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2003-MEST-Juliana-de-Souza-e-Costa-Nazareth-1

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UFRJ – Universidade Federal do Rio de Janeiro 
 CFCH – Centro de Filosofia e Ciências Humanas 
IP – Instituto de Psicologia 
EICOS – Programa de Estudos Interdisciplinares de Comunidades e Ecologia Social 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
“Na hora que tá em sufoco, um ajuda o outro”: 
Um estudo sobre famílias chefiadas por mulheres urbanas de baixa renda. 
 
 
 
 
 
 
 
Juliana de Souza e Costa Nazareth 
 
 
 
 
 
 
Dissertação apresentada como parte dos requisitos para a obtenção do título de 
Mestre em Psicossociologia de Comunidades e Ecologia Social. 
 
Orientação: Profª Drª Maria Inácia D’Ávila Neto. 
 
 
 
 
 
 
Rio de Janeiro 
2003 
 
 
 
 1 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
À Antonieta, minha avó, uma grande mulher. 
 
 
 À Cristina, minha mãe, chefe de família, imagem nítida de toda força e amor. 
 
 
A Décio, meu pai, de quem herdei o gosto pelos estudos e pela ‘arte’ de escrever. 
 
 
A Alexandre, meu marido, grande companheiro na jornada da vida. 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 2 
AGRADECIMENTOS 
 
 
• Aos funcionários do Instituto de Psicologia da UFRJ e aos funcionários, 
professores e colegas do Programa EICOS, pela convivência, pela 
paciência, pelos conhecimentos compartilhados e pelo carinho. 
• Aos professores membros da banca examinadora de qualificação e do 
mestrado pelas valiosas sugestões e pela disposição em participar e 
engrandecer estas etapas fundamentais no incremento do meu 
aprendizado. 
• À minha orientadora, madrinha e amiga Profª Drª Maria Inácia D’Ávila Neto, 
pelos ensinamentos – na academia e na vida, pelas oportunidades e pela 
confiança que sempre depositou em mim, inclusive nos meus momentos de 
maior hesitação. 
• À Profª Drª Tânia Barros Maciel, responsável pela minha iniciação na 
pesquisa, e pela minha participação num grande projeto de mobilização 
social e participação comunitária, acontecimentos que marcaram a minha 
vida e foram determinantes para decisão de fazer o mestrado. 
• À minha ‘grande’ família, meu marido, meus pais, meu irmão, minha avó, 
meus tios, primos, sogro, sogra, cunhados e sobrinhos, pelo amor, pela 
torcida e pelos momentos de descontração e carinho. 
• Ao meu marido e a minha mãe, maiores ‘vítimas’ de todo o processo, pela 
paciência e compreensão, tantas vezes necessárias, e pelo apoio 
incondicional que sempre me deram. 
• Ao meu pai pela leitura cuidadosa e a revisão atenta do texto. 
• Aos meus amigos e a todos que, mesmo distantes, torcem por mim. 
• Ao Centro Comunitário Sem Fronteira pelo contato sempre estimulante e 
pelas portas sempre abertas ‘às meninas da Universidade’. 
• Às mulheres entrevistadas por cederem seu precioso tempo e pela lição de 
força, garra e determinação. 
• Ao CNPq por financiar meus passos de Iniciação Científica e à CAPES pelo 
apoio financeiro fundamental para o desenvolvimento deste trabalho. 
 3 
 
RESUMO 
 
 
 O cenário contemporâneo é marcado, entre outras coisas, pela globalização 
de saberes e práticas e pela proliferação de novos arranjos e formas de 
organização familiares. 
 Neste contexto, destacam-se as famílias chefiadas por mulheres que, 
embora sempre tenham existido, vêm se tornando cada vez mais numerosas e se 
constituindo como fator determinante na chamada ‘feminização da pobreza’ neste 
país. 
 Daí, a preocupação e a urgência de se (re)pensar estas famílias. E daí, a 
proposta deste estudo que trata, então, de famílias chefiadas por mulheres, 
moradoras de uma comunidade pobre e urbana do Lote XV, município de Belford 
Roxo, Baixada Fluminense. 
Aqui, três temas aparecem como centrais: as famílias, com toda a sua 
pluralidade e diversidade – a despeito da presença de ‘modelos’ e ‘ideais’; as 
mulheres; e a pobreza e adversidade em que vivem. 
 Da complexa articulação entre estes temas: famílias, mulheres e pobreza, 
vão se delineando os contornos deste estudo, que recorre à interdisciplinaridade 
como ferramenta primordial. 
 Alguns resgates históricos foram feitos no intuito de se lançar luz sobre 
questões importantes, como a condição da mulher e sua relação com o passado 
patriarcal. Relação que, apesar das conquistas e transformações – devidas, em 
grande parte ao feminismo e à disseminação das idéias feministas – parece ainda 
se atualizar. 
 Desta forma, o processo de modernização da sociedade brasileira e de 
suas famílias, aparece como uma boa metáfora para a identidade dessas 
mulheres: um exercício constante de agregar o novo ao tradicional, sem, contudo, 
perder as raízes da estrutura patriarcal. 
Palavras-chave: 
1. Famílias 2. Mulheres 3. Gênero 4. Pobreza 
 4 
 
ABSTRACT 
 
 
 The contemporary scenery is marked, among other things, by the 
globalization of acknowledgements and practices and by the multiplication of new 
arrangements and forms of family organization. 
 In this context, closer attention should be given to families headed by 
women, which, even though have always existed, are becoming more numerous 
each day and turning into a crucial factor for what we call “poverty’s feminization” 
in this country. 
 This is why there is urgency to look more closely at these families. And 
having this concern in mind, this study is about families, all of which headed by 
women, who reside in the poor urban community of Lote XV, Belford Roxo county, 
Baixada Fluminense. 
 Thus, three themes are focused: the families, who, despite the presence of 
“models” and “ideals” have great diversity; the women; and the poverty, in which a 
growing number of women and their families have to live. 
 From the complex articulation of these themes: families, women and 
poverty, arises the outlines of this study, referring to interdisciplinarity as its basic 
tool. 
 Accordingly, referral to historic data are made in order to emphasize 
important subjects, such as women’s condition and its relation to a patriarchal past. 
It should be noted that in spite of many conquests an transformations, part of which 
due to feminism and the spread of feminist ideas, this relation seems to update to 
today. 
 In this manner, the process of modernization of the Brazilian society an their 
families appears as a great metaphor for these women’s identity: a constant 
exercise to aggregate what’s new with what’s traditional, maintaining, however, the 
foundation of the patriarchal structure. 
 
Key – words: 
1. Families 2. Women 3. Gender 4. Poverty 
 5 
 
SUMÁRIO 
 
 
 
 
 Apresentação.....................................................................................................P.9 
 
I Parte – Fundamentação Teórica 
 
1 – Das famílias de ontem às de hoje: o processo de modernização (das 
diferenças) nas famílias brasileiras 
 
1.1. Famílias brasileiras da colônia à republica: modelos e rupturas....P.16 
1.2. Famílias pós-modernas? Permanências e mudanças nas famílias 
contemporâneas............................................................................P.24 
1.3. Famílias em contexto de pobreza..................................................P.31 
1.4. Refletindo sobre alguns indicadores nacionais..............................P.38 
1.5. O caso da chefia feminina: rumo à ‘feminização’ da pobreza........P.40 
 
 2 – A disseminação das idéias feministas: um pouco da história 
 
2.1. Feminismo e família: algumas articulações..................................P.47 
2.2. Alguns impasses numa história de conquistas..............................P.51 
 
3 – A mulher contemporânea: permanências e mudanças 
 
3.1. As mulheres no mercado de trabalho............................................P.57 
3.2. As marcas – ainda atuais? – de um passado patriarcal................P.65 
 
 
 
 
 
 6 
 
II Parte – Pesquisa de Campo 
 
1. Questões para a construção de uma pesquisa de campo.......................P.712. Descrição do universo pesquisado – ou ‘Sujeitos’..................................P.76 
2.1. Quadro-síntese com as principais características das mulheres 
entrevistadas........................................................................................P.80 
3. Descrição do processo – ou ‘Procedimento’...........................................P.81 
3.1. A Análise de conteúdo ...........................................................................P.82 
 
4. A pesquisa e seus resultados 
 
4.1.Analisando o conjunto de categorias e discutindo resultados.................P.86 
4.1.1. A vida como chefe de família..........................................................P.87 
 4.1.1.1. O que é ser chefe de família, afinal?!................................P.87 
4.1.1.2. Principais dificuldades que enfrentam as mulheres chefes de 
família.................................................................................P.93 
4.1.1.3 Estratégias de sobrevivência: a construção de redes de 
solidariedade.....................................................................P.102 
4.1.2. Cotidiano e Trabalho feminino......................................................P.111 
4.1.3 Família e Relações de Gênero......................................................P.118 
 4.1.3.1. Ser Homem X Ser Mulher – do real ao ideal...................P.118 
4.1.3.2. Percepções sobre “casamento” – e os motivos de seu 
rompimento.......................................................................P.128 
 4.1.3.3 Violência Física e Psicológica..........................................P.137 
4.1.4 Mudanças, Permanências, Desafios e Perspectivas.....................P.144 
 4.2. Discutindo resultados .....................................................................P.156 
 
5. Considerações Finais............................................................................ P.162 
 
 
 7 
III Parte – Anexos 
 
Anexo – Roteiro de entrevistas.....................................................................P.169 
 
 
 
IV Parte – Referências Bibliográficas............................................................P.172 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 8 
APRESENTAÇÃO 
 
 
 
