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UFRJ – Universidade Federal do Rio de Janeiro CFCH – Centro de Filosofia e Ciências Humanas IP – Instituto de Psicologia EICOS – Programa de Estudos Interdisciplinares de Comunidades e Ecologia Social “Na hora que tá em sufoco, um ajuda o outro”: Um estudo sobre famílias chefiadas por mulheres urbanas de baixa renda. Juliana de Souza e Costa Nazareth Dissertação apresentada como parte dos requisitos para a obtenção do título de Mestre em Psicossociologia de Comunidades e Ecologia Social. Orientação: Profª Drª Maria Inácia D’Ávila Neto. Rio de Janeiro 2003 1 À Antonieta, minha avó, uma grande mulher. À Cristina, minha mãe, chefe de família, imagem nítida de toda força e amor. A Décio, meu pai, de quem herdei o gosto pelos estudos e pela ‘arte’ de escrever. A Alexandre, meu marido, grande companheiro na jornada da vida. 2 AGRADECIMENTOS • Aos funcionários do Instituto de Psicologia da UFRJ e aos funcionários, professores e colegas do Programa EICOS, pela convivência, pela paciência, pelos conhecimentos compartilhados e pelo carinho. • Aos professores membros da banca examinadora de qualificação e do mestrado pelas valiosas sugestões e pela disposição em participar e engrandecer estas etapas fundamentais no incremento do meu aprendizado. • À minha orientadora, madrinha e amiga Profª Drª Maria Inácia D’Ávila Neto, pelos ensinamentos – na academia e na vida, pelas oportunidades e pela confiança que sempre depositou em mim, inclusive nos meus momentos de maior hesitação. • À Profª Drª Tânia Barros Maciel, responsável pela minha iniciação na pesquisa, e pela minha participação num grande projeto de mobilização social e participação comunitária, acontecimentos que marcaram a minha vida e foram determinantes para decisão de fazer o mestrado. • À minha ‘grande’ família, meu marido, meus pais, meu irmão, minha avó, meus tios, primos, sogro, sogra, cunhados e sobrinhos, pelo amor, pela torcida e pelos momentos de descontração e carinho. • Ao meu marido e a minha mãe, maiores ‘vítimas’ de todo o processo, pela paciência e compreensão, tantas vezes necessárias, e pelo apoio incondicional que sempre me deram. • Ao meu pai pela leitura cuidadosa e a revisão atenta do texto. • Aos meus amigos e a todos que, mesmo distantes, torcem por mim. • Ao Centro Comunitário Sem Fronteira pelo contato sempre estimulante e pelas portas sempre abertas ‘às meninas da Universidade’. • Às mulheres entrevistadas por cederem seu precioso tempo e pela lição de força, garra e determinação. • Ao CNPq por financiar meus passos de Iniciação Científica e à CAPES pelo apoio financeiro fundamental para o desenvolvimento deste trabalho. 3 RESUMO O cenário contemporâneo é marcado, entre outras coisas, pela globalização de saberes e práticas e pela proliferação de novos arranjos e formas de organização familiares. Neste contexto, destacam-se as famílias chefiadas por mulheres que, embora sempre tenham existido, vêm se tornando cada vez mais numerosas e se constituindo como fator determinante na chamada ‘feminização da pobreza’ neste país. Daí, a preocupação e a urgência de se (re)pensar estas famílias. E daí, a proposta deste estudo que trata, então, de famílias chefiadas por mulheres, moradoras de uma comunidade pobre e urbana do Lote XV, município de Belford Roxo, Baixada Fluminense. Aqui, três temas aparecem como centrais: as famílias, com toda a sua pluralidade e diversidade – a despeito da presença de ‘modelos’ e ‘ideais’; as mulheres; e a pobreza e adversidade em que vivem. Da complexa articulação entre estes temas: famílias, mulheres e pobreza, vão se delineando os contornos deste estudo, que recorre à interdisciplinaridade como ferramenta primordial. Alguns resgates históricos foram feitos no intuito de se lançar luz sobre questões importantes, como a condição da mulher e sua relação com o passado patriarcal. Relação que, apesar das conquistas e transformações – devidas, em grande parte ao feminismo e à disseminação das idéias feministas – parece ainda se atualizar. Desta forma, o processo de modernização da sociedade brasileira e de suas famílias, aparece como uma boa metáfora para a identidade dessas mulheres: um exercício constante de agregar o novo ao tradicional, sem, contudo, perder as raízes da estrutura patriarcal. Palavras-chave: 1. Famílias 2. Mulheres 3. Gênero 4. Pobreza 4 ABSTRACT The contemporary scenery is marked, among other things, by the globalization of acknowledgements and practices and by the multiplication of new arrangements and forms of family organization. In this context, closer attention should be given to families headed by women, which, even though have always existed, are becoming more numerous each day and turning into a crucial factor for what we call “poverty’s feminization” in this country. This is why there is urgency to look more closely at these families. And having this concern in mind, this study is about families, all of which headed by women, who reside in the poor urban community of Lote XV, Belford Roxo county, Baixada Fluminense. Thus, three themes are focused: the families, who, despite the presence of “models” and “ideals” have great diversity; the women; and the poverty, in which a growing number of women and their families have to live. From the complex articulation of these themes: families, women and poverty, arises the outlines of this study, referring to interdisciplinarity as its basic tool. Accordingly, referral to historic data are made in order to emphasize important subjects, such as women’s condition and its relation to a patriarchal past. It should be noted that in spite of many conquests an transformations, part of which due to feminism and the spread of feminist ideas, this relation seems to update to today. In this manner, the process of modernization of the Brazilian society an their families appears as a great metaphor for these women’s identity: a constant exercise to aggregate what’s new with what’s traditional, maintaining, however, the foundation of the patriarchal structure. Key – words: 1. Families 2. Women 3. Gender 4. Poverty 5 SUMÁRIO Apresentação.....................................................................................................P.9 I Parte – Fundamentação Teórica 1 – Das famílias de ontem às de hoje: o processo de modernização (das diferenças) nas famílias brasileiras 1.1. Famílias brasileiras da colônia à republica: modelos e rupturas....P.16 1.2. Famílias pós-modernas? Permanências e mudanças nas famílias contemporâneas............................................................................P.24 1.3. Famílias em contexto de pobreza..................................................P.31 1.4. Refletindo sobre alguns indicadores nacionais..............................P.38 1.5. O caso da chefia feminina: rumo à ‘feminização’ da pobreza........P.40 2 – A disseminação das idéias feministas: um pouco da história 2.1. Feminismo e família: algumas articulações..................................P.47 2.2. Alguns impasses numa história de conquistas..............................P.51 3 – A mulher contemporânea: permanências e mudanças 3.1. As mulheres no mercado de trabalho............................................P.57 3.2. As marcas – ainda atuais? – de um passado patriarcal................P.65 6 II Parte – Pesquisa de Campo 1. Questões para a construção de uma pesquisa de campo.......................P.712. Descrição do universo pesquisado – ou ‘Sujeitos’..................................P.76 2.1. Quadro-síntese com as principais características das mulheres entrevistadas........................................................................................P.80 3. Descrição do processo – ou ‘Procedimento’...........................................P.81 3.1. A Análise de conteúdo ...........................................................................P.82 4. A pesquisa e seus resultados 4.1.Analisando o conjunto de categorias e discutindo resultados.................P.86 4.1.1. A vida como chefe de família..........................................................P.87 4.1.1.1. O que é ser chefe de família, afinal?!................................P.87 4.1.1.2. Principais dificuldades que enfrentam as mulheres chefes de família.................................................................................P.93 4.1.1.3 Estratégias de sobrevivência: a construção de redes de solidariedade.....................................................................P.102 4.1.2. Cotidiano e Trabalho feminino......................................................P.111 4.1.3 Família e Relações de Gênero......................................................P.118 4.1.3.1. Ser Homem X Ser Mulher – do real ao ideal...................P.118 4.1.3.2. Percepções sobre “casamento” – e os motivos de seu rompimento.......................................................................P.128 4.1.3.3 Violência Física e Psicológica..........................................P.137 4.1.4 Mudanças, Permanências, Desafios e Perspectivas.....................P.144 4.2. Discutindo resultados .....................................................................P.156 5. Considerações Finais............................................................................ P.162 7 III Parte – Anexos Anexo – Roteiro de entrevistas.....................................................................P.169 IV Parte – Referências Bibliográficas............................................................P.172 8 APRESENTAÇÃO O processo de formação social das famílias brasileiras é complexo e revelador, deixando transparecer um passado marcado por estruturas de poder hierárquicas e pela supremacia masculina – que pode ser sintetizado na ‘família patriarcal’, ao mesmo tempo em que revela formas ‘marginais’ de organização familiar coexistentes com o modelo vigente. A partir daí, a história se repete: novos ‘modelos’ surgindo, sempre, acompanhados de ‘arranjos’ alternativos. Os ‘modelos’, via de regra, ligados às famílias abastadas, às classes dominantes, legitimados pelo poder e colocados como ideais, enquanto outros ‘arranjos’ familiares eram praticados pelas classes subalternas e interpretados como ‘anomalias’. Assim, a família patriarcal foi substituída, enquanto modelo ideal, pela família moderna – marcando a tradicional passagem da família extensa à família nuclear, mas, seus preceitos de poder masculino permaneceram. Neste sentido, é que ainda se faz atual falar em família patriarcal. Não para identificar a família extensa de uma sociedade agrária, mas, para indicar uma forma de organização familiar hierárquica e desigual, baseada, principalmente, na supremacia do homem sobre a mulher. Ressalte-se, porém, uma mudança importante e significativa: as formas ‘marginais’ de se viver em família deixaram de ser uma prerrogativa das camadas populares, passando a ser exercidas, cada vez mais, pelas camadas médias. Com isto, o fenômeno foi ganhando destaque, visibilidade e até uma certa legitimidade, sendo cada vez mais representativo – em formas e números – na sociedade atual. O cenário contemporâneo é, então, marcado por uma pluralidade de formas de organização e arranjos familiares, onde a família nuclear é mais uma possibilidade – embora, ainda, a mais representativa, coexistindo com outras possibilidades, como é o caso das famílias chefiadas por mulheres. 9 Este fenômeno, no entanto, não é uma exclusividade da sociedade brasileira. Trata-se de uma realidade mundial, de modo que alguns autores mais entusiasmados, como Castells1, chegam a dizer que a família patriarcal estaria em crise, marcando a contestação – e até decretando o fim – do patriarcado. Afinal, esta é uma era de globalização de práticas e saberes, como é o caso das idéias e do movimento feminista. Neste mundo globalizado assiste-se, não apenas, a uma difusão da luta das mulheres, mas também, do advento da tecnologia de reprodução humana (permitindo maior controle das mulheres sobre o momento e as condições em que desejam procriar) e a entrada maciça das mulheres no mercado de trabalho, quer formal, ou informal. Mas, se por um lado, isto soa de forma positiva, dando idéia dos avanços e conquistas das mulheres, ao longo dos anos e ao redor do mundo, é preciso não esquecer que, a despeito da globalização, este processo não acontece da mesma forma e nem na mesma velocidade em todas as sociedades. Na verdade, a situação é bem mais complexa, pois conta ainda com as diferenças sócio- econômico-culturais inerentes à cada país, fazendo com que cada mulher viva de forma diversa cada uma das mudanças realizadas. A complexidade, aliás, é tema central da contemporaneidade. Aqui, a própria idéia de globalização que, a princípio, parece caber na fórmula da homogeneização mundial, perde a simplicidade e chega a soar bastante paradoxal, quando pensamos no crescente abismo sócio-econômico-cultural entre ricos e pobres, tanto no que se refere a países, como a cidadãos – e famílias. Esta contradição se encontra inscrita no próprio cerne da idéia de globalização, que se por um lado retira os saberes e poderes locais, levando-os para o cenário mundial, por outro, força o surgimento de autonomias circunscritas2, embora também marcadas (mesmo que não de forma visível) por essa nova realidade. 1 Castells, Manuel (1996). O poder da identidade. A era da informação: Economia, sociedade e cultura. Vol 2. 2ª edição. São Paulo: Paz e Terra, 1999. 2 A este respeito ver Giddens, Anthony (1999). Mundo em descontrole, o que a globalização está fazendo de nós. Rio de Janeiro: Record, 2000. 10 Assim, é que, embora a ‘chefia feminina de família’, seja um fenômeno mundial em contínua expansão, o mesmo apresenta em toda a América Latina e no Brasil, particularidades e nuances, que devem ser pensadas e cuidadosamente analisadas – como a desfavorável condição sócio-econômica. Tal é o que acontece não só com as nossas entrevistadas, as chefes de família de Belford Roxo, região metropolitana do Rio de Janeiro, mas também com grande parte das famílias brasileiras (ou latino-americanas) na mesma condição. Esta é, justamente, a idéia que atravessa cada uma das linhas deste trabalho: uma aproximação com a realidade deste crescente universo – das famílias chefiadas por mulheres. Uma aproximação para além dos números frios – e muitas vezes assustadores – das estatísticas e que vá em busca de conhecer seu cotidiano, sua dinâmica, seus sonhos e suas dificuldades... É uma questão delicada, cujas respostas podem lançar luz a uma questão social mais macro, fornecendo dados que permitam um melhor planejamento e aproveitamento das políticas públicas dirigidas a esse “empobrecido” contingente da população e, ao mesmo tempo, apontando possibilidades futuras de relações mais igualitárias entre os gêneros. Trata-se de um trabalho ambicioso, envolvendo questões sobre diferentes temas: famílias, gênero e grupos desfavorecidos. Tudo isto dentro de um contexto maior que é o de um mundo globalizado. Construir um espaço de interseção entre esteseixos exige que a idéia da complexidade, esteja presente, atravessando o pensamento na construção de cada uma das reflexões aqui apresentadas. E, se, por um lado, isto parece um grande desafio, também soa bastante instigante e coerente com o cenário contemporâneo – ou pós-moderno3. A atualidade do tema, ao tratar de uma história que ainda está se escrevendo, faz com que os reflexos da pós-modernidade apareçam, desde a pluralidade teórica do tema – e da exigência de conjugação daí advinda, até a diversidade das possibilidades de se ver e compreender cada questão. 3 Alguns autores chamam de pós-moderno o cenário atual, outros preferem falar em crise da modernidade, modernidade tardia, radicalização da modernidade etc. A este respeito ver Fridman, L.C.(2000). Vertigens pós-modernas. Rio de Janeiro: Relume-Dumará. 11 Afinal, passamos do reinado da razão – característica moderna, ao da ambivalência, situação em que nenhum dos padrões aprendidos pode ser adequado, ou ao contrário, “mais de um padrão poderia ser aplicado”. Mas, “seja qual for o caso, o resultado é uma sensação de indecisão, de irresolução e, portanto, de perda de controle”4. A fluidez aparece, então, como uma boa metáfora para a atualidade. Antes uma propriedade de gases e líquidos, hoje, uma imagem das identidades5. Neste contexto, “o sujeito, previamente vivido como tendo uma identidade unificada e estável, está se tornando fragmentado; composto não de uma única, mas de várias identidades, algumas vezes contraditórias ou não-resolvidas”6. Neste ponto do drama pós-moderno, a própria idéia de identidade começa a ser questionada. E já há quem proponha falar de afinidades, ao invés de identidades7. Uma leitura muito comum que se faz, então, do pós-moderno é que como não temos controle, previsão ou alguma garantia, não há o que fazer. É claro que é difícil lidar com tanta ambigüidade, ainda mais para os filhos da modernidade, acostumados com as certezas, baseados na razão; mas há um erro em desistir, em paralisar. É preciso uma postura de problematização e enfrentamento, cientes de que aquilo que fazemos hoje, pode mudar a história8. Deste lugar marcado pela pós-modernidade foi que procurei compreender estas mulheres – também ‘pós-modernamente’ marcadas, assim como suas possíveis ambigüidades e contradições. Neste sentido, mesmo diante de um nítido paralelo entre conquistas e avanços na condição feminina – como sua entrada no mercado de trabalho e o advento dos métodos anticoncepcionais – e as mudanças na organização familiar, 4 Bauman, Zygmunt. (1999). Modernidade e ambivalência. Rio de janeiro: Jorge Zahar Editor. P. 10 5 Bauman, Zygmunt (2001). Modernidade líquida. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Ed. 6 Hall, Stuart (1992). A identidade cultural na pós-modernidade. 4ª ed. Rio de Janeiro: DP&A, 2000. P.12. 7 Haraway, Donna J. “Manifesto ciborgue: ciência, tecnologia e feminismo-socialista no final do século XX”. In: SILVA, T.T. Antropologia do ciborgue – as vertigens do pós-humano. Belo Horizonte: Autêntica. P.53. 8 É claro que pensar em ganhos de possibilidades ao invés de perdas de certezas e definições é apenas mais uma possibilidade de leitura do pós-moderno, entre tantas possíveis. Talvez também ela seja fluída e transitória, e acabe abandonada nas linhas deste trabalho, mas por ora, dentre as possibilidades, este é o agenciamento que me parece mais adequado. Com ele pretendo refletir sobre a questão da chefia feminina, que também pode ser vista como uma das várias possibilidades de se viver em família, de ser mulher. 