailes da corte. Como é um ambiente a que a maioria das pessoas não tinha acesso, bem podia ser que alguém fora do comum como uma Aurélia Camargo tivesse de fato existido. Aurélia é uma personagem que lê. Mesmo tendo sido muito pobre, aprendeu a ler, ainda que muitos pobres fossem completamente analfabetos no Brasil império. Já começando por aí, ela é uma exceção.
O RJ do segundo reinado é uma cidade que importa muitos produtos da Inglaterra, segue a moda e a estética da França e onde a aristocracia procura fazer com que a escravidão exista de forma invisível, seja algo dado como natural e óbvio. E assim é com a escravidão nos romances de Alencar. Mas Senhora, especificamente, trata do tema da escravidão fora do convencional, uma escravidão que não é a real, de raça, mas uma escravidão distorcida dos homens que se vendiam por dotes para casamentos arranjados. Só que é uma escravidão até por ali, porque é uma escravidão em que o escravo concorda espontaneamente com o acordo e vive muito bem, é uma escravidão disfarçada. É mais um acordo comercial do que escravidão, e nesse ponto, então, se aproxima até mais da prostituição. 
A personagem Seixas, quando aceita a transação comercial do casamento com Aurélia, usa essa palavra, escravo, diz que se tornou um escravo branco, que se vendeu. Só que tem uma distância enorme da escravidão do escravo branco e do preto, né?
Senhora foi publicado em 1875 e é interessante a gente olhar um pouco para como estava o espaço urbano do RJ de quando Alencar escreve esse romance. Entre as décadas de 1850 e 1870 aconteceu a era Mauá, que recebeu esse nome pelos feitos do Barão de Mauá, um político e industrial. Na era Mauá, aconteceram investimentos na área industrial, implantação de estradas de ferro, iluminação a gás em algumas ruas do RJ, nas principais, não nos becos onde moravam os pobres. Algumas ruas foram calçadas com paralelepípedos, criam uma inicial rede de esgotos e de abastecimento de água em moradias do centro. Sempre essas melhorias só nas ruas em que moravam pessoas brancas com algum poder aquisitivo e onde os turistas estrangeiros iriam circular. Os pobres, escravizados, pretos, eram sempre alheios às reformas urbanas e continuavam vivendo sem esgoto, sem água encanada. Aliás, ainda hoje existem lugares no Brasil sem rede de esgoto e tratamento de água. Enquanto isso, o presidente que só sabe falar em armas quer se reeleger! 
O pesquisador Renato Tapioca Neto diz na dissertação dele que Alencar se colocou algumas vezes contra a importação de costumes europeus para o Brasil, por ser um conservador, e teria expressado essa opinião em crônicas e em vários romances, incluindo Senhora. Então, o RJ do tempo do Alencar tem esse contraste, por um lado quer se mostrar como uma cidade europeia, por outro, era uma sociedade escravocrata. O império se pretendia civilizado, mas era só fachada, era escravista. Metade da população do RJ na época era de escravos. E Alencar fazia parte do grupo que podia frequentar a corte, as festas e tudo. Ele opta por quase não fazer referência nenhuma aos escravos e às epidemias que assolavam a cidade nos verões. O RJ de Alencar é uma cidade quase sem escravos e sem doenças, que não tem tanta similaridade com a cidade real em que o autor morava, portanto. 
A crítica que Alencar faz aos casamentos de conveniência pode ser uma analogia da escravidão, porque a concessão dos dotes pelas noivas, ou pelos pais das noivas, se assemelha à compra de peças humanas. Só que uma analogia bem branda, porque nos casamentos o marido não perde a liberdade. Esses casamentos com dotes aconteciam entre pessoas com dinheiro, porque entre os pobres os casamentos dependiam mesmo de afeição mútua. Aí se uniam pra compartilhar a miséria. É dessa prática que vem a expressão “bem-dotada”, quando determinada moça tinha um dote bom a oferecer e consequentemente era considerada uma mercadoria de valor no mercado de matrimônios. 
Na dissertação de Renato Tapioca Neto, ele fala que os bailes da corte poderiam ser comparados a um mercado de escravos, onde as peças humanas eram expostas à apreciação dos compradores. O casamento com a Aurélia no tempo que ela era pobre tinha sido rejeitado por Seixas por representar um mau negócio. Com ela, ele teria que trabalhar, e ele só queria fazer bonito nos bailes da corte, queria um sogro que impulsionasse a carreira política dele pra passar a vida fazendo nada. Seixas dava muito valor à aparência porque ele via na possibilidade de um casamentobom um projeto de vida, uma chance de ascensão social. Nesse período e para alguém como Seixas, homem branco, que teve acesso a estudo, era perfeitamente aceitável ver no casamento uma carreira, não era algo incomum ou visto com maus olhos pela sociedade.