O processo de formação social das famílias brasileiras é complexo e 
revelador, deixando transparecer um passado marcado por estruturas de poder 
hierárquicas e pela supremacia masculina – que pode ser sintetizado na ‘família 
patriarcal’, ao mesmo tempo em que revela formas ‘marginais’ de organização 
familiar coexistentes com o modelo vigente. 
A partir daí, a história se repete: novos ‘modelos’ surgindo, sempre, 
acompanhados de ‘arranjos’ alternativos. Os ‘modelos’, via de regra, ligados às 
famílias abastadas, às classes dominantes, legitimados pelo poder e colocados 
como ideais, enquanto outros ‘arranjos’ familiares eram praticados pelas classes 
subalternas e interpretados como ‘anomalias’. 
Assim, a família patriarcal foi substituída, enquanto modelo ideal, pela 
família moderna – marcando a tradicional passagem da família extensa à família 
nuclear, mas, seus preceitos de poder masculino permaneceram. 
Neste sentido, é que ainda se faz atual falar em família patriarcal. Não para 
identificar a família extensa de uma sociedade agrária, mas, para indicar uma 
forma de organização familiar hierárquica e desigual, baseada, principalmente, na 
supremacia do homem sobre a mulher. 
Ressalte-se, porém, uma mudança importante e significativa: as formas 
‘marginais’ de se viver em família deixaram de ser uma prerrogativa das camadas 
populares, passando a ser exercidas, cada vez mais, pelas camadas médias. 
Com isto, o fenômeno foi ganhando destaque, visibilidade e até uma certa 
legitimidade, sendo cada vez mais representativo – em formas e números – na 
sociedade atual. 
O cenário contemporâneo é, então, marcado por uma pluralidade de formas 
de organização e arranjos familiares, onde a família nuclear é mais uma 
possibilidade – embora, ainda, a mais representativa, coexistindo com outras 
possibilidades, como é o caso das famílias chefiadas por mulheres. 
 9 
Este fenômeno, no entanto, não é uma exclusividade da sociedade 
brasileira. Trata-se de uma realidade mundial, de modo que alguns autores mais 
entusiasmados, como Castells1, chegam a dizer que a família patriarcal estaria em 
crise, marcando a contestação – e até decretando o fim – do patriarcado. 
Afinal, esta é uma era de globalização de práticas e saberes, como é o caso 
das idéias e do movimento feminista. 
Neste mundo globalizado assiste-se, não apenas, a uma difusão da luta das 
mulheres, mas também, do advento da tecnologia de reprodução humana 
(permitindo maior controle das mulheres sobre o momento e as condições em que 
desejam procriar) e a entrada maciça das mulheres no mercado de trabalho, quer 
formal, ou informal. 
Mas, se por um lado, isto soa de forma positiva, dando idéia dos avanços e 
conquistas das mulheres, ao longo dos anos e ao redor do mundo, é preciso não 
esquecer que, a despeito da globalização, este processo não acontece da mesma 
forma e nem na mesma velocidade em todas as sociedades. Na verdade, a 
situação é bem mais complexa, pois conta ainda com as diferenças sócio-
econômico-culturais inerentes à cada país, fazendo com que cada mulher viva de 
forma diversa cada uma das mudanças realizadas. 
 A complexidade, aliás, é tema central da contemporaneidade. Aqui, a 
própria idéia de globalização que, a princípio, parece caber na fórmula da 
homogeneização mundial, perde a simplicidade e chega a soar bastante 
paradoxal, quando pensamos no crescente abismo sócio-econômico-cultural entre 
ricos e pobres, tanto no que se refere a países, como a cidadãos – e famílias. 
Esta contradição se encontra inscrita no próprio cerne da idéia de 
globalização, que se por um lado retira os saberes e poderes locais, levando-os 
para o cenário mundial, por outro, força o surgimento de autonomias 
circunscritas2, embora também marcadas (mesmo que não de forma visível) por 
essa nova realidade. 
 
1 Castells, Manuel (1996). O poder da identidade. A era da informação: Economia, sociedade e cultura. Vol 2. 
2ª edição. São Paulo: Paz e Terra, 1999. 
2 A este respeito ver Giddens, Anthony (1999). Mundo em descontrole, o que a globalização está fazendo de 
nós. Rio de Janeiro: Record, 2000. 
 10 
Assim, é que, embora a ‘chefia feminina de família’, seja um fenômeno 
mundial em contínua expansão, o mesmo apresenta em toda a América Latina e 
no Brasil, particularidades e nuances, que devem ser pensadas e cuidadosamente 
analisadas – como a desfavorável condição sócio-econômica. Tal é o que 
acontece não só com as nossas entrevistadas, as chefes de família de Belford 
Roxo, região metropolitana do Rio de Janeiro, mas também com grande parte das 
famílias brasileiras (ou latino-americanas) na mesma condição. 
Esta é, justamente, a idéia que atravessa cada uma das linhas deste 
trabalho: uma aproximação com a realidade deste crescente universo – das 
famílias chefiadas por mulheres. Uma aproximação para além dos números frios – 
e muitas vezes assustadores – das estatísticas e que vá em busca de conhecer 
seu cotidiano, sua dinâmica, seus sonhos e suas dificuldades... 
É uma questão delicada, cujas respostas podem lançar luz a uma questão 
social mais macro, fornecendo dados que permitam um melhor planejamento e 
aproveitamento das políticas públicas dirigidas a esse “empobrecido” contingente 
da população e, ao mesmo tempo, apontando possibilidades futuras de relações 
mais igualitárias entre os gêneros. 
Trata-se de um trabalho ambicioso, envolvendo questões sobre diferentes 
temas: famílias, gênero e grupos desfavorecidos. Tudo isto dentro de um contexto 
maior que é o de um mundo globalizado. Construir um espaço de interseção entre 
esteseixos exige que a idéia da complexidade, esteja presente, atravessando o 
pensamento na construção de cada uma das reflexões aqui apresentadas. 
E, se, por um lado, isto parece um grande desafio, também soa bastante 
instigante e coerente com o cenário contemporâneo – ou pós-moderno3. A 
atualidade do tema, ao tratar de uma história que ainda está se escrevendo, faz 
com que os reflexos da pós-modernidade apareçam, desde a pluralidade teórica 
do tema – e da exigência de conjugação daí advinda, até a diversidade das 
possibilidades de se ver e compreender cada questão. 
 
3 Alguns autores chamam de pós-moderno o cenário atual, outros preferem falar em crise da modernidade, 
modernidade tardia, radicalização da modernidade etc. A este respeito ver Fridman, L.C.(2000). Vertigens 
pós-modernas. Rio de Janeiro: Relume-Dumará. 
 11 
Afinal, passamos do reinado da razão – característica moderna, ao da 
ambivalência, situação em que nenhum dos padrões aprendidos pode ser 
adequado, ou ao contrário, “mais de um padrão poderia ser aplicado”. Mas, “seja 
qual for o caso, o resultado é uma sensação de indecisão, de irresolução e, 
portanto, de perda de controle”4. 
A fluidez aparece, então, como uma boa metáfora para a atualidade. Antes 
uma propriedade de gases e líquidos, hoje, uma imagem das identidades5. 
Neste contexto, “o sujeito, previamente vivido como tendo uma identidade 
unificada e estável, está se tornando fragmentado; composto não de uma única, 
mas de várias identidades, algumas vezes contraditórias ou não-resolvidas”6. 
Neste ponto do drama pós-moderno, a própria idéia de identidade começa 
a ser questionada. E já há quem proponha falar de afinidades, ao invés de 
identidades7. 
Uma leitura muito comum que se faz, então, do pós-moderno é que como 
não temos controle, previsão ou alguma garantia, não há o que fazer. É claro que 
é difícil lidar com tanta ambigüidade, ainda mais para os filhos da modernidade, 
acostumados com as certezas, baseados na razão; mas há um erro em desistir, 
em paralisar. É preciso uma postura de problematização e enfrentamento, cientes 
de que aquilo que fazemos hoje, pode mudar a história8. 
Deste lugar marcado pela pós-modernidade foi que procurei compreender 
estas mulheres – também ‘pós-modernamente’ marcadas, assim como suas 
possíveis ambigüidades e contradições. 
Neste sentido, mesmo diante de um nítido paralelo entre conquistas e 
avanços na condição feminina – como sua entrada no mercado de trabalho e o 
advento dos métodos anticoncepcionais – e as mudanças na organização familiar, 
 
4 Bauman, Zygmunt. (1999). Modernidade e ambivalência. Rio de janeiro: Jorge Zahar Editor. P. 10 
5 Bauman, Zygmunt (2001). Modernidade líquida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed. 
6 Hall, Stuart (1992). A identidade cultural na pós-modernidade. 4ª ed. Rio de Janeiro: DP&A, 2000. P.12. 
7 Haraway, Donna J. “Manifesto ciborgue: ciência, tecnologia e feminismo-socialista no final do século XX”. In: 
SILVA, T.T. Antropologia do ciborgue – as vertigens do pós-humano. Belo Horizonte: Autêntica. P.53. 
8 É claro que pensar em ganhos de possibilidades ao invés de perdas de certezas e definições é apenas mais 
uma possibilidade de leitura do pós-moderno, entre tantas possíveis. Talvez também ela seja fluída e 
transitória, e acabe abandonada nas linhas deste trabalho, mas por ora, dentre as possibilidades, este é o 
agenciamento que me parece mais adequado. Com ele pretendo refletir sobre a questão da chefia feminina, 
que também pode ser vista como uma das várias possibilidades de se viver em família, de ser mulher. 
 12 
é preciso ter claro que a evolução dos costumes em relação à mulher tem sido 
efetivamente lenta e descontínua e que, além disso, dentro mesmo do Brasil, “há 
uma enorme defasagem entre as aspirações da grande maioria das brasileiras, de 
nível sócio-econômico em geral baixo, e a ótica de um intelectual classe média, a 
quem foi dado o discurso feminino”9. 
Mas, até que ponto este significativo aumento do número de famílias 
chefiadas por mulheres é indicativo daquilo que poderíamos chamar emancipação 
feminina? O que essas mulheres de classes desfavorecidas, que lutam sozinhas 
pela sobrevivência de suas famílias pensam disso? Trata-se de uma opção? 
Como vivem e vêem estas questões? 
Dentro deste contexto, revisitar os papéis de gênero instituídos na dinâmica 
destas famílias, torna-se imperativo. Estando ausente a figura masculina do pai - 
de autoridade e poder, como se dá a organização e a divisão de tarefas? Como os 
filhos destas famílias apreendem as relações e os papéis de gênero? Será 
possível, a partir daí, apontar para um futuro onde se vislumbre melhor a 
eqüidade? 
O que se espera com este estudo é contribuir para indicações de novos 
caminhos e, se isso exige revisões e reflexões profundas, optamos por começar a 
reflexão teórica – I parte – por um breve histórico da formação social da família 
brasileira. Daí, o nome do primeiro capítulo: “Das famílias de ontem às famílias de 
hoje: o processo de modernização (das diferenças) na família brasileira”. Este 
capítulo é dividido em cinco partes e busca dar conta desde um rápido resgate da 
estrutura da família patriarcal e da família nuclear moderna – além de algumas 
rupturas a estes modelos, até as especificidades da chefia feminina de família, e 
sua relação com a ‘feminização’ da pobreza neste país – passando ainda por 
algumas reflexões sobre as famílias inseridas neste contexto. 
Já no segundo capítulo intitulado “A disseminação das idéias feministas: um 
pouco da história”, ao fazermos algumas articulações entre feminismo e família, 
propomos uma reflexão crítica sobre a trajetória deste movimento, marcado, sem 
dúvida alguma, por conquistas, mas também por impasses. 
 