12 é preciso ter claro que a evolução dos costumes em relação à mulher tem sido efetivamente lenta e descontínua e que, além disso, dentro mesmo do Brasil, “há uma enorme defasagem entre as aspirações da grande maioria das brasileiras, de nível sócio-econômico em geral baixo, e a ótica de um intelectual classe média, a quem foi dado o discurso feminino”9. Mas, até que ponto este significativo aumento do número de famílias chefiadas por mulheres é indicativo daquilo que poderíamos chamar emancipação feminina? O que essas mulheres de classes desfavorecidas, que lutam sozinhas pela sobrevivência de suas famílias pensam disso? Trata-se de uma opção? Como vivem e vêem estas questões? Dentro deste contexto, revisitar os papéis de gênero instituídos na dinâmica destas famílias, torna-se imperativo. Estando ausente a figura masculina do pai - de autoridade e poder, como se dá a organização e a divisão de tarefas? Como os filhos destas famílias apreendem as relações e os papéis de gênero? Será possível, a partir daí, apontar para um futuro onde se vislumbre melhor a eqüidade? O que se espera com este estudo é contribuir para indicações de novos caminhos e, se isso exige revisões e reflexões profundas, optamos por começar a reflexão teórica – I parte – por um breve histórico da formação social da família brasileira. Daí, o nome do primeiro capítulo: “Das famílias de ontem às famílias de hoje: o processo de modernização (das diferenças) na família brasileira”. Este capítulo é dividido em cinco partes e busca dar conta desde um rápido resgate da estrutura da família patriarcal e da família nuclear moderna – além de algumas rupturas a estes modelos, até as especificidades da chefia feminina de família, e sua relação com a ‘feminização’ da pobreza neste país – passando ainda por algumas reflexões sobre as famílias inseridas neste contexto. Já no segundo capítulo intitulado “A disseminação das idéias feministas: um pouco da história”, ao fazermos algumas articulações entre feminismo e família, propomos uma reflexão crítica sobre a trajetória deste movimento, marcado, sem dúvida alguma, por conquistas, mas também por impasses. 9 D’Ávila Neto, Maria Inácia (1994). O autoritarismo e a mulher. O jogo da dominação macho-fêmea no Brasil. 2ª ed. Rio de Janeiro: Artes e Contos. P.60. 13 O terceiro e último capítulo da parte teórica – “A mulher contemporânea: permanências e mudanças” – é dedicado, então, à questão das mulheres no mercado de trabalho e as marcas do ‘passado’ patriarcal, que ainda se fazem presentes. A parti daí, inicia-se a segunda parte do trabalho, envolvendo pesquisa de campo – que consistiu em entrevistas, semi-estruturadas, de cinco mulheres chefes de família, do Lote XV, Belford Roxo, e na análise de conteúdo deste material, sob a luz das idéias apresentadas na primeira parte. A segunda parte, iniciamos com “Questões para a construção de uma pesquisa de campo” onde falamos de algumas inquietações que nortearam o trabalho de campo. Só então se chega à “descrição dos sujeitos’ e do “procedimento” adotado neste estudo. No capítulo quatro: “A pesquisa e alguns de seus resultados” é onde, então, aparece a análise das categorias e a discussão dos resultados encontrados. As “Considerações finais” estão no último capítulo deste estudo. Aos que se aventurarem, boa leitura! 14 I PARTE FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA 15 1. Das famílias de ontem às de hoje: O processo de modernização (das diferenças) nas famílias brasileiras “A família é um local para as lutas entre tradição e modernidade, mas também uma metáfora para elas” Anthony Giddens10 1.1. Famílias Brasileiras da Colônia à Republica: Modelos e Rupturas O ponto de partida para, aqui, pensarmos a família é o reconhecimento da necessidade de desconstrução da aparência de naturalidade e universalidade com que ela se reveste. A antropologia aparece, então, como grande aliada, pois, ao mostrar que a família assume configurações diversas no tempo e no espaço,acaba evidenciando o seu caráter de construção histórico-social. Neste sentido, levando-se em conta a diversidade racial, regional e a pluralidade de influências culturais presentes na história do Brasil, parece ingênuo falar em família brasileira – no singular, independentemente do período histórico ao qual se esteja referindo11. Assim, a história das famílias no Brasil, vem recheada de contradições apontadas, hoje, por vários pesquisadores. E, embora, não seja o interesse deste estudo fazer um apontamento destas questões, nem tampouco esmiuçar ou esgotar esta história, um breve histórico se faz necessário, a fim contextualizar as famílias de hoje e as famílias chefiadas por mulheres de que tratamos. Por muito tempo a obra de Gilberto Freyre (1963), Casa-Grande & Senzala, foi a grande referência sobre a família colonial brasileira e sua descrição da família patriarcal permaneceu incontestada. Hoje, sabe-se, a partir de alguns estudos históricos mais recentes, que ao modelo apresentado por Freyre somavam-se outros tantos, evidenciando, 10 Giddens (2000). Op. Cit. P. 63. 11 Talvez, apenas, a idéia de pluralizar as famílias seja influência do momento histórico atual, da pós- modernidade e da sua complexidade constitutiva. 16 sobretudo, as diferenças regionais no Brasil-colônia12. Isto não quer dizer que a obra de Freyre tenha perdido importância, mas, com certeza, deve ter relativizado o seu alcance em descrever a família colonial. Freyre trata, cuidadosamente, de uma forma de se viver em família – a família patriarcal nordestina, mas não dá conta – e, ao que parece, também não era sua idéia, da pluralidade de arranjos existentes ao longo de todo o território13. Assim, é que junto á família patriarcal, havia na colônia famílias nucleares; famílias ampliadas (famílias nucleares com agregados); padres vivendo em concubinato com escravas; mancebias entre senhor e escrava; união de brancos com índias livres; casal vivendo no mesmo tempo com a concubina do marido; mulheres chefes de família etc. Ao que parece, os concubinatos e as uniões consensuais – devido aos altos custos do casamento – eram práticas corriqueiras entre as classes empobrecidas com critérios de escolha muito diferentes dos interesses que motivavam as uniões lícitas da elite – em que a escolha do cônjuge seguia a lógica da manutenção de patrimônios e influências, sendo uma prerrogativa paterna. Os concubinatos – “alianças aparentemente saborosas, pois que ditadas por simpatias de corpo e alma14”, ao contrário das uniões da elite, pareciam desconhecer as leis e os critérios religiosos, obedecendo apenas às prerrogativas da comunidade que estipulava o que era, ou não, admissível e tolerável. As migrações dos homens em direção às regiões mais lucrativas, também práticas comuns, tinham como conseqüência a proliferação de filhos bastardos (deles e delas) e um grande número de lares matrifocais. Na verdade, “girava em 12 No Nordeste destacavam-se as famílias patriarcais dos senhores de engenho, enquanto nas capitanias do sudeste colonial, predominavam as famílias nucleares e as uniões consensuais entre as classes subalternas. 13 Neste contexto D’Ávila Neto diz: “O debate em torno da significação da família patriarcal para o modo de vida brasileiro ainda permanece”. Também é neste cenário que se insere a crítica realizada por Caio Prado Júnior que mostra que a família patriarcal era uma “minúscula minoria”. Embora possa ser tomada como uma “tipologia”, no sentido de Max Weber. A este respeito ver D’Ávila Neto (1994). Op. Cit. P.45. 14 Del Priore, M.L.M. (1994). Brasil colonial: um caso de famílias no feminino plural. Cadernos de pesquisa n.91. São Paulo: Fundação Carlos Chagas. P.73. 17 torno dos 45% o número de mulheres à testa de suas casas, e, destas, 83% nunca haviam se casado”15. As mulheres, via de regra, assumiam a criação dos filhos de seus maridos ou companheiros, aumentando, assim, sua responsabilidade – pois que a criação da prole, independente de serem filhos legítimos ou não, era uma prerrogativa sua. E todos – mães, madrastas e seus filhos, por vezes, moravam juntos sob o mesmo teto – numa ‘micro-comunidade familiar’. Para dar conta da tarefa, tentando, ao mesmo tempo, vencer as condições adversas de pobreza e isolamento, as mulheres, na ausência – permanente ou temporária – de um companheiro, desenvolviam práticas solidárias em relação a outras mulheres, “transformando a relação com os filhos num fio que costurava existências femininas variadas e que reforçava a solidariedade de gênero”16. Tudo isto mostra a diversidade de arranjos e estratégias presentes no modo de vida colonial, onde apenas uma pequena parcela da população, que certamente pertencia a elite social, seguia os padrões e imposições colocados pela Igreja Católica17. Assim, Del Priore18, sintetizando o cenário familiar da Colônia e, ao mesmo tempo, apontando a limitação da obra de Freyre, coloca: “ (...) o perfil do cenário familiar, ao contrário do quadro ruidoso e sensual (...) pintado por Freyre, era prosaicamente nuclear, sobretudo nas capitanias do sudeste da Colônia. Conhecem-se também algumas de suas características: muitos maridos ausentes, companheiros ambulantes, mulheres chefiando seus lares e crianças circulando entre outras casas e sendo criadas por comadres, vizinhas e familiares”. Freyre, por sua vez, não nega a existência de outras organizações familiares, embora centre sua análise na família patriarcal. Neste sentido, ele afirma: 15 Ramos (1975) citado por Del Priore (1994). Op.cit. P.72. 16 Del Priore (1994:72). 17 Com a união entre Estado e Igreja, que procurava manter sobre controle as populações das colônias, os casamentos sacramentados – bastante valorizados, traziam no seu bojo uma série de pressupostos e expectativas em relação ao papel da mãe de família – como educar os filhos com os valores cristãos. Havia casamentos entre as classes dominadas, mas a elite foi quem mais exerceu esta prática. 