Vamos à leitura? Lembrando que eu estou lendo as partes principais e pulando algumas descrições.
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Na leitura de hoje, vimos o casamento de Aurélia e Seixas. Logo depois da cerimônia, ela faz o testamento, em presença de um tabelião e de testemunhas. Todas as coisas de Aurélia são nas cores dourado, azul e vermelho. O papel do testamento, a decoração do quarto. Azul e dourado remetem às imagens de santas ou a imagens celestes, e o dourado ainda dialoga com o nome da moça, Aurélia, feita de ouro. 
Ela e o marido têm quartos separados e quando entra no quarto dele, Aurélia revela que organizou esse casamento como uma vingança. Notem que ela diz que o casamento é indispensável às mulheres honestas. Na época do romance, uma mulher, pra ser respeitada, tinha que obrigatoriamente ser casada. Será que o tratamento com as mulheres solteiras mudou, ou será que ainda é preciso casar para ser respeitada? Aí ela explica que Seixas estava no mercado, portanto ela o comprou, revelando o caráter comercial do casamento mais uma vez e aproveitando pra humilhar o cara que desfaz dela no passado por um dote maior. Ela se considera uma mulher traída e chama ele de vendido, o que ofende Seixas. 
Nesse trecho do romance, a gente percebe algumas características do enredo que enquadram essa obra como pertencente à segunda fase do romantismo, que é a fase de idealização dos relacionamentos. Porque apesar de ficar com raiva, o homem não perde a compostura e continua atento às normas da civilidade. Ele também não exige seus possíveis direitos de marido, por assim dizer. Porque fosse uma obra do realismo, que mostra narrativas mais aproximadas da vida real, essa personagem poderia não se ofender com o fato de ter sido chamado de vendido e ainda exigir que a noiva passasse a noite com ele, para consumar o casamento e garantir sua condição de marido da mulher rica, numa época em que as mulheres tinham muita preocupação com a reputação.
Entrei na leitura da segunda parte do romance, chamada “Quitação”. Nessa parte, o romance faz um flashback para quando os pais de Aurélia se conheceram e sabemos porque ela viveu até um ano atrás como pobre. Ela não era considerada herdeira, porque o pai é o que naquele tempo chamavam “filho natural”, ou seja, um filho fora do casamento e não reconhecido legalmente. A família da mãe também não aprova o casamento e se afasta. Assim, Aurélia só conhece o tio, Lemos, quando já é adulta. Lemos, que na atualidade da narrativa, ou no presente diegético, é o tio tutor dela. Ele se aproxima de Aurélia com a intenção de explorar a menina, que naquele momento ainda era inocente e crédula da bondade das pessoas. E o pai de Aurélia é mais uma personagem masculina de personalidade fraca nesse romance. Ele é covarde, não consegue enfrentar o pai e contar do casamento, assim como Seixas é vaidoso e preguiçoso, e Lemos é trapaceiro. Há também o moralismo da narrativa representado na crítica à mãe de Pedro Camargo, que morreu de vergonha do seu erro! Sendo que o erro foi ter se envolvido com um homem casado e foi um erro só da mulher, na opinião do narrador. O casado que engravidou essa mulher, aos olhos das convenções do século XIX, não cometeu nenhum erro e não precisa morrer de vergonha. Esse moralismo embutido na narrativa vai como recado às leitoras, como uma cartilha de comportamento, do que as mulheres podem ou não fazer se quiserem ser aceitas na sociedade. E assim, a culpa ou a responsabilidade vai sendo perpetuada sempre em cima da mulher.
Mais um dado sobre os casamentos do final do século XIX que a narrativa mostra é quanto à diferença de idade entre os noivos, sendo que as meninas eram consideradas aptas a casar e disputadas se tivessem um bom dote já a partir dos 15 anos. O pai de Pedro Camargo, vô de Aurélia, arruma uma noiva pro filho que acabou de fazer 15 anos, porque queria aproveitar o dote dela, sendo que Pedro tinha 36! 
