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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEIRO 
CENTRO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANS 
INSTITUTO DE PSICOLOGIA 
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- EM BUSCA DE UM ROSTO - I ;f 
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UM ESTUDO P�HCANALÍTICO COM PACIENTES SUBMETIDOS 
A CIRURG1-AS RECONSTRUTORAS DA FACE 
Sara Angela Kislanov 
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Rio de Janeiro, maio de 2002 
EM BUSCA DE UM ROSTO 
Um estudo psicanalítico com pacientes submetidos a cirurgias reconstrutoras da face 
Sara Angela Kislanov 
Tese submetida ao corpo docente do Curso de Pós-Graduação em 
Psicologia do Instituto de Psicologia da Universidade Federal do Rio de Janeiro - UFRJ, 
como parte dos requisitos necessários à obtenção do grau de Doutor. 
Aprovada por: 
Pror Dra. Talita Franco 
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P�r. Theodor Lowenkron 
ProPl1r Franco Lo Presti Seminerio 
Rio de Janeiro 
2002 
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UNIVERSIDADE FEDERAL DO RIO DE JANEffiO 
CENTRO DE FILOSOFIA E CIÊNCIAS HUMANS 
INSTITUTO DE PSICOLOGIA 
- EM BUSCA DE UM ROSTO -
UM ESTUDO PSICANALÍTICO COM PACIENTES SUBMETIDOS 
A CIRURGIAS RECONSTRUTORAS DA FACE 
Sara Angela Kislanov 
Tese apresentada ao Instituto de Psicologia do Centro de 
Filosofia e Ciências Humanas da Universidade Federal do Rio 
de Janeiro, como requisito parcial para obtenção do grau de 
Doutor. 
Orientadora: Profa. Doutora Maria Luiza Seminerio 
Rio de Janeiro, maio de 2002 
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Ao meu pai. 
in memorian 
que ao contar tantas histórias, 
sem o saber, 
embalou meus ouvidos 
e meu prazer 
de um jeito tal, 
que aprendi a ouvir, 
acolher 
e amparar 
as histórias alheias. 
iii 
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AGRADECIMENTOS 
a minha orientadora Maria Luiza Semineiro, que com seu saber imprescindível, delicadeza 
e elegância, incentivou e acompanhou esta pesquisa. 
aos colegas e pacientes das equipes de Microcirurgia Reconstrutora e Psicologia Médica 
do Hospital dos Servidores do Estado e do Serviço de Cirurgia Maxilo Facial do Hospital 
de Ipanema, em especial ao Ricardo Cruz, por suas belas reconstruções. 
às colegas do Curso de Doutorado do Instituto de Psicologia da Universidade Federal do 
Rio de Janeiro Maria Cecília Lara Resende pela força e, muito em especial, a Magali 
Moraes Rego Costa agora amiga para sempre, pela interlocução e enorme solicitude em 
compartilhar as agruras desta aventura nos meus momentos mais difíceis. 
a professora e agora amiga e colega do Departamento de Psicologia da Pontifícia 
Universidade Católica do Rio de Janeiro, Maria Elizabeth Ribeiro dos Santos pelo 
incentivo de sempre. 
aos estagiários e alunos do Curso de Psicologia da Pontifícia Universidade Católica do 
Rio de Janeiro, em especial, as agoras já psicólogas Fernanda Pastuk, Fernanda Renne e 
Perla Klautau, pelo frescor das idéias. 
aos Drs. Vitor Manoel de Andrade e Edna Vilete pela disponibilidade para sugestões e 
pela seriedade com que tratam teoria e clínica psicanalíticas 
à Maria Cristina Ribas pela cuidadosa revisão e à Mareia Guerra pelo bom humor e 
eficiência na formatação final do trabalho. 
e ainda, todo o meu amor e o meu muito obrigada, aos meus filhos Clara e Pedro e Pietra 
também filha, pelo prazer e alegria em tê-los sempre por perto, participando comigo de 
tantas reconstruções .... , 
ao Pedro Bijos, que me apresentou às reconstruções por sua abençoada paciência e amor. 
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Palavras-chaves 
desamparo 
reconstrução de face 
psicologia hospitalar 
psicanálise 
equipe interdisciplinar 
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helplessness 
facial reconstruction 
hospital psychology 
psychoanalysis 
interdisciplinary staff 
VI 
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RESUMO 
A presente pesquisa, a partir da noção freudiana de desamparo, e de idéias acerca da teoria e 
clínica psicanalíticas, sobretudo as de Donald Winnicott, procura marcar a função do psicólogo junto a 
pacientes com deformidades de face no percurso de suas reconstruções. 
Pretende-se também oferecer subsídios para a leitura e para compreensão do evento traumático 
do desfiguramento súbito da face e refletir sobre os aspectos teóricos e práticos relevantes à formação 
do psicólogo. Esses vão interferir direta ou indiretamente na sua inserção em uma equipe hospitalar de 
cirurgias reconstrutoras da face; dito de outra forma, procurou-se pensar em que aspectos, fundados na 
teoria e prática da psicanálise, poderia o psicólogo contribuir para a clínica com pacientes 
sensibilizados e atingidos por circunstâncias tão drásticas. 
Com relação à leitura e à compreensão de eventos traumáticos, desenvolve-se o tema com 
apoio nas noções de desamparo e de trauma em Freud, do decorrente significado do esquema e da 
imagem corporal vigente e da construção subjetiva do rosto que, por sua vez, exige o esclarecimento 
de processos de identificação e ilusão e da importância da função especular na reconstrução facial. 
Paralelamente repensou-se tanto a questão do "rosto estranho", não-familiar, quanto a releitura deste 
rosto estranho. do caos como tentativa de estabelecer uma outra ordem e forma de agilizar a dinâmica 
do processo de reconstrução do sujeito. 
Do ponto de vista da clínica, destaca-se a transferência como ferramenta de acesso ao 
paciente, além do holding como via possível para chegar ao reconhecimento de um novo rosto. da 
própria imagem corporal e de si mesmo, possibilitando reconstruções. 
Por sua vez, a formação do psicólogo hospitalar, nesta pesquisa, existe no encontro entre a 
clínica hospitalar e a privada, ambas distintas em suas especificidades. A primeira apresenta uma nova 
configuração pautada sobretudo na interdisciplinaridade, enquanto a segunda a respalda. sendo que 
ambas promovem articulações entre si. 
Estes três pilares, permitem a constituição de uma metodologia específica para uma 
compreensão mais profunda e uma reconstrução mais eficaz do rosto de pacientes atingidos 
traumaticamente por acidentes que lhes causaram um desfiguramento súbito da face. E a metodologia 
aqui descrita foi sistematizada a partir da declaração de uma paciente que definiu a orientação de sua 
própria reconstrução (facial): "de dentro para fora" - o que aponta para a função vital do psicólogo a 
ser também repensada, reconstituída, fundada dentro da equipe hospitalar - enfim, uma prática de 
múltiplas e sucessivas reconstruções. 
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SUMMARY 
Toe current study, beginning from the Freud idea of helplessness and from ideas on the 
psychoanalytic clinic and theory, in particular the Donald Winnicott ones, aims at underlining the job 
of the psychologist attached to patients holding facial deformities during the course of their 
reconstruction. 
It is also intended to offer contribution for the knowledge and understanding of the traurnatic 
event of the sudden facial disfigure and to reflect on the relevant practical and theoretical aspects on 
the psychologist graduation, which will direct or indirectly interfere on its insertion in a hospital staff 
for facial reconstruction surgeries; in other words, it was intended to identify the aspects based on the 
psychoanalytic clinic and theory, the psychologist would contribute for the clinic with sensitizing and 
affected patients by so drastic circumstances. 
Regarding the knowledge and understanding of traumatic events, the theme grows supported 
by Freud ideas of helplessness and trauma, by the current meaning of scheme and body image, and by 
the subjective construction of the face, which by its tum requires elucidation of illusion and 
identification processes, and of the importance of the mirrar ring function in the facial reconstruction. 
It was equally reconsidered both the "uncanny", non-familiar face as the reinterpretation of this 
uncanny face, and of the chaos in an attempt to set up another structure and ways to speed up the 
dynamic of the process ofthe reconstruction ofthe patient. 
Fromthe clinic point of view, the transference, in addition to the holding, is characterized as a 
toai of access to the patient, as a possible way to reach the identification of a new face, of the self 
physical image and of itself, making reconstructions possible. 
By its tum, the hospital psychologist graduation in this study is viable in the meeting of the 
hospital and private clinic, both distinct in their particularities. Toe first presents a new structure 
mostly based on the interdisciplinary, while the second supports it, but both promote conversations 
between them. 
These three pillars allow the constitution of a specific methodology for a deep understanding 
and a more effective face reconstruction of patients traurnatically reached by accidents which caused 
their sudden facial disfigure. Toe methodology herein described has been systemized as of the 
declaration of a patient that determined the orientation of its (facial) reconstruction , " from inside to 
outside", - which indicates the vital function of the psychologist to be rethought, reconstituted and 
based within the hospital staff - after ali a practice of multiple and consecutive reconstructions. 
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Que me desculpem o aparente óbvio, mas repetir 
Clarice impõe-se: "Viver ultrapassa todo o 
entendimento" 
CLARICE LISPECTOR 
"The only revolutionary force is the force of human 
creativity" 
JOSEPH BEUYS 
IX 
- EM BUSCA DE UM ROSTO -
UM ESTUDO PSICANALÍTICO COM PACIENTES SUBMETIDOS A cmURGIAS 
REPARADORAS DA FACE 
SUMÁRIO 
1. INTRODUÇÃO 
2. DESAMPAROS 
2.1 - Freud e a noção de desamparo 
2.2 - O paciente e o desamparo do paciente 
2.3 - A equipe e o desamparo da equipe 
2.4 - O psicólogo, seu desamparo e o amparo ao paciente 
3. ROSTOS 
3. 1 - A construção subjetiva do rosto 
3 .2 - Corpo, esquema corporal e imagem corporal 
3. 3 - O desfiguramento traumático do rosto 
3 .4 - Um rosto "estranho" 
4. RECONSTRUÇÕES 
4.1 - Reconstruções "de dentro para fora" pela transferência 
4.2 - Uma via possível para reconstruções 
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS 
REFERÊNCIAS 
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pág. 
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23 
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98 
102 
108 
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1 
l.lNTRODUÇÃO 
O que faz um psicólogo hospitalar quando se vê diante de um caso de deformidade 
súbita da face? 
Esta é uma reflexão fundamental para o psicólogo, ainda mais considerando que, 
mesmo no ambiente hospitalar, casos como esse são extremos. O psicólogo vai lidar com 
situações em que o psíquico, o físico e o social estarão solidariamente entrelaçados. O 
paciente, que antes apresentava um rosto que reconhecia como seu, agora por um evento 
súbito, tem seu rosto deformado e busca reconstruí-lo. 
Caberá ao psicólogo, como parte de uma equipe especializada em reconstruções de 
face, oferecer acompanhamento psicológico para que tais pacientes possam enfrentar o 
sofrimento e as agruras das possíveis dezenas de cirurgias a que, em alguns casos poderão ser 
submetidos durante anos. 
O atual desenvolvimento tecnológico da Medicina tomou possível que as 
reconstruções tenham perspectivas de sucesso. A eficácia do processo, entretanto, precisa das 
orientações básicas a seguir, por parte dos envolvidos: 
� do ponto de vista do paciente: é preciso nutrir esperanças de que terá um rosto o mais 
próximo possível do que tinha, e que possa sentir esse novo rosto como seu próprio rosto. 
� do ponto de vista do psicólogo impõe-se uma atitude em nível de teoria e prática: pensar a 
relação equipe-paciente e analisar a prática que surge do acompanhamento pré e pós­
operatório. 
� do ponto de vista da equipe em geral: a questão é proporcionar o melhor atendimento 
possível ao paciente, desde as etapas cirúrgicas programadas, passando pela evolução do 
caso do ponto de vista técnico-científico, até o bem-estar do ser humano, submetido a uma 
situação limite. 
Historicamente, o estudo da face é um tema que faz parte da tradição da Medicina. Já a 
possibilidade de reconstrução da face com a utilização de técnicas cirúrgicas especializadas 
como as de microcirurgia é mais recente: as primeiras cirurgias datam da década de 1970. 
E, por sua vez, a inserção do psicólogo em equipes de reconstrução de faces é mais 
recente ainda. Constitui-se, portanto, em uma experiência profissional pouco sistematizada, 
cuja a bibliografia é ainda bastante restrita. 
2 
Para este profissional, portanto, percorrer e sistematizar uma experiência dessa 
natureza, é necessário deixar-se tocar pelo aspecto limite da situação, visto que implica em 
um sofrimento físico e psicológico, muitas vezes extremo, com sérias projeções no âmbito 
social. Trata-se de um dano corporal para o qual, até o momento, não há próteses totais 
conectáveis ou implantáveis. 
Neste contexto, é preciso compreender que o desfiguramento súbito da face e o 
referido processo de reconstrução, põem em questão, de acordo com leda Tucherman ( 1999, 
p. 15) "as mais antigas noções de humanidade e as nossas determinações mais radicais: a 
saber, mortalidade, singularidade e sexualidade" 1• Conforme foi mencionado, o psicólogo, ao 
trabalhar na equipe de reconstrução da face, vai se defrontar com uma questão que vai além 
da reconstrução anátomo-facial, pois abrange aspectos da psiqué e do corpo. É importante 
lembrar que até mesmo o vernáculo não distingue face e rosto, tanto que esses termos são 
usados um pelo outro. Na Medicina porém, privilegia-se face e, na Psicologia e Psicanálise 
fala-se comumente rosto. Nesta pesquisa, pela sua natureza interdisciplinar e multidisciplinar, 
seguir-se-á este procedimento e ambas as acepções serão empregadas indistintamente. 
Quanto à adoção da Psicanálise como referencial teórico-clínico do atendimento aos 
pacientes, responde a uma opção pessoal e revelou-se consonante à proposta da equipe e à 
problemática dos pacientes enfocados especificamente nesta pesquisa. Vale lembrar, ainda, 
que se toma por base o fato de que a inserção da teoria numa prática é integradora e não 
excludente. 
Segundo Freud, a clínica impõe-se como soberana. A fala e a escuta dos pacientes têm 
orientado a diretriz do trabalho no cotidiano e na pesquisa teórico-clínica. Quando os 
pacientes dizem: "Não me reconheço mais", "Tenho vergonha de sair à rua", "Quem é esse 
que eu vejo no espelho?", torna-se possível reportar essas falas a alguns conceitos 
fundamentais da Psicanálise que, no entanto não esgotam a especificidade de cada caso. Ao 
psicólogo, cabe identificar diante da singularidade de cada paciente como se articula essa 
trama de conceitos. E, com o instrumental da Psicanálise, assimilar conceitos valiosos que 
serão aqui sistematizados para o entendimento das questões pertinentes ao paciente, à equipe 
de modo geral e as limitações que se impõem à prática da psicologia nas instituições 
hospitalares. Esta pesquisa nasce, portanto, de uma prática de psicologia hospitalar e tem por 
objetivo pensar (1) que subsídios à Psicanálise oferece para a leitura e compreensão do evento 
traumático do desfiguramento súbito; (2) em que aspectos, fundados na teoria e técnica 
1 TUCHERMAN, leda. Breve histórico do corpo e seus monstros. Lisboa: Vega, 1999. 
3 
psicanalíticas, poderia o psicólogo ressaltar e contribuir para a clínica com esses pacientes, e 
(3) que aspectos teóricos e práticos deveriam ser considerados relevantes para pensar na 
formação de um psicólogo inserido em equipes hospitalares de modo geral e especificamente 
em equipes de cirurgias reconstrutoras da face. 
A presente pesquisa focaliza casos de pacientes submetidos a cirurgias reconstrutoras 
da face em um hospital público situado na Zona Sul da cidade do Rio de Janeiro, no qual 
realizou-se o acompanhamento psicológico de pacientes desse serviço. A prática ocorreu 
junto à equipe de Cirurgia maxilo-facial do Hospital de Ipanema2, chefiada pelo Dr. Ricardo 
Cruz. 
Esse Serviço constitui-se em um dos serviçosde excelência e referência da rede 
pública do Estado do Rio de Janeiro, quando se tratam de cirurgias reconstrutoras da face. 
Os pacientes referidos nesta pesquisa, são aqueles aos quais se teve acesso pela 
condição de psicóloga-pesquisadora junto ao renomado Serviço. Ao longo do trabalho, serão 
apresentados depoimentos de pacientes com nomes fictícios, preservando-lhes a identidade. 
Foi como psicóloga-pesquisadora, utilizando-se de escuta e intervenção de orientação 
psicanalítica, que durante quatro anos foi possível acompanhar e participar das rotinas do 
Serviço. Ocorreram interações com a equipe, com os pacientes e seus familiares, tanto através 
de relacionamentos formais quanto informais. Por objetivo tinha-se a investigação e o 
entendimento do universo psíquico dos pacientes submetidos a cirurgias reconstrutoras da 
face e que buscavam a reconstrução de seus rostos. 
Ao Serviço de Cirurgia Maxilo Facial do Hospital de Ipanema, prestigiado por sua 
excelência e especificidade, como anteriormente mencionado, acorrem pacientes de todos os 
estados do Brasil. Assim, foi possível encontrar ali casos de pessoas que passaram por 
situações traumáticas que redundaram em desfiguramento do rosto, e que pontualmente 
tiveram que se defrontar com a destruição de partes de seus rostos que causaram seu 
desfiguramento ou de partes importantes dos mesmos. 
Os pacientes acompanhados apresentavam graves deformidades, as quais 
ocasionavam o desfiguramento de seus rostos. Por graves deformidades da face entenda-se 
aqui a associação de fraturas múltiplas e severo trauma de partes moles. Tais pacientes 
encontravam-se na faixa etária de 18 a 55 anos, sendo que foram apenas considerados para a 
pesquisa, aqueles cujas deformidades originaram-se a partir de acidentes ou qualquer outro 
evento súbito que pudesse ter ocasionado o desfiguramento de seus rostos, excetuando-se 
� O Hospital de Ipanema pertence à rede de hospitais públicos municipais da cidade do Rio de Janeiro. 
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4 
tumores e/ou patologias congênitas. Realizou-se acompanhamento psicológico em diferentes 
etapas cirúrgicas, de suas reconstruções tanto no pré quanto no pós-operatório. 
As limitações do método residem no fato de que o problema é novo, possui pouca 
bibliografia, o que resulta na impossibilidade de cotejamento de achados de outros 
pesquisadores. Este aspecto foi mencionado anteriormente, tendo em vista a atualidade da 
inserção do psicólogo nesse quadro. 
De qualquer modo, a Psicanálise precisa incorporar os resultados de pesquisas, rever 
interpretações, aplicar novas maneiras de investigação, para que possam surgir contribuições 
de ordem metodológica que tragam à Psicanálise vitalidade e atualidade e colaborem para a 
eficácia do processo. 
O procedimento metodológico a ser desenvolvido neste trabalho, visando responder 
aos objetivos descritos, encaminha as seguintes revisões, além das propostas já assinaladas ao 
longo desta seção introdutória: 
� Revisão bibliográfica de conceitos teóricos-clínicos da Psicanálise;3 
� Revisão de bibliografia complementar contemporânea sobre Psicanálise; 
� Revisão bibliográfica sobre Psicologia Hospitalar, e 
� Registro de entrevistas e registros de acompanhamento de casos. 
As descrições, propostas e reflexões descritas serão estruturadas, nesta pesquisa nas 
seguintes seções: 
A Seção 2 intitulada Desamparos, descreve resumidamente a noção de Desamparo em 
Sigmund Freud, e a identifica como resposta à condição de extrema dependência em que se 
encontram os pacientes com desfiguramentos súbitos da face. É importante marcar que tais 
pacientes estão sujeitos à rotina hospitalar e sob a perspectiva de inúmeras e dolorosas 
cirurgias reconstrutoras da face. Neste contexto específico, a noção de Desamparo, apresenta­
se também valiosa para a compreensão do desamparo da equipe (aí incluindo-se o psicólogo) 
e do psicólogo junto à equipe e ao paciente, visto que as cirurgias da face constituem-se em 
geral, em uma programação sem garantias de sucesso e com todos os riscos de uma cirurgia. 
A complexidade do trabalho e a insegurança de resultados remetem a equipe e o 
próprio paciente a condições psicológicas - de fragilidade e vulnerabilidade - limítrofes da 
condição humana. 
3 A essa revisão e a sua seguinte, cabe esclarecer que: nos trabalhos dos psicanalistas citados ao longo desta 
pesquisa, considera-se o emprego adotado por eles mesmos quanto ao uso de termos específicos. Com relação 
a Freud, utilizou-se os termos conforme encontram-se notados na Edição Standard Brasileira. 
5 
A seção 3, Rostos, aborda o desfiguramento súbito da face como esfacelador da 
identidade. A construção subjetiva do rosto é fundamental para o reconhecimento de s1 
mesmo e se organiza desde os primeiros contatos do bebê com sua mãe ou substituta. O 
estudo do rosto remete aos conceitos de identificação, imagem e função especular, e ilusão. 
Como o rosto faz parte de um corpo, o tema remete também à questão do esquema 
corporal e da imagem corporal, fragmento e totalidade e suas representações sociais. 
O desfiguramento súbito de um rosto implica em dor, sofrimento e luto, acrescido pela 
importância social do rosto e a premência em ter que aceitar um rosto estranho, no qual é, ao 
mesmo tempo, possível e impossível reconhecer-se e ser reconhecido. 
Na seção Reconstruções 4 pretende-se articular os temas da reconstrução da face pela 
transferência aos recursos propostos pela clínica psicanalítica, em especial à desenvolvida por 
Donald Winnicott. 
Nessa perspectiva o psicólogo pode exercer sua função terapêutica de oferecer-se 
enquanto continente facilitador para as reconstruções. 
Ainda em Reconstruções evidencia-se que o psicólogo hospitalar tem uma 
contribuição relevante na equipe para o bem-estar do paciente submetido à reconstrução da 
face e que sua função pode se estender a outras equipes médico-cirúrgicas especializadas, 
guardando as devidas peculiaridades. 
O tema da reconstrução da face pode ser objeto circunscrito ao estudo psicanalítico e 
simultaneamente pode ser ampliado sob determinados aspectos, de modo que levem a uma 
abordagem interdisciplinar, enfim, a uma prática mais abrangente. No entanto, o recorte 
apresentado nesta seção responde a questões que emergiram diretamente da clínica. 
O estudo evidencia que o rosto é passível de reconstrução do ponto de vista técnico­
cirúrgico e do ponto de vista psicológico. Porém, dada a importância do rosto na construção 
da identidade do sujeito, a chamada proposta da reconstrução de "dentro para fora" supõe que 
utilizando-se da transferência, o psicólogo ao oferecer "holding" adequado, possibilita aos 
pacientes a reconstrução de si mesmos e o reconhecimento dos diversos rostos, com os quais 
poderão sucessivamente se defrontar após o evento traumático, como seus. 
A luta dos pacientes pela reconstrução de seus rostos mostra que os pacientes superam 
todas as expectativas e, como diria Freud ( 1937)4, toda construção é uma reconstrução. 
No contexto específico da reconstrução do rosto pelo viés da Psicanálise, ressalta-se 
que um trabalho desenvolvido por toda a equipe de maneira integrada é o principal 
4 FREUD, Sigmund. Construções em análise. ln: ESB. Vol. XXIII. Rio de Janeiro: Imago, 1975 ( ] 937 . 
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responsável por sua eficácia, numa área em que é difícil oferecer ao paciente garantias de 
sucesso. E sempre que possível a pesquisa parte da clínica e do contato direto com pacientes e 
seus relatos. 
Através de um espaço de escuta e fala, oferecido a tais pacientes e de uma 
interpretação do material recolhido a partir de uma escuta sobretudo psicanalítica, foi possível 
avaliar a importância da inserção do psicólogo junto às equipes de atendimento específicas a 
pacientes submetidos a cirurgias reconstrutoras da face, incluindo-se a integração de aspectos 
objetivos e subjetivos. 
Assim sendo, compreendendo-se o quepode ser estritamente necessário durante o 
processo de reconstrução da face, tais idéias poderão ser extensivas de modo geral, também 
para a compreensão dos aspectos e cuidados básicos a serem considerados quando da 
necessidade de uma internação hospitalar. Essa por si só, traz implícita a vulnerabilidade do 
ser humano. Fácil compreender como uma exigência do mundo externo, remete ao interno, ao 
psíquico, ressaltando a vulnerabilidade humana como ponto que remete ao desamparo. 
2. DESAMPAROS 
A desesperação 
Os meus olhos, meu Deus! se fecharam ! 
e, de dor eu não sei onde estou. 
É bem tarde. Já todos se foram 
e na alma se me crava cruelmente a dor. 
Quem me chama na sombra? Quem ouve 
Meus ladridos de raiva e de dor? 
A impotência me esmaga. Não vêm ! 
Vem entretanto a negra desesperação. 
O silêncio ! Este eterno silêncio 
Quem meus gritos irá responder? 
Minhas vozes as levam os ventos 
E a mim me traga o abismo desta escuridão. 
Pablo Neruda 
2. 1 - Freud e a noção de desamparo 
7 
Na enciclopédia e Dicionário de Abrahão Koogan e Antônio Houaiss (1 999, 501 ) 1 , 
desamparo é "a ação ou efeito de desamparar, abandono. Falta de auxílio ou proteção. Falta de 
meios" e o verbo desamparar diz respeito a: "abandonar, deixar sem auxílio, sem socorro. 
Deixar de sustentar, de proteger: desamparar os filhos". 
Entretanto recorrendo-se à noção de desamparo utilizada por Sigmund Freud em 
diferentes momentos de sua obra, encontrou-se subsídios para compreender e estabelecer 
correlações que, por analogia, são encontradas e apontadas no desamparo percebido nos 
sujeitos desta pesquisa. Tal noção, auxiliará também, na compreensão da questão que será 
apresentada e nomeada como desamparo da equipe (cf. 2.3 desta pesquisa), o qual implica no 
desamparo do ser humano frente à civilização. 
Fala-se aqui em noção de desamparo - capital para a nossa tese - uma vez que, como 
aponta Mário Eduardo Costa Pereira (1 999, pp. 1 25-6)2, não se deveria atribuir a este último o 
estatuto propriamente de um conceito bem definido, mas sim considerá-lo na obra de Freud, 
1 KOOGAN, Abrahão; HOUAISS, Antônio. Enciclopédia e dicionário ilustrado. Rio de Janeiro: Seifer. 1 999. 
2 PEREIRA. Mario Eduardo Costa. Pânico e desamparo: um estudo psicanalítico. São Paulo: Escuta. 1 999. 
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8 
como sendo mais da ordem de uma noção. Para tal raciocínio Pereira utiliza-se do fato de 
Freud não haver destinado um estudo específico ao tema do desamparo. 