18 Del Priore (1994:71). 18 “Do ponto de vista sociológico, temos que reconhecer o fato de que desde os dias coloniais vêm se mantendo no Brasil, e condicionando sua formação, formas de organizações de famílias extrapatriarcais, extracatólicas, que o sociólogo não tem, entretanto, direito de confundir com prostituição ou promiscuidade”19. Desta forma, mesmo sabendo e pensando a diversidade presente nas organizações familiares do Brasil-Colônia e sua importância para a formação social brasileira, a obra de Freyre, não pode ser descartada, mas deve, ainda, ser vista com cuidado e atenção. O caráter conservador do modelo patriarcal descrito por Freyre, e atribuído à herança da colonização portuguesa, dá margem para a compreensão de vários aspectos importantes da cultura e das famílias brasileiras, ainda hoje. Assim, “embora não haja unanimidade em relação à predominância deste modelo reconhece-se a influência da família patriarcal como matriz e formadora de uma mentalidade e de uma ética que influenciou todas as formas de organização familiar”20. A família patriarcal dos senhores de engenho constituía-se, enquanto sistema de dominação política e econômica, atendendo aos parâmetros da economia latifundiária vigente. Encaixava-se no padrão de família extensa em que, ao casal de cônjuges e seus filhos legítimos, somava-se um núcleo periférico de tios(as), primos(as), afilhados(as) etc e um outro formado por escravos(as) – incluindo-se aí amantes e concubinas do senhor de engenho, e filhos(as) bastardos destas relações – assimilados na estrutura familiar. Este modo de organização familiar tinha uma estrutura, notadamente, hierárquica, tanto em relação ao gênero, quantoem relação à idade, sendo o poder do ‘pater-familias’ incontestável – não só na família, mas na economia, na política e em toda sociedade. 19 Freyre (1999) citado por Soares, Ana Cristina Nassif (2001). Mulheres chefes de família: Narrativa e percurso ideológico. Tese (dout.). São Paulo: FFCLRP/USP. P.76. 20 Szapiro, Ana Maria (1998). Percursos do feminino: um estudo sobre a “produção independente” dos anos sessenta. Tese (dout.). Rio de Janeiro: PUC. P.124. 19 A ele era permitida, inclusive, uma prática sexual diferenciada, com tolerância à promiscuidades, incluindo-se a manutenção de concubinas e o uso das escravas para a satisfação de suas necessidade sexuais. Como resultado, o surgimento de um grande contingente de filhos ilegítimos e o aumento considerável da população mestiça. Esta prática, aliás, se não era bem vista e estimulada, aparecia como ideal sexual para os filhos dos senhores de engenho. “O que sempre se apreciou foi o menino que cedo estivesse metido com raparigas (...). E que não tardasse em emprenhar negras, aumentando o rebanho e capital paternos”21. As mulheres, por outro lado, tinham sua sexualidade controlada, devendo total obediência ao homem – pai, marido, ou senhor. Seu papel estava ligado á reprodução: de filhos, da riqueza e do poder do senhor de engenho. Em sua função reprodutiva, as sinhazinhas, contavam, contudo, com a ajuda das amas-de-leite – escravas que saiam da Senzala para a Casa Grande com o objetivo de criar os filhos das primeiras. A partir daí, talvez seja possível pensar numa determinação de gênero – que institui papéis, funções e ‘lugares’ diferentes para homens e mulheres e à ela, quem sabe, associar uma outra: a determinação de status – o que hoje chamaríamos classe, que também institui papéis, funções e lugares diferentes para mulheres diferentes. Este seria, então, o esboço da dupla determinação: a de classe e a de gênero, sem falar na racial. Então, se por um lado as mulheres do engenho se identificavam por serem mulheres, suas experiências também se diversificavam muito em sendo brancas ou negras, escravas ou sinhás: “Esta é a concepção que foi cravada no imaginário brasileiro e que ainda está muito viva, ainda que tenham sido introduzidas pitadelas de modernismos de toda sorte, ou de cientificismos que procuram escamotear esta visão tradicionalista e racista”22. 21 Freyre citado por Soares (2001). Op. Cit. P.80 22 Neder, Gizlene. Ajustando o foco das lentes: um novo olhar sobre a organização das famílias no Brasil. In Kaloustian, Sílvio (org.) (1994). Família Brasileira, a base de tudo. UNICEF. São Paulo: Cortez. 20 O fato é que, a partir de 1870, com a publicação do Manifesto Republicano, evidenciou-se um processo de crise da monarquia no Brasil, que trouxe consigo uma grande instabilidade econômica e social. Na realidade, “é a própria sociedade patriarcal, latifundiária e escravocrata que entra em fase de progressiva desagregação”23. Com a proclamação da República (1889), o fim do trabalho escravo e o acelerado processo de urbanização – com a migração da população da área rural para as capitais – foi se desenvolvendo um novo grupo social e a implantação de novos valores na sociedade brasileira influenciados, entre outros, pelo pensamento positivista. Foi a partir do desenvolvimento industrial – em que às mudanças políticas recém-instauradas, somaram-se as alterações na estrutura econômica da sociedade – já no final do século XIX, que, com a influência das idéias liberais, o modelo de família nuclear burguesa criou força e representatividade no Brasil. A família da sociedade burguesa, influenciada por valores da modernidade e assumindo a forma de família nuclear, ganhou, então, o nome de nova família24. Dentro de um novo sistema produtivo a nova família adquiriu um caráter intimista, permeada por um valor cultural singular: a de um indivíduo livre e igual. Trata-se da ideologia individualizante moderna25, a partir da qual a família passou a ter a função de servir de matriz para o Indivíduo adulto e moderno. Também a propagação das idéias higienistas – importadas da burguesia industrial européia – contribuíram para o surgimento de uma nova mulher – mãe dedicada e educada para exercer as funções de educação e formação moral dos filhos – um novo “agente social do controle higiênico”26. 23 Azzi, Riolando. Família e valores no pensamento brasileiro (1870-1950). Um enfoque histórico. In Ribeiro, I. (org.) (1987). Sociedade brasileira contemporânea. Família e valores. São Paulo: Edições Loyola. 24 Neder (1994) Op.Cit. 25 A este respeito ver Dumont, L. (1993). O individualismo: uma perspectiva antropológica da ideologia moderna. Rio de janeiro: Rocco. 26 Szapiro (1998). Op.Cit. P.129. 21 A partir daí, as taxas de alfabetização entre as mulheres começaram a aumentar27, mostrando a valorização da educação feminina – voltada, sobretudo, ao casamento, à vida doméstica e familiar – para que pudessem melhor cumprir o seu papel na instrução dos filhos. Afinal, cabia à mãe, como educadora, transmitir os valores da sociedade a sua prole, preparando os filhos para, futuramente, ter sucesso no desempenho de seus papéis na sociedade. Essa mulher-mãe “se torna assim a reprodutora por excelência da ideologia dominante e dos estereótipos sexuais, dos quais é a própria vítima”28. Assim, uma nova mulher passou a ser estimulada: menos subjugada ao marido, mais moderna, mais consciente, e, sobretudo, mais dedicada ao lar e à família. Ser mãe, e exercer bem a maternidade, tornaram-se um grande objetivo das mulheres de famílias das classes média e alta, constituindo-se no valor central de suas vidas e identidades. A esta altura, o trabalho remunerado, embora também contasse com um número cada vez maior de mulheres, consistia em poucas opções como magistério ou datilografia e só era aceito em casos de muita necessidade para as solteiras – enquanto, depois de terminada a escola, esperavam o casamento; ou entre as desprovidas de maridos, viúvas ou separadas29. Obviamente, os padrões de conduta burgueses, embora servissem de modelo a ser perseguido por todos, referiam-se ao processo de modernização da família tradicional, branca e de origem européia. Já os setores populares, excluídos, inclusive, do processo educacional – já que, considerados por alguns, como ‘raça inferior’ ‘não conseguiriam mesmo aprender’30, iam desenvolvendo estratégias e formas alternativas de sobrevivência. 27 As taxas de alfabetização da mulher aumentaram mais de 100 % em trinta anos; passando de 22% em 1890 para 52% em 1920. Dados de Besse (1983) citada por Bruschini, Maria Cristina (1990). Mulher, casa e família: cotidiano nas camadas médias paulistanas. São Paulo: Fundação Carlos Chagas: Vértice. P. 63. 28 Bruschini (1990). Op.Cit. P.67. 29 Bruschini (1990). 30 Neder (1994). 