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55 9 A NOVA SOCIOLOGIA DA EDUCAÇÃO E SUA IMPLICAÇÃO PARA A EDUCAÇÃO Talvez um dos movimentos mais revolucionários e influentes no modo de se pensar a educação tenha sido a virada representada pela nova sociologia da educação (NSE). Desde os anos 1970, uma nova forma de se investigar e de se buscar interromper a desigualdade educacional tem se estruturado a partir deste movimento teórico. Para além de se olhar apenas para o macrossocial e de uma perspectiva quantitativa para as problemáticas sociais da educação, passou-se a mirar também o que ocorre no cotidiano da escola, com o currículo e os conhecimentos, e as relações destes elementos com as desigualdades. Este novo olhar tem trazido consigo novos insights e novos desafios, mas também tem avançado no combate às desigualdades, apesar dos inúmeros desafios que ainda restam. (AUGUSTINHO, 2018) 9.1 O surgimento da nova sociologia da educação Na virada dos anos 1960 para os anos 1970, ocorre uma crise na educação de países considerados “centrais”: Estados Unidos, França e Inglaterra – países estes em que os governos seguiram bastante à risca as prescrições da Sociologia da Educação então hegemônica. Na França, as revoltas de maio de 1968 são relacionadas com a promessa não cumprida de suposta ascensão social correspondente ao maior acesso à educação básica e superior. Nos EUA e no Reino Unido, colapsa todo o sistema de Bem-Estar Social e, em particular, a escola pública, que tampouco cumpriu sua promessa de equiparação de oportunidades após ser, em ambas as noções, reformada de forma a garantir acesso praticamente universal. (NOGUEIRA, 1990). Com efeito, o viés de Sociologia da Educação que predominava nas universidades e nas políticas públicas sustentava boa parte das reformas que, neste momento histórico, caíram por terra. A Sociologia da Educação se preocupava centralmente, até o fim dos anos 1960, com o aspecto macrossocial da educação. Neste sentido, a hipótese do acesso era imperativa: era preciso entender o que bloqueava o acesso dos grupos mais populares e como interromper esses problemas. Apesar do sucesso desta 56 empreitada, no entanto, as desigualdades permaneceram. Desta forma, havia um cruzamento de amplo alcance entre classe social e escolarização. As pesquisas raramente se debruçavam especificamente na escola, sendo mais comum investigações quantitativas que consideravam cada escola como mais um número nas estatísticas. Quanto ao conhecimento escolar, havia também pouco debate, comum consenso de que deveria ser garantido a todos. Isto sustentou, talvez, o único aspecto mais “cultural” do pensamento sociológico da educação então prevalecente: a ideia de que as supostas “deficiências” culturais das camadas populares fossem supridas com atividades “compensatórias” em contraturnos e escolas públicas populares. (MITRULIS, 1983). O fracasso dessa prescrição sociológica baseada na hipótese de que a igualdade de oportunidades seria alcançada com apenas essas poucas medidas macrossociais gerou revolta e descrença popular, o que também se verificou no campo da Sociologia da Educação, especialmente nos três países citados. (SILVA, 1999). Quase que simultaneamente, com algumas diferenças contextuais, surge na Inglaterra, nos Estados Unidos e na França, na virada para os anos 1970, um movimento não intencionalmente programado, que ficou conhecido como a nova sociologia da educação. O que este movimento passou a analisar, com um olhar mais apurado sobre o que ocorre dentro da escola, na política educacional e com o currículo escolar, foi, afinal, o que diferenciava os alunos, apesar de a escola ser pretensamente indiferenciada. (MITRULIS, 1983). 9.2 As principais contribuições da nova sociologia da educação Em contradição ao modelo sociológico voltado apenas para o macrossocial da educação, a nova sociologia da educação propõe que o olhar deve repousar também sobre o micro. Desta forma, passa-se a analisar criticamente os motivos pelos quais a reprodução das desigualdades persiste na escola, não apenas do ponto de vista do acesso ou da compensação, mas do ponto de vista do próprio currículo escolar e do próprio conhecimento escolar (até então, encarados como “neutros” ou “desinteressados”). Investiga-se o cotidiano vivido na escola e, desta maneira, inclusive, envolve-se os professores e professoras na tarefa