E há também o preconceito com as pessoas pobres no fragmento que conta que um tropeiro que ajudou Pedro Camargo foi honesto e entregou à mulher o dinheiro que o marido enviou. Diz que foi “uma probidade da qual ainda se encontram exemplos nas classes rudes, especialmente do interior”! Eu já comentei que o escritor, José de Alencar, fez parte de uma elite do Brasil império e escrevia para as elites e sobre as elites, ao menos nessa fase de romances urbanos e de perfis de mulher. Então ele olha pro povo pobre, ou os seus narradores olham, com nariz empinado, com juízos de valor. Talvez Alencar não esperasse que um dia o povo estaria alfabetizado, lendo e criticando suas escolhas. Essas opções do escritor estão de acordo com valores da época. O problema é que o machismo, a responsabilidade pela gravidez e a crença de que pobre seria menos propenso à honestidade ou menos confiável são valores que atravessaram os séculos e chegaram ao nosso tempo tidos como normais. Tá mais do que na hora de mudar essa mentalidade. 
Quando explica que Aurélia aprende contabilidade com mais facilidade que o irmão, o narrador diz que, sim, algumas mulheres até são inteligentes, apesar de nunca atingir o vigoroso raciocínio do homem. Antes que a voz narrativa da obra literária cristalize a tua ideia de como eram as mulheres no século XIX, vamos lembrar que nem todas as brasileiras eram analfabetas ou donas de casa. 
Aurélia começa a aparecer na janela de casa, para se tornar conhecida e atrair algum pretende. Ela não queria, mas faz isso, porque a mãe está doente e tem medo que ela fique sozinha. Essa exposição na janela era um recurso das meninas que não podiam frequentar os bailes da corte para se tornarem conhecidas. Eu até comentei, no último episódio, da semelhança com os aplicativos de encontros de agora. É a mesma prática social de se colocar em exposição para conhecer parceiros. Só muda a interface, da janela de casa para os perfis online. 
E aí a personagem do tio se aproxima e vê na sobrinha uma possibilidade de lucro. Com a carta que ele deixa, fica a sugestão de que iria agenciar Aurélia como prostituta. Lembra que no episódio passado eu falei em como a estrutura social dessa época empurrava mulheres pobres para a prostituição? Por um lado, porque se as meninas tivessem qualquer experiência sexual antes do casamento, poderiam ser expulsas de casa e destituídas da herança. Por outro lado, porque não existiam muitas possibilidades de independência financeira e construção de uma carreira no mercado de trabalho. O destino de quase todas as mulheres era viver sob a tutela do pai até casar, e aí passar a obedecer ao marido, que era quem as sustentava. Fim. E, se vocês estão achando que essa prática é ultrapassada, vamos lembrar que, infelizmente, muitas mulheres vivem hoje, em 2022, em lugares cuja estrutura social ainda é assim, ainda impossibilita que mulheres tenham autonomia. Eu tô me referindo a países governados por ideologias religiosas extremistas, como o Afeganistão, onde a situação das mulheres está bem difícil, depois da tomada de poder pelo Taliban, ano passado. 
Na leitura de hoje a gente também teve uma ideia das crendices da época da escritura do romance. Muito em função de que a medicina não era eficiente como hoje e de que as informações científicas não se popularizavam, até porque havia um grande número de analfabetos no Brasil do século XIX. Então circulavam essas imprecisões, como a da personagem Emílio ter morrido em função de tomar um banho frio em um dia quente. 
Por hoje, fico por aqui. Antes de me despedir, quero deixar um abraço e o meu muito obrigada para o Fabrício pela colaboração com o Literatura Oral!
No próximo episódio, continuo a leitura comentada de Senhora, romance de José de Alencar. Fiquem bem e até lá! 
 #90
Olá, ouvinte! Aqui é o Literatura Oral. Eu sou Sabrina Siqueira e estou fazendo a leituracomentada das principais partes do romance Senhora, de José de Alencar. Como é que vocês estão? Este é o primeiro episódio que eu faço depois da eleição e o que eu tenho pra dizer pra vocês é que eu tô feliz e esperançosa! 
Na leitura do último episódio, teve o casamento de Aurélia e Seixas, e um flashback na história, que nos mostrou que os pais da moça se casaram escondidos e, por isso, não contavam com ajuda financeira das famílias. 