Pensa-se, entretanto, que tal fato não retira em absoluto o valor da idéia do desamparo 
na obra de Freud, visto que esse autor o apontou durante todo seu percurso teórico, ou seja, 
em diferentes momentos de sua obra e com diferentes significados, atribuindo-lhe importância 
fundamental para a constituição e compreensão do psiquismo humano. 
Freud ressaltou, o contexto de extrema fragilidade e desproteção em que nasce o bebê 
humano. Imaturo, neurologicamente enxergando só de muito perto, incapaz de locomover-se 
ou alimentar-se por si só, encontra-se totalmente dependente de alguém que o auxilie a viver, 
alimentando-o, cuidando-o e sobretudo de preferência, amando-o no sentido do investimento 
libidinal. Após a contribuição da Psicanálise, mesmo no senso comum, o homem só pode ser 
percebido de outra maneira: através de sua vida pulsional. 
É do termo desamparo (hilflosigkeit), que Freud se utiliza para designar o estado em 
que se nasce e também no qual se vive em alguns momentos. Para Freud, as conseqüências 
nocivas do desamparo amoroso do ser humano jamais tornaram-se desapercebidas. Um bebê 
solitário, que sente a falta da mãe ou de pessoa que desempenhe a função materna reflete 
viver o que pode ser considerado uma situação traumática, uma situação de ameaça à vida. De 
início, protesta, esperneia e chora. Em seguida começa a definhar e se não for acudido, vem a 
morrer. Conta-se que, de vários bebês internados numa enfermaria de Pediatria durante a 
Segunda Grande Guerra, apenas um sobreviveu. Surpresos, pesquisadores resolveram 
entender o que havia acontecido. Descobriram que, ao lado de seu berço, encontrava-se um 
vestiário, onde todos os dias ao trocar suas roupas, uma enfermeira conversava e brincava 
com o bebê. Só ele sobreviveu. 
Essa idéia da fragilidade, da desproteção e da extrema dependência a um outro, em 
função da "turbulência" pulsional que ocorre por ocasião do nascimento e para a qual a única 
saída será através de um auxílio externo é basicamente, o que apresenta Freud inicialmente 
sobre o estado de desamparo. Posteriormente, sobretudo em seus derradeiros textos, aponta 
ainda para a fragilidade e vulnerabilidade humanas diante dos caminhos da vida, da 
civilização, falando também de nossa pequenez frente à Natureza. Nomeia tais condições em 
vários e diferentes momentos como desamparo. Amplia tal situação, portanto, analisando-a 
mais detalhadamente quanto às vicissitudes do sujeito frente ao social, à civilização. 
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9 
Já presente no "Projeto Para uma Psicologia Científica" ( 1 950 [ 1 895])3, descoberto 
cinqüenta anos após a morte de Freud, a noção de desamparo acompanha praticamente toda 
sua obra, tendo obtido grande destaque sobretudo em Inibições, Sintomas e Ansiedade ( 1 926 
[ 1925])4, sendo pilar sustentador da metapsicologia da angústia. 
Registra-se aqui a definição encontrada no Vocabulário da Psicanálise de Jean 
Laplanche e J .B. Pontalis5 que nos diz ser o desamparo um termo usado na linguagem 
corriqueira, porém que traz um significado particular em Freud. Tais autores definem o estado 
de desamparo como: 
"Termo da linguagem comum que assume um sentido específico na teoria 
freudiana. Estado do lactente que dependendo inteiramente de outrem para a 
satisfação de suas necessidades (sede, fome), é impotente para realizar a 
ação específica adequada para por fim à tensão interna. Para o adulto, o 
estado de desamparo é o protótipo da situação geradora de angústia". 
(LAPLANCHE e PONTALIS, 1994, p. 1 12) 
No Projeto Para uma Psicologia Científica ( 1 950 [ 1 895] , p. 422), ao falar sobre como 
se dá a experiência da satisfação, em função da grande tensão provocada por estímulos 
endógenos que exigem descarga, Freud ressalta que esta somente poderá acontecer através de 
uma intervenção, por uma "alteração do mundo externo", através de uma "ação específica". 
Coloca que sendo o organismo humano impotente, em princípio, para por si só resolver o 
problema, necessitará de "assistência alheia". Assim sendo, tal modo de descarga que se 
expressava sobretudo nesse momento por via motora, constituir-se-á em "importantíssima 
função secundária da comunicação, e o desamparo inicial dos seres humanos é a fonte 
primordial de todos os motivos morais". 
Já se evidencia aqui o quanto a constituição de nossas singularidade e subjetividade 
residem também na dependência daqueles que nos cercam e por extensão à sociedade e à 
cultura a qual se pertence. Buscar comunicação, permitir e aceitar o intercâmbio interior e 
exterior, lidar com nossa onipotência e nossa impotência impõe-se à humanização . . 
É realmente em Inibições, Sintomas e Ansiedade ( 1 926 [ 1925]) que Freud ressalta a 
noção de desamparo, apontando-a insistentemente. Nesse momento de sua obra, Freud já 
havia realizado a reformulação do aparelho psíquico configurando-o em termos de ego, id e 
3 FREUD, Sigmund. Projeto para uma psicologia científica. ln: ESB. Vol. 1. Rio de Janeiro : Imago, 1 977 
(] 950( 1 895]). 
4 FREUD, Sigmund. Inibições, sintomas e ansiedade. ln: ESB. Vol. XX. Rio de Janeiro: Imago, 1 976 
( 1926( 1925]). 
5 LAPLANCHE, Jean; PONTALIS, J.-B. Vocabulário da psicanálise. São Paulo: Martins Fontes, 1994. 
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super-ego. Modificara também sua teoria das pulsões, colocando como oponentes pulsão de 
vida e pulsão de morte. Mas não parecia convencido sobre a origem da angústia, da maneira 
como a compreendia até aquele momento.Diz então: 
"É chegada a ocasião de fazer uma pausa e meditar. O que claramente 
desejamos é encontrar algo que nos diga o que é realmente a ansiedade, 
algum critério que nos permita distinguir dos falsos e verdadeiros 
enunciados a respeito dela. Mas isto não é fácil de conseguir". (FREUD, 
1 926[ 1 925] , p. 1 55) 
Será então, investigando sobre a origem da angústia que Freud utiliza-se com 
freqüência do termo desamparo. "A função da ansiedade é ser um sinal para a evitação de 
uma situação de perigo". (p. 1 62) Como a "ansiedade primeva", (p. 1 6 1 ) designa a angústia 
do nascimento: aquela que ocorre segundo ele, "por ocasião de uma separação da mãe" (p. 
1 6 1) . 
Ainda nesse artigo, ao tratar da angústia e sua ligação com as neuroses, Freud vai 
apontar que, se algo de outra ordem acontece no percurso natural da excitação sexual, então: 
"a ansiedade surge diretamente da libido em outras palavras, que o ego fica 
reduzido a um estado de desamparo em face de uma tensão excessiva devido 
à necessidade, como ocorreu na situação de nascimento e que a ansiedade é 
então gerada" (FREUD, ( 1 926 [ 1 925), p. 1 65) . 
No mesmo artigo, ao falar sobre a importância do fator biológico na etiologia das 
neuroses, coloca que as primeiras situações de perigo estão relacionadas em muito ao 
biológico - grande período de tempo em que a criança permanece em condições de 
desamparo e dependência - criam a necessidade de ser amado que acompanhará a criança 
durante o resto de sua vida. (p. 1 79) 
Continuando a tecer considerações sobre a origem da angústia e, ao distinguir angústia 
realística de angústia neurótica, Freud coloca que o verdadeiro perigo é aquele que se 
conhece, e que a ansiedade realística é, então, a angústia por um perigo de tal ordem. Adiante, 
inquirindo-se sobre o que seria o essencial numa situação de perigo vai dizer que: 
"Claramente ela consiste na estimativa do paciente quanto à sua própria 
força em comparação com a magnitude do perigo e no seu reconhecimento 
de desamparo em face desse perigo - desamparo físico se o perigo for real e 
desamparo psíquico se for instintual . . . Denominemos uma situação de 
desamparo dessa espécie, que ele realmente tenha experimentado, de 
situação traumática. Teremos então bons motivos para distinguir uma 
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situação traumática de uma situação de perigo. (FREUD, 1 926[ 1 925], p. 
1 9 1 ) 
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Para Freud parece não fazer tanta diferença que o perigo seja físico ou psíquico, 
pulsional e, portanto, interno. O que realmente importa é que este perigo vai traduzir-se no 
sujeito como desamparo, constituindo-se numa situação traumática. 
Tal perigo, em Freud, será sempre derivado da angústia do nascimento, dependendo 
esta da intensidade do evento e da suscetibilidade do sujeito. Ainda na perspectiva freudiana, 
a criança de colo necessita da presença da mãe ou sua substituta, pois já sabe, por experiência, 
que esta poderia satisfazer suas necessidades sem demora. 
"Quando a criança houver descoberto pela expenencia que um objeto 
externo perceptível pode pôr termo à situação perigosa que lembra o 
nascimento, o conteúdo do perigo que ela teme é deslocado da situação 
econômica para a condição que determinou essa situação, a saber, a perda de 
objeto. É a ausência da mãe que agora constitui o perigo, e logo que surge 
esse perigo a criança dá o sinal de ansiedade, antes que a temida situação 
econômica se estabeleça. ( . . . ) verifica-se que a ansiedade é um produto do 
desamparo mental da criança". (FREUD, 1 926[ 1 925], p. 1 6 1 -2) 
O perigo contra o qual a criança deseja proteção é o perigo da não-satisfação. Uma 
crescente tensão devido à necessidade, contra a qual a criança é impotente pode vir a 
acontecer, caso esta necessidade não seja atendida. Tal situação remete a criança a algo 
análogo à experiência do nascimento. Tanto a vivência da não-satisfação, quanto o 
nascimento, apresentam uma característica em comum: a perturbação econômica por um 
acúmulo de quantidades de estímulo que necessitam ser eliminadas. 
Freud ressalta que, no decorrer da vida do sujeito, as situações de perigo originadas 
das várias etapas de seu desenvolvimento, a saber: o perigo de vida, quando o ego da pessoa é 
ainda imaturo, o perigo de perder o objeto na primeira infância; o perigo da castração na fase 
fálica e o medo de seu próprio superego até o período de latência constituem-se em perigo de 
desamparo psíquico. Todas estas situações de perigo que são, por si só também determinantes 
de angústia, podem continuar em paralelo pela vida e fazer com que o ego a elas reaja em 
situações posteriores, ou ainda várias delas possam entrar em ação, em simultaneidade. 
Freud, ao relacionar a origem da angústia a uma situação de perigo, afirma que os 
sintomas estabelecem-se para tirar o ego de tal situação. Se houver um impedimento da 
expressão da angústia através de sintomas, o perigo de fato se concretiza, isto é: "uma 
situação análoga ao nascimento se estabelece na qual o ego fica desamparado em face de uma 
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1 2 
exigência instintual constantemente crescente - o determinante mais antigo e original da 
ansiedade". (p. 168) 
Em Observações Suplementares sobre a Ansiedade, ( 1926( 1925])6 Freud faz uma 
distinção entre angústia e medo. A angústia relaciona-se à indefinição e à falta de objeto; já no 
medo, o objeto que se teme é encontrado e pode ser nomeado. Ao fazer a distinção entre 
angústia realística e ansiedade neurótica coloca que a primeira é ansiedade por um perigo 
conhecido e a segunda, angústia por um perigo desconhecido. A seguir, ele aponta duas 
reações frente ao perigo real: uma reação de ordem afetiva, uma irrupção de angústia, e uma 
outra que se constitui em uma ação de proteção. 
No entanto, em alguns momentos, ocorre a mistura dessas duas angústias, o perigo é 
conhecido e real, mas a angústia frente ao mesmo, assume uma acentuada desproporção. 
Nestes casos, afirma Freud, a análise nos mostra que, ao perigo real conhecido, se acha 
ligado um perigo instintual desconhecido. 
No decorrer de sua análise, afirma que a angústia é, de certo modo, uma expectativa de 
um trauma, pois remete o sujeito às experiências traumáticas anteriores, mas é também uma 
repetição desse mesmo trauma de forma atenuada. Percebe-se, então, segundo Freud, que os 
dois modos de angústia que podem ser apontados, têm origens diferentes. Sua relação com a 
expectativa pertence à situação de perigo porém, a sua indefinição e a falta de objeto 
pertencem à situação traumática de desamparo, à situação que é prevista diante do perigo. 
A seqüência angústia, perigo, desamparo permite lembrar, ainda com Freud, que uma 
situação de perigo é uma situação "reconhecida, lembrada e esperada de desamparo", além do 
que a "ansiedade é a reação original ao desamparo no trauma, sendo reproduzida depois da 
situação de perigo como um sinal em busca de ajuda". (id. ibid., p. 1 9 1-2) 
Freud entende que o ego, ao ter experimentado o trauma passivamente, o repete de 
forma ativa, tencionando ter domínio sobre o mesmo, orientando sua direção. Exemplifica tal 
situação apresentando as brincadeiras infantis. Refere-se a como as crianças, através de suas 
brincadeiras, ao passarem da situação de passivas para a de ativas, buscam a possibilidade de 
ter o domínio de suas experiências psíquicas. 
O que realmente importa, diz Freud, é que se compreenda que houve 
"um primeiro deslocamento da reação de ansiedade de sua origem na 
situação de desamparo para uma expectativa dessa situação - isto é, para a 
6 FREUD, Sigmund. Observações suplementares sobre a ansiedade (adendo B). ln: ESB. Vol. XX, Rio de 
Janeiro: Imago, 1 977 ( 1926[ 1025]) . 
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situação de perigo. Depois disso vêem os deslocamentos ulteriores, do 
perigo para o determinante do perigo - perda do objeto ... " (FREUD, 1 926 
[ 1 925], p. 192) 
1 3 
Como já visto, perigo externo (real) e pengointerno (pulsional) relacionam-se 
intimamente. Assim, nas situações traumáticas, onde se faz presente o desamparo, 
encontramos os perigos externos e internos, perigos reais e exigências pulsionais. 
"Quer o ego esteja sofrendo de uma dor que não para ou experimentando um 
acúmulo de necessidades instintuais que não podem obter satisfação, a 
situação econômica é a mesma, e o desamparo motor do ego encontra 
expressão no desamparo psíquico". (FREUD, 1 926( 1 925], p. 1 93). 
Cabe ressaltar por fim que, para o desamparo inicial do ser humano apontado por 
Freud, o único destino possível é o amparo de um outro. 
O desamparo de todos nós frente à civilização, as vicissitudes da vida e a pequenez 
dos seres humanos diante da Natureza constitui-se num outro viés do desamparo também 
apontado por Freud. 
O desamparo, não mais se restringirá à infância precoce, mas se constituirá na própria 
essência da existência humana. 
Em seu trabalho sobre o Futuro de uma Ilusão ( 1 927) 7 Freud mostra, principalmente, 
como as religiões são ilusões e que as idéias religiosas têm por base a mesma origem de todas 
as outras realizações humanas. Surgiram portanto da necessidade de defesa frente à 
grandiosidade da Natureza. 
Assim como a criança tem a necessidade imperiosa da idéia de proteção por parte de 
seus pais, os adultos teriam a necessidade de um Deus-Pai Todo Poderoso, diante de seu 
desamparo frente às forças da Natureza, frente aos seus semelhantes e frente ao seu destino. 
"Como já sabemos, a impressão terrificante de desamparo na infância 
despertou a necessidade de proteção - de proteção através do amor -, a qual 
foi proporcionada pelo pai; o reconhecimento de que esse desamparo 
perdura através da vida tomou necessário aferrar-se à existência de um pai, 
dessa vez porém, um pai mais poderoso. Assim o governo benevolente de 
uma Providência divina mitiga nosso temor dos perigos da vida". (FREUD, 
1 927, p. 43) 
7 FREUD, Sigmund. O futuro de uma ilusão. ln: ESB: Vol. XXI. Rio de Janeiro: Imago, 1974 ( 1 927). 
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Freud vai apontar também o quanto se é "desamparado" diante de nossas próprias 
forças civilizadas. Acredita que a civilização que se impõe como necessária à própria 
existência é a mesma que deve ser contida quanto à hostilidade dos homens diante de suas 
próprias conquistas. "As criações humanas são facilmente destruídas, e a ciência e a 
tecnologia, que as construíram, também podem ser utilizadas para sua aniquilação". (id. ibid., 
p. 16) 
É sobretudo no artigo o Mal-Estar na Civilização ( 1930 [ 1 929])8 que Freud vai 
apresentar, de modo mais explícito, como o desamparo diante do social, principalmente frente 
aos relacionamentos dos homens com os outros homens é inerente à condição humana. Ao 
questionar-se sobre o que o ser humano mais deseja da vida, ele responde que, sem dúvidas, é 
ser feliz e manter tal estado. 
Contra tudo e contra todos de início, o funcionamento do aparelho psíquico busca e 
"programa" o princípio do prazer. Porém tal programação é impossível de ser cumprida. 
Quando uma situação prazerosa prolonga-se, "ela produz tão-somente um sentimento de 
contentamento muito tênue". (p. 95) Ao princípio do prazer como condição sine qua non, 
justapõe-se o princípio da realidade. 
Eis o dilema: ao prazer impõe-se o desprazer. O sofrimento, o desprazer nos ameaça: 
"a partir de três direções: de nosso próprio corpo, condenado à decadência e 
à dissolução, e que nem mesmo pode dispensar o sofrimento e a ansiedade 
como sinais de advertência; do mundo externo, que pode voltar-se contra nós 
com forças de destruição esmagadoras e impiedosas; e, finalmente, de 
nossos relacionamentos com os outros homens. O sofrimento que provém 
dessa última fonte talvez nos seja mais penoso que qualquer outro". 
(FREUD, 1 930 [ 1929] p. 95). 
Novamente o dilema. É ao outro que o bebê humano grita por socorro quando não 
diferencia ainda seu ego do mundo externo. Porém será esse mesmo outro que, 
inevitavelmente lhe trará sofrimento. 
Adiante em seu artigo, continuando sua hermenêutica do sofrimento, novamente o 
problema. Das três fontes apresentadas como origens principais do sofrimento humano, para 
duas delas não há nada possível a ser feito, a saber: o poder da Natureza e a efemeridade de 
nossos próprios corpos. 
Entretanto, contra a terceira delas, a que se origina de nossos relacionamentos, com 
nossos semelhantes, para a qual supostamente seriam possíveis maneiras de evitar o 
8 FREUD, Sigmund. O mal-estar na civilização. ln: ESB. Vol. XXI. Rio de Janeiro: Imago, 1974 ( 1930( 1929]) . 
1 5 
sofrimento, é doloroso ter que admitir conforme Freud, (id. ibid., p. 105) "jazer, por trás desse 
fato, uma parcela de nossa própria constituição psíquica". 
Ou seja, impõe-se ter que imaginar que as regras estabelecidas pelo processo de 
civilização e que, supostamente, serviriam como proteção ao sofrimento humano, em alguns 
momentos de nada adiantam ou mesmo proporcionam ao contrário, grande sofrimento. 
Freud fala então, a respeito de sua constatação sobre uma outra pulsão, a pulsão de 
morte, como postulado em sua obra - Além do Princípio do Prazer ( 1920)9 quando a 
compulsão à repetição e o caráter conservador da vida pulsional passam a ser considerados. 
"Partindo de especulação sobre o começo da vida e de paralelos biológicos, 
conclui que . . . deveria haver outro instinto . . . Isto eqüivalia a dizer que, assim 
como Eros, existia também um instinto de morte. Os fenômenos da vida 
podiam ser explicados pela ação concorrente, ou mutuamente apostas, desses 
dois instintos . . . Poder-se-ia presumir que o instinto de morte operava 
silenciosamente dentro do organismo . . . Uma idéia mais fecunda era a de que 
uma parte do instinto é desviada no sentido do mundo externo e vem à luz 
como um instinto de agressividade e destrutividade". (FREUD, 1 920, p. 1 4 1 ) 
Coloca em seguida que os dois tipos de pulsão nunca operam de forma isolada, mas 
encontram-se misturados em medidas variadas e diferentes, tomando-se, em algumas 
ocasiões, difíceis de serem identificados. 
Ao falar dos meios que a civilização emprega para inibir a agressividade que se lhe 
opõe, e discutindo a questão da culpa, Freud vai mostrar que a pessoa tem um motivo para se 
submeter a uma "influência estranha". Tal motivo é "facilmente descoberto no desamparo e 
na dependência dela em relação a outras pessoas, e pode ser mais bem designado como medo 
da perda do amor". (id. ibid., p. 147) 
Segue dizendo que a inibição da agressividade traz tanta infelicidade quanto a própria 
agressividade, constituindo-se então em importante obstáculo à civilização, donde decorreria 
o mal-estar da civilização. 
Porém, esse é um mal-estar pelo visto mais "razoável" do que o mal-estar do 
desamparo. O do desamparo, seria insuportável para o ser humano, levando-o à morte. 
Assim, para Freud, o processo de civilização implica em um mal-estar. Em alguns 
momentos da vida, tal mal-estar remete os sujeitos a um estado de desamparo, ou seja 
encontram-se "sem pai nem mãe", perdidos, desorientados, sem amparo. 
9 FREUD, Sigmund. Além do princípio do prazer. ln: ESB. Vol. XVIII. Rio de Janeiro: Imago, 1976 ( 1920). 
1 6 
O amparo de alguém, que responda de modo empático aos "gritos de socorro" será a 
possibilidade de saída pelo menos para o desamparo inicial do ser humano. 
2.2 - O paciente e o desamparo do paciente 
"Achei que tudo tinha acabado, não conseguia entender nada, me sentia 
profundamente só". Esta afirmação integra o relato de uma paciente, ao contar como se sentiu 
no CTI logo depois de recobrar os sentidos, após ter sido socorrida, em decorrência de grave 
acidente automobilístico. 
Na opinião de Ricardo Cruz, chefe do Serviço de Cirurgia Maxilo-Facial do Hospital 
de Ipanema é que ao perceber que alguém se interessa em responder aos "seus gritos de 
socorro", ao "seu desamparo", o paciente com graves deformidades na facesuporta lutar pela 
reconstrução de seu rosto, reivindicando-a e aceitando-a . 10 "Sem o outro não existe o um" 
(BIRMAN apud PALHARES e LIMA, 1988, p. 255) 1 1 • 
A determinação e força, frente à incessante busca pela reconstrução de um rosto, as 
dificuldades objetivas (procura pelos serviços médicos apropriados entre outras) e as 
subjetivas durante as etapas de reconstrução, que em alguns casos, implicam também em 
mudanças de estado dentro do País, impressionam, sobremaneira, a todos os que se dedicam 
aos cuidados desses pacientes. 
Procurando, sobretudo, compreender esses aspectos de determinação e força 
apresentados por esses pacientes, foi que paradoxalmente, chegou-se à idéia de desamparo. 
Nas situações limites, parecem freqüentes afirmações tais como: "Não vou desanimar" - frase 
dita pelo piloto italiano de fórmula I, Alessandro Zanardi o qual teve as duas pernas 
amputadas, após ter sofrido um acidente, quando seu carro foi atingido por um outro a 320 
quilômetros por hora. (CARELLI, Gabriela, 2000, p. 1 1) 1 2. Ou ainda, declaração feita por 
uma paciente durante uma entrevista: "Levava paulada da vida e voltava igual ou mais forte". 
Impossibilitados de reconhecerem-se a si mesmos, despersonalizados, os pacientes 
encontram-se, na maioria das vezes, com deformidades e seqüelas de tal ordem, 
principalmente em seus rostos, de maneira que passam a depender quase que inteiramente de 
outros; sendo que, ainda em alguns casos, nas várias etapas de sua reconstrução, necessitam 
10 Informação verbal . 
1 1 P ALHARES, Maria do Carmo Andrade; LIMA, Regina Celi Bastos. Desamparo e vida. Cadernos de 
Psicanálise. Rio de Janeiro: CPRJ, ano 20, no. 1 2, 1 998. 
1 2 CARELLI, Gabriela. Entrevista: Alessandro Zanardi. Revista Veja, São Paulo: Abril, 30 de jan, p. 1 1 - 1 5 , 
2000. 
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1 7 
de aparelhos (respiradores por exemplo) para sobreviverem, movimentarem-se e 
locomoverem-se (cadeiras de rodas, muletas, entre outros). 
São utilizados ainda, especificamente nas reconstruções da face, procedimentos 
cirúrgicos tais como: enxertos, retalhos e próteses dentárias· os quais são dolorosos e implicam 
em grande incômodo físico. 
Em alguns casos, sem conseguirem satisfazer por si sós, necessidades as mais básicas 
como sede e fome, necessitam de alguém que os auxilie em praticamente todas as atividades 
do cotidiano, principalmente durante os períodos das internações hospitalares. 
Na ocorrência dos acidentes, devido em geral à intensidade dos acontecimentos, 
"perdem os sentidos", não se recordam do momento do acidente. Necessitam, portanto, de 
"assistência alheia", uma vez que encontram-se em uma situação de perigo que culminará 
provavelmente em um desamparo físico e psíquico, constituindo-se, em situação traumática. 
Freqüentemente, estes pacientes, dependem de outros, em geral equipes de saúde 
para sua sobrevivência, impossibilitados que estão de se bastarem a si mesmos. Tal situação, 
associada ao súbito desfiguramento de seus rostos parece condição passível por si só de gerar 
angústia, remetendo-os a uma situação análoga à de desamparo. Assim, nas palavras de 
Edson Lannes ( 1 998) 1 3 . 
"Quando uma situação de perigo é reconhecida ou lembrada, há a 
expectativa de uma situação de "desamparo". A angústia é a reação original 
ao desamparo e se reproduz nas situações de perigo, como um sinal de 
pedido de socorro". (LANNES, 1998, p. 234) 
Desamparo e vulnerabilidade, portanto, parecem fazer parte do dia-a-dia desses 
pacientes. Tais situações contribuem em muito para esfumaçar o limite entre o interno e o 
externo, entre objetividade e subjetividade, confundindo as noções clássicas de identidade, 1 4 
as quais deverão ser pelo que se entende, recontextualizadas e relativizadas a partir de uma 
outra e nova ótica. 