22 As mulheres empobrecidas, via de regra, participavam da subsistência da família de forma intensa – o que as colocava num lugar diferente daquele ocupado pelas mulheres burguesas – doces, frágeis, submissas e com grande vocação maternal: “As condições concretas de existência dessas mulheres, com base no exercício do trabalho e partilhando com seus companheiros da luta pela sobrevivência, contribuíam para o desenvolvimento de um forte sentimento de auto-respeito”31. Mas, o apelo da nova família burguesa, mostrava a sua força enquanto modelo, marcando até mesmo, a existência das famílias subalternas: “O homem pobre, por suas condições de vida, estava longe de assumir o papel de mantenedor da família previsto pela ideologia dominante, tampouco o papel de dominador, típico destespadrões. Ele sofria a influência dos referidos padrões culturais e, na medida em que sua prática de vida revelava uma situação bem diversa em termos de resistência de sua companheira a seus laivos de tirania, era acometido de insegurança”32. Assim, a nova família burguesa – como a antiga família patriarcal, mostrava sua força e legitimidade enquanto modelo de convivência. Ambas foram criadas a partir das respectivas estruturas sócio-econômicas (industrial – com uma lógica capitalista nascente e agrário-exportador – de base latifundiária) vigorantes, as quais, por sua vez, também ajudavam a manter. A reprodução de indivíduos – no caso da família moderna, e sua boa educação – de que se ocupavam as mães – eram formas eficazes de garantir a continuidade destas estruturas. Mesmo assim, essas famílias-modelo, não eram, como vimos, o único arranjo existente em cada época: “(...) as famílias-padrão (quer se tome por base a família tradicional, patriarcal, extensa, de origem ibérica, quer então o modelo ‘higiênico’ e moralista da família burguesa de inspiração vitoriana, introduzido no país a partir do processo de modernização que acompanhou a urbanização/industrialização nos primeiros 31 Soihet citada por Soares (2001:87). 32 Soihet citada por Soares (2001:86). Este trecho de Soihet foi selecionado para indicar a influência e a força do ‘modelo’ em toda a sociedade. Mas, acredito, ele mereça ser relativizado: não parece haver indícios o bastante para falar numa inviabilização total do papel de dominador do homem, sendo mais interessante falar de uma ‘adequação’ da dominação e da tirania a uma situação (a)diversa . 23 anos deste século) convivem no acontecer social com outras famílias, até o presente bem pouco conhecidas, de várias origens, indígenas ou africanas (matrilineares, patrilineares, poligâmicas/ islamizadas etc)”33. Daí, a importância de recordar – mesmo que de forma sucinta, a história da formação social das famílias brasileiras. Assim, é possível perceber que as tramas sociais não se resumem a modelos e padrões instituídos, tendo havido sempre uma pluralidade de possibilidades e formas de se viver em família. Mesmo que mal vistas pelas classes dominantes, as uniões consensuais, as mães solteiras, e as famílias chefiadas por mulheres – entre outros arranjos, sempre estiveram presentes nas camadas mais empobrecidas do país. 1.2. Famílias pós-modernas? Permanências e mudanças nas famílias contemporâneas O modelo tradicional de família nuclear – hierárquico e assimétrico –, que como vimos, nunca foi a única forma de família presente na sociedade, vem, nas últimas décadas, perdendo força e representatividade, na medida em que uma série de ‘novos’ arranjos começa a aparecer e se expandir. Vários destes arranjos não são tão novos assim, e já apareciam naqueles tempos de Brasil colônia. Lembrando, porém, que eles eram marginalizados, discriminados e até escamoteados, já que inadequados aos padrões vigentes. A ‘novidade’, então, passa a ser a ‘legitimação’ desses arranjos – a partir do momento em que eles começam a ser adotados pelas camadas médias e expostos ao mundo globalizado. Levado a importar valores e culturas dos países europeus – talvez, proveniente de sua condição de país colonizado, este processo de transformação nas famílias ocorrido no Brasil já vem sendo identificado por estudiosos de países desenvolvidos, há algum tempo. 33 Neder (1994:27). 24 Alguns atribuem este processo à força transformadora dos jovens, outros à própria luta das mulheres: com sua dupla reivindicação de direito ao trabalho remunerado e ao controle da reprodução. Mas, o fato é que a realidade naqueles países, como aqui, distancia-se cada vez mais do modelo de família burguesa predominante até o final da década de 60. Neste sentido, Castells34 aponta três tendências, observadas a partir do fim da década de 60 e que, segundo ele, seriam as forças propulsoras deste processo de transformação nas famílias: a) o crescimento de uma economia informacional global – responsável pela incorporação maciça da mulher na força de trabalho produtivo/remunerado, aumentando seu poder de barganha e abalando a legitimidade da dominação masculina justificada pela condição de provedor da família; b) as tecnologias reprodutivas – permitindo maior controle sobre a ocasião e a freqüência das gestações; c) o movimento feminista – que impulsionou tudo isto a partir da luta e da conscientização das mulheres; Neste contexto, as ‘famílias vividas’ surgem “como soluções que as pessoas foram encontrando para construir um local de acolhimento afetivo, de intimidade, de cuidados mútuos...”35. Mas, estas famílias – em todas as suas variações e apesar delas, coexistem, pacificamente, com o modelo conjugal e permanecem como espaço de vida e emoção. Neste contexto, aumenta o número de divórcios e de uniões livres36 - principalmente nos grandes centros urbanos - e as relações entre os sexos se 34 Castells, Manuel (1996). O poder da identidade. A era da informação: Economia, sociedade e cultura. Vol 2. 2ª edição. São Paulo: Paz e Terra, 1999. 35 Szimansky, Heloisa. A construção da justiça social: multifamílias, instituições e redes. Trabalho apresentado no IV Congresso Brasileiro de Terapia Familiar. II Encontro Latino- Americano. Brasília, 2000. P.1. 36 É claro o aumento no numero de divórcios não é garantia de abandono do modelo, até porque é comum haver “um patriarcalismo sucessivo: a reprodução do mesmo modelo com diferentes parceiros”. Mas, é inegável que, de alguma forma, passando por esta experiência, as estruturas de dominação acabam sofrendo abalos. Além disso, a tendência observada é de que o fim dos casamentos leva, cada vez mais, à formação de novos lares, novos arranjos familiares. Assim, ao mesmo tempo em que sobem as taxas de divórcio e separação, cresce o número de lares unipessoais ou de filhos morando com apenas um dos pais. Já o 25 alteram, multiplicando-se, assim, as tentativas de redistribuição dos papéis no interior das famílias. Os papéis instituídos refletem, por um lado, uma intrincada distribuição de privilégios e, por outro, a dimensão política presente na interação dos indivíduos. Através da distribuição de papéis é possível observar a família como um sistema intermediário entre indivíduo e sociedade. Afinal, a relação entre os membros está ligada à dimensão interna da família, com todas as questões de poder e autoridade ali vividas, sendo também reflexo de outras dimensões da vida social, e, por isso, deve ser pensada a partir da articulação entre questões internas e externas ao universo familiar: “Esses papéis não são atribuídos a personalidades propícias ao seu desempenho, como reza o modelo psicanalítico, mas, ao contrário, a família se notabiliza justamente pela capacidade de ‘criar’ as personalidades adequadas aos papéis”37. Assim é que apesar das significativas rupturas a que vimos assistindo, alguns ritos se perpetuam, e velhos hábitos insistem em aparecer, mesmo no cotidiano daqueles que os questionam: “É a vida cotidiana em toda a sua continuidade, ela na cozinha, ele diante do seu jornal, bonecas para as meninas, carrinho para os meninos. É difícil mudar, é difícil não impor um modelo aos filhos, é difícil redistribuir os papéis”38. Afinal, não é possível cortar definitivamente os vínculos com tudo o que é tradicional na vida, com toda e qualquer forma de atividade cotidiana, sob o risco de se perder a referência do que nos é familiar e até a própria “segurança”. Isto não significa que cotidiano e família não possam ser contestados, atualizados, reinventados. Até porque, aceitar a vida cotidiana sem críticas ou restrições,conduz à uma segurança sem liberdade e, por isso se diz que “criar novas formas aumento das uniões consensuais é um dado relevante porque “a falta de legalização enfraquece a autoridade patriarcal, tanto institucional como psicologicamente”. Castells (1999). Op. Cit. 37 Bruschini (1990: 72). 38 Bruschini (1990: 28). 26 de vida que substituam a família tradicional, mas que sejam escolhidas livremente pode ser (...) o melhor caminho”39. No entanto, falar em ‘liberdade’ de escolha também é tarefa complexa e merecedora de cuidado e atenção. Trata-se de um valor moderno, ligado à ideologia individualizante, que nos remete (mais uma vez) ao lugar intermediário da família: entre indivíduo e sociedade. Os ideais da Revolução Francesa: Igualdade, Liberdade e Fraternidade foram importados e influenciavam a burguesia e a nova família, que ganhou a tarefa de (re)produzir os novos indivíduos. Sendo, liberdade e autonomia, as palavras de ordem: “Autonomia, como a própria palavra indica, traz a idéia de que cada indivíduo tem o poder de fazer suas próprias normas. Portanto, estamos diante de um imaginário de independência, que produz um tipo de enfrentamento, uma tensão permanente entre o ‘indivíduo autônomo’ e a sociedade”40. Esta tensão passa ainda pela família, que com sua dinâmica própria e com papéis instituídos, distribui desigualmente o poder, limitando a autonomia de cada um de seus membros. Assim, a família exerce seu papel fundamental: disciplinarizar os indivíduos aos ideais desta ética individualista. E aí, se pensarmos, então, em ‘simplesmente’ mudar estas famílias, lembramos que há mais uma instância acima delas que é a sociedade moderna, que tem diversos e eficientes mecanismos – até porque invisíveis – de disciplinarização e de controle41 dos indivíduos: “O poder nas sociedades modernas é exercido de forma difusa, organizando-se de forma tal que a idéia de escolha individual, tão cara aos modernos, é, em última instância, determinada socialmente. O indivíduo moderno está submetido a agenciamentos sociais que definem parâmetros de ‘opções’ que, no entanto, ele mesmo acredita serem o resultado de um exercício de sua ’absoluta’ liberdade”42. 