O escritor José de Alencar foi político. Ele foi ministro no gabinete conservador e defensor da manutenção da escravidão no Brasil. Maria Cecília Pinto, no livro Alencar e a França (1999), destaca como ele foi contraditório na vida pública. Em 1868, como ministro da justiça no segundo reinado, suprimiu os leilões de escravos no mercado do Valongo, que era um mercado na zona portuária do RJ, onde chegavam os navios com pessoas escravizadas. E apenas três anos depois, em 1871, então como deputado, votou contra a lei do Ventre Livre. Lei pela qual os bebês de escravizadas nasceriam livres. Quer dizer, fica parecendo que lá em 1868, quando suprime o mercado humano no porto, ele não faz isso por uma questão humanitária. Fica parecendo que ele tinha algum interesse em fechar especificamente esse mercado. 
Esse fragmento que vou ler agora está cheio de nomes. Pra não ficar confuso, lembra que Eduardo Abreu é um pretendente da Aurélia e o primeiro que pede a mão dela em casamento. Tavares do Amaral é empregado da Alfândega, pai da Adelaide, amigo do Lemos. Adelaide é a menina por quem Seixas deixa Aurélia e fica noivo, quando a protagonista ainda é pobre. Lemos é o tio da Aurélia, que depois vai ser tutor dela. Torquato Ribeiro é o primeiro namorado de Adelaide, filha do Tavares. Ribeiro fica amigo da Aurélia e a ajuda financeiramente, antes de ela receber a herança. 
Vamos à leitura!
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Na leitura de hoje, vimos que Seixas chegou a ficar noivo de Aurélia, mas recebeu a proposta de Amaral, com um dote de 30 contos para a filha, e optou pelo melhor negócio. Essa proposta do Amaral foi um incentivo do Lemos, que queria Aurélia com o noivado desfeito e frustrada pelo desprezo, para concordar com o empreendimento que ele tinha em mente para a sobrinha. Que me parece que era agenciar Aurélia como prostituta. Queria lucrar com a sobrinha, com quem ele nunca se importou antes. 
Vimos que Seixas não tem firmeza de propósitos. Vai passar um tempo no campo, pra se recuperar de tanta festa na cidade e sai com a intenção de ficar dois meses, mas aguenta quando muito quinze dias. E notem que no Português da época da escrita do romance, 1875, dizia-se “dous”, e não dois. O que a personagem Seixas não conseguia de jeito nenhum era renunciar à vida elegante. O código de etiqueta ao qual essa personagem responde aceita falta de ética, como trair amigos, insinuar esperanças de casamento, mentir às mulheres. Nesse fragmento está contida uma crítica à etiqueta dos salões. 
Vimos também que Aurélia nem sempre teve a personalidade altiva e irônica do início do romance. Nesse flashback da época em que era pobre, ela tinha uma atitude bem altruísta e não cobrava nada do noivo. Então é uma personagem que passa por uma mudança identitária. Ela sofre e se transforma na Aurélia que, depois de rica, vai arquitetar a vingança. Reparem na forma como Amaral trata o casamento da filha: sem rodeios, à queima roupa, ofereceu a filha com um dote de 30 contos. Os casamentos tratados são como negócios e as mulheres como produtos. 
Depois da visita do avô de Aurélia, ele vai fazer uma reforma na fazenda, pra convidar as duas mulheres a morarem lá, e aí ele tem que abolir certa moda que tolerava nas escravas, do que se depreende que na fazenda as escravas usavam menos roupa, ou cobriam menos o corpo que as mulheres da cidade, e que isso iria escandalizar as duas mulheres. O que essa prática da roupa feminina mais liberal nas mulheres escravizadas moradoras em fazendas nos diz? Eu penso que tem um lado bom e um lado ruim disso, se é que em realidade acontecia essa diferenciação de vestuário, de fato. Se, por um lado, as mulheres pretas vivendo no campo tinham mais liberdade em se vestir sem todos aqueles panos e saias do século XIX, mais de acordo com o que é adequado às temperaturas do Brasil, por outro lado isso podia contribuir para que os seus corpos fossem ainda menos respeitados, por estarem usando roupas mais leves, e que, portanto, deixam o corpo mais em evidência. Na condição de mulheres escravizadas, as mulheres estavam mais sujeitas à violência sexual, por exemplo. Essa diferença de vestuário, que é super adequada, pode ter contribuído para a consolidação de uma ideia que ainda existe, uma ideia que é atrelada ao racismo estrutural, de que pessoas pretas seriam mais sexualizadas, ou que seriam mais libidinosas. Uma ideia que vê as pessoas pretas como objetificadas e, uma vez que são equiparadas a objetos, são menos entendidas como seres humanos. Esse distanciamento do humano, pelo olho do branco escravocrata, de certa forma, colabora para ratificar a escravidão, e no discurso de hoje, colabora para perpetuar o racismo. Só que as pessoas trabalhando e usando menos roupa não estavam erradas, de forma nenhuma. O erro são os conceitos apressados que se desdobram da prática de diferença de vestuário. E a diferença partia, provavelmente, dos exploradores, escravocratas, que não deviam suprir essas pessoas com trajes adequados e aproveitavam essa maior exposição dos corpos para justificar um comportamento errado deles. Até hoje a roupa feminina é apontada como motivo de estupro, como se a culpa fosse da mulher que escolheu determinada roupa. 