9 D’Ávila Neto, Maria Inácia (1994). O autoritarismo e a mulher. O jogo da dominação macho-fêmea no Brasil. 
2ª ed. Rio de Janeiro: Artes e Contos. P.60. 
 13 
O terceiro e último capítulo da parte teórica – “A mulher contemporânea: 
permanências e mudanças” – é dedicado, então, à questão das mulheres no 
mercado de trabalho e as marcas do ‘passado’ patriarcal, que ainda se fazem 
presentes. 
A parti daí, inicia-se a segunda parte do trabalho, envolvendo pesquisa de 
campo – que consistiu em entrevistas, semi-estruturadas, de cinco mulheres 
chefes de família, do Lote XV, Belford Roxo, e na análise de conteúdo deste 
material, sob a luz das idéias apresentadas na primeira parte. 
A segunda parte, iniciamos com “Questões para a construção de uma 
pesquisa de campo” onde falamos de algumas inquietações que nortearam o 
trabalho de campo. Só então se chega à “descrição dos sujeitos’ e do 
“procedimento” adotado neste estudo. 
No capítulo quatro: “A pesquisa e alguns de seus resultados” é onde, então, 
aparece a análise das categorias e a discussão dos resultados encontrados. As 
“Considerações finais” estão no último capítulo deste estudo. 
Aos que se aventurarem, boa leitura! 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 14 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 I PARTE 
 
 
 
 
 
 
 
 
FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 
 15 
1. Das famílias de ontem às de hoje: 
O processo de modernização (das diferenças) nas famílias brasileiras 
 
 
“A família é um local 
para as lutas entre tradição e modernidade, 
mas também uma metáfora para elas” 
 
Anthony Giddens10 
 
1.1. Famílias Brasileiras da Colônia à Republica: Modelos e Rupturas 
 
 
O ponto de partida para, aqui, pensarmos a família é o reconhecimento da 
necessidade de desconstrução da aparência de naturalidade e universalidade com 
que ela se reveste. A antropologia aparece, então, como grande aliada, pois, ao 
mostrar que a família assume configurações diversas no tempo e no espaço,acaba evidenciando o seu caráter de construção histórico-social. 
Neste sentido, levando-se em conta a diversidade racial, regional e a 
pluralidade de influências culturais presentes na história do Brasil, parece ingênuo 
falar em família brasileira – no singular, independentemente do período histórico 
ao qual se esteja referindo11. 
Assim, a história das famílias no Brasil, vem recheada de contradições 
apontadas, hoje, por vários pesquisadores. E, embora, não seja o interesse deste 
estudo fazer um apontamento destas questões, nem tampouco esmiuçar ou 
esgotar esta história, um breve histórico se faz necessário, a fim contextualizar as 
famílias de hoje e as famílias chefiadas por mulheres de que tratamos. 
Por muito tempo a obra de Gilberto Freyre (1963), Casa-Grande & Senzala, 
foi a grande referência sobre a família colonial brasileira e sua descrição da família 
patriarcal permaneceu incontestada. 
Hoje, sabe-se, a partir de alguns estudos históricos mais recentes, que ao 
modelo apresentado por Freyre somavam-se outros tantos, evidenciando, 
 
10 Giddens (2000). Op. Cit. P. 63. 
11 Talvez, apenas, a idéia de pluralizar as famílias seja influência do momento histórico atual, da pós- 
modernidade e da sua complexidade constitutiva. 
 16 
sobretudo, as diferenças regionais no Brasil-colônia12. Isto não quer dizer que a 
obra de Freyre tenha perdido importância, mas, com certeza, deve ter relativizado 
o seu alcance em descrever a família colonial. 
 Freyre trata, cuidadosamente, de uma forma de se viver em família – a 
família patriarcal nordestina, mas não dá conta – e, ao que parece, também não 
era sua idéia, da pluralidade de arranjos existentes ao longo de todo o território13. 
Assim, é que junto á família patriarcal, havia na colônia famílias nucleares; 
famílias ampliadas (famílias nucleares com agregados); padres vivendo em 
concubinato com escravas; mancebias entre senhor e escrava; união de brancos 
com índias livres; casal vivendo no mesmo tempo com a concubina do marido; 
mulheres chefes de família etc. 
Ao que parece, os concubinatos e as uniões consensuais – devido aos 
altos custos do casamento – eram práticas corriqueiras entre as classes 
empobrecidas com critérios de escolha muito diferentes dos interesses que 
motivavam as uniões lícitas da elite – em que a escolha do cônjuge seguia a 
lógica da manutenção de patrimônios e influências, sendo uma prerrogativa 
paterna. 
Os concubinatos – “alianças aparentemente saborosas, pois que ditadas 
por simpatias de corpo e alma14”, ao contrário das uniões da elite, pareciam 
desconhecer as leis e os critérios religiosos, obedecendo apenas às prerrogativas 
da comunidade que estipulava o que era, ou não, admissível e tolerável. 
 As migrações dos homens em direção às regiões mais lucrativas, também 
práticas comuns, tinham como conseqüência a proliferação de filhos bastardos 
(deles e delas) e um grande número de lares matrifocais. Na verdade, “girava em 
 
12 No Nordeste destacavam-se as famílias patriarcais dos senhores de engenho, enquanto nas capitanias do 
sudeste colonial, predominavam as famílias nucleares e as uniões consensuais entre as classes subalternas. 
13 Neste contexto D’Ávila Neto diz: “O debate em torno da significação da família patriarcal para o modo de 
vida brasileiro ainda permanece”. Também é neste cenário que se insere a crítica realizada por Caio Prado 
Júnior que mostra que a família patriarcal era uma “minúscula minoria”. Embora possa ser tomada como uma 
“tipologia”, no sentido de Max Weber. A este respeito ver D’Ávila Neto (1994). Op. Cit. P.45. 
14 Del Priore, M.L.M. (1994). Brasil colonial: um caso de famílias no feminino plural. Cadernos de pesquisa 
n.91. São Paulo: Fundação Carlos Chagas. P.73. 
 17 
torno dos 45% o número de mulheres à testa de suas casas, e, destas, 83% 
nunca haviam se casado”15. 
As mulheres, via de regra, assumiam a criação dos filhos de seus maridos 
ou companheiros, aumentando, assim, sua responsabilidade – pois que a criação 
da prole, independente de serem filhos legítimos ou não, era uma prerrogativa 
sua. E todos – mães, madrastas e seus filhos, por vezes, moravam juntos sob o 
mesmo teto – numa ‘micro-comunidade familiar’. 
 Para dar conta da tarefa, tentando, ao mesmo tempo, vencer as condições 
adversas de pobreza e isolamento, as mulheres, na ausência – permanente ou 
temporária – de um companheiro, desenvolviam práticas solidárias em relação a 
outras mulheres, “transformando a relação com os filhos num fio que costurava 
existências femininas variadas e que reforçava a solidariedade de gênero”16. 
Tudo isto mostra a diversidade de arranjos e estratégias presentes no modo 
de vida colonial, onde apenas uma pequena parcela da população, que 
certamente pertencia a elite social, seguia os padrões e imposições colocados 
pela Igreja Católica17. 
Assim, Del Priore18, sintetizando o cenário familiar da Colônia e, ao mesmo 
tempo, apontando a limitação da obra de Freyre, coloca: 
 
“ (...) o perfil do cenário familiar, ao contrário do quadro ruidoso 
e sensual (...) pintado por Freyre, era prosaicamente nuclear, 
sobretudo nas capitanias do sudeste da Colônia. Conhecem-se 
também algumas de suas características: muitos maridos 
ausentes, companheiros ambulantes, mulheres chefiando seus 
lares e crianças circulando entre outras casas e sendo criadas por 
comadres, vizinhas e familiares”. 
 
Freyre, por sua vez, não nega a existência de outras organizações 
familiares, embora centre sua análise na família patriarcal. Neste sentido, ele 
afirma: 
 
15 Ramos (1975) citado por Del Priore (1994). Op.cit. P.72. 
16 Del Priore (1994:72). 
17 Com a união entre Estado e Igreja, que procurava manter sobre controle as populações das colônias, os 
casamentos sacramentados – bastante valorizados, traziam no seu bojo uma série de pressupostos e 
expectativas em relação ao papel da mãe de família – como educar os filhos com os valores cristãos. Havia 
casamentos entre as classes dominadas, mas a elite foi quem mais exerceu esta prática. 
18 Del Priore (1994:71). 
 18 
 
“Do ponto de vista sociológico, temos que 
reconhecer o fato de que desde os dias coloniais vêm se 
mantendo no Brasil, e condicionando sua formação, formas 
de organizações de famílias extrapatriarcais, extracatólicas, 
que o sociólogo não tem, entretanto, direito de confundir 
com prostituição ou promiscuidade”19. 
 