No momento do acontecimento de acidentes tão graves, nos quais o corpo é atingido 
em um de seus expoentes máximos, o rosto, parece lógico que tais pacientes necessitem se 
sentirem minimamente cuidados e investidos afetivamente. Pelos anos de clínica tem-se 
comprovado: parece impossível ao ser humano não ser tocado quando, por alguma situação 
13 LANNES, Edson. Sobre o desamparo: ainda umas palavras. Cadernos de Psicanálise. Rio de Janeiro: CPRJ, 
ano 20, no. 1 2, 1 998. 
14 Todas as vezes que aparecer ao longo desta pesquisa a palavra identidade considere-se o sentido de: conjunto 
de caracteres próprios e exclusivos de um sujeito que expresse sua singularidade. 
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1 8 
seu corpo e seu rosto são atingidos, deformados. É no mínimo difícil olhar-se ao espelho e 
não se reconhecer. A despersonalização, o perigo e a angústia de não mais se encontrar, não 
reconhecer-se a si mesmo são companheiros freqüentes desses pacientes. 
Seguem-se alguns relatos dessa prática que comprovam a perspectiva assumida com 
relação ao desamparo. 
Laura, lindos cabelos cacheados, bonita, 32 anos, vivendo um processo de separação 
conjugal, trabalhava como vendedora em uma loja de roupas femininas quando, numa noite, 
ao voltar para casa, foi assaltada em seu carro. Levou um tiro que se alojou em seu cérebro. 
Socorrida, permaneceu em coma por vários dias, realizou algumas cirurgias de urgência, ficou 
com um lado do rosto deformado, perdeu a visão de um dos olhos e, logo que pôde, escreveu 
num caderno que uma amiga havia lhe dado de presente, para poderem se comunicar, uma vez 
que se encontrava impedida de se expressar verbalmente: 
" . . . posso dizer que o medo tem sido meu companheiro de vida. Não me 
reconheço a cada reflexo. 
Pode até ser insignificante, quando pela manhã, nos vemos conversando 
com nosso próprio reflexo, mas acredite é o único que não reflete mentiras, 
pode até ser cruel, mas é totalmente transparente . . . Quando começamos a 
ter noção do que realmente aconteceu, começam a vir perguntas sem 
respostas, acompanhadas de muita dor, tristeza e medo .. . Sinto falta de mim. 
Se me perguntassem qual o presente que gostaria de ganhar, pode acreditar, 
GOSTARIA DE ME TER DE VOLTA ". 
Interessante ressaltar aqui, a mistura da primeira pessoa do singular com a da primeira 
pessoa do plural. Falará Laura de sua confusão entre si mesma e o outro? De momentos de 
despersonalização? Novamente ela desabafa: 
Dói muito não saber o porque, entristece-me saber o que perdi e me dá 
medo pelo que pode acontecer. Não sei como vou reagir diante de tudo que 
virá; não sei o que sobrou, ou no que isso tudo me transformou. " 
"O tempo está passando e agora que realmente estou tendo noção do que 
realmente aconteceu comigo, acho que não sei como sou, ou como estou 
(fisico). Não me encaixo na Laura de antes e por isso estou muito confusa, 
triste, sozinha. 
Estava agora pensando e lembrando naqueles dias de pesadelo que em 
momento nenhum eu sabia onde realmente tinha sido baleada; foi depois de 
muito tempo (um mês) que tive noção de que havia sido atingida no rosto e 
entendi que havia quebrado ossos que jamais poderiam ser iguais 
. ,.,.-.,., 
novamente. Até acreditei que voltaria a ser igual, mas impossível em todos 
os aspectos. 
Não existe um dia que eu não me lembre de tudo, e isso me deixa cansada e 
confusa. 
Tudo mudou para mim, mas as pessoas continuam as mesmas. 
Não quero ser uma pessoa amargurada, mas não tenho conseguido sorrir. 
Estou triste! 
Ao mesmo tempo tem pessoas que dizem coisas como: Olha como existem 
pessoas em situações piores que a sua! 
Mas seria uma atitude muito pequena para mim ter que me sentir melhor 
porque existe alguém pior que eu. E ai fico triste de novo por ser tão ingrata 
com aquele que me permitiu estar aqui, podendo acordar sem sentir dor. 
Me sinto muito sozinha". 
1 9 
Ou ainda, como exemplifica Bárbara Ceotto (2000) 1 5 em matéria publicada com o 
título "Sofri um acidente e tive que reconstruir meu rosto": 
Angústia, medo, solidão, desconfiança são freqüentes companheiros desses pacientes. 
Porém companheiros que não acompanham, não sustentam,não amparam. 
"7 de janeiro de 1 995. Posso dizer que a minha vida se divide entre antes e 
depois desse dia. Aos 2 1 anos, estava prestes a me formar em Direito, 
namorava firme e me orgulhava do cabelo comprido, das pernas modeladas 
em aulas diárias de Ginástica e do rosto bonito. De repente meu mundo 
começou a desabar . . . Com a pancada (decorrente do acidente) o osso em 
volta do meu olho direito quebrou e o globo ocular afundou e ficou 
desalinhado, mais baixo que o outro. . . o médico precisava alinhá-los e 
inventar um nariz que combinasse comigo. .. . Nesse tempo todo de 
internação, não podai falar, reclamar nem gritar de dor: os dentes estavam 
moles, . . . e havia fios de aço em toda minha boca amarrando a gengiva à 
parte óssea . . . Mas atemorizador mesmo era a traqueostomia . . . Para aliviar o 
sofrimento e conseguir me expressar de alguma maneira, eu escrevia o 
tempo todo. O que me salvou é que sou positiva. Mas confesso que foi muito 
difícil manter o otimismo na hora em que pedi um espelhinho e dei de cara 
com meu nariz sem forma. Só dava para ver dois furinhos e uma bola 
inchada". (CEOTTO, 2000, p. 1 2 1 ) 
Os relatos dessas pacientes ilustram a fragilidade e a vulnerabilidade em que se 
encontram, principalmente nos momentos mais próximos ao acidente e ao início da 
hospitalização e dos procedimentos médicos. Mostram, ainda, como são tênues os limites 
15 CEOTIO, Bárbara. Sofri um acidente e tive que reconstruir meu rosto. Revista Nova, São Paulo: Abril, no. 7 , 
2000 
20 
entre um "de dentro" e um "de fora", entre a ilusão e a desilusão e as dificuldades pelas quais 
eles passam, uma vez atingidos em seus rostos, em sua imagem corporal, com a idéia de um si 
mesmo confusa 1 6, e impossibilitados de se reconhecerem e se sentirem unas e integrados. 
Segundo Pereira ( 1999, p. 237) a "situação de desamparo" relaciona-se com a 
"desintegração da imagem do corpo-próprio, com a fragmentação terrificante de um corpo 
reduzido a partes independentes e não-integradas" . 
Conforme Cláudia Santos e Ricardo Sebastiarii ( 1996, p. 203) com a doença, a 
dinâmica das relações entre o indivíduo consigo mesmo e com o mundo se fragmentam e 
alteram. Sentimentos confusos, desorgariizados e dolorosos tomam conta do sujeito. 
O próprio processo de hospitalização, por si só, remete o paciente à condição de 
dependência, de regressão a momentos anteriores de sua vida nos quais não se cuidava de 
maneira auto-suficiente. Suas necessidades, até as mais íntimas, são realizadas pelos outros. 
A autoridade sobre si mesmo lhe é totalmente destituída. Perde seu próprio domínio e 
referencial. Há uma interrupção de seu cotidiano. Toda internação hospitalar é desestruturante 
e agressiva por si. 
O paciente tem que adaptar sua rotina à rotina da Instituição. Terá horas estabelecidas 
para dormir, comer, receber visitas de seus familiares e amigos. Fica à mercê de experiências 
e sensações olfativas e visuais, em geral desconhecidas. As rotinas dos tratamentos 
hospitalares implicam, na maioria das vezes, em procedimentos dolorosos e assustadores. 
Toma conhecimento, quando alocado em enfermarias, ou às vezes mesmo nos quartos 
individuais e particulares, do sofrimento dos outros pacientes ao mesmo tempo que estabelece 
contato com todos os tipos de casos (doenças e doentes), que sequer imaginava existir. 
Enfim, o paciente é introduzido numa rotina institucional tão especial e inusitada, 
difícil até mesmo para profissionais habituados ao contexto; ou seja, aqueles que pertencem às 
equipes de saúdes e já estão familiarizados com as rotinas hospitalares. Até estes profissionais 
têm sensações de estranhamento e sofrem processo de despersonalização, segundo relato 
verbal de alguns de colegas e profissionais da área. 
No dizer de Mariza Moura Decat et. al. ( 1994, p. 156) 17 "o sujeito se encontra despido 
de suas roupas, seus pertences, seu ambiente, seu trabalho ... Despido ... enquanto sujeito de 
1 6 Por si mesmo entenda-se, para todas as vezes em que essa expressão surgir no texto, o reconhecer-se e sentir­
se uno e integrado. 
17 MOURA, Marisa Decat. et. ai . . O psicanalista no CTI. ln: ROMANO, Bellkiss Wilma. A prática da psicologia 
nos hospitais. São Paulo: Pioneira, 1 994. 
r 
n 
' 
" 
2 1 
sua própria história, aquele que conjuga o verbo ... como é ressaltado por Lúcia Spitz ( 1997), 1 8 
sempre que há o acometimento de uma doença no indivíduo, qualquer que seja ela, essa toma­
se uma afronta narcísica importante. Conforme Moura et. al. ( 1994) ainda, além dessa afronta 
narcísica, as incerte·zas diante do prognóstico do caso, tempo de internação, entre outras tantas 
incertezas, contribuem para atualizar a vivência de "extremo desamparo", intrínseca ao 
destino do ser humano. 
Além desse fato, a doença coloca o indivíduo frente a frente com sua fragilidade, 
lembrando-lhe de forma ameaçadora, aquilo que é pouco ou nada presente em seu cotidiano, 
ou seja, a inexorabilidade da morte. 
Nesse momento, o medo que pode paralisar o indivíduo doente não é apenas o medo 
do desconhecido, de algo que foge ao seu controle completamente, mas sobretudo o medo 
daquilo que provavelmente o ser humano mais foge: a morte. 
Continuando com Spitz, afirma essa autora que o acometimento súbito de uma doença 
provoca ansiedade, a qual, por sua vez, é a resposta do indivíduo à percepção de uma situação 
de perigo. A ansiedade, como vista anteriormente, constitui-se na reação original ao 
desamparo e pode ser compreendida como um sinal de pedido de socorro. 
Pedidos de socorro de pacientes desamparados: - 1 °) diante de uma infinidade de 
estímulos, tanto internos, quanto externos, 2
°
) ou no dizer de Palhares e Lima ( 1998, p. 223) 
"um psiquismo às voltas com um acúmulo de intensidade que precisam ser eliminadas", 3
°
) ou 
envolvido em situações impossíveis de serem assimiladas em sua totalidade no momento em 
que ocorrem, ou ainda 4
°
) frente a situações novas e desconhecidas e, por último, 5
°
) diante 
também, em alguns momentos, do mais impossível a ser evitado: a morte. 
Convém ratificar aqui que Freud, ao referir-se ao desamparo, deu margem a 
compreendê-lo não só em seu aspecto inicial da extrema dependência a um outro quando 
nascemos, se "quisermos" sobreviver, mas sobretudo quanto às características de fragilidade e 
vulnerabilidade humanas diante das vicissitudes da vida, como também diante da pequenez do 
ser humano frente à Natureza e o quanto esse é "dependente" também da cultura na qual vive. 
Diante dessa circunstância - entendida como "desamparo cultural" - também 
inevitável, cabe aqui refletir em que "mundo" vivem os pacientes que contribuíram para a 
realização desta pesquisa. 
1 8 SPITZ, Lúcia. As reações psicológicas à doença e ao adoecer. Cadernos do IPUB. Rio de Janeiro: UFRJ, v I , 
no. 1, 1997. 
r 
22 
O momento no qual se vive, permite entrever um sujeito vulnerável tanto com relação 
às suas turbulências internas quanto externas, como também com relação às inseguranças de 
um mundo que "voa" em transformações, no qual o tempo tornou-se um "luxo" e os estímulos 
são quase infinitos. 
Pode-se questionar, então, se permanecem ideais de um mundo melhor e mais justo. 
As dificuldades de encontro com o outro são muitas, tanto objetivas, quanto subjetivas. As 
transformações são inúmeras e as relações afetivas acompanham o mesmo ritmo. A partir daí 
é o transitório e o fragmentado que passam a predominar. 
Carmen Da Poian ( 1998) 1 9 ao desenvolver artigo sobre o desamparo e a questão dos 
ideais, questiona-se se seriam os ideais apenas ilusões oriundas da incapacidade do ser 
humano, ao aceitar ser o desamparo básico estrutural, e não somente constitutivo de sua 
origem. Segue indagando se a Psicanálise deve colaborar para a destruição dos ideais ou pelo 
contrário, pensá-los enquanto "projetos de revestimentos necessários ao desejo". (id. ibid., 
p. 134) 
Como lidar com pacientesque se exigem e são exigidos pela sociedade em 
rapidamente se recuperarem, reconstruírem seus rostos, voltarem a produzir quando se sabe 
que a reconstrução de um rosto não tem tempo marcado, e constitui-se em geral num longo 
processo, enfim pacientes que têm seus ideais esfacelados. 
Apresenta, ainda, Da Poian ( 1998) como a Psicanálise clássica lida com os ideais em 
nível da organização psíquica, relacionando-os em sua essência tradicionalmente com as 
identificações, com o narcisismo ( ego ideal) e, como se encaminham para a idealização (ideal 
do ego) e suas conseqüências com relação à sublimação dos mesmos. Refere-se como, em 
verdade, a Psicanálise e os psicanalistas habituaram-se a tratar os ideais enquanto ilusões 
narcísicas que almejam perfeição e completude imaginárias. 
Aproximando os ideais ao mundo atual, mostra ainda Da Poian ( 1988, p. 139) como o 
maciço investimento no eu, em si mesmo, distancia o sujeito do reconhecimento do outro. O 
outro passa a ser mais um simples bem de consumo, portanto descartável, e podendo por isso 
ser substituído por um outro mais "moderno, perfeito e mais completo", não importando a 
questão das "ligações vitais", que se revestem de tamanha importância sempre para todos, 
mas principalmente para o sujeito contemporâneo e - acredita-se - principalmente para os 
pacientes aos quais remete-se esta pesquisa. 
19 DA POIAN, Carmen. O desamparo e a questão dos ideais. Cadernos de Psicanálise. Rio de Janeiro: CPRJ, 
ano 20, no. 1 2, 1 998. 
1 
" 
,,---, 
23 
Seguindo a reflexão de Da Poian ( 1998, p. 134, 139), não é de se estranhar que a 
Psicanálise encontre-se às voltas com tantos questionamentos, uma vez que enfatizou em 
demasia, as imprescindíveis desidealizações e os desilusionamentos para a constituição do 
sujeito. Para essa autora, será renovando o luto narcísico que o sujeito conseguirá substituir a 
ilusória felicidade e o prazer obtidos no consumo desenfreado por uma relação desejante. Será 
essa relação desejante que permitirá a "brecha" - "espaço vazio entre o eu e o outro" -
brecha essa na qual poderão e deverão inserir-se os ideais, não apenas como preenchimento de 
um vazio, mas como "projetos móveis e variáveis sempre em mutação". 
Da Poian ( 1988, p. 139) finaliza seu artigo postulando uma intensa profissão de fé no 
sujeito e em sua capacidade de transformação, chegando a visualizar uma mudança de 
valores. Vislumbra a possibilidade da substituição de ideais muito individualistas, por ideais e 
valores que permitam a solidariedade, a tolerância, a amizade, ou seja, o respeito ao outro e, 
quem sabe, o surgimento de um mundo com maiores condições de igualdade social, com 
pessoas menos desamparadas e com mais energia, segundo a autora, para conviver com a 
insolúvel falta básica. 
Diante das questões apontadas, cabe àqueles que trabalham com o referido desamparo 
apontado pelos pacientes, perguntar-se, no mínimo, o que pode fazer uma equipe para 
responder aos "gritos de socorro" e ao desamparo de seus pacientes, no sentido de que suas 
reconstruções se dêem da melhor forma possível - compreendendo por "melhor forma 
possível" a integração de aspectos objetivos e subjetivos no processo de reconstrução. 
Por outro lado, o que pode o psicólogo inserido em uma equipe dessas, utilizando-se 
do arcabouço teórico e técnico da Psicanálise, fazer pelos pacientes e pela equipe que lida 
com tais pacientes? 
Para responder a essas duas questões, elegeu-se como um dos caminhos, a reflexão 
sobre como o desamparo do paciente e as vicissitudes relativas a seu processo de 
hospitalização e reconstrução de seus rostos, se estendem também à equipe e remetem a uma 
condição de desamparo. Compreendê-la e elaborá-la, constitui-se em condição fundamental 
para atender e acolher o paciente. 
24 
2.3 - A equipe e o desamparo da equipe 
Conforme tem-se pontuado desde a Introdução, diante do desamparo do paciente, 
surge o desamparo da equipe. Neste item, desenvolver-se-á a projeção do desamparo de um 
sobre o outro, a partir de experiências em Hospital. 
O que dizer a alguém que, após uma cirurgia de reconstrução de nariz (a paciente 
havia perdido o nariz num acidente de carro) exclama: "Olha, vocês não sabem o que é ter um 
. 
!" nariz . . . . 
manifestar. 
O desabafo deixou a equipe, por alguns momentos, sem elementos para se 
Outra vivência que será relatada partiu de uma solicitação feita, através do Chefe do 
Serviço de Microcirurgia Reconstrutiva do Hospital dos Servidores do Estado20, que dizia 
respeito a entrevistar uma jovem, com cerca de dezoito anos de idade. Esta moça havia sido 
encaminhada ao Serviço, por ter sofrido um grave acidente automobilístico, que praticamente 
tinha destruído seu rosto, deformando-o muito. Apresentava-se com olhos assimétricos, sem 
nariz, sem dentes, lábios deformados e cortados, várias cicatrizes espalhadas pelo rosto, e em 
nada parecia-se com a foto anterior ao acidente que carregava consigo. Nesta, aparecia linda, 
loura, com um olhar muito vivo e sorridente. Para a entrevista, veio usando uma máscara azul 
das que se usam nos centros cirúrgicos e que cobria seu rosto deixando de fora apenas seus 
olhos disformes e assimétricos, rodeados por cicatrizes. 
Relatou, nesta oportunidade, que já havia tido várias propostas cirúrgicas em 
diferentes Estados de nosso País. Disse, dentre outras observações, ter gostado da proposta do 
Cirurgião Chefe do Serviço de Microcirurgia do referido Hospital, pois este havia indicado 
iniciar sua reconstrução - e esta afirmação foi vital para a elaboração da presente pesquisa -
de "dentro para fora" (sic). Tal afirmação sensível e sutil foi expressada com as sérias 
dificuldades de quem não possuía mais nariz, nem dentes, enfim, não tinha as condições 
físicas minimamente necessárias para se expor oralmente. Mas a sua força vital transparecia 
naquele contexto impronunciável. Foi possível, por um ouvido afinado e treinado, perceber 
que dizia também que de nada adiantaria reconstruírem seu rosto, se seu sofrimento, sua dor e 
sua enorme "ferida narcísica", não fossem concomitantemente amparados e aliviados, 
possibilitando a reconstrução do de "dentro e de fora". 
20 O Hospital dos Servidores do Estado do Rio de Janeiro, pertencente à rede de hospitais públicos federais, 
remete-se atualmente ao Ministério da Saúde, situando-se na cidade do Rio de Janeiro. 
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-1 
25 
Dessa forma, foi feita a proposta de inserir um psicólogo na equipe, e logo explicado 
que o procedimento era praxe no Serviço, pois este já contava em seu quadro com a 
participação de um psicólogo. A equipe constituía-se em seu todo de médicos, enfermeiros, 
auxiliares de enfermagem, fisioterapeuta, psicólogo, nutricionistas e assistente social. 
A proposta foi, então, imediatamente aceita e a paciente contou ainda que já "havia 
tido uma psicóloga" em outro serviço, embora com a qual, "não havia se identificado muito" 
(sic ). 
Esta paciente encontrava-se em férias no Nordeste do Brasil, onde ocorreu o acidente, 
já havia completado o ensino médio e prestaria vestibular no próximo ano, embora não 
soubesse ainda exatamente para qual carreira. Dotada de elevado potencial intelectual, 
sensibilizou a todos da equipe. A jovem exigia, pela complexidade de seu estado geral, 
diferentes técnicas de intervenção tanto por parte do cirurgião, quanto da enfermagem e do 
psicólogo. 
É neste aspecto, sobretudo, que se refere o capítulo voltado para o "desamparo da 
equipe". Ou seja, quando frente a certas situações-limite uma mobilização sugestiva acontece, 
principalmente porque se fazem necessárias novas maneiras de atendimento, entendimento e 
acompanhamento do paciente - o que, por sua vez, passa a exigir da equipe também novos 
recursos com relação a procedimentos técnicos e científicos. 
Assim, na tentativa de aprofundar questões que já vinham sendo desenvolvidas, 
embora de modo assistemático, sobre pacientescom deformidades na face foi que se originou 
a seguinte idéia: solicitar ao Chefe do Serviço de Cirurgia Maxilo-Facial do Hospital de 
Ipanema a oportunidade e a possibilidade de um acompanhamento psicológico a pacientes 
submetidos a cirurgias reconstrutoras da face - o que foi muito bem-vindo. 
A este Serviço, prestigiado por sua excelência e especificidade, acorrem pacientes de 
todos os Estados do Brasil. Neste contexto foi possível encontrar ali casos de pessoas que 
tinham vivido situações as quais, por sua vez, redundaram em graves lesões da face; e enfim, 
seres que pontualmente tiveram que se defrontar com a súbita desfiguração de seus rostos. 
Quanto à equipe específica do Serviço acima referido, constituía-se de: seu Chefe, 
com formação Médica e especialização em Cirurgia Plástica, dois odontólogos, dois médicos 
residentes, vários estagiários de medicina e de odontologia, duas fonoaudiólogas e uma 
fisioterapeuta. Com a autorização do Chefe do Serviço para o acompanhamento psicológico 
dos pacientes atendidos, a mesma foi oficialmente acrescida de um psicólogo-pesquisador. 
1 
1 
26 
Descritas a equipe, o Serviço, e o caso que estimulou a escrita desta Tese, serão 
consideradas as idéias originadas pela prática do profissional de Psicologia junto ao Serviço 
mencionado que executa, também, outros tipos de cirurgias, mas sobretudo aquelas 
reconstrutoras da face. Tais idéias encontram-se fundamentalmente associadas ao que se está 
nomeando nesta pesquisa, como desamparo da equipe. 
Estas idéias dizem respeito a: especificidade de saberes e abordagem integrada e 
integral do paciente; complexidade de tarefas e necessidade de constituição de equipe 
interdisciplinares; desamparo da equipes de saúde de modo geral e sobretudo aquelas, 
conforme já explicitado, que atendem a pacientes que deverão ser submetidos a cirurgias 
reconstrutoras da face; inclusão, desamparo e papel do psicólogo hospitalar nas equipes de 
saúde, e especificamente junto a equipes de cirurgias reconstrutoras da face. 
Segundo Santos e Sebastiani ( 1 996), em função do enorme impulso dado ao 
conhecimento, sobretudo na área das Ciências da Saúde nesse último século, o aparecimento 
de um grande número de especialidades e subespecialidades profissionais tornou-se 
imprescindível. Conforme atesta Denise Ribeiro Gomes21 ' li na atualidade, a 
interdisciplinaridade emerge como uma necessidade, como uma imposição do próprio 
contexto de saúde, estando implícito no próprio processo de aprendizagem do indivíduo" 
(GOMES, 1 997, p. 1 9) 
Cabe esclarecer aqui, que as equipes destinadas ao atendimento de pacientes que 
solicitam a reconstrução de sua face, pela complexidade das situações necessitam assumir 
uma prática interdisciplinar, daí ter-se incluído este dado. Constituem-se em equipes com 
profissionais diversos que tenham um amplo raio de alcance e trabalhem de maneira 
integrada. 
O avanço obtido nas ciências, com destaque na Área de Saúde, foi, sem dúvida, 
inegável. Entretanto, tal procedimento contribuiu, ao mesmo tempo, para um olhar cindido 
sobre a pessoa do paciente. 
Conforme Marília Muylaert ( 1995)22 cabe pensar que a Psicologia, inserida em 
equipes de "especialidades tão específicas", procura atender a uma demanda das próprias 
especializações da Medicina. Cabe aqui abrir um adendo para explicar resumidamente a 
importância de Psicologia e de Psicanálise junto à prática médica. A relação médico-paciente 
21 GO!'v1ES, Denise Cristina Ribeiro. Interdisciplinaridade me saúde, um princípio a ser resgatado. ln: GOMES. 
Denise Cristina Ribeiro (org.) Equipe de Saúde: o desafio da integração. Uberlândia: Edufu, 1 997. 
:
2 MlNLAERT. Marília. Corpoafecto : o psicólogo no hospital geral. São Paulo: Escuta, 1995. 
n, 
27 
necessita fortalecer-se. É necessária a compreensão do corpo como um todo, e não 
simplesmente, através de explicações mecânicas. 
Ou ainda no dizer de Suely Rolnik de um corpo que existe num campo de práticas do 
cotidiano e que esbarra com outros corpos, que o afetam e são por ele também afetados.23 
Porém, ao que se sabe, assim recomendava Hipócrates, o pai da Medicina. Dizia que, 
para o bom resultado de um tratamento, o médico deveria levar em consideração os hábitos e 
condições de vida de seus pacientes, assim como recomendava que conversassem com os 
familiares dos pacientes a respeito dos mesmos. Enfim, aconselhava que se tratassem doentes 
e não doenças, como é muito comum se ouvir dizer. "Nada ao acaso, nada a ser visto por 
alto". (ANDRADE, 1 983 , p. 1 0).24 
Entretanto, apesar de os aspectos psicológicos do Homem fazerem parte da própria 
história da Medicina, na verdade a presença de especialistas de tal área junto às Instituições de 
saúde destinadas aos cuidados dos aspectos orgânicos, não é de modo algum tão antiga assim. 
Foi com o advento da Psicanálise que tal orientação passou a se fazer mais presente na 
Medicina. Sabe-se que a partir da prática psicanalítica é que os estudos sobre o conhecimento 
dos aspectos psicodinâmicos do Homem mais evoluíram. 