O avô entendia que se Aurélia visse as escravizadas na fazenda usando pouca roupa, isso iria profanar a garota e contagiá-la com indecências. Vejam como uma frase em uma obra literária, se a gente assume que foi inspirada em uma prática real, nos ajuda a entender como um estereótipo nasce e persiste no imaginário da sociedade. É muito natural que essas mulheres, que faziam todo o trabalho pesado, não usassem roupas pesadas, camadas de saias, no calor do Brasil. É natural, principalmente fora dos centros urbanos, que usassem roupas mais confortáveis. E claro também que a diferença de vestuário não deve ter sido a única ação para cristalizar a ideia de que pessoas pretas seriam mais sexualizadas, mas pode ter sido uma das razões para que esse estereótipo surgisse. E, por outro lado, o romance evoca a total inocência e castidade da garota branca, que poderia ser contaminada pelos hábitos das mulheres pretas se as vissem vestidas de forma fora do convencional. E nisso começa uma justificação de separação de espaços entre brancos e pretos. Que os pretos poderiam deturpar a moral e os bons costumes das mocinhas brancas, então que não seria recomendado frequentarem os mesmos espaços. E aí vemos um gérmen do racismo que vivenciamos ainda hoje, um racismo que habita a estrutura do pensamento que forma a nossa sociedade. 
Pela descrição da personagem Aurélia e pelas atitudes dela, parece que José de Alencar construiu um romance em que a mulher é emocionalmente independente, que está casando só porque é uma convenção social a que ela devia obedecer, por estar vivendo em uma época em que isso era necessário para ser respeitada, e que está se vingando friamente de um namorado do passado. Mas que nada! Chegamos num ponto da leitura em que a personagem se mostra a típica heroína romântica, que coloca o enlace afetivo como ponto alto da vida. Diz até que pensou em doar a herança para Seixas, para ele gastar como quisesse!
Entrei na parte três do romance, posse. O romance Senhora é dividido em quatro partes, nomeadas como transações comerciais: São elas preço, quitação, posse e resgate. Posse é a parte que fala do casamento, de quando Aurélia tem então a posse do marido que comprou. Na noite do casamento, ela deixa seus termos de proprietária claros, e Seixas se vê como escravo branco. Mas aí acontece uma mudança na personalidade dessa personagem, que começa nessa noite mesmo a maquinaruma forma de restituir a posse de si mesmo. Porque casado com Aurélia, a partir de quando ele aceita o dote e casa, ele tem a propriedade, o seu corpo, mas não tem a posse, não poderia casar com outra pessoa, por exemplo. Juridicamente, pertence a esse casamento. E aí ele, que até então vivia de aparências, vaidoso, ocupado só com festas, decide não usar nada das roupas e objetos que ganhou de Aurélia, continuar usando as coisas dele, e começa a economizar para pagar o dote de volta e comprar como se fosse a sua alforria. Ele passa a ser assíduo no trabalho na repartição pública. Sendo que, quando era solteiro e pobre, só assinava o livro ponto e saía. 
No final da leitura, vimos que Aurélia oferece o divórcio a Seixas, depois de um mês de casamento de fachada e alfinetadas. Ele até se ofende, porque ele já tem o plano de comprar sua liberdade, devolvendo o valor do dote. Se ele aceita o divórcio, até a restituição da liberdade dele fica sendo uma atitude da Aurélia. Ele queria que a liberdade partisse de uma ação dele. E, assim como era permitido aos escravizados comprar sua liberdade, sua alforria, ele vem juntando dinheiro pra isso. Foi uma mudança de caráter brusca que se deu nessa personagem, quando se viu vendido. 