 
Desta forma, mesmo sabendo e pensando a diversidade presente nas 
organizações familiares do Brasil-Colônia e sua importância para a formação 
social brasileira, a obra de Freyre, não pode ser descartada, mas deve, ainda, ser 
vista com cuidado e atenção. 
O caráter conservador do modelo patriarcal descrito por Freyre, e atribuído 
à herança da colonização portuguesa, dá margem para a compreensão de vários 
aspectos importantes da cultura e das famílias brasileiras, ainda hoje. Assim, 
“embora não haja unanimidade em relação à predominância deste modelo 
reconhece-se a influência da família patriarcal como matriz e formadora de uma 
mentalidade e de uma ética que influenciou todas as formas de organização 
familiar”20. 
 A família patriarcal dos senhores de engenho constituía-se, enquanto 
sistema de dominação política e econômica, atendendo aos parâmetros da 
economia latifundiária vigente. Encaixava-se no padrão de família extensa em 
que, ao casal de cônjuges e seus filhos legítimos, somava-se um núcleo periférico 
de tios(as), primos(as), afilhados(as) etc e um outro formado por escravos(as) – 
incluindo-se aí amantes e concubinas do senhor de engenho, e filhos(as) 
bastardos destas relações – assimilados na estrutura familiar. 
 Este modo de organização familiar tinha uma estrutura, notadamente, 
hierárquica, tanto em relação ao gênero, quantoem relação à idade, sendo o 
poder do ‘pater-familias’ incontestável – não só na família, mas na economia, na 
política e em toda sociedade. 
 
19 Freyre (1999) citado por Soares, Ana Cristina Nassif (2001). Mulheres chefes de família: Narrativa e 
percurso ideológico. Tese (dout.). São Paulo: FFCLRP/USP. P.76. 
20 Szapiro, Ana Maria (1998). Percursos do feminino: um estudo sobre a “produção independente” dos anos 
sessenta. Tese (dout.). Rio de Janeiro: PUC. P.124. 
 19 
 A ele era permitida, inclusive, uma prática sexual diferenciada, com 
tolerância à promiscuidades, incluindo-se a manutenção de concubinas e o uso 
das escravas para a satisfação de suas necessidade sexuais. Como resultado, o 
surgimento de um grande contingente de filhos ilegítimos e o aumento 
considerável da população mestiça. 
 Esta prática, aliás, se não era bem vista e estimulada, aparecia como ideal 
sexual para os filhos dos senhores de engenho. “O que sempre se apreciou foi o 
menino que cedo estivesse metido com raparigas (...). E que não tardasse em 
emprenhar negras, aumentando o rebanho e capital paternos”21. 
As mulheres, por outro lado, tinham sua sexualidade controlada, devendo 
total obediência ao homem – pai, marido, ou senhor. Seu papel estava ligado á 
reprodução: de filhos, da riqueza e do poder do senhor de engenho. 
Em sua função reprodutiva, as sinhazinhas, contavam, contudo, com a 
ajuda das amas-de-leite – escravas que saiam da Senzala para a Casa Grande 
com o objetivo de criar os filhos das primeiras. 
A partir daí, talvez seja possível pensar numa determinação de gênero – 
que institui papéis, funções e ‘lugares’ diferentes para homens e mulheres e à ela, 
quem sabe, associar uma outra: a determinação de status – o que hoje 
chamaríamos classe, que também institui papéis, funções e lugares diferentes 
para mulheres diferentes. Este seria, então, o esboço da dupla determinação: a de 
classe e a de gênero, sem falar na racial. Então, se por um lado as mulheres do 
engenho se identificavam por serem mulheres, suas experiências também se 
diversificavam muito em sendo brancas ou negras, escravas ou sinhás: 
 
“Esta é a concepção que foi cravada no imaginário brasileiro e 
que ainda está muito viva, ainda que tenham sido introduzidas 
pitadelas de modernismos de toda sorte, ou de cientificismos que 
procuram escamotear esta visão tradicionalista e racista”22. 
 
 
 
21 Freyre citado por Soares (2001). Op. Cit. P.80 
22 Neder, Gizlene. Ajustando o foco das lentes: um novo olhar sobre a organização das famílias no Brasil. In 
Kaloustian, Sílvio (org.) (1994). Família Brasileira, a base de tudo. UNICEF. São Paulo: Cortez. 
 20 
O fato é que, a partir de 1870, com a publicação do Manifesto Republicano, 
evidenciou-se um processo de crise da monarquia no Brasil, que trouxe consigo 
uma grande instabilidade econômica e social. Na realidade, “é a própria sociedade 
patriarcal, latifundiária e escravocrata que entra em fase de progressiva 
desagregação”23. 
 Com a proclamação da República (1889), o fim do trabalho escravo e o 
acelerado processo de urbanização – com a migração da população da área rural 
para as capitais – foi se desenvolvendo um novo grupo social e a implantação de 
novos valores na sociedade brasileira influenciados, entre outros, pelo 
pensamento positivista. 
Foi a partir do desenvolvimento industrial – em que às mudanças políticas 
recém-instauradas, somaram-se as alterações na estrutura econômica da 
sociedade – já no final do século XIX, que, com a influência das idéias liberais, o 
modelo de família nuclear burguesa criou força e representatividade no Brasil. 
 A família da sociedade burguesa, influenciada por valores da 
modernidade e assumindo a forma de família nuclear, ganhou, então, o nome de 
nova família24. 
Dentro de um novo sistema produtivo a nova família adquiriu um caráter 
intimista, permeada por um valor cultural singular: a de um indivíduo livre e igual. 
Trata-se da ideologia individualizante moderna25, a partir da qual a família passou 
a ter a função de servir de matriz para o Indivíduo adulto e moderno. 
Também a propagação das idéias higienistas – importadas da burguesia 
industrial européia – contribuíram para o surgimento de uma nova mulher – mãe 
dedicada e educada para exercer as funções de educação e formação moral dos 
filhos – um novo “agente social do controle higiênico”26. 
 
23 Azzi, Riolando. Família e valores no pensamento brasileiro (1870-1950). Um enfoque histórico. In Ribeiro, I. 
(org.) (1987). Sociedade brasileira contemporânea. Família e valores. São Paulo: Edições Loyola. 
24 Neder (1994) Op.Cit. 
25 A este respeito ver Dumont, L. (1993). O individualismo: uma perspectiva antropológica da ideologia 
moderna. Rio de janeiro: Rocco. 
26 Szapiro (1998). Op.Cit. P.129. 
 21 
A partir daí, as taxas de alfabetização entre as mulheres começaram a 
aumentar27, mostrando a valorização da educação feminina – voltada, sobretudo, 
ao casamento, à vida doméstica e familiar – para que pudessem melhor cumprir o 
seu papel na instrução dos filhos. 
Afinal, cabia à mãe, como educadora, transmitir os valores da sociedade a 
sua prole, preparando os filhos para, futuramente, ter sucesso no desempenho de 
seus papéis na sociedade. Essa mulher-mãe “se torna assim a reprodutora por 
excelência da ideologia dominante e dos estereótipos sexuais, dos quais é a 
própria vítima”28. 
 Assim, uma nova mulher passou a ser estimulada: menos subjugada ao 
marido, mais moderna, mais consciente, e, sobretudo, mais dedicada ao lar e à 
família. Ser mãe, e exercer bem a maternidade, tornaram-se um grande objetivo 
das mulheres de famílias das classes média e alta, constituindo-se no valor central 
de suas vidas e identidades. 
 A esta altura, o trabalho remunerado, embora também contasse com um 
número cada vez maior de mulheres, consistia em poucas opções como 
magistério ou datilografia e só era aceito em casos de muita necessidade para as 
solteiras – enquanto, depois de terminada a escola, esperavam o casamento; ou 
entre as desprovidas de maridos, viúvas ou separadas29. 
Obviamente, os padrões de conduta burgueses, embora servissem de 
modelo a ser perseguido por todos, referiam-se ao processo de modernização da 
família tradicional, branca e de origem européia. 
Já os setores populares, excluídos, inclusive, do processo educacional – já 
que, considerados por alguns, como ‘raça inferior’ ‘não conseguiriam mesmo 
aprender’30, iam desenvolvendo estratégias e formas alternativas de 
sobrevivência. 
 
27 As taxas de alfabetização da mulher aumentaram mais de 100 % em trinta anos; passando de 22% em 
1890 para 52% em 1920. Dados de Besse (1983) citada por Bruschini, Maria Cristina (1990). Mulher, casa e 
família: cotidiano nas camadas médias paulistanas. São Paulo: Fundação Carlos Chagas: Vértice. P. 63. 
28 Bruschini (1990). Op.Cit. P.67. 
29 Bruschini (1990). 
30 Neder (1994). 
 22 
As mulheres empobrecidas, via de regra, participavam da subsistência da 
família de forma intensa – o que as colocava num lugar diferente daquele ocupado 
pelas mulheres burguesas – doces, frágeis, submissas e com grande vocação 
maternal: 
 
“As condições concretas de existência dessas mulheres, com 
base no exercício do trabalho e partilhando com seus 
companheiros da luta pela sobrevivência, contribuíam para o 
desenvolvimento de um forte sentimento de auto-respeito”31. 
 
 
Mas, o apelo da nova família burguesa, mostrava a sua força enquanto 
modelo, marcando até mesmo, a existência das famílias subalternas: 
 
“O homem pobre, por suas condições de vida, estava longe de 
assumir o papel de mantenedor da família previsto pela ideologia 
dominante, tampouco o papel de dominador, típico destespadrões. 
Ele sofria a influência dos referidos padrões culturais e, na medida 
em que sua prática de vida revelava uma situação bem diversa em 
termos de resistência de sua companheira a seus laivos de tirania, 
era acometido de insegurança”32. 
 