Segundo Danilo Perestrello (1 989, p. 1 84)25, foi Freud quem possibilitou a todos saber 
que a vocação médica associa-se inevitavelmente ao interesse pelo ser humano. Afirma 
também que Freud, ao focalizar um doente, o via como um sujeito com uma doença, não 
importando se esta fosse uma dermatose, uma cólica, uma tristeza leve ou profunda ou uma 
idéia delirante, dizendo serem todas essas coisas "manifestações da pessoa, manifestações 
expressivas, resultado de suas relações objetais, exteriorizações que devem ser compreendidas 
em relação ao todo". (p. 206). 
Articulando a questão metodológica da interdisciplinaridade com a experiência da 
equipe focalizada neste capítulo, tem-se que a constituição de várias subespecialidades 
tornou-se então necessária para que esse "todo", esse "de dentro para fora" - e cabe dizer aqui 
também "o de fora para dentro" - pudesse ser compreendido e atendido em toda a sua 
extensão e singularidade. 
Mais uma ressalva, entretanto, precisa ser feita. O senso comum reconhece que a 
resposta a uma terapêutica, qualquer que seja ela, é muito individual. Desse modo, torna-se 
23 Infonnação verbal . Mesa redonda. Instituto de Psiquiatria da UFRJ. 
24 ANDRADE, Laura Guerra et. ai. A psiquiatria no hospital geral. Revista da Associação Médica Brasileira. 
Vol. 29. no. 7/8. jul/ago, 1 983 . 
25 PERESTRELLO. Danilo. Medicina da pessoa. São Paulo: Atheneu, 1 989. 
28 
evidente que aspectos singulares "exigem" serem levados em conta. Ao se falar em aspectos 
singulares, supõe-se que o sujeito é necessariamente resultado da interação organismo e 
meio-ambiente, o que compreende portanto a simultaneidade entre os aspectos fisicos, 
psíquicos, sociais e culturais, que o tomam singular. 
Parece ter sido a própria clínica da Medicina e seus avanços científicos, associados 
sobretudo às contribuições da Psicanálise, que impuseram as orientações acima, 
possibilitando e, de certa forma, exigindo a necessidade da formação de equipes 
interdisciplinares. Psicanálise e Medicina entrelaçam-se. No entanto, a clínica psicanalítica 
trata de sofrimento e dores para os quais não existem drogas milagrosas ou tecnologia 
avançada. 
A equipe interdisciplinar comporta, como descrevem Santos e Sebastiani, ( 1 996, p. 
1 69) médicos, residentes, acadêmicos, enfermeiros, assistentes sociais, psicólogos e outros 
profissionais ainda que podem atuar junto aos pacientes e familiares. A idéia básica é a de que 
o somatório dos diferentes saberes possibilite uma visão integral e integrada dos pacientes, 
conforme já mencionado. Em outras palavras, bom entrosamento e integração entre a equipe e 
entre a equipe - paciente e família do paciente é fundamental para o estabelecimento 
sobretudo de confiança, a qual com certeza beneficiará a todos. E o maior benefício incidirá 
justamente sobre a questão do "desamparo" . Tendo em vistaeste alcance, desenvolver-se-á 
um pouco mais o tópico da integração da equipe. 
Não é fácil a conquista de uma integração seja ela qual for . Gomes ( 1 997) observa 
que, com freqüência, nas equipes de saúde ocorre um desconhecimento por parte dos 
profissionais quanto às funções e aos papéis dos outros profissionais das equipes nas quais 
trabalham. Percebe-se, ainda, um desconhecimento também por parte da população atendida 
quanto às funções desses mesmos profissionais. 
Nesta perspectiva, o que em algumas situações aparenta ser dificuldade de integração 
ou dificuldades no relacionamento interpessoal, pode na verdade, constituir-se em falta de 
informações e esclarecimentos. 
Segundo Gomes ( 1 997, p. 3 5-6), interdisciplinaridade visa a comunicação, a troca de 
informações entre os diferentes saberes, entre diferentes profissionais e entre estes e o senso 
comum. 
Assim, através de uma linguagem inteligível a todos, explicitando-se os termos 
técnicos quando necessário, é possível estabelecer-se um canal de comunicação que permita 
n 
29 
uma compreensão do saber do outro, de seu próprio saber, e a facilidade na transmissão e na 
comunicação interpessoal de modo geral. 
Cabe aqui ressaltar que o que se está nomeando por equipe interdisciplinar e 
integração da equipe não é sinônimo, como aponta Gomes ( 1997, p. 35), de trabalho de 
equipe ou de consenso e sim "um princípio latente à estruturação do conhecimento humano". 
O interdisciplinar está relacionado, então, ao "pensamento divergente", implica "em 
criatividade como uma forma do indivíduo tornar-se sensível aos problemas, solucionando­
os". Implica em fluência, flexibilidade e originalidade". (p. 36) Constitui-se no próprio 
desafio de buscar na unidade a multiplicidade, de agregar diferenças encarando-as como a 
possibilidade de construir conhecimento e não impedi-lo. 
Assim, 
"produzir o novo implica em correr riscos, . . . buscar novos caminhos, novas 
práticas. Implica perdas, dúvidas e indecisões. Envolve o desenvolvimento 
de uma visão sistêmica, holística, que caracteriza e engloba as relações de 
interdependência dos homens entre si e com a natureza em geral". (GOMES 
RIBEIRO, 1 997, p. 39). 
Já foi explicitado que as dificuldades por que passam os profissionais de uma equipe 
interdisciplinar que atende a pacientes submetidos a cirurgias reconstrutoras da face são 
inúmeras. Além disso a situação do paciente agrava-se pelo fato de que o rosto humano é a 
primeira imagem que alguém tem de si mesmo, e é através do rosto que se é, de modo geral, 
socialmente reconhecido e identificado; ou seja: o problema é inicialmente físico, mas ao 
mesmo tempo tem fortes projeções no psíquico e no social. 
Assim, quando se trata de um rosto atingido e grandemente destruído, os recursos mais 
sofisticados e criativos tornam-se ineficazes na medida em que não podem trazer de volta um 
rosto exatamente igual ao que o paciente possuía. Com isso, a equipe encontra-se 
inevitavelmente frente à vulnerabilidade, à pequenez do ser humano, frente às vicissitudes da 
vida e da Natureza ... frente a um desamparo. 
"Em momento algum da obra freudiana, o desamparo humano é apresentado 
como podendo ser completamente superado, seja pelo indivíduo, seja pela 
cultura, mesmo com os maiores progressos da Ciência. Segundo Freud, a 
relação do homem com sua existência é sempre marcada pela precariedade, 
pelas falsas ilusões de domínio e pelas tentativas mágicas de proteção contra 
os perigos". (PEREIRA, 1999, p. 145). 
-� 
" 
r 
30 
Estar frente a frente a um paciente, com seu rosto original destruído e deformado, e 
que solicita a reconstrução deste, não é tarefa das mais fáceis. Na maior parte das vezes, 
significa a perda dos referenciais conhecidos. "Olhar nos olhos" e não encontrá-los em seu 
lugar habitual, olhar para a "maçã do rosto" e encontrar olhos, não encontrar boca; não 
visualizar dentes; defrontar-se com cicatrizes e afundamentos; saliências onde usualmente 
encontram-se reentrâncias e assim por diante . . . 
Diante de tais pacientes parece que se torna evidente a compreensão do que se está 
aqui nomeando desamparo da equipe. 
Identificando-se com a situação do paciente, a equipe exige de si mesma o mais rápido 
possível, uma solução, um amparo. Suportar a frustração e o desfiguramento do próprio 
rosto, parece estar além de um sofrimento possível de ser traduzido em palavras. Ou melhor 
ainda, o que ecoa na colocação da paciente: "Gostei daqui porque a proposta de reconstrução 
é "de dentro para fora" . Já passei por várias equipes cirúrgicas. No entanto, tudo que 
propunham era colocar uma "panqueca" em meu rosto. E então eu não aceitava" . 
Acredita-se que, através da fala dessa paciente, seja possível depreender-se que, frente 
ao desamparo sentido por ela e frente à complexidade da tarefa, a equipe tende a procurar, o 
mais rápido possível, alívio para sua própria angústia, seu sofrimento e seu desamparo. 
Atuando dessa forma, na verdade, sem que se dê conta, por mecanismos inconscientes, a 
equipe não está levando em consideração as questões e os desejos dos pacientes, mas apenas 
os seus próprios. 
Fatores como a troca de saberes entre os profissionais, uma reflexão sistemática sobre 
os pacientes, bem como o próprio relacionamento amistoso informal entre os participantes das 
equipes podem vir a socorrê-la nos momentos mais desesperadores. A interdisciplinaridade, 
então, surgirá como um processo mediador no dizer de Gomes, ( 1 997, p. 3 8) mediador do 
profissional para consigo mesmo e com relação aos outros; e desenvolver-se-á através do 
nível consciente de seu próprio processo de aprendizagem, o que será evidenciado na forma 
como traduz o seu pensar e o seu agir. 
De acordo com o que diz Nilza Leão ( 1994, p. 1 43 )26, as expectativas dos pacientes 
estão norteadas também pelos aspectos transferenciais regressivos da própria condição de 
paciente e dirigem-se a todos os membros da equipe. Constituem-se, segundo essa autora, em 
26 LEÃO, Nilza. Paciente tenninal e a equipe interdisciplinar. ln: ROMANO, Bellkiss Wilma (org. ) A prática da 
psicologia nos hospitais. São Paulo: Pioneira, 1 994. 
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"material riquíssimo para o entendimento das reações e necessidades do paciente, norteando a 
equipe no que diz respeito às suas atuações". 
É quase desnecessário dizer sobre a delicadeza, profissionalismo e respeito com que as 
equipes de saúde devem tratar o paciente, qualquer que seja; isto porque, antes de ser 
paciente, é um sujeito, um ser humano. Entretanto, cabe ressaltar o aspecto particular quando, 
de uma hora para outra, o que deve ser reconstruído é exatamente o rosto de um paciente. 
As questões relativas aos cuidados anteriormente mencionados, evidenciam-se ainda 
mais. Estar desfigurado é olhar e não mais se reconhecer, estar portanto vulnerável e sem as 
referências usualmente conhecidas. Desse ponto de vista a idealização da equipe parece 
quase automática. Colocar a equipe, e principalmente o cirurgião, no lugar de um "Deus todo 
poderoso", delegando à mesma toda a autoridade e responsabilidade no tratamento, é sempre 
possível e bastante comum. Ou nas palavras de uma paciente: "Abaixo de Deus é Dr. ---­
- (médico-chefe responsável pela equipe) e abaixo dele é a senhora" (psicóloga da equipe). 
Como lidar com tal aspecto? Devem as equipes aceitar as idealizações e transferências 
maciças e arcar com as responsabilidades destas ou não? 
Pensa-se que o lugar no qual os pacientes colocam a equipe é o lugar daquele que 
"tudo pode". E que pode responder "aos gritos de socorro", o que, nesse momento, ela 
efetivamente o é. 
Acontece. com freqüência, uma tendência da equipe no sentido de considerar o rosto a 
ser reconstruído como um objeto externo ao sujeito. Trata-se ao que parece, de uma forma da 
equipe lidar com sua própria angústia, objetivando defender-se de um desgaste físico-psíquico 
que inviabilizesua atuação. 
Nesses momentos e visando também responder à indagação anterior, de como lidar 
com os aspectos da idealização dos pacientes pode ser de utilidade recorrer à clínica 
psicanalítica. Cabe portanto, se ouvir Dulce Duque Estrada: 
"é importante . . . que o apelo ao Outro não caia em ouvidos surdos, mas que 
se mantenha a posição - sempre delicada - de equilíbrio entre a ausência de 
uma resposta carregada de sentido, que faça calar a demanda, e o 
acolhimento desta, necessário para que a fala continue". (CPRJ, 1998, p. 
1 8)27 
27 CPRJ. Entrevista com Dulce Duque Estrada. Cadernos de Psicanálise. Rio de Janeiro: CPRJ, ano 20, no. 1 2, 
1 998. 
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32 
Evidente que, para uma atuação nesse nível, é necessário que a equipe "ampare-se" em 
sua interdisciplinaridade, o que vem a ampliar o leque de opções para suprir seu próprio 
desamparo. Dessa forma, estará apta a estar ao lado do desamparo do paciente propondo-lhe 
realmente um amparo e reconhecendo-o como sujeito que fala, e que encontra espaço para a 
escuta de sua fala. 
Ou ainda, 
"o saber interdisciplinar propicia ao profissional de saúde, condições de 
perceber o homem como um todo, estimulando-o a desenvolver uma visão 
profissional que transcenda a especificidade de seu saber, no sentido de 
facilitar a compreensão das implicações sociais, decorrentes da sua prática, 
para que esta possa se transformar, realmente, num produto coletivo, eficaz". 
(GOMES, 1997, p. 39) 
2.4 - O psicólogo, o seu desamparo e o amparo ao paciente 
A partir daqui será apresentado o desamparo vivido em alguns momentos do percurso 
da profissional de Psicologia e autora desta Tese junto a algumas instituições de saúde da 
cidade do Rio de Janeiro. 
Desde o início de uma prática em Psicologia Hospitalar o desamparo que se percebeu 
foi o que se refere ao uso corriqueiro da palavra, ou seja, quando não se visualiza uma solução 
para determinada situação, no "maior sufoco", "sem pai nem mãe", sem amparo. 
Ao se falar em desamparo, portanto, a associação quase imediata é com a extrema 
vulnerabilidade humana. Ao se refletir, porém, o que se toma logo evidente é novamente a 
amplitude e a complexidade das tarefas que se apresentam. 
Frente a tal complexidade é comum o profissional indagar-se com freqüência: será 
possível "dar conta" dessa prática? Como, se não se imagina os recursos teóricos e técnicos a 
serem utilizados? E então, o que será o mais indicado a ser feito? 
Certamente que a falta de recursos não é pelo desconhecimento do que existe na 
literatura, mas sim em função da necessidade de algo diferente do conhecido, do já descrito, 
que possa auxiliar nas tarefas a serem realizadas, pois o que se encontra não parece adequar­
se à realidade que se apresenta. Trata-se portanto, do desamparo diante do desconhecido. 
A primeira experiência vivida numa determinada Instituição foi no ano de 1974 
quando, logo de saída, um desamparo se fez presente. De certo, a procura e a possibilidade de 
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33 
tal prática já traziam consigo um olhar interessado. Interessado sobretudo nas relações entre 
indivíduo e meio-ambiente nos primórdios de seu desenvolvimento. 
Já se acreditava o quanto o meio-ambiente, a comunidade, enfim, o social poderiam ter 
um papel importante frente ao sofrimento do ser humano, principalmente quando este ser é 
uma criança, já que esta fase configura-se pela maior dependência e necessidade que a criança 
tem do outro. A seguir serão descritas, conforme anunciado anteriormente, duas vivências 
relativas ao desamparo; na primeira, destacar-se-á a importância da relação afeto-oralidade, 
do lado afetivo, enfim, do amparo, para a solução de problemas sérios decorrentes do 
desamparo. O segundo caso a ser descrito, refere-se ao que pode um psicólogo, diante de seu 
desamparo, fazer para amparar pais, bebês e equipe. 
O primeiro exemplo ocorreu na instituição mencionada, Zona Sul do Rio de Janeiro, 
que acolhia crianças recém-nascidas e de até a idade de seis anos. Algumas dessas crianças 
eram menores abandonados e já outras, por sua vez, mantinham contato com suas mães 
somente aos finais de semana ou em curtos períodos de férias, no máximo de um mês. 
A tarefa solicitada era a de que o profissional se ocupasse de um bebê que havia sido 
encontrado numa lata de lixo e encaminhado àquela Instituição. Tal criança apresentava, no 
momento em que se solicitou a intervenção, grave quadro psicopatológico. 
Parecia um bebê muito pequeno. A avaliação realizada pelo pediatra da instituição 
indicava idade óssea de aproximadamente três meses apesar de ter cerca de um ano e dois 
meses de idade (avaliação feita a partir de buscas do Serviço Social da Instituição). 
Uma funcionária, praticamente o "salvara", ao afeiçoar-se a ele, destinando-lhe além 
dos cuidados básicos de alimentação e higiene, investimento afetivo. Tais cuidados gerais, 
possibilitaram o estabelecimento de um vínculo afetivo entre funcionária e bebê. 
A criança, ao completar um ano de instituição deveria, por regras estabelecidas pela 
mesma, ser transferida de setor, onde seria então cuidada por outras funcionárias. Em geral as 
funcionárias diziam não querer se ligar às crianças, uma vez que quando se "apegavam" a 
elas, estas eram transferidas de setor. Realizada a transferência, passou a apresentar 
problemas em sua adaptação que traduziam-se em grave sintomatologia: inapetência, 
emagrecimento, recusa da alimentação, apatia e desinteresse total pelo ambiente. 
O que seria possível ser feito diante de tal criança que parecia estar desistindo de 
viver? 
Pela gravidade de seu quadro emocional, pelas circunstâncias desfavorecidas quanto a 
inserção social de tal criança, pela inexperiência do profissional naquele momento 
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(estagiária), pelas dificuldades técnicas de abordagem do caso, se fez presente um "estado de 
desamparo". 
Voltando à questão do desamparo, intensamente vivido por tais crianças, afirma-se, 
"diante do terror do desamparo é que começamos a viver". (PALRARES e LIMA, 1998, p. 
220) 
Assim definiu-se, àquela altura, com o auxílio de alguns conhecimentos de 
Psicanálise, que uma única atendente deste novo setor da instituição para a qual a criança 
havia sido transferida fosse responsável por seu cuidado. Tal atendente foi orientada quanto a 
algumas questões sobre a estimulação da criança, principalmente para que voltasse a se 
alimentar no sentido de sua sobrevivência. Naturalmente extrovertida e dedicada, a 
funcionária já citada foi a escolhida exatamente por apresentar tais características. 
Já é praticamente do senso comum a estreita relação entre oralidade e afeto, visto que 
nossos primeiros contatos com o mundo são realizados essencialmente através de nossa boca. 
Desistir de alimentar-se, desistir da procura do objeto, é praticamente desistir de viver. Daí a 
preocupação com a criança, e com a orientação de uma prática eficaz que pudesse "construir­
reconstruindo" um vínculo, trazendo a possibilidade de "salvar" a criança. Tomava-se 
imperiosa a necessidade de oferecer subsídios para que tal criança voltasse a se interessar pela 
vida, uma vez que tão precocemente havia sido submetida ao que Freud nos ensinou em 
"Inibições, Sintomas e Ansiedade", ( 1926, p. 99) ser a primeira e mais importante angústia de 
separação - "a separação ou perda de um objeto amado, ou uma perda de seu amor". 
Com certeza cabe ao psicólogo utilizar seus conhecimentos a respeito do ser humano, 
em sua prática profissional de modo amplo. Por ter um maior acesso a tais conhecimentos é 
que o psicólogo toma-se o profissional mais indicado para essa possibilidade de "seleção" 
numa instituição. 
Mesmo o psicólogo, voltado para a área clínica, se necessário, deve se utilizar dos 
conhecimentos básicos sobre recursos humanos, e/ou até consultar profissional especializado 
se for o caso, quando envolvido com seleção de profissionais em instituições. 
Eleita principalmentetambém por sua disponibilidade afetiva, a funcionária foi 
orientada a pegar a criança ao colo em diferentes momentos do dia, conversar com ela e 
contornar seus lábios com os dedos, no sentido de estimulá-la novamente a sugar. Foi 
orientada ainda, a permitir que a criança manuseasse alimentos e objetos próprios: bico da 
mamadeira, chupeta, biscoitos, ou seja, a resgatar algo que a criança teria "desaprendido" ou 
seja, sugar, engolir, mastigar e, portanto, alimentar-se. Tal orientação, realmente constitui-se 
35 
em função do psicólogo, uma vez que este é o profissional que por excelência possui 
conhecimento teórico que permite validar tal orientação. 
Foi possível para essa criança recuperar-se. O sucesso obtido foi surpreendente. A 
criança vinculou-se à atendente respondendo à sua voz e à sua presença. Ganhou peso e 
voltou a alimentar-se e a reagir ao ambiente. Agitava-se à aproximação da atendente e 
manifestava o reconhecimento de sua presença pela movimentação de seus braços, pernas e 
olhos. Em aproximadamente um ano, pode-se assistir ao que diz Spitz (apud CYRULNIK 
( 1 999, p. 3) :28 "se restituímos a mãe à criança, ou se encontramos um substituto razoável para 
o bebê, o problema desaparece com uma rapidez surpreendente". 29 
Certamente foram a resposta da criança ao trabalho desenvolvido, o interesse 
provocado nas funcionárias e na Diretoria da Instituição durante o tempo em que foi realizada 
a intervenção, que serviram como amparo e solução para o impasse frente a um desamparo e 
estabeleceram também a confiança necessária para possíveis novos desafios. 
Foi assim que, em 1 976, através de uma contratação já como psicólogo efetivo para 
exercer atividades junto a um Hospital Geral, entre outros desamparos, um deles tomou-se 
novamente pregnante. 
A tarefa solicitada naquele momento era a seguinte: resgatar o vínculo afetivo entre 
pais e bebês de um Centro de Tratamento Intensivo da Clínica de Pediatria. Neste Centro os 
bebês eram hospitalizados por apresentarem diferentes patologias (prematuridade, 
mielemeningocele, anomalias congênitas, entre outras), bebês de zero a três meses e que por 
normas institucionais naquela ocasião, a partir de 1 979, os pais não podiam permanecer junto 
a tais bebês. Com isso era muito grande o número de bebês abandonados no hospital e muito 
freqüente também a interrupção e o abandono do aleitamento matemo. 
O que fazer pelos bebês, o que fazer pelos pais, o que fazer pela equipe que atendia a 
casos tão graves, sendo que muitas vezes essa lidava também com óbitos dos bebês? 
Em artigo sobre a criança e a morte, Heloisa Chiattone (200 1 , p. 76)30 considera que a 
sociedade capitalista destina-se naturalmente para a juventude. Segue dizendo o quanto a 
morte relaciona-se a um momento remoto, em geral associada a uma idade avançada, na qual 
28 CYRULNIK, Boris. La résilience: um espoir inattendru. ln: POILPOT, Marie-Paule Ramonville Saint-Agne 
(org.). Soujfrir mais se construire. Éres, 1 999. 
29 Tradução livre. 
3º CHIATTONE, Heloísa Benevides Carvalho. A criança e a morte. ln: ANGEAMI-CAMON, Valdemar 
Augusto (org.) E a psicologia entrou no hospital. .. São Paulo: Pioneira, 2001 . 
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36 
os indivíduos já não produzem mais. Doença e morte, segundo Chiattone, ocupam "pequeno 
espaço da vida cotidiana". 
Assim, a morte de um bebê é sempre muito "dura", precoce para ser aceita como 
natural pelo senso comum. Em geral, aos bebês, associa-se vida e não morte. Como estar, 
então, ao lado e participar de uma equipe que não só lida com a morte de bebê, mas que 
também sente-se, por inúmeras vezes, responsável por ela? 
A solução, na época, foi a idealização e realização, em co-terapia que incluía um 
pediatra - de um Grupo de Pais de Bebês de CTI Pediátrico. 
Estar ao lado desses pais, informá-los, orientá-los e acolhê-los em suas questões, 
enfim escutá-los, pareceu ser a possibilidade de converter através da fala, do simbólico, a 
ausência em presença. Com o grupo pretendia-se centralizar as informações a respeito do 
estado clínico do bebê e permitir uma "ponte de acesso simbólica", ao retorno desses pais ao 
CTI e a seus bebês. Objetivava-se também que pudessem ter seu filho presente - mesmo em 
sua ausência através da fala dos grupos. Tentou-se, com esta prática integrada evitar o 
desligamento entre pais e filhos. 
O procedimento era assim: incentivava-se esses pais a falarem, conversarem com seus 
bebês, durante os momentos de visita, como também orientava-se as mães quanto ao que dizia 
respeito ao aleitamento materno. O pediatra, funcionando como co-terapeuta junto ao grupo 
tinha, por sua vez, a função de esclarecer aos pais quanto à evolução do quadro do bebê. 
Foi possível verificar que, durante o período de realização dos grupos, houve uma 
retomada da continuidade do aleitamento materno, como também uma diminuição do 
abandono de bebês no hospital. 
Através da iniciativa, da idealização e realização do grupo, através das reflexões 
teóricas e clínicas formais e informais, pela simples presença do psicólogo junto à equipe, por 
sua presença física no CTI e ao lado dos pais, foi possível ao psicólogo cumprir sua tarefa 
também junto ao desamparo da equipe, propiciando a essa principalmente o entendimento da 
linguagem psicológica dos bebês e de seus pais, sobretudo nos momentos em que ocorriam as 
projeções das angústias da própria equipe. 
Alguns desses momentos foram identificados como não acreditar mais nas 
possibilidades de chances do bebê e/ou comportamentos hostis por parte da equipe com 
relação aos pais. Acredita-se que em tais situações o psicólogo pode desempenhar tarefa 
muito importante, uma vez que está apto para propor à equipe a possibilidade de 
entendimento sobre essas idéias. 
37 
Por outro lado, mediante a resposta animadora durante a realização dos grupos 
demonstrada pelo interesse dos profissionais, pela presença e participação dos pais ao grupo, e 
ainda, pela diminuição do abandono e maior empenho no aleitamento matemo por parte das 
mães foi possível também ao psicólogo diminuir a sensação compartilhada de desamparo. 
Inundado de angústia em situações como as descritas, o psicólogo percebe que, em 
alguns momentos, suas tarefas são maiores do que se poderia imaginar, uma vez que 
envolvem condições muito adversas, tanto do ponto de vista dos pacientes, quando das 
questões a eles ligadas: situações pessoais, familiares, econômicas e/ou sociais, como também 
questões sociais ligadas as instituições onde exerce suas atividades e mais ainda, questões de 
políticas, econômicas e sociais de nosso País. 
Mas, por outro lado, como suprir o seu desamparo, compreender sua importância 
dentro do trabalho da equipe e amparar o paciente? 
E ao psicólogo hospitalar inserido em equipes de saúde. Qual sua função? 
Freud apontava como árduo o trabalho com a questão do psíquico. 
"A psicologia representa, positivamente uma cruz para mim. Seja como for, 
jogar boliche e colher cogumelos são atividades muito mais saudáveis. 