Só que o divórcio no Brasil só passou a ser legalmente aceito em 1977 e esse romance foi escrito mais de um século antes, em 1875, e conta uma história do passado dessa data. Claro que a literatura não tem comprometimento com a realidade e na obra o divórcio podia ser uma opção legal. Mas como nesses romances urbanos, Alencar fazia uso dos costumes da sociedade em que vivia para construir seus textos, vale a pena a gente pensar em como se dava o divórcio antes da emenda constitucional que regulamentou essa lei no Brasil. Até 1977, o vínculo jurídico de quem casava era pro resto da vida. Mas era possível realizar um desquite, que equivalia a uma separação de corpos e partilha de bens. Pelo desquite, os envolvidos não poderiam contrair matrimônio novamente. Contrair matrimônio é ótimo, né? Parece até uma doença venérea que a pessoa contraiu! Então não existia casar de novo e não existia união estável. Depois a lei foi sofrendo alterações, sendo que a última delas foi em 2010, que tornou o divórcio ainda mais rápido e direto. A votação da lei do divórcio é inspiração para o romance Dona Anja, do escritor Josué Guimarães, publicado um ano depois da aprovação da lei.
Tanto Aurélia quanto Seixas mudam ao longo do romance. Aurélia era inocente e bondosa, e com a traição de Seixas e a herança, fica rancorosa e irônica. Seixas era vaidoso e preguiçoso. Depois do casamento, fica obcecado por juntar dinheiro pra comprar sua liberdade. 
Hoje o episódio rendeu, hein! No próximo, continuo a leitura do romance Senhora, de José de Alencar. Fiquem bem! Abraço e até lá!
#91
Olá, ouvinte! Aqui é o Literatura Oral, podcast de leitura comentada e de sugestões literárias. Eu sou Sabrina Siqueira. Como é que vocês estão?
Eu to gravando este episódio em dezembro de 2022 e tá acontecendo a Copa do Mundo. Ou melhor, a copa de um determinado mundo. Um mundo masculino, porque só tem seleção masculina jogando. Normalmente eu sou bem alienada de esporte e de futebol, em especial. E este mundial, sediado no Qatar, um lugar em que mulher é tratada como uma sub-raça, homossexualismo é crime e não há respeito pelos direitos humanos, dessa vez eu tô mais desligada ainda. Queria que todos os turistas mulheres e gays não comparecessem, em protesto a essa mentalidade, mas... Tem dois aspectos a Copa acontecer nesse lugar. Por um lado, é uma pena que a violação de direitos humanos não seja empecilho pra um país receber um mundial desse porte, soa como conivência por parte de quem organiza a Copa. Mas por outro lado, é um jeito de lançar luz sobre essas questões. Neste instante, tem um holofote sobre os costumes e cultura do Qatar, o mundo inteiro tá falando de como mulheres e gays vivem lá. E aí pode ser que alguma mudança nessa mentalidade possa surgir. 
Pra vocês terem uma ideia de como eu sou por fora, eu achava que o mascote era uma arraia. E eu não entendia, o que tem a ver uma arraia com um país no deserto. Mas pensava que vai ver eles construíram um oceano e o mascote é símbolo dessa ostentação, vai saber! Negócio é que agora eu não consigo desver a arraia. Tá, mas eu respeito que tem ouvinte que adora acompanhar os jogos e tá tudo certo. Eu mesma, desde que descobri Richarlison, jogador brasileiro que se destacou no primeiro jogo e que é engajado, que participa de campanhas pró-ciência, pela vacinação, pelo meio-ambiente, crítico e que sabe a importância da sua voz e fala por dignidade e igualdade para os brasileiros pobres, aí eu gostei! O meu ranço é com jogador que recebe salário milionário e é sem noção.
Aqui no Literatura Oral, estou fazendo a leitura comentada de partes do romance Senhora, de José de Alencar. No último episódio, vimos que o casamento de Aurélia e Seixas é de fachada. Mas só os dois sabem. Pros outros, eles fingem ser um casal feliz. Isso porque Aurélia se vingou desse namorado dela do passado, que a abandonou quando ela era pobre, pagando um dote e se referindo a ele, na noite do casamento, como um marido comprado, um traste indispensável às mulheres honestas, naquele contexto. E Seixas, que nunca tinha gostado de trabalhar, ficou ofendidíssimo, entendeu que estava vivendo como um escravo branco e tratou de trabalhar para economizar dinheiro, devolver o valor do dote, que ele já tinha gasto um adiantamento, e comprar sua liberdade. Como a convivência está insuportável, Aurélia chega a oferecer o divórcio, no final do episódio anterior. Mas ele quer que a liberdade parta de uma ação dele, não que seja concedida pela esposa, senão ele vai ficar devendo a ela essa liberdade retomada. 