39 Bruschini (1990: 28). 40 Szapiro, (1998:19). 41 Para maiores detalhes sobre estes mecanismos ver Foucault (1998). Vigiar e punir: nascimento da prisão. 18ª ed.Petrópolis: Vozes. 42 Szapiro (1998:19). 27 Neste sentido, mudar as famílias a fim de instituir relações mais igualitárias, deixa de ser tarefa simples, condicionada apenas a um ato de escolha, ou a segurança individual. Na verdade, este, ou qualquer outro projeto, não é um fenômeno de ordem subjetiva, ou interna, e sim circunscrito, histórica e culturalmente, num ‘campo de possibilidades’: “Nem robôs inteiramente programados e comandados por princípios e mecanismos inconscientes, nem o livre arbítrio do indivíduo-sujeito, que molda e faz a sua vida sem limitações, no reino da total liberdade cognitiva e existencial. Para tentar dar conta do problema dos limites e, ao mesmo tempo, procurando não ignorar a margem de manobra possível dentro da sociedade, é que tenho utilizado a noção de campo das possibilidades”43. As possibilidades, então, instituídas com o conceito de indivíduo moderno, se apontavam para questões de liberdade, também abriam possibilidades para que se reivindicasse igualdade44. O indivíduo como valor estruturante e a ideologia igualitarista trazem questões bastante complexas, como a lógica da ‘indiferenciação’ e o conseqüente aplainamento das diferenças. Ou seja, a partir daí, há uma verdadeira ‘homogeneização’ de identidades, tornando incômodas as diferenças que, via de regra, passam a ser justificadas45. Daí, o interesse que os estudos de família vem despertando. Dada a pluralidade de arranjos familiares que diferem do modelo ideal – família nuclear composta de pai, mãe e filhos – há muito a ser ‘justificado’, ‘explicado’. Este aumento no número de famílias ‘diferentes’, aliás, é um fenômeno, freqüentemente, colocado como ‘crise da família’ – idéia que costuma provocar pavor nas diversas instâncias da sociedade. Neste sentido, Castells parece bastante cuidadoso, tratando de delimitar o conceito de crise, que segundo ele, refere-se apenas ao modelo patriarcal: um modelo tradicional de família herdado, em última instância, do patriarcado – família 43 Velho, Gilberto (1981). Parentesco, individualismo e acusações. In Figueira, S. A. e Velho, G. (coord). Família, Psicologia e Sociedade. Rio de janeiro: Campus. P.79. 44 A idéia de igualdade entre os seres humanos abriu um campo de possibilidades para as mulheres que viram ali, a brecha para contestar o seu status de cidadã de ‘segunda categoria’, reivindicando igualdade de oportunidades em relação aos homens. Ou seja, a ideologia igualitarista, abriu espaço para que o movimento feminista pudesse de desenvolver. 45 Szapiro (1998). 28 nuclear, composta de pai, mãe e filhos, de estrutura hierárquica e com rígida divisão de papéis e funções, caracterizada pela “autoridade/dominação contínua exercida pelo homem, cabeça do casal, sobre toda a família”46. O que está em jogo, portanto, não é o desaparecimento da família, mas do modelo tradicional de família patriarcal: “Não se trata necessariamente do fim da família (...), mas da família como a conhecemos até agora. Não apenas a família nuclear (um artefato moderno), mas a família baseada no domínio patriarcal, que tem predominado há milênios”47. Ainda assim, é preciso estar atento para as armadilhas: dizer que a família está em crise, ainda que se esteja referindo a crise da família patriarcal descrita por Castells, significa, em última instância, admitir a existência deste modelo como único, contribuindo com o mito evolucionista da família. A ‘lógica evolucionista’48 reforça o mito da família unida e coloca a família nuclear no ápice do processo de evolução; numa passagem que vai da família extensa a família conjugal moderna49 – em que os casais e seus filhos moram harmoniosamente sobre o mesmo teto. A família moderna tem como característica a incorporação do amor romântico ao laço conjugal, através da livre escolha do cônjuge, e, como vimos, a valorização da maternidade, pela centralidade do papel da mãe na socialização dos filhos e a exaltação do lar como um lugar seguro, um refúgio contra as pressões do mundo público50. Daí, que alguns adeptos da lógica evolucionista vejam neste modelo um nítido avanço moral, colocando-no no cume do processo de evolução. 46 Castells (1999: 173). 47 Castells (1999: 174). 48 Fonseca, Claudia (1995). Amor e família: vacas sagradas da nossa época. In Ribeiro, I. e Ribeiro, A T. (org.). Famílias em processos contemporâneos: Inovações culturais na sociedade brasileira. São Paulo: Loyola. 49 Também foi este o percurso que trilhamos no capítulo anterior, mas com o claro objetivo de mostrar que este caminho foi o das classes dominantes, tendo sempre existido caminhos ‘alternativos’ – vividos, paradoxalmente, por grande parte da população. 50 Outra característica importante da família nuclear, mas que costuma ser esquecida por seus defensores, é o seu isolamento que “acentua o peso do papel da mãe na medida em que esta não conta com parentes para ajudar e, por outro lado, o marido se encontra fora trabalhando”. Bruschini (1990: 67). 29 Neste sentido, qualquer forma de se viver em família diferente deste modelo é vista como desagregação ou patologia e, como as demais diferenças modernas, causam incômodo e devem ser explicadas. Ainda nestecontexto, embora dentro de uma linha um pouco mais progressista, surgem as ‘explicações’ – muitas travestidas de denúncias – que vêm culpar o capitalismo e as mazelas econômicas e sociais pela ‘desagregação’ ou crise da família. Mas, apesar da válida tentativa de contextualização, lembrando inclusive a realidade sócio-econômica de cada época, há um erro grave que perpassa estas idéias: mais uma vez, a premissa implícita de que existiria uma família ideal, feliz e ‘natural’ – que corresponderia a família conjugal, sendo quaisquer outras merecedoras de ‘explicações’. Assim, é preciso cautela com estas afirmações, até porque, como vimos, não se pode falar, ao longo da história em um único modelo, ou num modelo natural. Além disso, os modelos que passaram a circular no senso comum como naturais correspondiam sempre às expectativas das classes dominantes, não representando senão uma pequena parte da população. Não se trata aqui, é bom que se esclareça, de desculpar ou minimizar os efeitos cruéis e perversos que as políticas públicas (ou a falta delas) acarreta sobre milhões de brasileiros. Mas, de reconhecer que até mesmo por isso, há especificidades na dinâmica histórica destes setores mais desfavorecidos a serem levados em conta. O inadmissível, a nosso ver, é a utilização do sistema de valores, que rege a dinâmica histórica das classes dominantes, como valor único, ou o mais evoluído. Assim, sabendo ser ‘comum’ se deixar guiar por uma imagem evolucionista em que a família conjugal aparece como ideal de evolução, é preciso tomar os historiadores sociais como aliados, procurando ter claro que todas as famílias, constituídas modelos hegemônicos, ou não, são ‘apenas’ conseqüências de um determinado contexto histórico e social51. 51 Afinal as famílias, como dissemos, são intermediárias entre indivíduos e sociedade – representando aspectos fundamentais de ambos. E daí, que a psicossociologia também tenha muito a contribuir em termos de enfoques e ferramentas para o estudo dos sistemas familiares. 30 Neste sentido, aquilo que, sob qualquer justificativa ou explicação, é colocado como crise, deve ser visto mais na forma de um ‘alargamento’ das possibilidades e formas de se viver em família – o que também só foi possível, importante frisar, devido ao processo de ‘proletarização’52 das formas ‘marginais’ de se viver em família. Assim, é que na pós-modernidade, ao invés de falarmos em crise da família, devíamos falar em crise de modelos, devendo ser o modelo da ‘democratização’ o único plausível no campo das relações humanas e familiares. 1.3. Famílias em contexto de pobreza – algumas reflexões A despeito do esforço de teóricos e estudiosos para desconstrução da idéia de família ideal, continua fazendo parte do senso comum um modelo baseado na ‘nova família’ – a família nuclear burguesa: um pai que trabalha, uma mãe que fica em casa e crianças que vão a escola. Mas, de tão profundamente enraizado e banalizado este modelo, ninguém costuma lembrar que a sua existência exige alguns pressupostos: trabalho regular, moradia e escola. Assim, apesar de básicos para uma vida digna, estes pressupostos não são acessíveis a milhões de brasileiros que, ao contrário, vivem as conseqüências dramáticas das políticas neoliberais; com desemprego crescente, encolhimento dos serviços públicos etc. A partir daí, fica fácil entender a impossibilidade de efetivação deste modelo familiar por grande parte das camadas populares e o grande paradoxo que aí se instaura: a situação impede sua realização, mas também coloca este modelo como ideal e o legitima – aumentando o sentimento de incapacidade de grande parte da população ao não conseguir se ‘adequar’. 