de combater a reprodução das desigualdades na escola. (WEIS; MCCARTHY; DIMITRIADIS, 57 2013). Estes teóricos propiciaram uma verdadeira revolução na forma como se podia enxergar e imaginar a transformação da reprodução social na escola, complexificando o olhar sobre a educação. Pode-se, para conhecer melhor suas contribuições, discutir algumas das principais contribuições proporcionadas em cada contexto 9.3 Michael Young e a nova sociologia da educação no Reino Unido Foi Michael Young, na Universidade de Londres (onde foi contemporâneo de outro fundamental autor da NSE, Basil Bernstein), que publicou, em 1971, aquele que é considerado o trabalho seminal da nova sociologia da educação: Know ledge and control: new directions in the Sociology of Education (1971), que continha contribuições de Pierre Bourdieu e Basil Bernstein. (WEIS; MCCARTHY; DIMITRIADIS, 2013). A principal preocupação para Young na obra foi a de formular uma Sociologia do Conhecimento e, para isso, de forma mais imediata, precisava antes de uma Sociologia do Currículo. Desta forma, coloca a questão do conhecimento escolar em primeiro plano e, diferentemente das tradições até então hegemônicas, não toma como dadas as categorias e disciplinas que configurariam o conhecimento verdadeiro, mas se perguntava sobre o que conta como conhecimento. (SILVA, 1999). Realiza, assim, uma crítica à arbitrariedade em se definir o que é conhecimento “puro”, “geral” ou “acadêmico”, em contraste com o que se define como “aplicado”, “específico” ou “vocacional” – posiciona esta questão como uma questão de classe social, uma vez que manteria elites no poder do currículo escolar. (WEIS; MCCARTHY; DIMITRIADIS, 2013). 9.4 Michael Apple e a nova sociologia da educação nos Estados Unidos Michael Apple possivelmente seja o nome mais relevante nos Estados Unidos vinculado à NSE. Seu trabalho inaugural, Ideologia e currículo (1979), representa o seu diferenciado olhar sobre as desigualdades educacionais. Apple traz para a discussão a economia e a cultura para pensar o currículo, a partir de uma abordagem neomarxista (muito influenciado por pensadores como Raymond Williams e Antonio Gramsci). Apple não vê uma correspondência direta entre a 58 economia e a educação, como se a escola refletisse automaticamente as relações de produção (SILVA, 1999); vê uma relação complexa, em que o currículo escolar se encontra envolvido. Para Apple, por mais que as relações de poder da economia influenciem decisivamente a forma como os grupos sociais vivem a educação, elas não garantem em última instância como a educação se estrutura ou como a desigualdade se mantém. (WEIS; MCCARTHY; DIMITRIADIS, 2013). Para Apple (2006), a educação e o currículo são lugares de disputa política, em que não há garantia de que as consciências serão estabelecidas a priori. Há espaço, segundo Apple (2006), para que se conteste, na escola, de quem são os conhecimentos estudados, a quem eles beneficiam e quem eles silenciam, por exemplo. Apple (2006) vê complexidade e movimento na escola e na disputa pelo que é entendido como conhecimento escolar, sem ignorar as fortes influências que as relações econômicas continuamente impõem sobre a forma como a escola é vivida. 9.5 Pierre Bourdieu e a nova sociologia da educação na França Na teoria de Bourdieu e seu coautor Passeron, o objeto principal da reprodução são os bens simbólicos, que estão em relação inseparável dos bens econômicos. (SILVA, 1999). Os autoresnão se debruçam propriamente em como se originam as desigualdades econômicas, mas se preocupam em entender como essas desigualdades se reproduzem através da conversão de capital econômico em capital cultural, social e simbólico. (BOURDIEU; PASSERON, 2009). Garante-se, neste processo, que os privilégios apareçam como naturais e justos, na medida em que são percebidos como capacidade ou talento para aquisição da cultura tida como correta. Neste sentido, a escola seria estratégica: a cultura escolar seria uma espécie de enigma, que só pode ser decifrado por quem recebeu o código da sua família. (NOGUEIRA; NOGUEIRA, 2002). A cultura valorizada socialmente e, assim, especificamente na escola, seria a das classes dominantes, e a posse dessa cultura por parte dos herdeiros dessas famílias seria traduzida como sucesso escolar. O distanciamento das demais culturas em relação à cultura escolar seria a base para a explicação não apenas do fracasso escolar nos meios populares, mas também para a forma como este fracasso é legitimado socialmente. (BOURDIEU; PASSERON, 2009). 