 
Assim, a nova família burguesa – como a antiga família patriarcal, mostrava 
sua força e legitimidade enquanto modelo de convivência. Ambas foram criadas a 
partir das respectivas estruturas sócio-econômicas (industrial – com uma lógica 
capitalista nascente e agrário-exportador – de base latifundiária) vigorantes, as 
quais, por sua vez, também ajudavam a manter. A reprodução de indivíduos – no 
caso da família moderna, e sua boa educação – de que se ocupavam as mães – 
eram formas eficazes de garantir a continuidade destas estruturas. Mesmo assim, 
essas famílias-modelo, não eram, como vimos, o único arranjo existente em cada 
época: 
“(...) as famílias-padrão (quer se tome por base a família 
tradicional, patriarcal, extensa, de origem ibérica, quer então o 
modelo ‘higiênico’ e moralista da família burguesa de inspiração 
vitoriana, introduzido no país a partir do processo de modernização 
que acompanhou a urbanização/industrialização nos primeiros 
 
31 Soihet citada por Soares (2001:87). 
32 Soihet citada por Soares (2001:86). Este trecho de Soihet foi selecionado para indicar a influência e a força 
do ‘modelo’ em toda a sociedade. Mas, acredito, ele mereça ser relativizado: não parece haver indícios o 
bastante para falar numa inviabilização total do papel de dominador do homem, sendo mais interessante falar 
de uma ‘adequação’ da dominação e da tirania a uma situação (a)diversa . 
 23 
anos deste século) convivem no acontecer social com outras 
famílias, até o presente bem pouco conhecidas, de várias origens, 
indígenas ou africanas (matrilineares, patrilineares, poligâmicas/ 
islamizadas etc)”33. 
 
Daí, a importância de recordar – mesmo que de forma sucinta, a história da 
formação social das famílias brasileiras. Assim, é possível perceber que as tramas 
sociais não se resumem a modelos e padrões instituídos, tendo havido sempre 
uma pluralidade de possibilidades e formas de se viver em família. Mesmo que 
mal vistas pelas classes dominantes, as uniões consensuais, as mães solteiras, e 
as famílias chefiadas por mulheres – entre outros arranjos, sempre estiveram 
presentes nas camadas mais empobrecidas do país. 
 
 
1.2. Famílias pós-modernas? Permanências e mudanças nas famílias 
contemporâneas 
 
O modelo tradicional de família nuclear – hierárquico e assimétrico –, que 
como vimos, nunca foi a única forma de família presente na sociedade, vem, nas 
últimas décadas, perdendo força e representatividade, na medida em que uma 
série de ‘novos’ arranjos começa a aparecer e se expandir. 
Vários destes arranjos não são tão novos assim, e já apareciam naqueles 
tempos de Brasil colônia. Lembrando, porém, que eles eram marginalizados, 
discriminados e até escamoteados, já que inadequados aos padrões vigentes. A 
‘novidade’, então, passa a ser a ‘legitimação’ desses arranjos – a partir do 
momento em que eles começam a ser adotados pelas camadas médias e 
expostos ao mundo globalizado. 
 Levado a importar valores e culturas dos países europeus – talvez, 
proveniente de sua condição de país colonizado, este processo de transformação 
nas famílias ocorrido no Brasil já vem sendo identificado por estudiosos de países 
desenvolvidos, há algum tempo. 
 
33 Neder (1994:27). 
 24 
Alguns atribuem este processo à força transformadora dos jovens, outros à 
própria luta das mulheres: com sua dupla reivindicação de direito ao trabalho 
remunerado e ao controle da reprodução. Mas, o fato é que a realidade naqueles 
países, como aqui, distancia-se cada vez mais do modelo de família burguesa 
predominante até o final da década de 60. 
Neste sentido, Castells34 aponta três tendências, observadas a partir do fim 
da década de 60 e que, segundo ele, seriam as forças propulsoras deste processo 
de transformação nas famílias: 
a) o crescimento de uma economia informacional global – responsável 
pela incorporação maciça da mulher na força de trabalho 
produtivo/remunerado, aumentando seu poder de barganha e 
abalando a legitimidade da dominação masculina justificada pela 
condição de provedor da família; 
b) as tecnologias reprodutivas – permitindo maior controle sobre a 
ocasião e a freqüência das gestações; 
c) o movimento feminista – que impulsionou tudo isto a partir da luta e 
da conscientização das mulheres; 
 
Neste contexto, as ‘famílias vividas’ surgem “como soluções que as 
pessoas foram encontrando para construir um local de acolhimento afetivo, de 
intimidade, de cuidados mútuos...”35. Mas, estas famílias – em todas as suas 
variações e apesar delas, coexistem, pacificamente, com o modelo conjugal e 
permanecem como espaço de vida e emoção. 
Neste contexto, aumenta o número de divórcios e de uniões livres36 - 
principalmente nos grandes centros urbanos - e as relações entre os sexos se 
 
34 Castells, Manuel (1996). O poder da identidade. A era da informação: Economia, sociedade e cultura. Vol 2. 
2ª edição. São Paulo: Paz e Terra, 1999. 
35 Szimansky, Heloisa. A construção da justiça social: multifamílias, instituições e redes. Trabalho apresentado 
no IV Congresso Brasileiro de Terapia Familiar. II Encontro Latino- Americano. Brasília, 2000. P.1. 
36 É claro o aumento no numero de divórcios não é garantia de abandono do modelo, até porque é comum 
haver “um patriarcalismo sucessivo: a reprodução do mesmo modelo com diferentes parceiros”. Mas, é 
inegável que, de alguma forma, passando por esta experiência, as estruturas de dominação acabam sofrendo 
abalos. Além disso, a tendência observada é de que o fim dos casamentos leva, cada vez mais, à formação 
de novos lares, novos arranjos familiares. Assim, ao mesmo tempo em que sobem as taxas de divórcio e 
separação, cresce o número de lares unipessoais ou de filhos morando com apenas um dos pais. Já o 
 25 
alteram, multiplicando-se, assim, as tentativas de redistribuição dos papéis no 
interior das famílias. 
Os papéis instituídos refletem, por um lado, uma intrincada distribuição de 
privilégios e, por outro, a dimensão política presente na interação dos indivíduos. 
Através da distribuição de papéis é possível observar a família como um sistema 
intermediário entre indivíduo e sociedade. Afinal, a relação entre os membros está 
ligada à dimensão interna da família, com todas as questões de poder e 
autoridade ali vividas, sendo também reflexo de outras dimensões da vida social, 
e, por isso, deve ser pensada a partir da articulação entre questões internas e 
externas ao universo familiar: 
 
“Esses papéis não são atribuídos a personalidades propícias ao 
seu desempenho, como reza o modelo psicanalítico, mas, ao 
contrário, a família se notabiliza justamente pela capacidade de 
‘criar’ as personalidades adequadas aos papéis”37. 
 
Assim é que apesar das significativas rupturas a que vimos assistindo, 
alguns ritos se perpetuam, e velhos hábitos insistem em aparecer, mesmo no 
cotidiano daqueles que os questionam: 
 
“É a vida cotidiana em toda a sua continuidade, ela na 
cozinha, ele diante do seu jornal, bonecas para as meninas, 
carrinho para os meninos. É difícil mudar, é difícil não impor um 
modelo aos filhos, é difícil redistribuir os papéis”38. 
 
 
Afinal, não é possível cortar definitivamente os vínculos com tudo o que é 
tradicional na vida, com toda e qualquer forma de atividade cotidiana, sob o risco 
de se perder a referência do que nos é familiar e até a própria “segurança”. Isto 
não significa que cotidiano e família não possam ser contestados, atualizados, 
reinventados. Até porque, aceitar a vida cotidiana sem críticas ou restrições,conduz à uma segurança sem liberdade e, por isso se diz que “criar novas formas 
 
aumento das uniões consensuais é um dado relevante porque “a falta de legalização enfraquece a autoridade 
patriarcal, tanto institucional como psicologicamente”. Castells (1999). Op. Cit. 
37 Bruschini (1990: 72). 
38 Bruschini (1990: 28). 
 26 
de vida que substituam a família tradicional, mas que sejam escolhidas livremente 
pode ser (...) o melhor caminho”39. 
No entanto, falar em ‘liberdade’ de escolha também é tarefa complexa e 
merecedora de cuidado e atenção. Trata-se de um valor moderno, ligado à 
ideologia individualizante, que nos remete (mais uma vez) ao lugar intermediário 
da família: entre indivíduo e sociedade. 
 Os ideais da Revolução Francesa: Igualdade, Liberdade e Fraternidade 
foram importados e influenciavam a burguesia e a nova família, que ganhou a 
tarefa de (re)produzir os novos indivíduos. Sendo, liberdade e autonomia, as 
palavras de ordem: 
 
“Autonomia, como a própria palavra indica, traz a idéia de que 
cada indivíduo tem o poder de fazer suas próprias normas. 
Portanto, estamos diante de um imaginário de independência, que 
produz um tipo de enfrentamento, uma tensão permanente entre o 
‘indivíduo autônomo’ e a sociedade”40. 
 
 Esta tensão passa ainda pela família, que com sua dinâmica própria e com 
papéis instituídos, distribui desigualmente o poder, limitando a autonomia de cada 
um de seus membros. Assim, a família exerce seu papel fundamental: 
disciplinarizar os indivíduos aos ideais desta ética individualista. E aí, se 
pensarmos, então, em ‘simplesmente’ mudar estas famílias, lembramos que há 
mais uma instância acima delas que é a sociedade moderna, que tem diversos e 
eficientes mecanismos – até porque invisíveis – de disciplinarização e de 
controle41 dos indivíduos: 
 
“O poder nas sociedades modernas é exercido de forma difusa, 
organizando-se de forma tal que a idéia de escolha individual, tão 
cara aos modernos, é, em última instância, determinada 
socialmente. O indivíduo moderno está submetido a 
agenciamentos sociais que definem parâmetros de ‘opções’ que, 
no entanto, ele mesmo acredita serem o resultado de um exercício 
de sua ’absoluta’ liberdade”42. 
 