52‘Proletarização’ seria o processo através do qual as formas ‘marginais’, ‘alternativas’, ‘desagregadas’ ou ‘patológicas’ de se viver em família, foram deixando de ser uma prerrogativa das classes subalternas e se tornando cada mais freqüentes nas classes médias. Este fenômeno é apontado por alguns autores como a grande mudança observada desde a nova família – a família nuclear moderna, uma vez que famílias ‘alternativas’ sempre estiveram presentes, não sendo nenhuma invenção da pós-modernidade. 31 Este é um outro problema com a instauração – recorrente – de modelos. Como vimos, os modelos tendem a representar, apenas, uma parcela da população, mas, que detém poder suficiente para os naturalizar e os colocar na forma de ideais a serem perseguidos. Quem não se adequa é visto como desviante e tende a viver um sentimento de fracasso53. Se, neste ponto, resgatamos a tal da lógica evolucionista, as classes abastadas – com mais chances de efetivar ‘o modelo’ – ganham o status de evoluídas, enquanto as classes desfavorecidas passam a ser vistas como ‘atrasadas’ – aqueles que um dia chegarão lá: “A implicação está clara. O novo, o interessante, o moderno, está tudo conosco. ‘Nós’ (a elite) temos cultura. Nós inovamos. ‘Eles’ (os pobres) estão tentando e, quem sabe, um dia cheguem lá”54. Daí, o esforço de teóricos para desconstruir estas idéias, que, no entanto, parecem persistir no senso comum e no sentimento de inadequação destas ‘famílias alternativas’. Neste sentido, é preciso buscar a dinâmica histórica orientadora da prática de cada grupo, ao invés de esperar que grupos com realidades sócio-econômicas tão diferentes – ainda mais no Brasil, onde a péssima distribuição de renda cria um imenso abismo entre ricos e pobres – compartilhem de um mesmo sistema de valores e comportamentos: “Quanto mais a realidade humana é reduzida a alguns traços globais, tanto mais a ética tende a tornar-se unilateralmente idealista e desligar-se da concretude histórica das pessoas e situações. O ideal de convivência familiar deixa-se formular em poucas palavras, mas a caminhada de cada família e de cada um de seus membros depende das condições reais em que eles vivem e das possibilidades presentes de que eles dispõem”55 . 53 Estas idéias são colocadas por autores como Szymanski (2000), entre outros. Szymanski, Heloisa (2000a). Simpósio: A construção da justiça social: multifamílias, instituições e redes. Trabalho apresentado no IV Congresso Brasileiro de Terapia Familiar. II Encontro Latino- Americano. Brasília, 2000. 54 Fonseca, Claudia (1995). Op.Cit. P. 75. 55 Leers, Bernardino (1987). Filosofia, moral, ética, família e sociedade no Brasil (1964-1984). In Ribeiro, I. (org.). Sociedade brasileira contemporânea. Família e valores. São Paulo: Edições Loyola. P. 134. 32 Assim, apesar do contexto geral do país ser marcado por desigualdade e pobreza, ‘ajudando’56 inclusive na proliferação de formas diversas de se viver em família, é preciso, logo de início, ressaltar que, apesar de suas variações, as famílias continuam sendo um lugar privilegiado de proteção e de pertencimento. Não significa a não existência de motivos para preocupação, afinal, como intermediária entre indivíduos e sociedade, as famílias sofrem influência do meio, podendo este contexto ser fortalecedor ou esfacelador de suas possibilidades e potencialidades, principalmente aquelas ligadas à proteção, socialização e criação de bons vínculos relacionais. Assim, “o potencial protetivo e relacional aportado pela família, em particular daquelas em situação de pobreza e exclusão, só é passível de otimização se ela própria recebe atenções básicas”57. Afinal, um contexto de pobreza costuma ter repercussões decisivas para uma deteriorada qualidade de vida. Ainda mais quando se entende a pobreza não somente como “uma determinada relação das pessoas com as coisas, mas uma relação destas consigo mesmas, com outros e com o ambiente psicológico, social e ecológico”58.A partir daí, é possível pensar em formas diversas pra lidar com a questão da pobreza e das famílias de classes desfavorecidas, entendendo que: “O sentido das necessidades básicas das famílias pobres deve suplantar a mera visão biologista e incluir outras como psicológicas, sociais e éticas, de auto-estima, de uma relação significativa com os outros, de crescimento da própria competência ou de uma participação na definição do significado de sua vida pessoal e dos demais”59. Talvez seja este o motivo pelo qual as políticas, voltadas apenas para a renda familiar, venham se mostrando insuficientes. É o que parece sugerir a 56 A idéia de ‘ajuda’ não é condizente com a ‘determinação’. A condição sócio-econômica fragilizada não é a ‘causa’ da proliferação de novos arranjos familiares, afinal, este fenômeno não é exclusividade das camadas empobrecidas. 57 Carvalho, Maria do Carmo (2000). O lugar da família na política social. In: Carvalho, M. C. (org). A família contemporânea em debate. São Paulo: EDUC/ Cortez. P.18. 58 Amat et al, citado por Takashima, Geney (1994). O desafio da política de atendimento à família: dar vida às leis - uma questão de postura. In Kaloustian, Sílvio (org.) (1994). Família Brasileira, a base de tudo. UNICEF. São Paulo: Cortez. 59 Takashima (1994). Op.Cit. P. 79. 33 necessidade de elaboração de planos mais globais, capazes de contemplar os diversos aspectos presentes na questão60. Mas, para que estes aspectos possam ser apreendidos de forma profícua, é preciso uma aproximação maior da realidade dessas famílias, rompendo com a visão evolucionista e buscando entender as especificidades apresentadas em termos de valores e comportamentos. Assim, diante do desafio de tentar mapear a dinâmica própria das famílias em contexto de pobreza, uma primeira constatação se faz evidente: a maior parte dos estudos indica uma certa ‘lógica da solidariedade’ que estaria presente, marcando oposição com a ‘lógica do individualismo’ das classes médias61. Esta lógica da solidariedade refere-se, no entanto, à ação dessas famílias perante a sociedade, não estando ligada à harmonia e consenso entre os membros, mas à uma espécie de ‘interdependência necessária com o outro’. Uma pergunta que se impõe a partir daí é se esta ‘família solidária’ seria um modelo ‘novo’, ou se seria apenas uma adaptação da família tradicional às condições adversas. Afinal, pensar os pobres como ‘os outros’ e as famílias trabalhadoras a partir de ‘estratégias de sobrevivência’, reduzindo sua existência a um arranjo em prol de suprir as necessidades materiais, é um viés histórico, atualmente, contestado por estudiosos. Há, implícitos nestas idéias, antigos preconceitos que levam a pensar a identidade social das classes desfavorecidas como construídas apenas pela determinação de classe, quando na verdade, existem outras implicações: “Os pobres urbanos constituem uma categoria relacional, cuja definição básica é sem dúvida o eixo econômico, mas cuja identidade social se constrói com base num processo contínuo de identificações e diferenciações que fazem parte da lógica social de 60Neste sentido, alguns autores já chegam a afirmar serem “necessárias atenções diversificadas que se complementam mutuamente” como, por exemplo, “serviços de apoio psicossocial, cultural e jurídico”, o que representa uma grande evolução no pensamento das políticas públicas. A idéia é sair, cada vez mais da lógica tutelar e assistencialista – em que a distribuição de cestas básicas se traduz num perfeito exemplo, desenvolvendo a autonomia familiar e trabalhando por seu fortalecimento emancipatório. Assim, “no lugar de uma política social movida pela compaixão, busca-se consolidar uma política movida pela lógica do reconhecimento dos direitos sociais e, portanto, da justiça e da equidade”. Carvalho (2000). Op. Cit. P.18,19 e 20. 61 A este respeito ver Bilac, E.D. (1995). Sobre as transformações nas estruturas familiares no Brasil. Notas muito preliminares. In Ribeiro, I. e Ribeiro, A T. (org.). Op. Cit. 34 um sistema diferenciador por excelência, tanto em sua faceta capitalista, que institui a desigualdade básica, como em sua faceta hierárquica, que reproduz reiteradamente facetas complementares”62. Neste sentido, as famílias em questão apresentam, segundo Sarti, uma estrutura hierárquica, seguindo um padrão de autoridade patriarcal: precedência do homem sobre a mulher, dos pais sobre os filhos e dos mais velhos sobre os mais novos. Estas famílias pobres urbanas teriam ainda uma dinâmica onde a divisão sexual do trabalho se faz notável: o homem aparece como provedor e a mulher como dona de casa – com papéis de gênero e idade definidos, de forma recíproca e complementar. A autoridade do homem é definida em relação ao mundo externo, ele é o responsável pela imagem externa, pelo respeito e respeitabilidade da família – fazendo um papel estratégico de intermediário entre a família e o mundo externo. Assim, embora o homem possa ser identificado como uma figura de autoridade, a mulher também tem uma parcela incontestável de autoridade baseada, principalmente, nos seus papéis de mãe – e numa forte valorização simbólica desta figura63 – e dona de casa – por quem é responsável pela organização e bom funcionamento. Além disso, o controle do dinheiro, também aparece um dos fundamentos da autoridade da mulher; uma prerrogativa de seu papel de dona de casa, que independe de sua capacidade individual de ganhar dinheiro. A partir daí, surgem interessantes distinções colocando o homem como ‘chefe da família’ e a mulher na condição de ‘chefe da casa’.64 Entretanto, não deixa de haver uma hierarquia implícita, situando a autoridade do homem num plano mais elevado e menos imediato do que aquele ocupado pela mulher65. 