Afinal de contas queria apenas explicar a defesa, mas quando vi, estava 
tentando explicar algo que pertence ao próprio núcleo da natureza. Tive de 
elaborar os problemas da qualidade, do sono, da memória - em suma toda a 
psicologia. Agora não quero mais falar nisso". (Carta 27 escrita a Fliess em 
1 6 de agosto de 1 895, p. 1 37).3 1 
Ao psicólogo hospitalar, enquanto representante, nas equipes de saúde, daqueles que 
tradicionalmente lidam com a compreensão dos aspectos mentais, cabe uma tripla função: 1 ) 
difundir a idéia de que corpo e mente relacionam-se, sendo que qualquer alteração numa das 
estruturas, pode alterar a outra. 2) lidar com as questões relativas à novidade e complexidade 
de suas tarefas junto à área de saúde hospitalar, junto ao paciente dessa área, questões que por 
sua vez, podem remetê-lo a um desamparo e, por outro lado, 3) servir como intérprete e 
amparo aos "desamparos"da equipe, buscando alcançar a compreensão das relações entre 
profissionais, entre profissionais e pacientes e entre profissionais e farru1ias de pacientes. 
31 MASSON, Jeffrey Moussaieff. A Correspondência Completa de Sigmund Freud para Wilhelm Fliess 1887-
1904. Rio de Janeiro: Imago, 1 986 (or. 1 985) 
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38 
Conforme relata Ricardo Sebastiani (2000), 32 ao apresentar a evolução da Psicologia 
da Saúde na América Latina, as rápidas mudanças sociais resultantes do desenvolvimento 
econômico, da industrialização e da urbanização causaram efeitos na estrutura das 
comunidades, no funcionamento das farm1ias e no entendimento do que se nomeia por bem­
estar psicológico dos indivíduos. O aumento do consumo de álcool e drogas, o estresse e suas 
repercussões nos diferentes modos de vida, originaram um grande espectro de reações 
disfuncionais e doenças crônicas, a saber: incremento das doenças mentais, problemas 
perinatais, suicídios, acidentes e violência. 
Dessa forma torna-se evidente a compreensão da dimensão psicossocial da saúde, o 
que constitui-se numa "grande necessidade e um espaço inquestionável para a psicologia 
como ciência", (SEBASTIANI, 2000, p. 203) bem como área de atuação para os psicólogos. 
Os aspectos sociais e econômicos necessitam também serem levados em consideração ao se 
falar em saúde. 
Quando mudanças acontecem, tornam-se necessárias seguindo o pensamento de 
Sebastiani (2000) novas diretrizes e maneiras de promoção e entendimento de saúde. Faz-se 
mister um pensamento novo que tenha por fundamento a compreensão biopsicossocial dos 
indivíduos e que promova a comunhão das ciências médicas e sociais na luta pela saúde e 
consequentemente pela qualidade de vida. Dessa forma, "novos modelos e paradigmas 
substituem velhos esquemas que não obstante não serem inúteis, resultam já insuficientes". 
(id. ibid., p. 205)-
Ao psicólogo ligado à área da Saúde, principalmente a hospitalar, coube a 
confrontação, a adaptação e a inovação de idéias e modelos adquiridos junto às Universidades 
e demais Instituições acadêmicas, uma vez que esses não se encaixavam e nem auxiliavam na 
resolução de problemas concretos junto as Instituições de saúde; resoluções que, por sua vez, 
por relacionarem-se com processos sociais exigem sempre renovação. 
A psicologia referenciada à saúde, portanto, tem uma especificidade: não se trata do 
acoplamento e justaposição de posições clínico-biológicas, pedagógicas e socioculturais. 
Constitui-se em verdade, no mínimo, numa integração sintética de todos esses aspectos. A 
"multidisciplinaridade" da psicologia dirigida à saúde refere-se, antes de tudo, à sua projeção 
e luta no marco institucional, mas não nega seu sentido psicológico e a psicologia como 
fonte" (id. ibid., 2000, p. 206). 
32 SEBASTIANI, Ricardo Werner. Histórico e evolução da psicologia da saúde numa perspectiva latino­
americana. ln: ANGERAMI-CAMON, Valdemar Augusto (org.) Psicologia da saúde: um novo significado 
para a prática clínica. São Paulo: Pioneira, 2000. 
f 
39 
Retomando a história da Psicologia Hospitalar/Saúde no Brasil, tem-se que Sebastiani 
(2000) considera o seu início coincidente e mesclado à própria história da organização e 
oficialização da profissão de Psicólogo no Brasil. 
O reconhecimento desta profissão no Brasil deu-se em 196 1 e contribuiu para que, por 
volta da década de 70, tenha surgido então um grande número de cursos universitários 
visando à formação do psicólogo. 
Entretanto, já em 1954, Matilde Neder, psicóloga, pioneira em Psicologia Hospitalar 
no Brasil, desenvolvia suas atividades junto à Clínica Ortopédica e Traumatológica da 
Universidade de São Paulo, acompanhando o aspecto psicológico de pacientes submetidos a 
cirurgias de coluna. 
Por volta de 1940, o modelo de saúde encaminhou-se para ações de saúde com atenção 
secundária (modelo clínico/assistencialista). Assim, saiu-se de uma linha de ação sanitarista 
que adviesse da necessidade ao combate das epidemias existentes, para um modelo importado 
dos Estados Unidos da América, no qual o hospital era o ideal de atendimento em saúde. 
Entende-se então que, muito provavelmente, como aponta Sebastiani, o nome 
Psicologia Hospitalar tenha tido sua origem conforme tal modelo, "sem precedentes em outros 
países" (id. ibid., 2000, p. 2 12), quando utilizado com o objetivo de nomear as atividades do 
psicólogo no campo da saúde "lato sensu". Se a saúde era considerada dentro do modelo 
hospitalar, foi então aí, nos hospitais, que o psicólogo ganhou terreno em sua prática relativa 
às ações de saúde. 
Heloísa Chiattone (2000)33 com relação a esse assunto, faz referência a uma 
diferenciação possível entre as expressões psicologia hospitalar e psicologia no contexto 
hospitalar. Segundo a autora, o termo psicologia hospitalar advém de seu uso constituir-se em 
denominação já tradicional na prática do dia-a-dia do psicólogo junto aos hospitais, como 
também em atividades científicas: congressos, cursos, simpósios e publicações. Entretanto, 
continua Chiattone, "caracteriza a psicologia pela natureza do locus que utiliza, o que é 
bastante simplista". Sugere que psicologia no contexto hospitalar, explicita um maior rigor 
epistemológico, pois por sua vez fundamenta "uma estratégia de atuação em instituições 
hospitalares". (CHIATTONE, 2000, p. 78) 
O I Encontro Nacional de Psicólogos da Área Hospitalar, realizado em 1983, trouxe 
algumas contribuições interessantes à Psicologia Hospitalar. Decorrente desse encontro, 
33 CHIATTONE, Heloisa Benevides de Carvalho. A significação da psicologia no contexto hospitalar. ln: 
ANGERAMI-CAMON, Valdemar Augusto (org.) Psicologia da Saúde: um novo significado para a prática 
clínica. São Paulo: Pioneira, 2000. 
40 
constituiu-se uma subcomissão de Psicologia Hospitalar dentro do Conselho Regional de 
Psicologia do Estado de São Paulo. Tal subcomissão listou alguns itens que diferenciam a 
atuação do psicólogo hospitalar de suas outras áreas de atividades e práticas clínicas 
tradicionais, a saber: instituições permeando a atuação; psicologia pouco prevista no hospital 
geral; obrigatoriamente multiprofissional (interdisciplinar); dinâmica de trabalho com 
multiplicidade de atuações; ambiente de ação aberto e variável; tempo impondo limites; 
sobreposição de sofrimento organopsíquico; imposição x opção do acompanhamento 
psicológico; iminentemente focal e emergencial; predominantemente egóica; morte e morrer 
como parceiros constantes na rotina de trabalho; absoluta necessidade de visão multifatorial 
do paciente; abrangência maior de conhecimentos específicos; possibilidades múltiplas de 
intervenção: paciente - familia - equipe - instituição. 
Como já relatado a Psicologia Hospitalar introduziu-se no Brasil por volta de 1950, 
mesmo antes da regulamentação e oficialização da profissão de psicólogo. 
Pelo artigo de Valdemar Augusto Angerami-Camon34, "Psicologia Hospitalar. 
Pioneirismo e as Pioneiras" ( 1994) entende-se que suas raízes encontram-se sem dúvida no 
Estado de São Paulo. Entretanto, espalharam-se pelo Brasil inteiro, no qual se encontra 
atualmente um grande número de psicólogos atuando em Psicologia Hospitalar, seguindo as 
mais diversas orientações teóricas possíveis. 
Novos paradigmas tomam-se necessários, uma vez que as iniciativas dos psicólogos 
que se aventuraram e se aventuram na Psicologia Hospitalar são de modo, geral, empíricas. 
Sistematizar tais iniciativas foi sempre necessário e toma-se a cada dia mais 
importante. Objetiva-se assim principalmente, a adequação dos saberes advindos dos 
conhecimentos acadêmicos à sua aplicação nas práticas institucionais hospitalares, uma vez 
que as informações e transformações de um mundo globalizado caminham certamente em 
velocidade máxima. 
Tal sistematização impõe-se ao desamparo do psicólogo hospitalar em sua prática. No 
entanto, essa não é das tarefas mais fáceis, porém constitui-se pelo que seentende numa 
importante via de amparo para esse profissional. 
Para que seja possível situar-se diante das enormes dificuldades de tal sistematização, 
nada mais útil do que se recorrer ao texto de Chiattone (2000): "Significação da Psicologia no 
Contexto Hospitalar". 
34 ANGERAMI-CAMON. ln: ---- et. ai. O doente, a psicologia e o hospital. São Paulo: Pioneira, 1 992. 
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: 
4 1 
A Psicologia subdivide-se, n a verdade, em "muitas psicologias", permeadas por 
diversas tendências e escolas teóricas particulares e com diferentes orientações. De início 
cabe que se compreenda, portanto, que a Psicologia Hospitalar "tomou emprestado" saberes 
advindos dessas muitas outras áreas da Psicologia, tanto em seus aspectos metodológicos 
quanto técnicos. 
Toma-se, então, evidente, a pluralidade que se pode observar no exercício da 
Psicologia Hospitalar. As possibilidades de inserção do psicólogo na instituição hospitalar são 
inúmeras. Os caminhos a serem percorridos se relacionarão necessariamente com o 
entendimento pessoal da teoria que permeia a atividade de cada profissional. 
Entretanto o que se almeja e se propõe em concordância com Chiattone (2000) é que a 
diversidade apresentada possa ser compreendida enquanto instrumento útil entre a "psicologia 
no contexto hospitalar e a apreensão da realidade que escancara as dificuldades e as 
vicissitudes". (id. ibid. , p. 142) 
Ou ainda, que a procura de sistematização de diferentes teorias e técnicas seja em 
benefício de um envolvimento, por parte do psicólogo hospitalar, em um "processo de 
transformação (pois se utiliza de saberes anteriores ligando-os aos conteúdos adquiridos) e de 
reconstrução (pela possibilidade de reconstruir a realidade sob novos parâmetros)". (id. ibid. , 
p. 1 42) 
Infelizmente, não é com o sentido acima que a diversidade de orientações vem sendo 
considerada pelos psicólogos hospitalares, ou seja, esteja a serviço de uma compreensão 
dialética e de uma tarefa ética. 
Ouvindo-se Bezerra Jr. : 
"Ter uma teoria é possuir uma ferramenta, que se presta a certos fins. É 
possuir um determinado vocabulário que permite fazer descrições do mundo 
adequadas a certos propósitos. O que significa dizer que toda pretensão 
epistêmica é uma tomada de posição ética". (BEZERRA Jr., apud 
CHIA TIONE, 2000, p. 88) 
Mas ao contrário, com freqüência, tais questões destinam-se "à prática do digladio, da 
exclusão, da desqualificação" (ibid., 2000, p. 1 42) contribuindo ao que se compreende ainda 
mais para um desamparo do psicólogo hospitalar em seu exercício profissional, imerso numa 
verdadeira babel de questões: teóricas, clínicas e institucionais, que contribuem, ao que 
parece, para enfraquecê-lo enquanto categoria profissional. 
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42 
A complexidade, da tarefa do psicólogo na realidade, deve-se ao fato de que não são 
somente as agruras dos pacientes que o profissional de Psicologia encontra nos hospitais. Na 
verdade, o intenso sofrimento e a vulnerabilidade dessas pessoas, desdobram-se também para 
as equipes de saúde, traduzindo-se num espaço intersubjetivo. Assim, o psicólogo fica então 
com dupla inserção: como membro da equipe e como depositário de idealizações. É 
idealizado como aquele que pode "dar conta" de todas as agruras, sofrimentos e questões que 
se colocam diante da doença e da hospitalização. 
O rosto, a face, certamente é considerado como sendo a parte do corpo que mais "fala" 
sobre a essência da singularidade do sujeito. Portanto, o campo de prática para o psicólogo 
Hospitalar junto a equipes de reconstrução de face parece ajustar-se "como uma luva" à 
situação-limite descrita anteriormente. 
Cabe, no entanto, mencionar que a Cirurgia Maxila Facial reconstrutora da face, situa­
se no campo da Cirurgia Plástica que, por sua vez, relaciona-se às cirurgias reconstrutoras, 
não originadas a partir das Cirurgias Plásticas Estéticas. Entretanto, como mostra Sandra 
Korman (200 1)35 : em sua tese de Mestrado "A imagem em construção", "as duas modalidades 
da cirurgia (Plástica) se interpenetram quanto ao sentido, ... a reparadora muito tem de 
estético e a estética .. . se apoiará na chance de "reparo". (p. 102) 
Assim, tanto as cirurgias reconstrutoras da face quanto as cirurgias estéticas 
constituem-se em campo de trabalho adequado e indicado ao psicólogo hospitalar. 
Assim que, utilizando-se mais da intuição, já que a Bibliografia específica é 
inexistente, começou-se a exercer a função de psicólogo junto a equipe de Cirurgia Maxilo 
Facial do Hospital de Ipanema e a acolher, entender e acompanhar, nas várias etapas pré e 
pós-cirúrgicas, pacientes com deformidades da face. 
Essa equipe de Cirurgia Maxilo facial do Hospital de Ipanema aceitou e acolheu o 
trabalho do psicólogo-pesquisador de modo bastante empático e acolhedor, de acordo com o 
anteriormente descrito. Encaminhava alguns pacientes que supunha necessitarem de 
atendimento por parte desse profissional, como solicitava também a reflexão e o entendimento 
em conjunto de outros pacientes, pois acreditava ser esta reflexão fundamental para o bom 
andamento do caso. 
Finalizando este capítulo, tem-se que as idéias aqui apresentadas quanto ao papel do 
psicólogo junto às equipes de cirurgias reconstrutoras da face originam-se, com certeza, da 
35 
KORMAN, Sandra. A imagem em construção. 200 1 . 150ft. Dissertação de Mestrado em Psicologia. Centro de 
Filosofia e Ciências Humanas. Instituto de Psicologia. UFRJ, Rio de Janeiro. 
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43 
escuta, da clínica hospitalar com os pacientes e da troca interdisciplinar com os profissionais 
das equipes cirúrgicas dessa área tanto do Hospital dos Servidores do Estado - RJ, , quanto do 
Hospital de Ipanema - RJ. 
Sabe-se que foi a partir da clínica que nasceu o arcabouço teórico da Psicanálise, e 
acredita-se que só assim qualquer teoria na referida área venha a adquirir sentido. Portanto, 
qualquer pesquisa em Psicanálise deve levar em consideração essa questão. 
Como aponta Maria Erm1ia Lino da Silva no artigo "Pensar a Psicanálise" :36 
"um conhecimento objetivo que não considere as condições humanas de 
conhecimento, isento de qualquer subjetividade, mesmo que possível, para 
nada serviria, uma vez que seria "incompatível com a natureza do aparelho 
psíquico". (SILVA, 1 993, p. 1 7) 
Ao iniciar um percurso de atuação profissional junto a um determinado segmento de 
uma instituição cabe ao psicólogo, como conduta mais eficaz e tradicionalmente utilizada 
como método de investigação inicial em ciências sociais e humanas, realizar uma observação 
(livre) e obter informações dos participantes das equipes, dos pacientes e da instituição de 
modo geral. 
Compreender os caminhos da mente, do aparelho psíquico, pelo viés da Psicanálise, 
implica necessariamente em abrir mão de idéias pré-concebidas. É claro que é impossível ao 
psicólogo "despir-se" totalmente de seu conhecimento ou teoria anterior, o que inclusive pode 
auxiliá-lo na "inspiração" para a área de estudo e na delimitação de seu campo de ativação e 
objeto de pesquisa. Porém, como aponta Silva, ( 1 993, p. 21) o importante é que esse 
conhecimento "não ocupe todo o cenário, não antecipe a descoberta, não impeça a aventura da 
busca do desconhecido". Ainda Silva, "a primeira condição, portanto, é que não se chegue 
para a investigação trazendo já alguma resposta, conhecimento ou teoria anterior". (id. ibid., 
1 993, p. 2 1 ) 
Freud também ensina que não se deve trabalhar com uma impressão do que virá a 
priori. Mas ao contrário, é preciso que se entregue àquilo que vai se formando na área a ser 
pintada . . . Portanto importa tanto o último dia quanto o primeiro". (Carta de Freud a Fliess de 
7 de julho de 1898). 
Esse é o primeiro passo. Com relação a seu papel específico dentro da equipe diante 
das informações obtidas e de suas próprias observações e idéias a respeito do material 
36 SILVA, Maria Emília Lino da. Pensar em psicanálise.IN: SILVA, Maria Erru1ia Lino da (coord . ) Investigação 
e psicanálise. Campinas: Papirus, 1 993. 
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• 
44 
recolhido, o psicólogo deverá realizar um projeto piloto de sua atuação e apresentá-lo e 
discuti-lo com a chefia do Serviço, e se possível, com toda a equipe. 
Uma idéia importante aprendida com Eduardo Vidal37, é que: "a instituição mobiliza, 
por mecanismos institucionais inconscientes, a onipotência do psicólogo, para na verdade 
atestar sua impotência". 38 
Idealizar uma intervenção adequada à realidade institucional e à própria realidade do 
profissional implica necessariamente na compreensão da idéia acima citada. Cabe ao 
psicólogo, ao defrontar-se com os "desamparos inevitáveis", ou seja, tarefas desconhecidas, 
amplas e complexas, colocar-se diante dessa situação de modo a "arriscar-se", utilizando-se 
tanto de seus aspectos ditos onipotentes - porém que podem ampará-los servindo como defesa 
própria em alguns momentos -, quanto aceitando sua impotência diante de inúmeras 
situações. 
Impõe que na divulgação de suas idéias e de sua proposta de trabalho, o psicólogo não 
se deixe levar por sua vaidade e onipotência. Ao respeitar o trabalho de todos da equipe e 
acreditar que é tão importante quanto o seu, dá o primeiro passo para que seu trabalho, sua 
função ganhe o sentido e seja respeitada. Assim parece validar sua participação na equipe e 
fazer valer sua função. 
Só desse modo terá a garantia de não se desqualificar e não ser desqualificado 
profissionalmente, podendo alcançar seus objetivos e enfrentar seu desamparo. Mesmo 
porque, em alguns momentos por sua simples presença, uma das funções do psicólogo é 
realizada: fazer face ao desamparo de todos: equipe e pacientes. O profissional de psicologia 
inserido numa equipe multiprofissional marca, por si só, uma possibilidade terapêutica, visto 
serem a ele atribuídas as funções de escuta e fala tão vitais ao ser humano - ser inscrito 
naturalmente na ordem da linguagem, do simbólico. 
Segundo André Green ( 1976, p. 37)39 "a fala é a mediação entre corpo e linguagem, 
mas é também representação de relações, meio de linguagem entre mundos objetivo e 
subjetivo e entre mundos subjetivos". 
Ou ainda, completando com a ilustração de Freud40 sobre o poder da fala: "Titia, fale 
comigo. Estou com medo do escuro. De que adiantaria? Você não pode ver-me. Não importa, 
se alguém fala a luz vem". (FREUD, 1905, p. 23 1) 
37 Psicanalista argentino mudou-se para o RJ, onde exerce a profissão, há cerca de vinte anos pelo menos 
38 Informação verbal. 
39 GREEN, André. Um autre neutre: valeurs narcissiques du meme. Nouvelle Revue de Psychanalyse. Paris, no. 
1 3, 1 976. 
40 FREUD, Sigmund. Três ensaios sobre a sexualidade. ln: ESB. Vol. VII, Rio de Janeiro: Imago, 1 972 ( 1 905). 
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45 
Também o psicólogo necessitará de "alguém que fale com ele" para suportar seu 
desamparo. Considera-se fundamental a própria psicoterapia pela qual tenha passado ou esteja 
passando o profissional, no sentido de suportar e lidar com seu próprio desamparo nessa 
tarefa: estar inserido numa equipe de cirurgias reconstrutoras da face. Assim, a complexidade 
da inserção e das tarefas de um psicólogo junto a equipes hospitalares, pode inicialmente 
apresentar-se como insegurança, despreparo, imaturidade profissional; é tal o vulto das 
tarefas, que pode levá-lo e levá-lo ao desespero do desamparo com relação a sua própria 
identidade profissional. 
Porém, nada melhor do que "amparar-se" nas palavras dos pacientes e vasculhar a 
teoria. Não há outra saída a não ser socorrer-se dos sujeitos da pesquisa sobre o que imaginam 
significar seu rosto como esse rosto é construído, como se sabe que se tem um rosto, e o que é 
ter e perder um rosto e lutar por reconstruí-lo. E amparar-se ainda no sentido atribuído à 
função do psicólogo, ao validarem sua presença junto à equipe. 
"A senhora não acha que toda a equipe que lida com esse tipo de problema deveria ter 
um psicólogo?" "É muito bom ter, a senhora para conversar, nem tudo da para se conversar 
com todo mundo". (Fala de Maria logo na primeira entrevia com a terapeuta). 
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3. ROSTOS 
Retrato 
Eu não tinha esse rosto de hoje, 
Assim calmo, assim triste, assim magro, 
Nem esses olhos tão vazios, 
Nem o lábio amargo 
Eu não tinha estas mãos sem força, 
Tão paradas e frias e mortas, 
Eu não tinha este coração 
Que nem se mostra 
Eu não dei por essa mudança, 
Tão simples, tão certa, tão fácil : 
Em que espelho ficou perdida 
A minha face? 
3.1 - A construção subjetiva do rosto 
Cecília Meireles 
46 
Visto ser o rosto como já apresentado, um "cartão de visita", a parte do corpo que 
permite ao máximo que alguém seja reconhecido, identificado, tendo portanto importância 
fundamental tanto pessoal quando socialmente, trata-se, nessa seção, de construi-lo 
subjetivamente para que seja possível aproximar-se da idéia do que é ter um rosto destruído e 
o porquê da "exigência" em sua reconstrução. 
Fala-se aqui em construção de um rosto, uma vez que, de início, o bebê identifica tudo 
o que se assemelha ao rosto humano, inclusive máscaras. Posteriormente é que reconhecerá o 
rosto de sua mãe ou substituta, identificando-o, para em seguida reconhecer-se a si mesmo, 
identificando como seu, um determinado rosto. 
A primeira indagação importante neste processo parte da reflexão como é possível 
identificar um rosto na multidão, o que é a identificação e qual a sua relação com a construção 
subjetiva de um rosto? 
O conceito de identificação impõe-se, aqui, para a reflexão e compreensão da 
construção subjetiva do rosto. É através da identificação que se toma possível o 
reconhecimento desse "cartão de visita", o rosto, reconhecimento esse tanto do próprio rosto, 
quanto do rosto do outro. 
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Em Laplanche e Pontalis ( 1 994) identificação encontra-se definida como: 
"processo psicológico pelo qual um indivíduo assimila um aspecto, uma 
propriedade, um atributo do outro e transforma, total ou parcialmente 
segundo um modelo desse outro. A personalidade se constitui-se e 
diferencia-se por uma série de identificações". (LAPLANCHE e PONT ALIS 
1 994, p. 226) 
47 
A mesma palavra é vista por Luis Alberto Pinheiro de Freitas (s/d, p. 1 2) 1 como "o 
pivô em torno do qual o sujeito se constitui" . Entretanto, segundo ele, constitui-se em um dos 
conceitos mais complexos da teoria psicanalítica. 
Segundo Freud ( 1 923), é a primeira relação afetiva entre duas pessoas, precedendo 
portanto a relação objetal propriamente dita. É fundamental na constituição do sujeito. É 
essencial se identificar para se discriminar. 
Coincide a identificação, de início, com uma etapa na qual o investimento é auto­
erótico, ou seja, em partes do próprio corpo. A exigência que se faz presente nesse momento 
em termos libidinais é apenas uma sensação capaz de satisfazer localmente. Não há ainda 
diferenciação, por parte do bebê, com relação ao objeto com o qual está se identificando. 
Nesta fase primária o bebê possui, ao que parece, a vivência de ser um com a mãe/e ou 
substituta. Tal fato está relacionado à imaturidade sensorial, neurológica e psíquica em que 
nasce o bebê humano, associado a uma espécie de intuição e sintonia das mães que "sabem" 
ou "aprendem" a responder às necessidades de seus bebês, ou ainda nas palavras de 
Winnicott2 ( 1 978, p. 493) à "preocupação materna primária" - condição psicológica muito 
especial de sensibilidade aumentada das mães. 
Freud3 relaciona a identificação à etapa oral canibalística, na qual o que vai interessar 
como finalidade para a atividade oral será incorporar o objeto, assimilando-o ao próprio corpo 
do bebê. Freud fala, então, na incorporação como sendo o protótipo da identificação. A 
identificação constitui-se nesse momento num desejo de incorporar o objeto e ser como ele. 
A boca, através da amamentação e, portanto, da satisfação de uma necessidade do 
organismopropicia ao bebê não somente a possibilidade de alimentar-se, mas ainda o prazer 
da sucção ritmada que inclui os lábios, a língua e o palato. A cavidade oral constitui-se em 
"área princeps" de investimento libidinal, de identificação, de reconhecimento do mundo e 
1 FREITAS, Luiz Alberto Pinheiro de. As identificações na obra de Freud. Rio de Janeiro: SPID, s/d. 
2 WINNICOIT, Donald W. Textos selecionados: da pediatria à psicanálise. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 
1978. 
3 FREUD, Sigmund. Oego e o id. ln: ESB. Rio de Janeiro: Imago, 1976 ( 1923). 
n 
48 
constituição do sujeito. Como conseqüência desse momento, as relações objetais, a atividade 
amorosa, terão para sempre a marca da oralidade e das tentativas de incorporação do objeto. 