Lembrando que eu não tô fazendo a leitura na íntegra, somente as partes principais. E lembrando também da importância de tu te inscrever no canal e deixar um like, para que esse episódio chegue ao maior número de pessoas possível. Ajuda aí, ouvinte!
O que, tu já leu a obra e não está interessado na leitura, só nos comentários? Então procura a segunda vinheta, mais ou menos 10 ou 15 minutos antes do fim do episódio, e pula direto pros comentários, sem problema. Os episódios são sempre divididos assim, uma introdução retomando o que foi feito no último episódio, vinheta marcando o início da leitura, aí tudo que eu falo é o que está no livro, nada é opinião minha, outra vez a vinheta marcando espaço para comentários, citação de pesquisas sobre a obra, tudo que eu associar àquela leitura do dia. Combinado? Partiu leitura então?
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Acabou, é tetra! Me empolguei, na verdade, é penta! Porque foram cinco episódios de Senhora, de José de Alencar, e finalizei a leitura dos principais fragmentos desse romance clássico do romantismo. 
Na leitura de hoje, teve um fragmento em que o escritor José de Alencar alfineta os leitores brasileiros sobre preferirem os títulos estrangeiros e não darem tanta atenção à literatura nacional. Tava doído quando escreveu isso, o Alencar. E aí ele usa um recurso que é a intertextualidade, que é quando um texto cita outro, ou metatextualidade, quando um texto reflete sobre si mesmo ou reflete sobre o fazer literário, e cita Diva, um romance dele próprio, publicado em 1864 e que, junto de Lucíola, de 1862, e Senhora, compõe os perfis femininos de Alencar e está inserido na segunda fase do romantismo brasileiro, que foi a fase do ultrarromantismo, com mulheres e relacionamentos idealizados. Diva não é uma continuação de Lucíola, mas o narrador de um livro conhece o narrador do outro, como fica evidente pela epígrafe em Diva, uma brincadeira do autor com seus leitores. Quando cita Diva na narrativa de Senhora, Alencar é irônico, porque se refere aos críticos da obra que, sem querer, atiçam a curiosidade dos leitores e acabam por recomendar o livro. 
Numa parte que eu não li, a protagonista faz uma festa em casa e valsa com o marido. Eles estão casados há meses e nunca se encostaram. A tensãosexual entre eles e os rodopios da valsa fazem com que Aurélia desmaie. O ato de mulheres desmaiarem é muito comum nas narrativas românticas, que colocam as personagens femininas como seres suscetíveis às emoções, de forma que os sentimentos as afetam fisicamente. E qualquer emoção mais forte é motivo pra desmaio! Então a mocinha desmaiar é bem característico da segunda fase do romantismo. Se bobear, o Neymar é uma heroína romântica, da segunda fase do romantismo!
Quando Seixas paga seu resgate, ele dá a Aurélia uma explicação de por que a deixou pelo casamento com Adelaide Amaral, e é porque estava precisando urgentemente de dinheiro. E aí ele explica que era assim porque a sociedade o fez daquele jeito. O que é uma explicação que a gente vai encontrar numa corrente literária posterior ao Romantismo, que é o Naturalismo. No Naturalismo, o homem é fruto do meio, o homem é o resultado do que o contexto e o meio físico fazem dele. Pra ver como os conceitos não existem isolados em determinada época. Já no Romantismo de Alencar, a gente tem uma sugestão dessa ideia do meio influenciando na personalidade das personagens. 
Seixas cita uma prática de venda de esposas na Inglaterra. Essa prática de fato existiu, apesar de ser ilegal. E muito bizarra! Acontecia nos mercados rurais, entre o final do século XVIII e início do XIX, e era uma forma de divórcio. Quer dizer, enquanto a Inglaterra tinha uma rainha mulher, Vitória, que reinou de 1837 a 1901, mulheres eram vendidas em mercados e atadas por uma corda, como se fossem animais. E isso feito no país que se dizia contra a escravidão. A gente sabe que a Inglaterra só era contra a escravidão porque via nos escravos potenciais consumidores, se tivessem salário. Mas enfim, isso de vender esposas acontecia numa época em que grandes invenções estavam chegando ao conhecimento e acesso do povo, como as máquinas, a química, a eletricidade. Já pensou? Isso acontecia entre a população de baixa renda porque o divórcio oficial custava caro. Existe um livro sobre isso, chamado Wives for sale: um estudo etnográfico do divórcio popular britânico, de Samuel Menefee, de 1981. 