59 Contribuições e desafios para a educação brasileira A discussão promovida pela nova sociologia da educação, mais do que mera discussão abstrata, tem resultado em efeitos concretos nas escolas, a partir de lições que profissionais da educação têm tirado com base em seus ensinamentos. Ao mesmo tempo, há desafios e limites ainda não superados dentro do debate da NSE que precisam também ser continuamente problematizados. Aqui, pontuam-se alguns desses aspectos, sem uma intenção de finalizar a discussão – pelo contrário, com o objetivo de apontar apenas alguns exemplos de um universo ainda maior de importantes contribuições e desafiadoras missões que têm marcado essas décadas recentes na Sociologia da Educação. Avanços percebidos No campo do currículo, é preciso valorizar o trabalho que professores e professoras têm feito ao redor do país para levar para a sala de aula a cultura e os saberes dos alunos e alunas, indo de encontro a visões mais tradicionais de que há “déficit” dos alunos de grupos populares. Há, desta forma, uma valorização de outras linguagens, conhecimentos, gostos e modos de se perceber no mundo que não os consagrados na escola. Este tem sido um importante trabalho, não no sentido de negar aos alunos os conhecimentos consagrados, mas de relacioná-los com as próprias vivências e trajetórias dos alunos. Conhecimentos, assim, são problematizados, enquanto “neutros” ou “desinteressados”, e enfrentados. Perguntas como “Quem se beneficia com este conhecimento e quem é silenciado?” passam a ser feitas. No campo do trabalho docente e da avaliação, têm sido também árduas, porém reconhecidas, as conquistas de professoras e professores para a implementação, com um grau de autonomia e de intelectualidade, dos currículos escolares e dos modos de avaliação, em contraposição às políticas de implementação de material didático padronizado e avaliações de aprendizagem de larga escala. Socialmente. (BOURDIEU; PASSERON, 2009). Agregue-se, ainda, as importantes mobilizações das professoras e professores por reconhecimento na carreira. Todas essas questões apontam para 60 aprendizagem quanto à relação complexa entre economia e educação – sendo não apenas correspondente às lógicas econômicas, mas influenciada de forma relacional e disputada na forma como se vive a educação, e não somente na economia. No campo das políticas educacionais, registre-se a participação intensa das comunidades escolares na elaboração do Plano Nacional de Educação e as pressões para um debate democrático em torno de medidas como a Base Nacional Curricular Comum e o Novo Ensino Médio. Apesar dos desafios, deve-se perceber o entendimento coletivo de que a democratização da educação e da igualdade de oportunidades vai além do acesso à escola, relacionando-se com a forma como ela é estruturada. Desafios que permanecem Apesar da importância de perceber os avanços conquistados a partir das contribuições da nova sociologia da educação, ainda há uma longa caminhada pela frente na educação brasileira para a incorporação das diretrizes estabelecidas. No campo do currículo, ainda há um imenso trabalho em termos de equalização de oportunidades. Esta é uma questão que tradicionalmente foi vista sob a ótica de classe, mas precisa ser igualmente, e de forma relacional, tratada em relação a raça, gênero e sexualidade, além de outras dinâmicas sociais. São ainda grandes a injustiça e o sofrimento de muitas famílias em função da arbitrariedade do conhecimento e da gestão escolar. No campo do trabalho docente e da avaliação, ainda é grande o desafio da formação continuada e da remuneração adequada das professoras e dos professores. Estes ataques à carreira têm sido estudados na perspectiva da NSE, sendo relacionados a dinâmicas econômicas como a proletarização de professores e a culpabilização individual pelo fracasso sistêmico da escola. No campo das políticas educacionais, ainda persistem vieses relacionados ao período anterior à NSE, sustentados no credo de que a igualdade de oportunidades se garante com acesso e correção cultural de alunos. Há uma longa jornada de reconexão com o senso comum, mas também de esperança socialmente. (BOURDIEU; PASSERON, 2009).
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