Cabe lembrar nesse momento, como refere-se Juan-David Nazio ( 1995)4 que ao 
colocar o dedo na boca e ao acariciar-se a si mesmo, por exemplo, em verdade, o bebê 
demonstra, através desse gesto, evocar um apego a um objeto fantasiado, objeto que ele 
"acreditou" ser ele mesmo, com o qual se identificou. Chega-se, nesse momento, à base do 
processo, de identificação, identificação primária, identificação narcísica, uma vez que o bebê 
"ama" e acaricia a si mesmo. Dessa forma, incorpora, identifica e repõe ilusoriamente o 
objeto que lhe proporcionou satisfação prazerosa. Preenche narcisicamente, um vazio, uma 
falta. Assim daí a sensação de completude, sensação pela qual todo ser humano ansiará o resto 
da vida. 
Como aponta Sherrine Njaine Borges ( 1996)5 , no sentido corriqueiro, identificação 
liga duas pessoas, supondo entre elas uma relação de identificação. Na Psicanálise tal 
esquema modifica-se, uma vez que a identificação se dá no espaço psíquico. Assim constitui­
se em um processo de modificação que acontece no interior do aparelho psíquico. 
Continuando com Borges, identificação passa a ser o nome encontrado pela Psicanálise 
através do qual é possível compreender como, na esfera do inconsciente, o eu e o objeto 
relacionam-se. O objeto refere-se, portanto, a uma representação mental inconsciente, anterior 
à existência do outro, representação que já se encontrava no inconsciente na qual se apoiará 
toda a realidade. Assim sendo, "não existem no inconsciente representações do outro, mas 
apenas representações inconscientes, impessoais ... à espera de um outro externo que venha 
ajustar-se a elas". (Borges, 1 996, p. 136). 
Esse primeiro "outro externo" em geral a mãe biológica oferece o aconchego de seu 
corpo ao bebê. Sua voz, seu cheiro, seu ritmo, inclusive o do coração, enfim, seu corpo físico 
e erógeno é oferecido ao bebê como resposta aos "seus gritos de socorro". Para compreender 
melhor esta relação e sua repercussão na identificação do rosto do paciente adulto e na 
sensação de amparo/desamparo na sua vida, discorrer-se-á sobre o recém-nato. 
O bebê pede ajuda não só para a satisfação de necessidades físicas, do corpo -
alimentar-se, aquecer-se, adormecer, mas ainda para proteger-se das inúmeras excitações 
provenientes de um dentro e de fora, que o afetam profundamente, que constituem-se numa 
4 NASIO, Juan-David. O olhar em psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1995 . 
5 BORGES, Sherrine Njaine. Metamorfoses do corpo - uma pedagogia freudiana. Rio de Janeiro: Fiocruz, 1 995. 
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49 
ameaça à sua sobrevivência, portanto em situação de desamparo, de perigo, para a qual o 
único remédio é o investimento afetivo de um outro. 
É com toda sua extensão corporal que a mãe oferecerá auxílio ao bebê, mas, 
principalmente através de sua fala (oralidade), de seu olhar, e de seu tônus postural, 
inclinando sua cabeça, seu rosto em direção ao bebê. 
Parece fácil o entendimento de que a identificação é a via privilegiada para o 
reconhecimento de rostos, e constitui-se em elemento primordial para a identificação e 
construção subjetiva do próprio rosto. 
O rosto da mãe, tanto por sua proximidade física quanto por constituir-se em expoente 
máximo de expressões de alegrias ou tristezas, de expressão de sua singularidade de uma 
imagem constitui-se, principalmente, através da visão, do olhar em fonte eterna de 
identificação. 
Na contemporaneidade em que o visual, através da solicitação de imagens que se 
proliferam e impregnam o cotidiano, possui extrema importância, a imagem visual possui 
forte impacto. Afinal, dizem alguns "o que os olhos não vêem, o coração não sente", 
ressaltando a importância do olhar, como se diz também que os "olhos falam". 
Os olhos têm participação fundamental na construção subjetiva do rosto, a partir de 
idéias desenvolvidas por diferentes autores, nos mais variados campos científicos e artísticos. 
"Esse seu olhar, quando encontra o meu, fala de umas coisas que eu não posso imaginar. .. "6 
No artigo "A Revolução dos Bebês", fole da Cunha (2000, p. 12 1)7 a autora refere-se 
ao ditado popular: "os olhos são a janela da alma", colocando o olhar, a visão, como a 
primeira "janela de amadurecimento"8 pós-natal. "O olhar do bebê que busca o da mãe talvez 
com a finalidade de seduzi-la e cativá-la ao seu afeto, é tema de extensas pesquisas em 
neurociências" . 
Ao abordar o desamparo do recém-nascido e a sedução do olhar, situação já 
vivenciada e relatada em capítulo anterior, a autora aponta uma memória filogenética do 
desamparo como parte do proto-psiquismo do recém-nato, relativa a fatos ocorridos durante 
os primórdios da evolução do homem, quando então a alta mortalidade neonatal ameaçava a 
sobrevivência da espécie. Tal fato, surpreendentemente, contribui para que o recém-nascido 
seja, ao mesmo tempo, desamparado e sedutor. 
6 JOBIM, Antônio Carlos. Este seu olhar, 1 959. 
7 CUNHA, lole da. A revolução dos bebês. Psicanalítica - a revista da SPRJ. Rio de Janeiro: SPRJ. Vol. II, nº . 
1 , 2001 . 
8 "Janela de amadurecimento" refere-se à idéia de períodos críticos de desenvolvimento nos quais as interações 
afetivas mãe e bebê são fundamentais ! 
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50 
Essa memória, podendo ser apontada como um dos fatores de desamparo do bebê, 
teria contribuído para que o recém-nato tenha desenvolvido a capacidade de seduzir o 
cuidador pelo olhar, garantindo com isso proteção, segurança e vida. O bebê dependerá de um 
olhar alinhado ao de sua mãe e ou substituta, de uma interação olho-a-olho para organizar 
seus ritmos. 
Será através de uma interação empática e intersubjetiva dessa natureza, anteriormente 
descrita, que o bebê poderá sentir-se imerso num sentimento de afeto positivo que organiza e 
estabiliza o meio interno, que, "determina proliferação neuronal ( cérebro neuro-anatômico), 
que fixa os neurotransmissores pela sinaptogênese (cérebro neuro-químico), que estabelece 
um comportamento de interação (cérebro neuro-psíquico)". (id. ibid., p. 123) 
Assim, a primeira janela de amadurecimento pós-natal, o olhar do bebê que busca o 
olhar da mãe, nas palavras de Cunha, "ilumina adequadamente o cérebro e permite a 
organização dos ritmos comportamentais" . (ib. ibid., p. 1 23) 
Continuando, Cunha aponta uma formação motivadora intrínseca, ou sistema 
motivador primordial que se desenvolve nas estruturas subcorticais e límbica do embrião, que 
determina e impele que, a partir do nascimento, o bebê comunique-se com outro ser humano 
para regular o desenvolvimento cortical. Dependentes de tal mecanismo, encontram-se o 
aprendizado e a aquisição da cultura. 
Continuando com a importância do olhar, sobretudo como forma de interação mãe­
bebê e de comunicação social, encontra-se Daniel Stern ( 1992),9 terapeuta e pesquisador 
americano contemporâneo, estudioso sobre os primórdios do desenvolvimento psíquico do ser 
humano. 
Stern ( 1 992) fala do olhar mútuo mãe-bebê como poderosa forma de comunicação 
social. Será a partir da oitava semana que os bebês começam a fazer contato direto olho-a­
olho. Afirma, depois, que nos últimos anos vem ocorrendo uma modificação na observação e 
avaliação dos bebês. Com isso, a vidasocial subjetiva do bebê durante os dois primeiros 
meses, teve de ser reconsiderada. 
Assim, Stern pressupõe um "senso de um eu emergente" a partir dos dois meses de 
vida, atribuindo uma maior atividade aos bebês do que se supunha. "O senso de um eu 
emergente", diz, "refere-se ao processo e ao produto da organização em formação" . (id. ibid., 
p. 14). 
9 STERN, Daniel. O mundo interpessoal do bebê. Porto Alegre: Artes Médicas, 1992. 
51 
Apresenta também, experimentos realizados por outros autores, com bebês de dois 
dias de vida, os quais imitam fielmente um modelo adulto sorrindo, franzindo a testa ou 
demonstrando expressão de surpresa. No entanto, indaga Stern: como "sabem" os bebês que 
têm um rosto ou traços faciais? Como "sabem" que o rosto que vêem é algo semelhante ao 
rosto que possuem? 
Segundo o autor, não se pode afirmar se essa é uma resposta imitativa do bebê ou 
semelhante a um reflexo. Apenas pode-se dizer que os bebês parecem possuir uma capacidade 
inata chamada de percepção amodal, de traduzir uma informação recebida em uma 
modalidade sensorial, para uma outra modalidade sensorial, não sendo entretanto uma simples 
questão de tradução direta entre as modalidades. 
Stern faz uma afirmação importante, de que os processos afetivos e cognitivos não 
podem ser de imediato separados. A ativação de tais processos aumenta e diminui 
simplesmente diante da aprendizagem. A aprendizagem, ela própria, segundo Stern, é 
motivada e carregada de afeto. Daí é necessária uma codificação em uma representação 
amodal, até o momento misteriosa, que permite então o reconhecimento em qualquer um dos 
modos sensoriais. (p. 45) 
Stern, cabe frisar novamente, fala no olhar mútuo mãe-bebê como uma das formas 
importantes de comunicação social. Como representação das primeiras interações mãe-bebê 
na construção da subjetividade de cada ser humano. Qual a importância desses primeiros 
momentos com relação à construção subjetiva do rosto, a essa comunicação, à essa 
intersubjetividade. Serão eles delicados, árduos e confusos? Ao entrevistar pacientes com 
rostos desfigurados a impressão que se tem é a de que essa construção é dolorosa e 
fundamental. É grande o desconforto de procurar olhos e não encontrá-los . . . 
Mas talvez sim, talvez não. Afinal, as certezas e verdades podem sempre ser 
traiçoeiras, pois constituem-se até onde se sabe, em certezas circunstanciais e passageiras. 
Freud, apresentando o inconsciente, mostrou amplamente como as verdades são relativas. 
Como a mentira e o engano, pertencem também ao campo das verdades. 
Cabe aqui recorrer a Bakhtin mais especificamente ao seu conceito de grande 
temporalidade, comentado por Beatriz Andreioulo e Adriana Cerdeira (2000) 1 0 
10 ANDREIOULO, Beatriz; CERDEIRA, Adriana. Dialogismo e alegoria no sítio do Pica-pau amarelo. ln: 
SOUZA, Solange Jobim e (org.) . Subjetividade em questão: a infância como crítica da sulcuta. Rio de Janeiro: 
7 Letras, 2000. 
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1 
"um espaço talvez para que as muitas vozes de diversos tempos possam se 
encontrar, retomando antigos sentidos e criando outros num processo que 
continua sempre,. . . "todo sentido festejará seu renascimento". 
(ANDREIOULO e CERDEIRA, 2000, p. 1 3 1 ) 
52 
Ouvir os pacientes e percorrer a teoria, esperando que alguma luz se faça, revela-se 
como medida mais prudente nesse momento. 
Simone, 45 anos, casada, dois filhos, nível de escolaridade superior, trabalha há 20 
anos na mesma empresa. Já havia procurado e realizado algumas terapias, nelas 
permanecendo durante curtos períodos. Cabe dizer, que Simone é paciente de clínica privada 
e não possui deformidade alguma em seu rosto. Marca entrevista por telefone. A primeira vez 
em que se abre a porta para recebê-la, está sentada no sofá da sala de espera e apesar de 
cuidadosamente vestida, roupas de bom gosto e modernas, cabelo bem cuidado, o que 
transparece é um rosto profundamente inexpressivo, triste, "sem vida". Procura ajuda, 
basicamente, por tristeza, crises de choro, insegurança no relacionamento conjugal, no trato 
com os filhos e no trabalho, "e às vezes por vontade de desistir de tudo e se não seria melhor 
logo acabar com tudo isso" . . . 
Um ano e meio de atendimento psicanalítico e o grande empenho no tratamento de sua 
parte também fazem com que certo dia conte que sua mãe disse-lhe uma vez que quando ela 
era bebê, a mãe tinha medo de olhar para ela, principalmente para seus olhos. 
Algumas sessões se passam e Simone relata que, em alguns momentos de sua vida, 
parecia que as pessoas olhavam para ela, mas jamais guardariam seu rosto ou poderiam se 
lembrar dela. Tinha-se a sensação, pelas próprias palavras de Simone, que seu rosto não tinha 
forma, que não tinha rosto e que assim as pessoas a olhavam, mas não poderiam guardar sua 
fisionomia. Diz, que, com o tempo, isso foi passando. Conta que pintou o cabelo de louro, que 
seu cabelo era castanho, e acha que isto ajudou. 
Ao que parece, momentos distintos se fazem na construção da imagem que se tem do 
próprio rosto. Etapas cronologicamente distintas, porém correlacionadas entre si. Aqueles que 
se dedicam ao estudo do bebê e suas maneiras de apreender o mundo, falam como logo de 
início o bebê distingue o rosto humano. 
Um dos renomados estudiosos sobre os primórdios do desenvolvimento emocional do 
ser humano, e que fala da importância do reconhecimento do rosto para esse processo é René 
Spitz. 
53 
Spitz ( 1980) 1 1 realizou cuidadosa pesquisa e postula que, no segundo mês de vida, o 
rosto humano torna-se um grande objeto de interesse visual para o bebê, o qual o segue 
inclusive com os olhos. 
Explica tal fato, referindo-se que o rosto humano é em geral de início apresentado ao 
bebê, em situações nas quais uma das necessidades do bebê deverá ser satisfeita. Com isso, o 
rosto humano associa-se a ausência de desprazer, como também à experiência de prazer. O 
bebê olha o rosto da mãe ao mamar. Assim, a face, passará a ser o estímulo visual mais 
apresentado ao bebê nesse momento de sua vida, e segundo Spitz, no decorrer das primeiras 
seis semanas de vida, um traço mnêmico do rosto é estabelecido na memória infantil, como 
primeiro sinal de satisfação de necessidades. O bebê passa a acompanhar com os olhos, todos 
os movimentos referentes a tal sinal. A esse momento, Spitz nomeou de estágio pré-objetal. 
Já no terceiro mês de vida e com o progresso da maturação física, o bebê responde à 
face adulta com um sorriso, desde que certas condições se façam presentes ou seja: o rosto 
tem que apresentar-se de frente, de modo que o bebê possa ver os dois olhos e deve estar em 
movimento. O bebê sorri, então, independente do rosto que lhe é apresentado. Sorri portanto, 
diante de uma "gestalt": testa, olhos e nariz, ou seja um todo em movimento. Essa "gestalt" é 
que desencadeará a resposta. O bebê distingue tal "gestalt" semelhante ao rosto, e sorri para 
ela, constituindo-se então o sorriso, segundo Spitz, o primeiro organizador psíquico. O autor 
nomeia então esse momento de precursor do objeto. 
Só mais tarde, por volta do sétimo ao oitavo mês, é que o bebê reconhecerá um rosto, 
distinguindo-o dentre muitos outros. Ou ainda nas palavras de Spitz, "o bebê então se torna 
capaz de transformar o que era apenas um sinal gestáltico em seu único objeto próprio de 
amor individual". (Spitz 1 980, p. 93) Esse será o momento do reconhecimento do objeto 
propriamente dito ou angústia do oitavo mês e é considerado por Spitz como o segundo 
organizador psíquico. 
O rosto do outro, em geral o da mãe ou de alguém que a substitua quanto aos cuidados 
para com o bebê, funciona como um primeiro espelho. Será aproximadamente por volta do 6
° 
mês em diante que o bebê começa a reconhecer sua imagem frente ao espelho manifestando 
grande alegria por esse reconhecimento. Tal fato é possível de ser facilmente percebido 
através das brincadeiras adultos e bebês diantedo espelho. 
1 1 SPITZ, René. O primeiro ano de vida: um estudo psicanalítico do desenvolvimento normal e anômalo das 
relações objetais. São Paulo: Martins Fontes, 1 980. 
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54 
O espelho físico e o espelho humano atravessam toda a História do Homem, podendo 
despertar fascínio, perplexidade, alegria, medo entre outras reações possíveis. 
Os povos primitivos, ao olharem-se nas águas claras e tranqüilas de rios e lagos, por 
exemplo, fascinavam-se por suas imagens e construíam as mais diversas crenças frente ao 
mistério do que percebiam espelhado nas águas. 
Na construção da imagem que cada um tem de seu rosto e de si mesmo, a imagem e 
função especular têm um papel preponderante. 
Freud ( 1923, p. 4 1) aponta que o "ego nada mais é do que um ego corporal", 
acrescentando que não é também "só uma superfície, senão ele mesmo a projeção de uma 
superfície". Borges ( 1996), ao remeter-se a Freud, lembra a importância do espelho enquanto 
superfície na construção da imagem de si mesmo, dizendo sem dúvida que não é o espelho de 
Clarice Lispector, ao qual se refere, mas sim: 
"um espelho de dupla face: que forma sua superfície a partir do sentimento 
corporal, e ao mesmo tempo, cria sua imagem; mas só pode fazê-lo sob a 
regência do olhar que o transforma em testemunho da forma do semelhante" . 
(BORGES, 1 996, p. 1 34) 
Assim, será a mãe ou a sua substitua que auxiliará o bebê a encontrar uma imagem 
somatopsíquica de seu rosto e de si mesmo. Ela funciona então para o bebê como um espelho, 
através do qual é possível organizar uma imagem pessoal que se diferenciará gradualmente. 
Assim será a mãe ou sua substituta, que auxiliará o bebê a encontrar uma primeira imagem 
somatopsíquica de si mesmo. Funcionará então por sua sintonia com o bebê como um 
espelho. Fornecerá para o bebê uma relação especular integradora, considerando-se a 
instância do imaginário, da relação dual, da confusão entre si e o outro. É no outro 
primeiramente que o sujeito se vê e tem a referência de si mesmo. 
A partir desse momento impõe-se, portanto, apresentar a importância da imagem e 
função especular na constituição do si mesmo, a partir da ótica de três autores psicanalíticos, 
tais como: Jacques Lacan, Donald Winnicott e Françoise Dolto. 
De acordo com Tania Kost ( 1995), 12 Jacques Lacan, utilizou-se das idéias de Henri 
W allon para ressaltar a importância das experiências realizadas com o espelho por Wallon, 
enquanto condição estruturante para o sujeito. 
1 2 KOST, Tania. O espelho de Wallon a Lacan. ln: Escola Brasileira de Psicanálise. A imagem rainha: as formas 
do imaginário nas estruturas clínicas e na prática psicanalítica. Rio de Janeiro: 7 Letras, 1995. 
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55 
W allon, que além de psicólogo era também médico, psicológo e filósofo, estudou o 
corpo e o modo, através do qual esse se representa: pela imagem e pela palavra. W allon 
pesquisou o comportamento não só de animais (patos, cachorros e chimpanzés), mas também 
de crianças frente ao espelho. 
Tais comportamentos podem ser descritos em três diferentes momentos. Num primeiro 
momento, o bebê, como ocorre com a maioria dos animais, confunde inicialmente o reflexo 
com a realidade, ou seja, tenta agarrar as imagens, procurando-as atrás do espelho. Em 
seguida, num segundo momento, vai compreender que o reflexo não é um ser real. E por 
último, por volta aproximadamente dos oito meses, passa a reconhecer-se ao espelho, 
demonstrando imensa alegria com as brincadeiras frente ao espelho. A integração de tais 
momentos continua a desenvolver-se até a consolidação da noção de individualidade, que em 
geral é alcançada, a partir aproximadamente dos dezoito meses em diante. 
Wallon conclui então que, para o sujeito possuir a representação final de si mesmo, 
que inclui a unicidade de seu corpo e do eu, é necessário que situe o eu exteroceptivo, 
constituindo-se portanto em percepção impossível de ser apreendida. Dessa forma apresenta a 
importância da relação especular no ser humano, nos primórdios de sua vida psíquica. Aponta 
como progressivamente a criança passa a diferenciar seu corpo da imagem especular, o que 
proporciona então a simultaneidade do nascimento do registro do simbólico e do eu. 
Foi então, de certa forma percebendo a importância dos relatos dos experimentos de 
Wallon e através destes que Lacan passa a ressaltar a função especular, nomeando então o 
momento de regozijo do bebê frente ao espelho, ( o que ocorre aproximadamente, por volta 
dos seis aos dezoito meses), como "estádio do espelho". 
Lacan ( 1949), 1 3 pautando-se nas experiências de W allon da criança frente ao espelho, 
as remete ao âmbito da Psicanálise, na medida em que introduz o inconsciente, o simbólico. 
Ao comparar o filhote de chimpanzé com o bebê humano, Lacan trata da questão da 
experiência de construção do eu. Diferentemente do animal, que perde o interesse diante da 
inanimidade, do vazio da imagem, o bebê demonstra um júbilo que traduz em verdade, um 
dinamismo libidinal que, simultaneamente, confere a emergência do eu, atribuindo-lhe um 
destino alienado. 
13 LACAN, Jacques. O estádio do espelho como formador da função do eu. ln: ----. Escritos. Rio de 
Janeiro: Jorge Zahar, 1 998 ( 1 949). 
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"Esse ato, com efeito, longe de se esgotar como no caso do macaco, no 
controle - uma vez adquirido - da inanimidade da imagem, logo repercute 
na criança, uma série de gestos em que ela experimenta ludicamente a 
relação dos movimentos assumidos pela imagem com seu meio refletido . . . " 
(LACAN, 1949, p. 96). 
56 
A experiência que o estádio do espelho releva é que o eu só se constitui a partir de um 
outro, e que esse outro é imagem. Em algum momento, diante do espelho, o bebê se vê 
captado por sua imagem, conferindo-lhe exterioridade e alteridade. A imagem especular, a 
captação que o bebê faz de si, através do reflexo de seu corpo no espelho, constitui-se como 
uma primeira forma, organizada no processo da constituição de sua subjetividade. 
O regozijo diante da gestalt oferecida através da captura da própria imagem 
despedaçada do corpo, promove um apaziguamento da desordem pulsional relativa ao estado 
de auto-erotismo. 
Portanto, importante contribuição da teoria lacaniana sobre o estádio do espelho, pode­
se dizer ser, a de função especular, através da qual o eu se constitui a partir de uma imagem, 
tendo portanto função estruturante. O espelho concede ao bebê criança a totalidade de seu 
corpo como uma exterioridade. Será através da imagem de seu corpo diante ao espelho, uma 
vitória portanto do bebê frente ao espelho, que este passa de uma condição de fragmentação 
libidinal, a uma certa unidade, na qual o eu se constituirá como objeto para a libido . 
Segundo Lacan, (p. 14) "O Eu nasce em referência ao tu" 1 4• A criança não se projeta 
em uma imagem, mas ao contrário, constitui-se por esta imagem: imagem especular de um 
outro, do qual se será para sempre dependente. 
Donald Winnicott, psicanalista inglês, anteriormente pediatra, é também um outro 
autor da Psicanálise e com sua sensibilidade, descreve a importância e o papel do rosto da 
mãe enquanto espelho e suas repercussões na vida adulta nos momentos do início da 
construção subjetiva do rosto. Afirma que: "no desenvolvimento emocional individual, o 
precursor do espelho é o rosto da mãe". (WINNICOTT, 1 975, p. 1 53). 1 5 
Winnicott reconhece que, o artigo de Jacques Lacan sobre o Estádio do Espelho 
( 1949), o influenciou. A função especular é detalhadamente descrita por Winnicott enquanto 
processo em seu artigo: "O papel de espelho da mãe e da farru1ia no desenvolvimento 
infantil". ( 1 975) 
14 LACAN, Jacques. O Seminário. O eu na teoria de Freud e na técnica da Psicanálise. Livro 2. Rio de Janeiro: 
Jorge Zahar 1 985 . 
15 WINNICOTI, Donald W. O brincar e a realidade. Rio de Janeiro: Imago, 1 975. 
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57 
Ao se perguntar o que vê o bebê quando olha o rosto damãe, Winnicott reporta-se à 
experiência da clínica com adultos, nos momentos em que esses remetem-se a fenômenos 
muito primitivos. Segundo sua ótica, o que o bebê vê, normalmente ao ver o rosto de sua mãe, 
é ele mesmo. Isto é, nas palavras de Winnicott: "a mãe está olhando para seu bebê e aquilo 
com o que ela se parece se acha relacionado com o que ela vê ali". (p. 154). Em outras 
palavras, a mãe olha para seu bebê e aquilo com o que ela fica parecida (a cara que ela faz) 
depende do que ela está vendo nele. Segundo Winnicott, não se pode considerar os momentos 
em que por algum motivo a mãe não possa reagir ao seu bebê. Porém nos momentos nos quais 
isso é possível, existem bebês que não recebem de volta o que dão: olham e não vêem a si 
mesmos. Conforme Winnicott, a capacidade criativa atrofia-se, e os bebês vão procurar outros 
meios para obter algo de si mesmos de volta, através do ambiente, como no caso de crianças 
cegas que necessitam ver-se refletidas por outros sentidos que não a visão. A apercepção 
impõe-se onde poderia ocorrer percepção, e o que poderia ter sido o início de uma "troca 
significativa com o mundo, um processo de duas direções no qual o auto-enriquecimento se 
alterna com a descoberta do significado no mundo das coisas vistas", ( 1975, p. 155) não 
acontece. 
Winnicott, ao que se pode interpretar, parece referir-se a mães essencialmente voltadas 
para si mesmas, rígidas em suas defesas, sem capacidade de adaptação às necessidades do 
bebê ou ainda a mães depressivas. 
Esse tipo de mãe talvez só reaja diante das dificuldades do bebê, ou quando esse 
comporta-se sendo interpretado como de modo agressivo, ou quando encontra-se doente. 
Nesses casos, segundo o autor, o rosto da mãe não é um espelho. O bebê acostuma-se então a 
olhar e não ser visto. E a apercepção, segundo Winnicott, toma o lugar da percepção, 
impedindo o que poderia ser o início de uma reciprocidade, de uma troca importante com o 
mundo, da criatividade. 
Segundo o mesmo autor, a mãe, ao desempenhar uma função de espelho, confere ao 
bebê o sentimento de si mesmo e de existência. Os primeiros encontros entre o bebê e a mãe 
trazem a possibilidade do estabelecimento de ser e de viver criativamente. "Quando olho, sou 
visto; logo existo" afirma Winnicott. (id. ibid., p. 157) 
Nesse mesmo artigo, Winnicott abre uma possibilidade para que se compreenda 
também a função especular do psicanalista. A imagem que o analista tem dos potenciais de 
seu paciente contribui para parte da imagem que o próprio paciente passa a fazer de si mesmo. 