 
39 Bruschini (1990: 28). 
40 Szapiro, (1998:19). 
41 Para maiores detalhes sobre estes mecanismos ver Foucault (1998). Vigiar e punir: nascimento da prisão. 
18ª ed.Petrópolis: Vozes. 
42 Szapiro (1998:19). 
 27 
Neste sentido, mudar as famílias a fim de instituir relações mais igualitárias, 
deixa de ser tarefa simples, condicionada apenas a um ato de escolha, ou a 
segurança individual. Na verdade, este, ou qualquer outro projeto, não é um 
fenômeno de ordem subjetiva, ou interna, e sim circunscrito, histórica e 
culturalmente, num ‘campo de possibilidades’: 
 
“Nem robôs inteiramente programados e comandados por 
princípios e mecanismos inconscientes, nem o livre arbítrio do 
indivíduo-sujeito, que molda e faz a sua vida sem limitações, no 
reino da total liberdade cognitiva e existencial. Para tentar dar 
conta do problema dos limites e, ao mesmo tempo, procurando não 
ignorar a margem de manobra possível dentro da sociedade, é que 
tenho utilizado a noção de campo das possibilidades”43. 
 
 
 As possibilidades, então, instituídas com o conceito de indivíduo moderno, 
se apontavam para questões de liberdade, também abriam possibilidades para 
que se reivindicasse igualdade44. O indivíduo como valor estruturante e a ideologia 
igualitarista trazem questões bastante complexas, como a lógica da 
‘indiferenciação’ e o conseqüente aplainamento das diferenças. Ou seja, a partir 
daí, há uma verdadeira ‘homogeneização’ de identidades, tornando incômodas as 
diferenças que, via de regra, passam a ser justificadas45. 
 Daí, o interesse que os estudos de família vem despertando. Dada a 
pluralidade de arranjos familiares que diferem do modelo ideal – família nuclear 
composta de pai, mãe e filhos – há muito a ser ‘justificado’, ‘explicado’. Este 
aumento no número de famílias ‘diferentes’, aliás, é um fenômeno, 
freqüentemente, colocado como ‘crise da família’ – idéia que costuma provocar 
pavor nas diversas instâncias da sociedade. 
Neste sentido, Castells parece bastante cuidadoso, tratando de delimitar o 
conceito de crise, que segundo ele, refere-se apenas ao modelo patriarcal: um 
modelo tradicional de família herdado, em última instância, do patriarcado – família 
 
43 Velho, Gilberto (1981). Parentesco, individualismo e acusações. In Figueira, S. A. e Velho, G. (coord). 
Família, Psicologia e Sociedade. Rio de janeiro: Campus. P.79. 
44 A idéia de igualdade entre os seres humanos abriu um campo de possibilidades para as mulheres que 
viram ali, a brecha para contestar o seu status de cidadã de ‘segunda categoria’, reivindicando igualdade de 
oportunidades em relação aos homens. Ou seja, a ideologia igualitarista, abriu espaço para que o movimento 
feminista pudesse de desenvolver. 
45 Szapiro (1998). 
 28 
nuclear, composta de pai, mãe e filhos, de estrutura hierárquica e com rígida 
divisão de papéis e funções, caracterizada pela “autoridade/dominação contínua 
exercida pelo homem, cabeça do casal, sobre toda a família”46. 
O que está em jogo, portanto, não é o desaparecimento da família, mas do 
modelo tradicional de família patriarcal: 
 
“Não se trata necessariamente do fim da família (...), mas da 
família como a conhecemos até agora. Não apenas a família 
nuclear (um artefato moderno), mas a família baseada no domínio 
patriarcal, que tem predominado há milênios”47. 
 
 
Ainda assim, é preciso estar atento para as armadilhas: dizer que a família 
está em crise, ainda que se esteja referindo a crise da família patriarcal descrita 
por Castells, significa, em última instância, admitir a existência deste modelo como 
único, contribuindo com o mito evolucionista da família. 
A ‘lógica evolucionista’48 reforça o mito da família unida e coloca a família 
nuclear no ápice do processo de evolução; numa passagem que vai da família 
extensa a família conjugal moderna49 – em que os casais e seus filhos moram 
harmoniosamente sobre o mesmo teto. 
A família moderna tem como característica a incorporação do amor 
romântico ao laço conjugal, através da livre escolha do cônjuge, e, como vimos, a 
valorização da maternidade, pela centralidade do papel da mãe na socialização 
dos filhos e a exaltação do lar como um lugar seguro, um refúgio contra as 
pressões do mundo público50. Daí, que alguns adeptos da lógica evolucionista 
vejam neste modelo um nítido avanço moral, colocando-no no cume do processo 
de evolução. 
 
46 Castells (1999: 173). 
47 Castells (1999: 174). 
48 Fonseca, Claudia (1995). Amor e família: vacas sagradas da nossa época. In Ribeiro, I. e Ribeiro, A T. 
(org.). Famílias em processos contemporâneos: Inovações culturais na sociedade brasileira. São Paulo: 
Loyola. 
49 Também foi este o percurso que trilhamos no capítulo anterior, mas com o claro objetivo de mostrar que 
este caminho foi o das classes dominantes, tendo sempre existido caminhos ‘alternativos’ – vividos, 
paradoxalmente, por grande parte da população. 
50 Outra característica importante da família nuclear, mas que costuma ser esquecida por seus defensores, é 
o seu isolamento que “acentua o peso do papel da mãe na medida em que esta não conta com parentes para 
ajudar e, por outro lado, o marido se encontra fora trabalhando”. Bruschini (1990: 67). 
 
 29 
Neste sentido, qualquer forma de se viver em família diferente deste modelo 
é vista como desagregação ou patologia e, como as demais diferenças modernas, 
causam incômodo e devem ser explicadas. 
Ainda nestecontexto, embora dentro de uma linha um pouco mais 
progressista, surgem as ‘explicações’ – muitas travestidas de denúncias – que 
vêm culpar o capitalismo e as mazelas econômicas e sociais pela ‘desagregação’ 
ou crise da família. 
Mas, apesar da válida tentativa de contextualização, lembrando inclusive a 
realidade sócio-econômica de cada época, há um erro grave que perpassa estas 
idéias: mais uma vez, a premissa implícita de que existiria uma família ideal, feliz e 
‘natural’ – que corresponderia a família conjugal, sendo quaisquer outras 
merecedoras de ‘explicações’. 
Assim, é preciso cautela com estas afirmações, até porque, como vimos, 
não se pode falar, ao longo da história em um único modelo, ou num modelo 
natural. Além disso, os modelos que passaram a circular no senso comum como 
naturais correspondiam sempre às expectativas das classes dominantes, não 
representando senão uma pequena parte da população. 
Não se trata aqui, é bom que se esclareça, de desculpar ou minimizar os 
efeitos cruéis e perversos que as políticas públicas (ou a falta delas) acarreta 
sobre milhões de brasileiros. Mas, de reconhecer que até mesmo por isso, há 
especificidades na dinâmica histórica destes setores mais desfavorecidos a serem 
levados em conta. O inadmissível, a nosso ver, é a utilização do sistema de 
valores, que rege a dinâmica histórica das classes dominantes, como valor único, 
ou o mais evoluído. 
Assim, sabendo ser ‘comum’ se deixar guiar por uma imagem evolucionista 
em que a família conjugal aparece como ideal de evolução, é preciso tomar os 
historiadores sociais como aliados, procurando ter claro que todas as famílias, 
constituídas modelos hegemônicos, ou não, são ‘apenas’ conseqüências de um 
determinado contexto histórico e social51. 
 
51 Afinal as famílias, como dissemos, são intermediárias entre indivíduos e sociedade – representando 
aspectos fundamentais de ambos. E daí, que a psicossociologia também tenha muito a contribuir em termos 
de enfoques e ferramentas para o estudo dos sistemas familiares. 
 30 
Neste sentido, aquilo que, sob qualquer justificativa ou explicação, é 
colocado como crise, deve ser visto mais na forma de um ‘alargamento’ das 
possibilidades e formas de se viver em família – o que também só foi possível, 
importante frisar, devido ao processo de ‘proletarização’52 das formas ‘marginais’ 
de se viver em família. 
Assim, é que na pós-modernidade, ao invés de falarmos em crise da 
família, devíamos falar em crise de modelos, devendo ser o modelo da 
‘democratização’ o único plausível no campo das relações humanas e familiares. 
 
 
1.3. Famílias em contexto de pobreza – algumas reflexões 
 
A despeito do esforço de teóricos e estudiosos para desconstrução da idéia 
de família ideal, continua fazendo parte do senso comum um modelo baseado na 
‘nova família’ – a família nuclear burguesa: um pai que trabalha, uma mãe que fica 
em casa e crianças que vão a escola. Mas, de tão profundamente enraizado e 
banalizado este modelo, ninguém costuma lembrar que a sua existência exige 
alguns pressupostos: trabalho regular, moradia e escola. 
Assim, apesar de básicos para uma vida digna, estes pressupostos não são 
acessíveis a milhões de brasileiros que, ao contrário, vivem as conseqüências 
dramáticas das políticas neoliberais; com desemprego crescente, encolhimento 
dos serviços públicos etc. 
A partir daí, fica fácil entender a impossibilidade de efetivação deste modelo 
familiar por grande parte das camadas populares e o grande paradoxo que aí se 
instaura: a situação impede sua realização, mas também coloca este modelo 
como ideal e o legitima – aumentando o sentimento de incapacidade de grande 
parte da população ao não conseguir se ‘adequar’. 
 