E aí vem o conceito de Aurélia sobre o que é escravidão. Ela considera que escravidão nada mais é que o domínio do forte sobre o fraco, e que nesse aspecto todos nós somos escravos em alguma instância. Seja da lei, da opinião, das conveniências, dos vícios ou da má administração dos nossos recursos. Essa ideia, escrita por Alencar e dita pela protagonista feminina, parece uma forma do escritor validar a escravidão, o comércio de seres humanos. Mas se a gente pensar em termos de atualidade, de livre iniciativa, eu concordo com essa teoria, de que de certa forma, todos os pobres são escravos, em alguma instância. Eu já comentei aqui no LO, em algum dos episódios sobre o romance O cortiço, que eu penso que as contas que nós pagamos regularmente são uma forma de escravidão, que tolhem a nossa liberdade em algum sentido. Aluguel, prestações, impostos. Quando a gente trabalha tendo o salário previamente comprometido pra pagar essas coisas, de certa forma, estamos sendo escravos do sistema. Quando a pessoa tem um rendimento que unicamente dá conta dessas despesas fixas, e não pode gerir a sua renda como quiser, porque não sobra renda além do que é básico para viver. Eu não tô sugerindo que vocês parem de pagar impostos ou de honrar as despesas, mas tô sugerindo que a gente reflita sobre isso, e que essa reflexão nos leve a ponderar sobre as nossas necessidades de consumo e a valorizar mais o tempo de vida que a gente troca por dinheiro pra satisfazer essa máquina toda. É você, Marx, com seu conceito de mais valia? 
Sabe o que que eu sinto falta nesse romance? Interlocutores pro casal desabafar e a gente saber o que se passa na cabeça deles de uma forma mais dinâmica, que não só pelos relatos do narrador. Pelo menos pro Seixas, que ele tivesse um amigo a quem pudesse contar o que tava vivendo e tals. Mas aí eu que escreva o meu romance, né? O do Alencar é como ele escreveu e como era usual na época. 
A personagem Seixas passa por uma mudança de comportamento, amadurece, e isso faz com que o relacionamento com Aurélia seja possível. E Aurélia termina como a protagonista romântica típica, inclusive ajoelhada aos pés do amado e transferindo a ele toda fortuna, pelo testamento. Jesuis! O fato de o testamento ter sido feito por Aurélia na noite do casamento revela que, no fundo, ela nunca deixou de ser submissa ao homem. Com esse fechamento, é como se Alencar restaurasse a ordem natural das coisas, conforme era na sociedade em que ele vivia, com o marido exercendo a função de chefe da casa e a esposa como um bibelô submisso.
A minha crítica ao Alencar é a falta de crítica social nas obras, falta falar nos assuntos sociais do momento que ele vivia, de forma a convidar o leitor a refletir, como fazia Machado de Assis, contemporâneo dele. Aliás, eu não entendo a amizade dos dois, mas tudo bem. Machado era muito diplomático. Além disso, o patriarcado sempre vence nos romances de Alencar. Ele constrói personagens femininas que parece que vão romper com esse padrão, mas é só pra dizer que mesmo as mulheres fortes, inteligentes, brilhantes como Aurélia Camargo, sucumbem a estar submissas a um homem. Quer dizer, ele esculacha com a independência feminina. 
Então é isso, terminamos o clássico da segunda geração do romantismo brasileiro, Senhora, de José de Alencar. Autor de quem eu não sou fã, mas que a gente deve conhecer, principalmente quem faz vestibular e ENEM, porque ele vive aparecendo. Pra quem gosta de assistir futebol, uma boa Copa. Depois de ver os jogos, já sabem, né, escutem o Literatura Oral e compartilhem os episódios com os amigos. Eu sou como aquele personagem do Adnet, o militante revoltado, sabe? Ele sempre tem uma faixa no cenário, com alguma reivindicação. E agora, durante a Copa, tá escrito “cadê Vietnã na Copa?”, sim, porque ele tem um sotaque. Então cadê Vietnã na Copa e cadê as seleções femininas se a Copa é do mundo? Mas é isso! Fiquem bem e até o próximo episódio do Literatura Oral.

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