A função especular, de modo geral, mas também no processo psicanalítico destina-se ao 
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58 
conhecimento de si mesmo, à aquisição e consolidação da identidade e à integração mental, 
por intermédio de outra pessoa. 
Segundo Winnicott ainda, quando a menina já na puberdade examina seu rosto no 
espelho, é para tranqüilizar-se em sentir que a imagem materna pode ali ser encontrada. Já as 
crianças cegas precisam sentir-se refletidas através de outros órgãos sensona1s, que não a 
visão. 
O autor, em última instância, aponta a função especular como vivência importante na 
percepção que o sujeito faz da realidade, da escopofilia, da criatividade e do senso estético. 
Ao descrever o papel de espelho da mãe no desenvolvimento infantil e suas repercussões na 
vida adulta, Winnicott aponta conceitos teóricos de grande importância. 
Françoise Dolto (1 992)1 6 psicanalista francesa, também desenvolveu importantes 
considerações a respeito de crianças em interação com espelhos. Em verdade, o fundamental é 
que a criança possa encontrar um "espelho de seu ser no outro". (Dolto, p. 1 21 ) O que 
preocupa a autora, é que uma criança, a qual faz falta a presença da mãe, ou de sua substituta 
ou seja, alguém na qual a criança possa refletir-se, que esta criança possa a vir "perder-se" no 
espelho. Dolto afirma que o olhar de um rosto humano é o primeiro referencial que alguém 
terá de "sua identidade-valor". (p. 1 34). 
O espelho faz com que a criança se observe como um outro que ela nunca encontra. 
Ela se vê, mas todo o seu desejo de se comunicar com o outro "morre" ali. Assim, o espelho 
propriamente dito, é o que menos importa. 
Toma-se necessário acrescentar à dimensão escópica o aspecto relacional, afetivo, 
simbólico que a criança possa ter, de suas experiências frente ao espelho. Se a mãe ou 
substituta dessa não estiver próxima espacialmente, a criança corre o risco de não "encontrar" 
a imagem de seu corpo, uma vez que não encontra sentido nessa imagem escópica. A criança 
só avalizará tal imagem escópica como sua, ao perceber desdobrada no espelho, a imagem de 
alguém que lhe seja significativo, uma vez que vê, lado a lado da sua, o outro. 
Ocorre, segundo a autora, quando a criança se vê frente ao espelho, uma primazia das 
pulsões escópicas, reconhecendo sua imagem do corpo, por um predomínio das pulsões 
tácteis, auditivas e olfativas. Para o bebê a visão que tem dessa criança frente ao espelho, não 
é conhecida ainda, uma vez que se encontra, segundo Dolto dissociada do entrecruzamento 
entre seu esquema corporal e sua imagem inconsciente do corpo. 17 
1 6 DOLTO. Françoise. A imagem inconsciente do corpo. São Paulo: Perspectiva, 1 992. 
1 i Imagem do corpo e esquema corporal encontram-se definidos a seguir c.f. 3 .2 : corpo, esquema corporal e 
imagem corporal. 
59 
A experiência do espelho provoca, segundo Dolto, um "buraco simbólico", no qual 
residem as questões das dificuldades e sintomas corporais, uma vez que poderá refletir a 
inadaptação da imagem do corpo e do esquema corporal. Só sua imagem do corpo não era 
suficiente para ser reconhecido pelo outro, nem para reconhecer-se. Este é um paradoxo : o 
"EU'' se suporta pela imagem do corpo, mas que, por sua vez, só se elabora através de 
castrações, a respeito das quais não se pode deixar de dizer que são "simbolígenas" . São 
chaves para a humanização . 
Por castrações simbolígenas a autora refere-se às interdições que são feitas à criança 
em condições de uma relação emocional afetuosa e rica de confiança recíproca. É importante 
também para que uma castração seja simbolígena, que a criança perceba que "o adulto é tão 
marcado quanto ela por esta proibição" (id . ibid . , p. 63). 
Continua a autora referindo-se às castrações "simbolígenas", que tais castrações são 
necessárias para que a criança possa compreendê-las e aceitar que a lei não se trata somente 
de uma lei repressiva, mas sim uma lei que a conduza à possibilidade de pertencer à 
civilização. 
Ou, em outras palavras ainda, que as castrações com o sentido que possuem em 
Psicanálise, da interdição da realização de um desejo, visto este ser "proibido" pelas regras da 
civilização, só serão compreendidas e significadas pelas crianças, se passarem pela 
linguagem, seja ela não verbal ou verbal. Linguagem que implica em signo, em simbólico, 
onde o sentido vai se fazer sobretudo pela questão do afeto, das identificações amorosas. Caso 
contrário, poderá servir à castração em seu sentido literal do termo, tornando o indivíduo 
"estéril", principalmente em sua singularidade e consequentemente em sua criatividade. 
A castração simbolígena permite o reconhecimento de uma separação mãe-criança, a 
qual se constitui no reconhecimento de uma alteridade. Embora ferida narcísica, será 
exatamente o que permitirá à criança reconhecer-se como um outro singular. 
A experiência do espelho pode trazer para a criança, a ilusão de um outro que ela não 
conhece, e que nunca conhecerá ou encontrará, e que ao invés de ter volume e temperatura 
própria, não apresenta nenhuma destas características e é na verdade, nas palavras de Dolto, 
"uma superfície plana e fria" . (id. ibid . , p. 1 26) 
As experiências com o espelho, apresentadas pelos teóricos da Psicanálise, quanto à 
construção da singularidade e subjetividade de cada um de nós, como não é difícil de se 
imaginar,constituem-se também em experiências significativas para os sujeitos desta 
60 
imaginar, constituem-se também em experiências significativas para os sujeitos desta 
pesquisa. Fazendo o elo com a reconstrução facial após sua desfiguração por acidente, pode­
se observar o seguinte. 
Logo após o acidente e no decorrer do processo cirúrgico de reconstrução, que deixa 
como seqüela o desfiguramento do rosto do paciente, uma das perguntas mais freqüentes tanto 
da farru1ia como em alguns casos também dos membros da equipe é sobre a opinião do 
psicólogo quanto a oferecer o espelho ao paciente, se este assim o desejar. 
Todos os pacientes entrevistados relatavam a vontade que sentiam de se verem ao 
espelho. Desconfiavam, pela intuição, através de percepções pela linguagem não-verbal, ou 
mesmo nas "entrelinhas" quando seus familiares e/ou a equipe temiam em lhe oferecer o 
espelho. Ou ainda, quando o solicitavam e obtinham respostas evasivas diante de suas 
solicitações. Vários deles relataram que de nada adiantava, uma vez que procuravam pela 
imagem de seu rosto em vidros de janelas, superfícies inoxidáveis de talheres e ou outros 
objetos capazes de refletir imagens. Dirigiam-se "escondidos" para locais nos quais pudessem 
se ver. 
"A curiosidade mata", mas ... "Impossível resistir" - disse uma paciente. Mas o 
desconhecido assusta, angustia. Esse era o temor dos familiares e da equipe: que o paciente 
não agüentasse ver seu rosto ao espelho. 
Assim, como a imagem e a função especular são fundamentais na construção do rosto, 
também passam a ser, por extensão, nos momentos de reconstrução do mesmo. Os pacientes 
anseiam por se encontrarem consigo mesmos novamente. Para tal procuram e querem olhar a 
imagem de seu rosto em reconstrução. 
Muito antes do espelho físico, procuram sua imagem no rosto da farru1ia e da equipe 
que passam, também, a representar espelhos para o paciente. 
A questão então, não é meramente permitir ou não permitir que o paciente se olhe no 
espelho. Até porque este, ao que se sabe, é um direito do paciente e pode constituir-se em 
abuso de poder interditar esse acesso. 
Entretanto, como aponta Nasio ( 1995, p. 19), existe uma diferença entre ver e olhar 
"A visão não é o olhar ... Não vemos coisas, vemos imagens". Na Psicanálise, o mundo que se 
vê e que importa é um mundo de imagens, as quais são captadas na relação direta eu-mundo. 
É o eu quem vê, e vê portanto imagens, as quais dimensiona à sua maneira. 
O que preocupa, portanto, é que o paciente, ao se olhar no espelho, possa não 
encontrar somente a superfície "plana e fria" apontada por Dolto e passe a interpretar 
61 
diretamente as imagens captadas como substâncias de seu eu, "perdendo-se" nessas imagens. 
Conforme Nasio ( 1995), na dimensão imaginária, (e é nessa dimensão que são captadas essas 
imagens), não há alteridade especular. 
O que vai de fato contar para todos, e para os sujeitos aqui referidos em particular, 
serão as imagens em que "seu eu se reconheça". (id. ibid. , p. 2 1). 
Para definir essas imagens, dentro ainda da perspectiva apontada por Nasio, este 
utiliza-se do termo idéias pregoantes, diferenciando-as daquelas que são usualmente vistas. 
Ele emprega o termo imagem-pregoante com a seguinte conotação: "em sua acepção 
psicanalítica de quando uma forma imaginária ... provoca o prazer de nos ajustarmos e nos 
reconhecermos nela. Chamamos pregnante a todas as formas que adquiram sentido para o eu" 
(ib. ibid. , p. 2 1 ). 
Para que as imagens adquiram sentido, (tomando-se então idéias pregnantes) será 
necessário que o eu as reconheça como parte de sua história vivida através de impressões ou 
sensações, através das identificações. 
Nesse reconhecimento existe então, a experiência da ilusão do encontro com o outro, 
assim como o objeto transicional de Winnicott, permite também tal ilusão, embora com 
características diversas. Sabiamente as crianças elegem como seus objetos transicionais, 
objetos que facilmente possibilitem a projeção e o encontro de elementos acalentadores 
afetivos. 
"Manter a ilusão, Dra. Sara, foi muito importante para mim". 
Essa frase foi dita por Maria, paciente de 32 anos de idade, nordestina, com ensino 
médio completo, funcionária de uma seguradora e que, estando ainda casada, mãe de três 
filhos passando por crise conjugal, resolveu sair "para se distrair um pouco" (sic) . Estava com 
um colega seu, mais novo, quando os dois sofreram grave acidente automobilístico. O rapaz 
morreu na hora e ela além de graves deformidades no rosto que praticamente a desfiguraram, 
ficou com traumatismos pelo corpo todo, impossibilitada em deambular, pois fraturou o fêmur 
e perdeu a visão de um dos olhos. 
A frase acima foi dita quando a paciente relatava que se sentia melhor cuidada 
atualmente (no Hospital de Ipanema). Essa paciente foi, primeiramente, atendida no Estado 
em que mora e no qual sofreu o acidente, local em que não havia um psicólogo. Dizia-se 
muito feliz por poder contar com uma psicóloga no hospital. Ela acreditava que isso era 
necessário e deveria haver em todos os setores dos hospitais - não só para os pacientes, mas 
também para orientar os profissionais de saúde quanto aos aspectos humanos dos cuidados 
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62 
um dos olhos. Estava no CTI, e sua cabeça e seus olhos encontravam-se envoltos por um 
grande curativo oclusivo, que impedia sua visão. Não sabia ainda que havia perdido a visão de 
um dos olhos. Em uma determinada passagem de plantão de equipe no CTI, ouve uma voz 
feminina - segundo ela, a de uma enfermeira - que diz: "Essa é a paciente que sofreu aquele 
acidente de carro, e que perdeu a visão de um dos olhos". 
"Dra. Sara", diz a paciente ao relatar o episódio em uma das entrevistas de rotina, 
"manter a ilusão naquele momento foi muito importante para mim. Me 
peguei principalmente com Deus. A senhora não acha que deveria haver um 
psicólogo nas equipes, principalmente para orientar as equipes quanto a 
essas coisas?" 
O que parece fundamental ressaltar nesse momento é o papel da ilusão principalmente 
como introduzida por Winnicott - como base fundamental do processo de maturação do 
sujeito na construção da experiência do sentido de sua própria existência e portanto do viver. 
E também, como apontada por Freud, por derivar-se essencialmente dos desejos humanos de 
proteção através do amor de um pai "todo poderoso, a fim de tornar possível suportar seu 
desamparo. 
Ilusão traz, de modo geral, a idéia de engano dos sentidos ou do espírito e que faz 
tomar a aparência por realidade e vice-versa. No dicionário de Psicanálise de Pierre 
Kaufmann et. ai. (1 996, pp. 159-60) 1 8 encontramos para ilusão a idéia da representação 
( Vorstellung) que, por assimilação, se produz em condições tais que não é captada no sentido 
do que é efetivamente percebido; toda experiência de logro de si mesmo é também chamada 
de ilusão. No sentido corriqueiro da palavra, também pode ser entendida como esperança. 
É no artigo de 1 951 , "Objetos transicionais e fenômenos transicionais" - Um estudo 
da primeira possessão não-eu, que Winnicott (1 978, p. 402) pressupõe uma área de ilusão 
importante para o indivíduo, sem a qual não existe "significado na idéia de uma relação com 
um objeto que é por outros percebido como externo a esse ser". 
Segundo esse autor, o bebê é capaz de conceber algo que atenderia à necessidade que 
se origina da tensão, da exigência pulsional. O bebê não sabe o que deve ser criado. É neste 
momento que a mãe se apresenta. Oferece o seio e seu impulso potencial de amamentar. A 
1 8 KAUFMANN. Pierre et. ai. Dicionário enciclopédico de Psicanálise : o legado de Freud e Lacan. Rio de 
Janeiro: Jorge Zalw. 1 996. 
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63 
mãe suficientemente boa, 19 a que se adapta segundo Winnicott às necessidades do bebê, 
oferece-lhe a ilusão de que existe uma realidade externa que corresponde à sua capacidade de 
criar. Para um terceiro que observa, a criançaperceberia apenas o seio que a mãe realmente 
oferece. Mas essa não é toda a verdade, o bebê percebe o seio, na medida em que um seio 
poderia ser criado exatamente ali e naquele momento. Não há intercâmbio entre a mãe e o 
bebê. Psicologicamente, o bebê recebe de um seio que imagina fazer parte dele e a mãe dá 
leite a um bebê que é parte dela mesma. Então a idéia de intercâmbio baseia-se numa ilusão. 
Esta área de ilusão é formada a partir do uso do objeto transicional e dos fenômenos 
transicionais. 
Por "objetos transicionais" e "fenômenos transicionais" entende-se como definido por 
Winnicott aqueles que designam 
''a área intermediária de experiência entre o polegar e o ursinho, entre o 
erotismo oral e a verdadeira relação de objeto, entre a atividade criativa 
primária e a projeção do que já foi introjetado, entre o desconhecimento 
primário de dívida e o reconhecimento desta". (WINNICOTI, 1 978, p. 390) 
Ou ainda em outra passagem de uma de suas obras, "A Natureza Humana" 
( 1 990[ 1 97 1 ]), refere-se a esses objetos como os objetos e fenômenos que permitem ao bebê 
explorar um mundo ilusório, o qual não é nem realidade interna, nem fato externo e através 
dos quais os bebês tem controle mágico sobre o mundo. Esses objetos e fenômenos que 
permitem tal tipo de experiências, Winnicott chamou então de "transicionais", e às técnicas 
empregadas em tais situações de "fenômenos transicionais". 
A ilusão pertence portanto à área intermediária da experiência pertencente tanto à 
realidade externa quanto à interna, e será experimentada ao longo da vida através da família, 
da arte, da religião, do viver imaginário e do processo criativo. Ao objeto transicional não 
cabe a indagação entre o que foi concebido pelo sujeito e o que foi apresentado pelo mundo. 
A capacidade da mãe em adaptar-se às necessidades do bebê é fundamental para a 
ilusão de que o mundo pode ser criado a partir da necessidade e da imaginação e que aquilo 
que ele cria existe realmente. Assim, para Winnicott, tudo o que é objetivamente concebido já 
foi subjetivamente conhecido. O intermediário será tudo que se der entre a fantasia e o fato 
objetivo real. 
1 9 É considerada aqui como mãe suficientemente boa aquela que "começa com uma adaptação quase completa às 
necessidades de seu bebê. e, à medida que o tempo passa, adapta-se cada vez menos completamente, de um 
modo gradativo. segundo a crescente capacidader do bebê em lidar com o fracasso dela". (Winnicott. 1 975. p. 
25). 
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64 
Portanto, a área intermediária da qual fala Winnicott é a área entre a criatividade 
primária e a percepção objetiva que se baseará no teste da realidade. Os fenômenos 
transicionais representam os primeiros momentos do uso da ilusão, os quais são fundamentais 
na idéia de uma relação com um objeto que é por outros percebidos como externo. 
O objeto transicional faz parte exatamente desta área de ilusão e parece ser um pacto 
estabelecido - o de não indagar sobre a dúvida que reside entre o que foi concebido pelo 
sujeito e o que foi apresentado pelo mundo exterior. O objeto transicional será, 
paulatinamente, descatexizado, na medida em que o social e o cultural ganham valor. Os 
objetos e fenômenos transicionais pertencem ao domínio da ilusão, que está na base do início 
da experiência humana. 
Fundamental, será a tarefa por parte da mãe de desiludir seu bebê. Entretanto, sabe-se 
o quanto a ilusão é importante para que o bebê possa desiludir-se. Quando a tarefa da 
desilusão ocorre sem maiores percalços, pode-se então falar nas frustrações as quais 
denominam-se e podem resumir-se, na palavra desmame, "weaning" em inglês. Ou seja, ir 
acostumando-se a ... Portanto o desmame, constituir-se-á sempre num processo. Um processo 
sem fim ... Assim sendo, a tarefa de aceitação completa da realidade nunca termina, sendo que 
nenhum ser humano apresenta-se livre de relacionar realidade interna e externa em 
determinados momentos . . Encontra-se exatamente nessa área intermediária, o alívio para 
algumas das angústias e aflições do sujeito. 
Assim, a ilusão é extremamente necessária. Realidade externa e interna e áreas 
intermediárias servem como alívio dessa oposição e permanecerão para sempre necessárias ao 
sujeito. 
Destaca-se que a ilusão formada a partir dos fenômenos transicionais, e que constitui­
se numa área intermediária do "de dentro para fora", do "de fora para dentro", é fundamental 
não só a reconstrução física de grandes traumas da face, como a de grandes intensidades e 
extensão do ponto de vista psicológico. 
Como todas as pessoas, em determinada manhã, ao acordarem podem olhar-se ao 
espelho e dizer: - "nossa, hoje estou horrível" e ao realizarem no dia seguinte, o mesmo gesto, 
dizer - "nossa, hoje estou ótima", os pacientes também tentam encontrar uma imagem de um 
rosto que possam reconhecer como seu. Um rosto que pertence a um entre, ou seja flutua num 
espaço reconhecido como transicional. 
65 
A idéia dessa pesquisa, é a de que a construção subjetiva do rosto se dá por inúmeros 
caminhos e etapas, mas que identificação, ilusão, fenômenos transicionais e função especular 
têm participação fundamental nessa construção. 
Assim é possível a um rosto ser reconstruído, uma vez que a cada manhã todos o 
constroem e o destroem. 
3.2 - Corpo, esquema corporal e imagem corporal 
O rosto existe enquanto parte de um corpo. Refletir sobre o corpo e como se 
chega à idéia de corpo se impõe. Pensar sobre a construção psíquica do esquema 
corporal não é tarefa fácil. Muitas são as idéias e interpretações teóricas existentes a 
respeito de como são construídos o esquema e a imagem corporais, ou melhor, sobre 
como é construída a imagem que cada um tem a respeito de seu corpo e de si mesmo. 
Cada parte, portanto, indica a complexidade de tal construção e, ao mesmo tempo, a 
subjetividade e singularidade presentes no processo. 
Levar o dedo à boca, dentro do útero matemo, é um gesto que se sabe corriqueiro do 
bebê humano. Confirmado pelos avanços tecnológicos através de exames de ultra-sonografia 
e outros mais sofisticados ainda, o gesto é significativo. No entanto, não se pode afirmar que o 
bebê saiba o que é um dedo, e se este é o seu dedo e, ainda, se o que faz nesse momento é 
levá-lo à sua própria boca. Certamente que não, pelo menos dentro do que se convenciona 
saber, ter consciência do conceito de dedo, de boca e do ato de levar o dedo à boca; através 
destes exemplos já se pode antever quantas peculiaridades devem ser consideradas para uma 
aproximação da idéia e da definição da construção da imagem corporal. 
A Psicanálise, por ser uma ciência que se destina sobretudo ao entendimento do 
sujeito, deve acompanhar, passo-a-passo, a evolução e os avanços alcançados por outras 
disciplinas. Conforme vem sendo demonstrado ao longo deste trabalho, o diálogo com 
diversas disciplinas é fundamental também para que a Psicanálise não se "cronifique" . 
Nesta perspectiva interdisciplinar, a subjetividade abarca uma crescente noção de 
complexidade. Neste capítulo da Tese, propõe-se um passeio por algumas outras disciplinas, 
trazendo o pensamento de vários autores acerca do corpo e da construção de nossa imagem 
corporal, com o objetivo de oferecer um contraponto às idéias mais atuais da Psicanálise sobre 
o tema. 
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Costuma-se dizer que tudo tem uma história. A idéia então é começar por apresentar o 
pensamento de autores que se dedicam a pensar e escrever as histórias, portanto, os 
historiadores. Henrique Oliveira ( 1997)2°, em sua resenha, mostra o quanto é ingênuo e 
impossível pensar um corpo "biologicamente pronto e imune a qualquer investimento 
cultural" (p. 530), uma vez que o corpo será sempre mutante e estudado na dependência do 
entrelaçar-se de várias relações possíveis e diferentes entre si. 
Portanto, continua o mesmo autor, estudar o corpo implica na visão de diferentes 
olhares do saber, por ser formadonas mais diversas práticas, dos diversos lugares e contextos. 
Assim, é possível falar sobre corpos submetidos a castrações, amputações, incisões e 
deformações realizadas por povos do passado ou ainda por praticantes de tradições religiosas, 
tribos indígenas, ou ainda nos "plastificados" de nossa contemporaneidade. Milhares de 
mulheres e atualmente alguns homens, em proporções cada vez maiores, buscam a perfeição 
do ideal do belo, através de cirurgias estéticas bastante sofisticadas. 
O mesmo autor vai mostrar ainda que, contrariando também o suposto "natural", tem­
se atualmente os transplantes, a inseminação artificial, a "barriga de aluguel", as próteses e 
orteses, os corpos rigorosamente trabalhados e "sarados" em sofisticadas academias de 
ginástica, os corpos tatuados e cheios de "piercings" e ainda, quem sabe, a possibilidade de 
clones humanos. 
A noção de um corpo único e imutável, para o autor, se existiu em algum momento, 
não é mais absoluta e está na dependência das diversas subjetividades, a cada dia, mais 
efêmeras e ultrapassadas. 
É com certo temor que o autor apresenta algumas possibilidades como já bem 
próximas. Se é possível trocar de coração, será também possível trocar de cérebro? E se 
houver tal condição já no código genético? Que preço, pergunta Oliveira, pagar-se-á se por 
tudo isso? Por último, afirma o autor, é possível que o próximo medo e preço já não seja 
morrer, mas "permanecer vivo graças a um corpo que já não se saberá mais se é humano" . 
(id. ibid. , p. 533) 
Denise Sant' Anna,2 1 em seu artigo sobre "O corpo entre antigas referências e novos 
desafios" ( 1997), apresenta o crescente interesse pelo tema entre disciplinas tais como a 
história, a antropologia e a sociologia, a partir da década de sessenta. O corpo extrapola, a 
20 0LIVEIRA, Henrique Luiz Pereira. Dos limites do corpo ao corpo sem limites. Cadernos de su�jetividade 
São Paulo: EDUC. vol. 5, no. 2. 1 997. 
21 SANT'ANNA Denise. O corpo entre antigas referências e novos desafios. Cadernos de subjetividade. São 
Paulo: EDUC. vol. 5. no. 2, 1 997. 
67 
partir daí, os limites da biologia e da liberação do corpo. Estes vêm em conjunto com uma 
nova forma de alienação, típica da sociedade de consumo em crescimento. Entretanto refere a 
autora, como foi a partir de Foucault que, através de seus estudos sobre a vida privada, 
tomou-se possível perceber-se como as várias condutas, dentre elas os cuidados corporais 
propostos pela medicina e pela moda, possuem uma historicidade marcada por uma época. 
Através das análises de Foucault, a partir dos trabalhos em que trata das instituições - escolas, 
prisões, hospitais, familias, entre outras - as relações humanas, sociais, passam claramente a 
serem vistas e compreendidas como práticas sociais que regulam as ações, sentimentos, 
preferências, aparências, o que inclui até mesmo a fisiologia e a anatomia. O historiador 
passará, então, a se questionar sobre o que é o conceito de "natural". 
O corpo por sua vez, poderá ser entendido como um produto social e não mais 
"natural", principalmente pelas sociologia e medicina. 
Portanto, segundo a autora, não se deve temer as novas produções científicas e 
tecnológicas, principalmente as laboratoriais, industriais e hospitalares mas, ao contrário, 
somente ao considerá-las, será possível uma proposta ética sobre a vida humana, relativizando 
"nosso fascínio ou nossa aversão perante a apregoada mistura entre natureza e cultura" (id. 
ibid. , p. 283). 
Por outro lado, sabe-se que uma das questões contemporâneas da Psicanálise é a de 
como incluir o corpo nesta disciplina. Sabe-se que a vida psíquica nasce a partir de processos 
corporais, de contatos afetivos e dos cuidados proporcionados ao bebê por intermédio de seu 
corpo, mas permanecerá para sempre a idéia desse corpo representado. 
Segundo a Psicanálise no início não existe, para o bebê, diferenciação entre o externo 
e o interno. Pode-se pensar numa predisposição inata para a necessidade de tal discriminação. 
No entanto, esta só se realizará totalmente no relacionamento com o outro, em geral, e de 
início, a mãe. Os sentimentos de confusão fazem parte dessa etapa inicial do 
desenvolvimento. Os estímulos externos e internos não se diferenciam. Só reconhece sua 
própria experiência. Possui a fantasia de que o seio matemo é parte de si mesmo. 
Será aos poucos que tal diferenciação se apresentará. Em geral, como já mencionado, 
o bebê possui a vivência de ser um com a mãe e/ou substituta desta. Tal fato deve-se, 
provavelmente, à imaturidade neurológica e psíquica em que nasce o ser humano. A 
organização da sensação de caos por parte do bebê, realizar-se-á através das respostas da mãe 
às suas solicitações e comunicações. 