52‘Proletarização’ seria o processo através do qual as formas ‘marginais’, ‘alternativas’, ‘desagregadas’ ou 
‘patológicas’ de se viver em família, foram deixando de ser uma prerrogativa das classes subalternas e se 
tornando cada mais freqüentes nas classes médias. Este fenômeno é apontado por alguns autores como a 
grande mudança observada desde a nova família – a família nuclear moderna, uma vez que famílias 
‘alternativas’ sempre estiveram presentes, não sendo nenhuma invenção da pós-modernidade. 
 31 
Este é um outro problema com a instauração – recorrente – de modelos. 
Como vimos, os modelos tendem a representar, apenas, uma parcela da 
população, mas, que detém poder suficiente para os naturalizar e os colocar na 
forma de ideais a serem perseguidos. Quem não se adequa é visto como 
desviante e tende a viver um sentimento de fracasso53. 
Se, neste ponto, resgatamos a tal da lógica evolucionista, as classes 
abastadas – com mais chances de efetivar ‘o modelo’ – ganham o status de 
evoluídas, enquanto as classes desfavorecidas passam a ser vistas como 
‘atrasadas’ – aqueles que um dia chegarão lá: 
 
“A implicação está clara. O novo, o interessante, o 
moderno, está tudo conosco. ‘Nós’ (a elite) temos cultura. Nós 
inovamos. ‘Eles’ (os pobres) estão tentando e, quem sabe, um dia 
cheguem lá”54. 
 
Daí, o esforço de teóricos para desconstruir estas idéias, que, no entanto, 
parecem persistir no senso comum e no sentimento de inadequação destas 
‘famílias alternativas’. 
Neste sentido, é preciso buscar a dinâmica histórica orientadora da prática 
de cada grupo, ao invés de esperar que grupos com realidades sócio-econômicas 
tão diferentes – ainda mais no Brasil, onde a péssima distribuição de renda cria 
um imenso abismo entre ricos e pobres – compartilhem de um mesmo sistema de 
valores e comportamentos: 
 
“Quanto mais a realidade humana é reduzida a alguns traços 
globais, tanto mais a ética tende a tornar-se unilateralmente 
idealista e desligar-se da concretude histórica das pessoas e 
situações. O ideal de convivência familiar deixa-se formular em 
poucas palavras, mas a caminhada de cada família e de cada um 
de seus membros depende das condições reais em que eles vivem 
e das possibilidades presentes de que eles dispõem”55 . 
 
 
 
53 Estas idéias são colocadas por autores como Szymanski (2000), entre outros. Szymanski, Heloisa (2000a). 
Simpósio: A construção da justiça social: multifamílias, instituições e redes. Trabalho apresentado no IV 
Congresso Brasileiro de Terapia Familiar. II Encontro Latino- Americano. Brasília, 2000. 
54 Fonseca, Claudia (1995). Op.Cit. P. 75. 
55 Leers, Bernardino (1987). Filosofia, moral, ética, família e sociedade no Brasil (1964-1984). In Ribeiro, I. 
(org.). Sociedade brasileira contemporânea. Família e valores. São Paulo: Edições Loyola. P. 134. 
 32 
Assim, apesar do contexto geral do país ser marcado por desigualdade e 
pobreza, ‘ajudando’56 inclusive na proliferação de formas diversas de se viver em 
família, é preciso, logo de início, ressaltar que, apesar de suas variações, as 
famílias continuam sendo um lugar privilegiado de proteção e de pertencimento. 
Não significa a não existência de motivos para preocupação, afinal, como 
intermediária entre indivíduos e sociedade, as famílias sofrem influência do meio, 
podendo este contexto ser fortalecedor ou esfacelador de suas possibilidades e 
potencialidades, principalmente aquelas ligadas à proteção, socialização e criação 
de bons vínculos relacionais. Assim, “o potencial protetivo e relacional aportado 
pela família, em particular daquelas em situação de pobreza e exclusão, só é 
passível de otimização se ela própria recebe atenções básicas”57. 
Afinal, um contexto de pobreza costuma ter repercussões decisivas para 
uma deteriorada qualidade de vida. Ainda mais quando se entende a pobreza não 
somente como “uma determinada relação das pessoas com as coisas, mas uma 
relação destas consigo mesmas, com outros e com o ambiente psicológico, social 
e ecológico”58.A partir daí, é possível pensar em formas diversas pra lidar com a questão 
da pobreza e das famílias de classes desfavorecidas, entendendo que: 
 
“O sentido das necessidades básicas das famílias pobres deve 
suplantar a mera visão biologista e incluir outras como 
psicológicas, sociais e éticas, de auto-estima, de uma relação 
significativa com os outros, de crescimento da própria competência 
ou de uma participação na definição do significado de sua vida 
pessoal e dos demais”59. 
 
Talvez seja este o motivo pelo qual as políticas, voltadas apenas para a 
renda familiar, venham se mostrando insuficientes. É o que parece sugerir a 
 
56 A idéia de ‘ajuda’ não é condizente com a ‘determinação’. A condição sócio-econômica fragilizada não é a 
‘causa’ da proliferação de novos arranjos familiares, afinal, este fenômeno não é exclusividade das camadas 
empobrecidas. 
57 Carvalho, Maria do Carmo (2000). O lugar da família na política social. In: Carvalho, M. C. (org). A família 
contemporânea em debate. São Paulo: EDUC/ Cortez. P.18. 
58 Amat et al, citado por Takashima, Geney (1994). O desafio da política de atendimento à família: dar vida às 
leis - uma questão de postura. In Kaloustian, Sílvio (org.) (1994). Família Brasileira, a base de tudo. UNICEF. 
São Paulo: Cortez. 
59 Takashima (1994). Op.Cit. P. 79. 
 33 
necessidade de elaboração de planos mais globais, capazes de contemplar os 
diversos aspectos presentes na questão60. 
Mas, para que estes aspectos possam ser apreendidos de forma profícua, é 
preciso uma aproximação maior da realidade dessas famílias, rompendo com a 
visão evolucionista e buscando entender as especificidades apresentadas em 
termos de valores e comportamentos. 
Assim, diante do desafio de tentar mapear a dinâmica própria das famílias 
em contexto de pobreza, uma primeira constatação se faz evidente: a maior parte 
dos estudos indica uma certa ‘lógica da solidariedade’ que estaria presente, 
marcando oposição com a ‘lógica do individualismo’ das classes médias61. 
Esta lógica da solidariedade refere-se, no entanto, à ação dessas famílias 
perante a sociedade, não estando ligada à harmonia e consenso entre os 
membros, mas à uma espécie de ‘interdependência necessária com o outro’. 
Uma pergunta que se impõe a partir daí é se esta ‘família solidária’ seria um 
modelo ‘novo’, ou se seria apenas uma adaptação da família tradicional às 
condições adversas. 
Afinal, pensar os pobres como ‘os outros’ e as famílias trabalhadoras a 
partir de ‘estratégias de sobrevivência’, reduzindo sua existência a um arranjo em 
prol de suprir as necessidades materiais, é um viés histórico, atualmente, 
contestado por estudiosos. Há, implícitos nestas idéias, antigos preconceitos que 
levam a pensar a identidade social das classes desfavorecidas como construídas 
apenas pela determinação de classe, quando na verdade, existem outras 
implicações: 
“Os pobres urbanos constituem uma categoria relacional, cuja 
definição básica é sem dúvida o eixo econômico, mas cuja 
identidade social se constrói com base num processo contínuo de 
identificações e diferenciações que fazem parte da lógica social de 
 
60Neste sentido, alguns autores já chegam a afirmar serem “necessárias atenções diversificadas que se 
complementam mutuamente” como, por exemplo, “serviços de apoio psicossocial, cultural e jurídico”, o que 
representa uma grande evolução no pensamento das políticas públicas. A idéia é sair, cada vez mais da 
lógica tutelar e assistencialista – em que a distribuição de cestas básicas se traduz num perfeito exemplo, 
desenvolvendo a autonomia familiar e trabalhando por seu fortalecimento emancipatório. Assim, “no lugar de 
uma política social movida pela compaixão, busca-se consolidar uma política movida pela lógica do 
reconhecimento dos direitos sociais e, portanto, da justiça e da equidade”. Carvalho (2000). Op. Cit. P.18,19 e 
20. 
61 A este respeito ver Bilac, E.D. (1995). Sobre as transformações nas estruturas familiares no Brasil. Notas 
muito preliminares. In Ribeiro, I. e Ribeiro, A T. (org.). Op. Cit. 
 34 
um sistema diferenciador por excelência, tanto em sua faceta 
capitalista, que institui a desigualdade básica, como em sua faceta 
hierárquica, que reproduz reiteradamente facetas 
complementares”62. 
 
Neste sentido, as famílias em questão apresentam, segundo Sarti, uma 
estrutura hierárquica, seguindo um padrão de autoridade patriarcal: precedência 
do homem sobre a mulher, dos pais sobre os filhos e dos mais velhos sobre os 
mais novos. Estas famílias pobres urbanas teriam ainda uma dinâmica onde a 
divisão sexual do trabalho se faz notável: o homem aparece como provedor e a 
mulher como dona de casa – com papéis de gênero e idade definidos, de forma 
recíproca e complementar. 
A autoridade do homem é definida em relação ao mundo externo, ele é o 
responsável pela imagem externa, pelo respeito e respeitabilidade da família – 
fazendo um papel estratégico de intermediário entre a família e o mundo externo. 
Assim, embora o homem possa ser identificado como uma figura de 
autoridade, a mulher também tem uma parcela incontestável de autoridade 
baseada, principalmente, nos seus papéis de mãe – e numa forte valorização 
simbólica desta figura63 – e dona de casa – por quem é responsável pela 
organização e bom funcionamento. 
Além disso, o controle do dinheiro, também aparece um dos fundamentos 
da autoridade da mulher; uma prerrogativa de seu papel de dona de casa, que 
independe de sua capacidade individual de ganhar dinheiro. 
A partir daí, surgem interessantes distinções colocando o homem como 
‘chefe da família’ e a mulher na condição de ‘chefe da casa’.64 Entretanto, não 
deixa de haver uma hierarquia implícita, situando a autoridade do homem num 
plano mais elevado e menos imediato do que aquele ocupado pela mulher65. 
 