62 Sarti, Cynthia (1995). O valor da família para os pobres. In Ribeiro, I. e Ribeiro, A T. (org.). Op. Cit. P.148. 63 Segundo Sarti “essa valorização da mãe é um dos muitos aspectos que fazem do Brasil um pais extremamente paradoxal: tem uma taxa de abortos que se situa entre as mais altas do mundo, tem um alto índice de crianças abandonadas e tem uma alta incidência de mulheres ‘chefes de família’ vivendo em condições precárias e cuidando de seus filhos sem nenhum amparo legal”. Sarti (1995). Op. Cit. P.137. 64 Sarti (1995). 65 Talvez seja a partir daí se desenvolvam as formas ‘veladas’ de poder e controle por parte das mulheres. Neste contexto se insere o comentário de Leers: “Em muitos lares, quem manda em tudo, mantém a linha e dirige até o próprio marido é a mulher-mãe. Mas ela é tão inteligente ou tão treinada em ser submissa conforme o figurino oficial, que deixa seu marido com a impressão agradável de que é ele quem manda em 35 Neste sentido, há, não só uma vinculação do trabalho feminino como complementar ao do homem – sendo seus rendimentos destinados aos ‘extras’ – mas também uma espécie de ‘experiência negativa’ da mulher em relação ao trabalho fora do lar. Primeiro pelos baixos salários e más condições, depois por este trabalho ter que afastá-las do cuidado com a casa e, principalmente, do cuidado com os filhos. Assim, a imagem de dona de casa vai se legitimando: “Diferentemente das mulheres profissionais de camadas médias e altas, a baixa qualificação, baixa remuneração e sobrecarga de tarefas domésticas para as trabalhadoras pobres contribuem para tornar o trabalho remunerado muito pouco gratificante, ainda que ‘algum dinheirinho meu’ e o exercício de uma atividade ‘fora de casa’, que as retire do confinamento doméstico, justifiquem muitas vezes os sacrifícios”66. Dizer que os pobres usam um padrão de autoridade patriarcal, que não é exclusivamente seu, não é o mesmo que corroborar a tese de‘triunfo da ideologia dominante’, ou da ‘alienação’ ou incapacidade de construções culturais próprias, “mas implica pensar que a elaboração de traços culturais próprios se dá pela re- tradução, pela re-interpretação de matrizes simbólicas socialmente dadas, com seus recortes, suas tensões e ambigüidade de não ter apenas uma face”67. Esta, aliás, parece ser uma característica da sociedade brasileira, fazer sempre uma espécie de releitura, ou decodificação, a partir de nossas próprias experiências e referenciais, dos modelos que aqui chegam. Haveria assim, como marca do processo de modernização do Brasil – com sua imensidão territorial – e de suas famílias, um movimento constante de incorporação e adaptação do ‘moderno’ ao ‘arcaico’, numa prática em que novos valores são incorporados a valores tradicionais, delineando o que seria a nossa “originalidade nacional”68. casa”. Leers (1987). Op.cit. P.149. Mas, para maiores detalhes sobre estratégias ‘sutis e manipulativas’ desenvolvidas pelas mulheres brasileiras e utilizadas para influenciar o comportamento de maridos e filhos ver Rocha-Coutinho, Maria Lucia (1994). Tecendo por trás dos panos: a mulher brasileira nas relações familiares. Rio de Janeiro: Rocco. 66 Sarti (1995: 145). 67 Sarti (1995: 147). 68 “A originalidade nacional” se refere então a este modo peculiar brasileiro de assimilar e interpretar as experiências das sociedades desenvolvidas, fazendo uma espécie de “colagem mais ou menos” dos valores modernos à nossa constituição social tradicional. Uma das conseqüências seriam “as idéias fora do lugar”, 36 E, como estamos falando das famílias pobres, talvez não fosse errado exacerbar ainda mais a tal ‘originalidade’, já que, até chegar aí, haveria dois níveis de re-leitura, ou re-tradução: o primeiro seria feito pelas classes médias, abastadas e/ou mais intelectualizadas, mais abertas a inovações culturais e com mais recursos para captá-los, tendo como matéria prima idéias e valores ‘importados’ de países ‘desenvolvidos’; já o segundo, seria feito pelas classes desfavorecidas, tendo como ponto de partida os resultados do primeiro nível de re- interpretação feito pelas camadas médias. A partir daí, ainda que as relações patriarcais apareçam como estruturantes do nosso ‘caráter nacional’ enquanto brasileiros – sejamos ricos ou pobres69 - vai delineando-se uma realidade complexa, com grande originalidade e pluralidade de possibilidades – inclusive de contradições e ambigüidades – típicas de um cenário pós-moderno: “A realidade da vida familiar no Brasil, porém, é muito mais complexa e variada. A rapidez e a desigualdade do ritmo das mudanças, a diversidade das áreas culturais, a variação regional do desenvolvimento humano no país tornam qualquer tentativa de uniformização ingênua e superficial. Lugar, classe social, sexo, cor, idade condicionam profundamente as formas concretas da convivência dos milhões de famílias que estão escrevendo a sua história”70. Neste sentido, é que a identidade dos pobres urbanos, embora seja construída em relação com a totalidade a que se referem, permitindo falar em família patriarcal71, baseia-se num mecanismo de sucessivas re-traduções – com a adição de elementos próprios, não sendo possível falar de passividade, ou de uma simples reprodução da ideologia dominante. O que há é uma espécie de brilhantemente discutidas por Schwarz. Para maiores detalhes ver Schwarz, Roberto (1981). Ao vencedor as batatas. Forma literária e processo social nos inícios do romance brasileiro. 2ª ed. São Paulo: Duas Cidades. 69 É claro que a forma com que as relações patriarcais vão aparecer será diversa em cada esfera e em cada família, dependendo da re-leitura feita por cada um, a partir de valores e dinâmicas próprios, que se podem ser notados entre ricos e pobres, também aparece em cada família e em cada indivíduo – ainda que dentro do campo de possibilidades de cada um. 70 Leers (1987: 134). 71 “Evidentemente não se trata da família patriarcal associada ao poder político (...), mas a família patriarcal como um modelo de autoridade, no que se refere às relações internas da família, em que o homem tem precedência sobre a mulher, os pais sobre os filhos e os mais velhos sobre os mais novos; e, ainda, como o paradigma de uma concepção moral fundada no princípio da reciprocidade que rege a lógica da casa e que dá sentido também às relações fora do âmbito familiar”. Sarti (1995: 147). 37 tensão permanente “entre o projeto global e as condições reais da criatividade moral dos agentes humanos”72. Daí, a importância de uma reflexão crítica em relação aos indicadores estatísticos brasileiros – objetivo do capítulo seguinte. 1.4. Refletindo sobre alguns indicadores nacionais A despeito do processo de globalização, ou mesmo em decorrência dele, há especificidades em relação às mulheres e famílias brasileiras que devem ser analisadas. O fenômeno mundial (ou global) de declínio do patriarcado, preconizado por Castells, deve ser pensado de forma ainda mais cautelosa no caso do Brasil, país “em desenvolvimento”. Apesar de muitas estatísticas brasileiras apontarem na mesma direção das tendências mundiais pontuadas pelo autor – o que é de se esperar num mundo globalizado – um olhar mais atento e crítico deve ser lançado sobre estes números, revelando algumas importantes particularidades73. Também aqui há uma significativa diminuição no número de famílias que seguem o modelo tradicional de origem patriarcal – casal, em seu primeiro casamento, morando com seus filhos74. Redução, aqui também, acompanhada pelo crescimento de formas alternativas de organização doméstica, onde se destacam as organizações unipessoais e as famílias formadas por mulheres e seus filhos – sem cônjuge75. No que se refere às unidades domésticas unipessoais, revelando maior incremento entre os jovens, deve-se levar em conta tanto o aumento no número 72 Leers (1987: 135). 73 Basta dizer que, na década de 90 ainda havia mais de um terço (36,8%) das famílias brasileiras vivendo em condições bastante precárias, encontrando-se “abaixo da denominada ‘linha de pobreza’, isto é, com um rendimento familiar ‘per capita’ de até 1/2 salário mínimo”. Ribeiro, Rosa Maria; Sabóia, Ana Lúcia; Branco, Helena & Bregman, Sílvia. “Estrutura familiar, trabalho e renda”. In Kaloustian, Sílvio (org.) (1994). Op. Cit. 74 A pesar da redução relativa que sofreu entre 1981 e 1990 (6,3%), este tipo de unidade doméstica continua a predominar na sociedade brasileira, representando cerca de 60% do total, em 1990. 75 “As unidades domésticas unipessoais e as famílias formadas por mulher sem cônjuge morando com os filhos são os dois tipos que apresentaram maior crescimento relativo: 21,4% e 19%, respectivamente”. Ribeiro, Rosa Maria et al. (1994). Op.Cit. P.135. 38 de separações e divórcios, como o casamento mais tardio das mulheres – modelos de comportamento próximos aos encontrados nos países em superior estágio de desenvolvimento. Já no caso das famílias integradas pela mãe com filhos, percebe-se a articulação de diversos fatores. De um lado, aparece o aumento da participação feminina no mercado de trabalho76 e a suposta transformação dos valores que indicavam o casamento como melhor opção para a mulher – elementos que incidiram sobre pessoas de todos os níveis sociais, mas, em especial, nos mais elevados. De outro, “o próprio aprofundamento da situação de pobreza, decorrente da crise econômica pela qual vem passando a sociedade brasileira, (que) gerou uma série
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