62 Sarti, Cynthia (1995). O valor da família para os pobres. In Ribeiro, I. e Ribeiro, A T. (org.). Op. Cit. P.148. 
63 Segundo Sarti “essa valorização da mãe é um dos muitos aspectos que fazem do Brasil um pais 
extremamente paradoxal: tem uma taxa de abortos que se situa entre as mais altas do mundo, tem um alto 
índice de crianças abandonadas e tem uma alta incidência de mulheres ‘chefes de família’ vivendo em 
condições precárias e cuidando de seus filhos sem nenhum amparo legal”. Sarti (1995). Op. Cit. P.137. 
64 Sarti (1995). 
65 Talvez seja a partir daí se desenvolvam as formas ‘veladas’ de poder e controle por parte das mulheres. 
Neste contexto se insere o comentário de Leers: “Em muitos lares, quem manda em tudo, mantém a linha e 
dirige até o próprio marido é a mulher-mãe. Mas ela é tão inteligente ou tão treinada em ser submissa 
conforme o figurino oficial, que deixa seu marido com a impressão agradável de que é ele quem manda em 
 35 
Neste sentido, há, não só uma vinculação do trabalho feminino como 
complementar ao do homem – sendo seus rendimentos destinados aos ‘extras’ – 
mas também uma espécie de ‘experiência negativa’ da mulher em relação ao 
trabalho fora do lar. Primeiro pelos baixos salários e más condições, depois por 
este trabalho ter que afastá-las do cuidado com a casa e, principalmente, do 
cuidado com os filhos. Assim, a imagem de dona de casa vai se legitimando: 
 
“Diferentemente das mulheres profissionais de camadas médias e 
altas, a baixa qualificação, baixa remuneração e sobrecarga de 
tarefas domésticas para as trabalhadoras pobres contribuem para 
tornar o trabalho remunerado muito pouco gratificante, ainda que 
‘algum dinheirinho meu’ e o exercício de uma atividade ‘fora de 
casa’, que as retire do confinamento doméstico, justifiquem muitas 
vezes os sacrifícios”66. 
 
 
Dizer que os pobres usam um padrão de autoridade patriarcal, que não é 
exclusivamente seu, não é o mesmo que corroborar a tese de‘triunfo da ideologia 
dominante’, ou da ‘alienação’ ou incapacidade de construções culturais próprias, 
“mas implica pensar que a elaboração de traços culturais próprios se dá pela re-
tradução, pela re-interpretação de matrizes simbólicas socialmente dadas, com 
seus recortes, suas tensões e ambigüidade de não ter apenas uma face”67. 
Esta, aliás, parece ser uma característica da sociedade brasileira, fazer 
sempre uma espécie de releitura, ou decodificação, a partir de nossas próprias 
experiências e referenciais, dos modelos que aqui chegam. Haveria assim, como 
marca do processo de modernização do Brasil – com sua imensidão territorial – e 
de suas famílias, um movimento constante de incorporação e adaptação do 
‘moderno’ ao ‘arcaico’, numa prática em que novos valores são incorporados a 
valores tradicionais, delineando o que seria a nossa “originalidade nacional”68. 
 
casa”. Leers (1987). Op.cit. P.149. Mas, para maiores detalhes sobre estratégias ‘sutis e manipulativas’ 
desenvolvidas pelas mulheres brasileiras e utilizadas para influenciar o comportamento de maridos e filhos ver 
Rocha-Coutinho, Maria Lucia (1994). Tecendo por trás dos panos: a mulher brasileira nas relações familiares. 
Rio de Janeiro: Rocco. 
66 Sarti (1995: 145). 
67 Sarti (1995: 147). 
68 “A originalidade nacional” se refere então a este modo peculiar brasileiro de assimilar e interpretar as 
experiências das sociedades desenvolvidas, fazendo uma espécie de “colagem mais ou menos” dos valores 
modernos à nossa constituição social tradicional. Uma das conseqüências seriam “as idéias fora do lugar”, 
 36 
E, como estamos falando das famílias pobres, talvez não fosse errado 
exacerbar ainda mais a tal ‘originalidade’, já que, até chegar aí, haveria dois níveis 
de re-leitura, ou re-tradução: o primeiro seria feito pelas classes médias, 
abastadas e/ou mais intelectualizadas, mais abertas a inovações culturais e com 
mais recursos para captá-los, tendo como matéria prima idéias e valores 
‘importados’ de países ‘desenvolvidos’; já o segundo, seria feito pelas classes 
desfavorecidas, tendo como ponto de partida os resultados do primeiro nível de re-
interpretação feito pelas camadas médias. 
A partir daí, ainda que as relações patriarcais apareçam como estruturantes 
do nosso ‘caráter nacional’ enquanto brasileiros – sejamos ricos ou pobres69 - vai 
delineando-se uma realidade complexa, com grande originalidade e pluralidade de 
possibilidades – inclusive de contradições e ambigüidades – típicas de um cenário 
pós-moderno: 
 
“A realidade da vida familiar no Brasil, porém, é muito mais 
complexa e variada. A rapidez e a desigualdade do ritmo das 
mudanças, a diversidade das áreas culturais, a variação regional 
do desenvolvimento humano no país tornam qualquer tentativa de 
uniformização ingênua e superficial. Lugar, classe social, sexo, cor, 
idade condicionam profundamente as formas concretas da 
convivência dos milhões de famílias que estão escrevendo a sua 
história”70. 
 
Neste sentido, é que a identidade dos pobres urbanos, embora seja 
construída em relação com a totalidade a que se referem, permitindo falar em 
família patriarcal71, baseia-se num mecanismo de sucessivas re-traduções – com 
a adição de elementos próprios, não sendo possível falar de passividade, ou de 
uma simples reprodução da ideologia dominante. O que há é uma espécie de 
 
brilhantemente discutidas por Schwarz. Para maiores detalhes ver Schwarz, Roberto (1981). Ao vencedor as 
batatas. Forma literária e processo social nos inícios do romance brasileiro. 2ª ed. São Paulo: Duas Cidades. 
69 É claro que a forma com que as relações patriarcais vão aparecer será diversa em cada esfera e em cada 
família, dependendo da re-leitura feita por cada um, a partir de valores e dinâmicas próprios, que se podem 
ser notados entre ricos e pobres, também aparece em cada família e em cada indivíduo – ainda que dentro do 
campo de possibilidades de cada um. 
70 Leers (1987: 134). 
71 “Evidentemente não se trata da família patriarcal associada ao poder político (...), mas a família patriarcal 
como um modelo de autoridade, no que se refere às relações internas da família, em que o homem tem 
precedência sobre a mulher, os pais sobre os filhos e os mais velhos sobre os mais novos; e, ainda, como o 
paradigma de uma concepção moral fundada no princípio da reciprocidade que rege a lógica da casa e que 
dá sentido também às relações fora do âmbito familiar”. Sarti (1995: 147). 
 37 
tensão permanente “entre o projeto global e as condições reais da criatividade 
moral dos agentes humanos”72. 
Daí, a importância de uma reflexão crítica em relação aos indicadores 
estatísticos brasileiros – objetivo do capítulo seguinte. 
 
 
1.4. Refletindo sobre alguns indicadores nacionais 
 
A despeito do processo de globalização, ou mesmo em decorrência dele, 
há especificidades em relação às mulheres e famílias brasileiras que devem ser 
analisadas. 
O fenômeno mundial (ou global) de declínio do patriarcado, preconizado por 
Castells, deve ser pensado de forma ainda mais cautelosa no caso do Brasil, país 
“em desenvolvimento”. Apesar de muitas estatísticas brasileiras apontarem na 
mesma direção das tendências mundiais pontuadas pelo autor – o que é de se 
esperar num mundo globalizado – um olhar mais atento e crítico deve ser lançado 
sobre estes números, revelando algumas importantes particularidades73. 
Também aqui há uma significativa diminuição no número de famílias que 
seguem o modelo tradicional de origem patriarcal – casal, em seu primeiro 
casamento, morando com seus filhos74. Redução, aqui também, acompanhada 
pelo crescimento de formas alternativas de organização doméstica, onde se 
destacam as organizações unipessoais e as famílias formadas por mulheres e 
seus filhos – sem cônjuge75. 
No que se refere às unidades domésticas unipessoais, revelando maior 
incremento entre os jovens, deve-se levar em conta tanto o aumento no número 
 
72 Leers (1987: 135). 
73 Basta dizer que, na década de 90 ainda havia mais de um terço (36,8%) das famílias brasileiras vivendo em 
condições bastante precárias, encontrando-se “abaixo da denominada ‘linha de pobreza’, isto é, com um 
rendimento familiar ‘per capita’ de até 1/2 salário mínimo”. Ribeiro, Rosa Maria; Sabóia, Ana Lúcia; Branco, 
Helena & Bregman, Sílvia. “Estrutura familiar, trabalho e renda”. In Kaloustian, Sílvio (org.) (1994). Op. Cit. 
74 A pesar da redução relativa que sofreu entre 1981 e 1990 (6,3%), este tipo de unidade doméstica continua 
a predominar na sociedade brasileira, representando cerca de 60% do total, em 1990. 
75 “As unidades domésticas unipessoais e as famílias formadas por mulher sem cônjuge morando com os 
filhos são os dois tipos que apresentaram maior crescimento relativo: 21,4% e 19%, respectivamente”. 
Ribeiro, Rosa Maria et al. (1994). Op.Cit. P.135. 
 38 
de separações e divórcios, como o casamento mais tardio das mulheres – 
modelos de comportamento próximos aos encontrados nos países em superior 
estágio de desenvolvimento. 
Já no caso das famílias integradas pela mãe com filhos, percebe-se a 
articulação de diversos fatores. De um lado, aparece o aumento da participação 
feminina no mercado de trabalho76 e a suposta transformação dos valores que 
indicavam o casamento como melhor opção para a mulher – elementos que 
incidiram sobre pessoas de todos os níveis sociais, mas, em especial, nos mais 
elevados. 
De outro, “o próprio aprofundamento da situação de pobreza, decorrente da 
crise econômica pela qual vem passando a sociedade brasileira, (que) gerou uma 
série

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