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O investimento maciço no corpo do bebê torna-se o sustentáculo da vida psíquica e o 
protetor da vida biológica. Os registros mnêmicos procedentes desses primórdios da 
constituição do psíquico permanecerão para sempre sobre a forma de narcisismo corporal. Tal 
expressão abarca u,ma situação complexa e articulada que compreende: o esboço da 
representação corporal, da imagem de si mesmo ainda em fase de integração, a concepção do 
corpo como objeto primeiro (no sentido de objeto de relação, visto como exterior ao sujeito) 
capaz de obter satisfação e prazer, mas também capaz de provocar decepções e frustrações. 
A dicotomia presente entre o corpo enquanto representante material do sujeito e como 
objeto de investimento do ego permanecerá para sempre. O corpo é a sede privilegiada na 
qual se inscreve o narcisismo no começo da vida, e continuará a merecer para sempre os 
investimentos pulsionais, como também a atenção da consciência. Assim, no psiquismo, a 
representação do corpo se inscreve, no mínimo, a partir de dois aspectos particulares. O 
primeiro deles diz respeito ao conjunto de sistemas biológicos, e é detentor de uma certa 
autonomia frente ao indivíduo, uma vez que se encontra submetido a leis fisiológicas. Mas 
ainda, num segundo aspecto, como objeto psicológico, representante do sujeito e de sua 
estória, sede dos investimentos objetivos e instrumento de interação social. 
Biólogos e neurocientistas em especial também vêm considerando e estudando as 
estruturas psíquicas, numa tentativa de aproximação e comunicação entre as disciplinas. 
Apesar da contemporaneidade da questão, tal idéia de certa forma sempre foi 
intrigante para Freud. A relação entre o fisico e o psíquico está presente em toda sua obra. 
Levando-se em consideração sua formação de médico, neurofisiologista, Freud nunca 
descartou as relações e correlações entre os registros fisico e psíquico. Ao contrário, 
preocupava-se justamente com as mesmas . 
Freud22 integra corpo e mente quando define pulsão como instância limítrofe entre o 
psicológico e o orgânico. Afirmava que através de funções vitais e somáticas como a nutrição, 
é que a criança poderá experimentar uma satisfação não somente derivada da satisfação da 
saciedade da fome apesar de encontrar nela seu apoio. A pulsão, que se apoia no biológico, e 
a ordem somática seguirão juntas a partir daí. Desse modo, a integração corpo-mente 
acontece, na medida em que, segundo Freud "uma pulsão aparecerá como uma medida de 
exigência feita à mente no sentido de trabalhar em conseqüência de sua ligação com o corpo" 
(FREUD, 1915, p. 142). Este, libidinal segundo Borges (1995), imporá ao sujeito o aflorar de 
sentidos e maneiras singulares de viver com o mesmo. 
22 FREUD. Sigmund. Os instintos e suas vicissitudes. ln : ESB. Vol. XIV Rio de Janeiro: Imago, 1 974 ( 1 9 1 5) . 
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Continuando a reflexão sobre a integração corpo-mente encontra-se também dentro 
dos ensinamentos de Freud ( 1923, p. 4 1), como mencionado anteriormente, a idéia que o ego 
é "antes de mais nada um ego corporal" . Em seu texto "O Ego e o Id" ( 1923) apresenta a idéia 
que o ego faz parte do id, mas diferencia-sedeste através do contato com o mundo externo. O 
id caracteriza-se como o local das pulsões, do biológico, onde o ego tira sua energia e investe 
nos objetos. Tendo como núcleo o sistema perceptivo, ou seja, aquele sistema que fica 
diretamente em contato com o mundo externo e portanto com a superfície do id, o ego surge 
então como a diferenciação dessa superfície. Como parte do id, o ego torna-se inconsciente e 
reservatório de impulsos psíquicos-somáticos internos, abrangendo ainda o sistema perceptivo 
consciente. O ego vai tornar-se também o local onde se dá a percepção de sensações tanto 
internas, quanto externas, ou seja, o próprio corpo. Assim Freud descreve o ego como uma 
entidade de superfície, diferenciada do id, pois torna-se também a projeção de uma superfície, 
como também já mencionado anteriormente, na medida em que a pele (superfície do corpo) 
representa o local onde interagem sensações internas e externas. Dessa forma, é possível 
chegar-se a uma idéia de corpo, ou seja, à imagem corporal que cada um tem de si mesmo. O 
ego faz representações do corpo. Ou ainda nas palavras da escritora americana Erika Jong: 
Num capítulo dedicado aos milagres da cirurgia plástica, a autora revela a 
resistência que teve ao bisturi, admitindo que sempre sentiu um descompasso 
entre ser intelectual e querer ser bonita. Sentia que não podia ser as duas 
coisas: "Como uma jovem bonita tentei esconder minha beleza sob a 
gordura, depois sob uma anorexia desenfreada. Odiava meu corpo. Odiava-o 
gordo. Odiei-o magro. Magra era virginal, gorda era desleixada, e eu 
oscilava entre esses dois pólos, insegura quanto a minha aparência e quem eu 
era". Erica confessa que acabou capitulando: "É claro que não há cicatrizes 
visíveis porque elas estão todas dentro de mim. Meu rosto parece 
irrepreensível. A minha alma está toda costurada". (JONG, 200 1 , p. 1 ) . 
Paul Schilder ( 198 1) foi, sem dúvida alguma, um dos grandes estudiosos sobre a 
imagem do corpo. Com formação nas áreas médica e filosófica utiliza-se da fenomenologia, 
da psicologia da gestalt e da Psicanálise para apresentar uma aproximação entre a realidade 
biológica do corpo e a idéia da imagem corporal que cada um possui de si mesmo. 
Segundo Schilder ( 198 1 ), a imagem do corpo é constituída através da integração de 
contribuições psicológicas, anatômicas, sociológicas e principalmente afetivas, tendo como 
centro a percepção. 
Do ponto de vista fisiológico, o esquema corporal forma-se através da percepção, 
pelas sensações que vão agir no corpo e provocar uma experiência, ou seja, uma reação no 
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organismo como um todo. O contato com o mundo externo produz sensações, impulsos, 
memórias que serão integradas no nível cortical. 
Desse modo, a imagem do corpo apresenta-se como uma unidade que é fornecida 
através da integração de sensações e das diversas contribuições, constituindo-se não em uma 
gestalt no sentido utilizado por Wertheimer, Koffka e Kõhler, mas na produção de uma forma. 
Não há dúvida, segundo Schilder, que este processo de estruturação só é possível quando 
relacionado intimamente com as experiências a respeito do mundo. 
Schilder ( 198 1) apresenta, em seu livro, várias experiências que desorganizam a 
unidade do corpo. Afirma que a posição normal, ereta e de frente, está profundamente gravada 
na nossa mente. Através de experimentos de Ross, sobre a percepção da face quando os olhos 
estão fechados, ele conclui que se pode ver o próprio corpo, da mesma forma que é possível 
representar-se objetos externos, e ainda representar o próprio corpo, como se representam os 
objetos externos. Para tanto, diz Schilder, cria-se um ponto mental de observação à frente e 
fora de si mesmo, e se é visto então como se fosse uma outra pessoa. Dessa forma passa a 
não existir delimitação entre o mundo externo e o corpo. 
A respeito da imagem corporal, Schilder enfatiza que, em seu resultado final ela é 
uma unidade, porém não-rígida, podendo portanto ser transformada. Sugere que a teoria do 
organismo poderia ser incorporada numa doutrina psicológica que compreende a vida e a 
personalidade como uma unidade. 
As experiências corporais como dores, doenças orgânicas permitem uma "descoberta" 
do corpo, com maior investimento psíquico dos órgãos locais afetados e poderão colaborar 
para uma alteração da estrutura libidinal. Da mesma forma que o corpo participa da formação 
da imagem e esquema corporal, o corpo atingido, doente poderá contribuir para a alteração da 
imagem já estabelecida. Tais experiências orgânicas produzem sensações que são integradas 
em nível cortical, mas já se pode perceber então que a imagem corporal não se resume ao 
fisiológico. Ao próprio fisiológico está subentendido o psíquico segundo Schilder 
"( . . . ) cada sensação só adquire sentido e significado em conexão com o 
corpo como um todo de modo que o esquema geral deveria ser: 1 ) 
percepção, 2) sensações, 3) reação de sensação com o corpo como um todo e 
4) relação da personalidade como um todo". (SCHILDER, 1 98 1 , p. 89) 
Assim, para o autor não há imagem do corpo sem personalidade, sem um eu corporal 
que constituirá o elo da com o mundo externo. Esse eu vai formar-se a partir de toda uma 
vivência psíquica que será primordial para o desenvolvimento da imagem corporal. 
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A maior parte dos teóricos da Psicanálise, que descrevem de modo mais sistemático a 
questão da construção da idéia que cada um possui à respeito de sua imagem corporal, diz 
respeito à construção de uma imagem do corpo, para que se chegue a uma imagem corporal, 
representação de si mesmo. 
Cabe aqui a seguinte indagação: por que imagem? 
Dolto ( 1 992), autora já anteriormente mencionada, diz ter escolhido falar de imagem, 
por um jogo de palavras. Divide a palavra imagem (image em francês) em três partes, a saber: 
I do termo identidade, ma, da primeira sílaba da palavra mamãe, que segundo Dolto as 
crianças pronunciam sempre precedidas do pronome minha em francês, "ma maman" e por 
fim "gf' que remonta do grego ao significado terra, à base ou ainda ao corpo, e também: eu 
(je) em francês, pronome pessoal da primeira pessoa do singular. Segundo ela, imagem pois, 
refere se a um substrato relacionado ao outro. E diz ainda, que a imagem inconsciente do 
corpo será uma imagem que desaparecerá com a imagem especular. A partir do momento em 
que a criança conhece a imagem de si mesma no espelho, não haverá mais imagem 
inconsciente do corpo, a não ser nos sonhos, nas afecções psicossomáticas, nos psicóticos e 
nos doentes em estados comatosos, a que permanecerá será a imagem do corpo. 
Para Dolto, a imagem inconsciente do corpo começa realmente no útero matemo. 
Segundo ela, a mais arcaica imagem que possuímos de nosso corpo é a imagem respiratória, 
que por sua vez é também uma das expressões mais puras das pulsões de morte. Durante o 
sono, reinam as pulsões de morte compreendidas como se colocássemos o desejo entre 
parênteses e então é a imagem respiratória que passa a prevalecer. 
Dolto ( 1 992) faz uma diferença entre esquema corporal e imagem corporal. Diz: 
"esquema corporal é em princípio, o mesmo para todos os indivíduos (da 
mesma faixa etária, sob o mesmo clima) da espécie humana. A imagem do 
corpo, em contrapartida, é peculiar a cada um, está ligada ao sujeito e à sua 
história. Ela é específica de uma libido em situação de um tipo de relação 
libidinal". (DOLTO, 1 992, p. 1 06) 
Assim, seguindo seu pensamento, o esquema corporal, é em parte, inconsciente, mas 
ao mesmo tempo, pré-consciente e consciente, enquanto que a imagem do corpo é 
essencialmente inconsciente. Esta última vai se constituir na integração das experiências 
emocionais do sujeito inter-humanas, repetidamente vividas através das sensações erógenas 
de eleições arcaicas ou atuais. Segundo a autora, é graças à imagem do corpo sustentada e em 
ligação com o esquema corporal do indivíduo, que este pode entrarem comunicação com um 
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outro, seja para manter contato ou para evitá-lo. Ainda com Dolto, será na imagem do corpo, 
suporte do narcisismo, que o tempo se cruza com o espaço e que o passado inconsciente 
ressoa na relação presente (id. ibid., p. 15). 
A imagem do corpo está ligada ao desejo e não somente à satisfação de necessidades. 
O esquema corporal tem como fonte as pulsões e o lugar de sua representação, é a imagem do 
corpo. A imagem do corpo organizar-se-á sempre no espaço inter-relacional. Não há solidão 
humana, para Dolto, que não se acompanhe da memória de um contato com um outro 
antropomórfico. 
Uma criança sozinha encontra-se presente para si mesma, através do fantasma de uma 
relação passada, real e abastecedora de afeto, entre ela e um outro, outro com a qual aconteceu 
na verdade uma relação que ela introjetou. Assim, é possível compreender-se como um bebê 
se engana através de suas "lalações", imaginando-se acompanhado pelos sons que ouviu de 
sua mãe "pensando" então não estar só, mas acompanhado de sua mãe. 
Para Dolto, será o momento narcísico que a experiência psicanalítica denominou como 
o "Estádio do Espelho", que permitirá à criança a integração motora para o sujeito do seu 
corpo próprio, integração essa que se ratifica na relação com o outro, permitindo a construção 
para a criança da imagem de seu próprio corpo. 
Dolto postula um "pré-EU", que se originaria na dialética da presença-ausência 
materna, pela memorização de tal dialética em linguagem, ou seja, quando a criança ouve, 
conhece a si mesma através de alguém que fala com ela. Será através de repetidas 
experiências de percepção, que a criança vai construir a especificidade de tal pessoa tantas 
vezes reencontrada. A imagem do corpo, portanto, elabora-se como uma rede através da 
linguagem materna, que vai conferindo à criança segurança. Tal rede personaliza, segundo 
Dolto, as experiências da criança, mas não a individualiza quanto ao seu corpo. Para a 
individualização - as cesuras, o desmame, a motricidade autônoma vão colaborar, porém não 
serão suficientes. O que realmente proporcionará à criança separar seu esquema corporal 
daquele de sua mãe e, por troca, ligar seu próprio esquema corporal em elaboração à sua 
imagem inconsciente do corpo, será a experiência do espelho, como já mencionado 
anteriormente. 
Porém, antes do espelho, a criança já pode se sentir ligado por suas referências 
viscerais: as sensações peristálticas de um tubo digestivo, no qual percebe o trajeto do 
alimento, percebendo que o que comeu pode lhe trazer. Mais adiante, pelo trânsito abdominal 
e expulsão da urina e das fezes, fará também ligações de si mesma. Tudo isso lhe permite, 
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apresentando ainda Dolto, um "continuum coeso", que os cuidados corporais maternos, 
através de sensações tácteis e olfativas específicas, delimitaram através da pele. 
Será através da imagem escópica do espelho que a criança construirá sua imagem do 
corpo. Para tal, é necessário ter a seu lado a presença de um outro, sua mãe ou substituto. Ao 
ver desdobrada no espelho a imagem de sua mãe e/ou pessoa significativa próxima à dela, 
avaliza então como sua, a imagem escópica - já que vê, lado a lado com a sua, a do outro. 
Até então, antes da experiência do espelho, a criança havia visto com seus próprios 
olhos, apenas a parte anterior de seu corpo: tórax, abdomem, membros superiores e inferiores. 
Os volumes de seu corpo, suas reentrâncias, rosto, pescoço, costas, os sentiu inicialmente 
pelas mãos de sua mãe e posteriormente por suas próprias mãos e por sensações de prazer ou 
de dor. Porém, não se conhecia nem como rosto, nem como expressividade própria. Sabia 
mostrar através das brincadeiras, que as mães adoram, onde ficava seu nariz, seus olhos, 
cabelos, etc. , mas não sabia que seu rosto era visível para o outro, como ela podia ver o rosto 
dos outros. Isto ela aprendeu pelo espelho. 
Seu próprio rosto, que o espelho lhe revela e que daí por diante será indissociável de 
sua identidade, integrado ao seu corpo, tórax, tronco e membros, permite à criança convencer­
se de que ela é semelhante aos outros humanos, um dentre eles. 
Antes, o único espelho seu era este outro que lhe podia fazer acreditar que ele era 
outro. Aí encontra-se a diferença entre um fantasma e um fato. No fantasma, a figura 
encontra-se ausente, já no fato, encontramos a presença. 
A partir da experiência do momento do estádio do espelho, a criança tem a descoberta 
de um rosto e um corpo inseparáveis. Descobre que seu rosto é visível para os outros, como é 
para ela o rosto dos outros. Não pode mais ser o outro que falta a seu desejo; não mais se 
confunde com a imagem fantasmática de si mesma. Tendo em vista a complexidade desta fase 
de auto reconhecimento e identificação do rosto como dimensionar o sujeito que teve 
traumaticamente seu rosto desfigurado? Deverá ser reconsiderado todo o processo - iniciado 
com o nascimento - aqui descrito? O que significa efetivamente ter e "perder" um rosto? 
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3.3 - O desfiguramento traumático do rosto 
De imediato o que se pretende é ressaltar como o desfiguramento do rosto é um evento 
traumático, impactante. e esfacelador da identidade - já que o fragmento implica na totalidade. 
Ao se abordar a questão do trauma, do sofrimento psíquico oriundo de graves 
deformidades da face, as quais, por sua vez, ocasionam o desfiguramento do rosto, o objetivo 
é o de apresentar referenciais teóricos que permitam trabalhar a situação traumática do 
desfiguramento do rosto na clínica relativa aos sujeitos desta pesquisa. A perspectiva será, de 
acordo com a proposta apresentada, a da Psicanálise. 
Laplanche e Pontalis ( 1992) apresentam o "trauma" ( ou traumatismo psíquico) como 
"um acontecimento da vida do sujeito que se define por sua intensidade, pela 
sua incapacidade em que se encontra o sujeito de reagir a ele de forma 
adequada, pelo transtorno e pelos efeitos patogênicos duradouros que 
provoca na organização psíquica. 
Em termos econômicos, o traumatismo caracteriza-se por um afluxo de 
excitações que é excessivo à tolerância do sujeito e à sua incapacidade de 
dominar e de elaborar psíquicamente estas excitações". (LAPLANCHE e 
PONT ALIS, 1 992, p. l 09) 
Sabe-se que a reação ao trauma está relacionada tanto com a parte ou a função do 
corpo afetada e ainda, se como conseqüência deste, toma-se aparente algum tipo de 
deformidade. 
Embora o investimento feito pelo ser humano em cada parte de seu corpo seJa 
completamente singular, 
"lesões traumáticas graves nas extremidades e na face costumam produzir 
reações psicológicas bem significativas principalmente quando resultam em 
desfiguramento e incapacidade funcional permanente". (ARNT, SPITZ e 
23 ZAIDHAFT, 200 1 , p. 494). 
Para a análise dos casos enfocados na pesquisa, o conceito de trauma psíquico tem um 
forte destaque, na medida em que oferece um espaço potencial clínico, pois levanta a questão 
do "traumático", permitindo descrever e analisar suas implicações na reconstrução da perda 
referencial do rosto exatamente por se tratar do rosto. 
23 ARNT. Roberto: SPITZ. Lucia; ZAIDTHAFT, Sérgio. Trauma - aspectos psicológicos e psiquiátricos. ln : 
FREIRE. Evandro (ed. Chefe). Trauma: a doença dos séculos. São Paulo: Atheneu, 200 1 . 
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Na obra de Freud24 a questão do "trauma" aparece em momentos distintos: 
primeiramente nos "Estudos sobre a Histeria" ( 1895), onde suas descobertas iniciais ligavam 
o conceito à teoria da sedução; a seguir sofre um deslocamento, quando seu papel na 
formação das neuroses é relativizado em favor do lugar das fantasias sexuais; assim, dois 
outros trabalhos exemplificam e marcam sua reformulação metapsicológica refletindo 
mudanças teóricas, apresentadas tanto em "Além do Princípio do Prazer" ( 1920) - com a 
introdução da pulsão de morte, tendo como um dos referenciais clínicos as neuroses 
traumáticas-, quanto em 1 926, no artigo "Inibições, sintomas e Ansiedade. Na última fase de 
sua obra, resgata elementos anteriores e ressalta a importância nas situações de desamparo, 
do relacionamento mãe-filho, do papel do ambiente e portanto de amparo, auxílio externo, 
dinâmica em que interagem fontes intrapsíquicas, intersistêmicas e ambientais relativas ao 
conceito de trauma. 
A experiência traumática, para Freud, constitui-se como algum fato, ou cena, um 
momento que não pode ser totalmente assimilado no instante em que ocorre. Apresenta, como 
exemplo de eventos traumáticos, as batalhas e acidentes, nos quais a visão e o testemunho 
seriam a narração não tanto desses fatos violentos, mas da resistência à compreensão dos 
mesmos. 
É bastante freqüente o relato dos pacientes, sujeitos desta pesquisa: "Não me lembro 
de nada da hora do acidente" , "Não sei como isso aconteceu" , "Não entendi nada do que 
havia acontecido" , "Só muito depois percebi que algo havia acontecido com meu rosto". Esse 
fenômeno é nomeado por Arnt, Spitz e Zaidthaft (2001, p. 495) como "reação aguda ao 
estresse" e inclui a amnésia total ou parcial do evento traumático. 
Tal reação, com freqüência, corresponde a um atordoamento, acompanhado de uma 
diminuição do campo da consciência, desorientação e dificuldades na atenção e compreensão 
de estímulos. Inclui ainda algumas vezes quadros de agitação e hiperatividade. Por volta de 
horas ou dias esse quadro, que freqüentemente ocorre logo após o evento, regride, na maioria 
das vezes espontaneamente. 
Entende-se, segundo os mesmos autores, que esta reação possivelmente ocorra como 
uma defesa, ao mesmo tempo que permite ao paciente enfrentar a situação, diminuindo 
pensamentos e recordações dolorosas do trauma, fazendo com que o sujeito continue a 
"funcionar" satisfatoriamente. 
24 FREUD. Sigmund. Estudos sobre a histeria. ln: ESB. Vai. II. Rio de Janeiro: Imago, 1 977 ( 1 895). 
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76 
Este fenômeno é uma das possibilidades de reação do trauma. Por outro lado, os 
autores acima mencionados apontam outras duas possibilidades para tal reação. A primeira 
delas é o transtorno de estresse pós-traumático, no qual alterações mais duradouras 
apresentam-se como uma "angústia que não cessa" (dito por uma paciente). Dentre os 
sintomas mais freqüentes, encontram-se sonhos e lembranças repetitivas a respeito do evento 
traumático, apatia, dificuldade de concentração, medos, insegurança, questionamentos a 
respeito de si mesmo, "quem sou", de sua imagem corporal, insônia, sintomas depressivos e 
em menor freqüência, idéias suicidas. 
A outra possibilidade diz respeito a um estado de angústia e perturbação emocional 
decorrentes de traumas físicos graves, nos quais o desempenho do paciente interfere no seu 
funcionamento social. "O sofrimento é acentuado e excede o que seria esperado da exposição 
ao estressor" (id. ibid. , p. 495) originando humor deprimido, ansiedade, preocupação, 
sentimento de incapacidade de adaptação ao cotidiano, transtornos de conduta, regressão, 
comportamento agressivo ou anti-social. Esses transtornos, em geral, aparecem um mês após 
o evento traumático e não costumam exceder seis meses, desde que diagnosticados e tratados. 
No uso da voz e do gesto, como expressão do vivido, a linguagem tenta cercar e dar 
limites àquilo que não foi submetido a uma forma de imediato. Maria declarou para a 
terapeuta: "Falar com a senhora é muito bom, Dra. Sara, ajuda a acalmar e compreender o 
que aconteceu comigo no momento do acidente, ajuda a organizar meus pensamentos" . 
Freud destaca a repetição constante, alucinatória e fantasmática, por parte do 
traumatizado, de tal cena violenta. A história que descreve o trauma, é dessa forma, a própria 
história de um choque violento, mas também de um desencontro com o real. Daí o surgimento 
de algo que lateja constantemente, sinalizando a perda e a dor como uma ferida aberta que não 
cicatriza. Como se sabe, o significado da palavra "trauma" em grego é ferida. Este é um dos 
motivos pelos quais o paciente sente necessidade de psicóloga. Sente que ela poderá cuidar 
da sua ferida psíquica. 
As feridas físicas e psíquicas que advêm do desfiguramento do rosto são enormes e, 
certamente, inimagináveis para quem não vivenciou a situação. Somente a partir da fala dos 
pacientes é possível aproximar-se de tais feridas e dores. Retoma-se aqui a fala já descrita de 
uma paciente, após a reconstrução de seu nariz. "Impossível imaginar o que é ter um nariz . . . " ! 
Ter um nariz está associado a poder abrir mão da respiração pela boca, e novamente 
voltar a respirar, sentir o ar entrar por vias normais. Ter um nariz, poder dele se utilizar para 
respirar, nesse caso está associado também ao momento do nascimento, no qual ocorre a 
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77 
mudança de uma respiração intra-sangüínea para uma respiração aérea; e ainda a reconhecer­
se e sentir-se como uma pessoa igual à maioria. É a reconquista da voz em sua emissão 
natural e não anasalada, superando a, até então, difícil compreensão de suas palavras pelos 
outros, quando o som passava pela boca. 
Na incapacidade de simbolizar o choque - a circunstância com a proximidade da 
morte e com o inimaginável - o movimento de constante repetição e retomo do sentimento 
originário, traz de volta o "a posteriori " da cena. 
A propósito, vale a pena resgatar as idéias que giram em tomo do termo freudiano 
nachtraglich, também denominado apres-coup em francês a posteriori, em latim, re­
significação retroativa de um evento, que se destaca como um dos componentes fundamentais 
da constituição do trauma psíquico em dois tempos, nas formulações da época do surgimento 
da Psicanálise. 
A concepção elaborada de início, sobre o papel do trauma na causação das neuroses, 
está centrada no conceito de traumatismo sexual precoce, que implica em um encadeamento 
temporal de fatos psíquicos. Num primeiro momento, a cena que produz o impacto vem de 
fora. A criança não compreende o sentido do evento, nem os meios utilizados para o mesmo . 
O papel da criança fica sendo portanto, o de alguém passivo, que desconhece, impotente e que 
consente o evento. Já num segundo momento, o do "a posteriori " , com o advento da 
puberdade, um incidente lembra por associação, o primeiro evento. Nessa altura, a criança, 
em função de seu momento intelectual e afetivo e também em função de seus fantasmas, 
reorganiza e intemaliza o cenário. A reativação dessa lembrança provoca um fluxo de 
excitação de tal intensidade, sendo impossível ao ego "dar conta" do mesmo, fazendo com 
que suas defesas "venham por água abaixo". Invade o aparelho psíquico, um afeto tão intenso 
que se toma impossível dizer algo. A fuga se apresenta como uma única saída. Uma vez 
constituída a neurose, os sintomas serão uma maneira de "encenar" o evento, apresentando 
aos espectadores uma representação da cena a qual estão relacionados. 
Pode-se dizer que o caráter sexual e a significação do trauma "a posteriori" 
constituem-se em referenciais importantes no tocante ao trauma de acordo com o pensamento 
de Freud. O traumatismo, qualquer que seja, deixará uma marca. Porém essa só terá efeito "a 
posteriori". Assim o evento só será traumático por estar associado a algo que o sujeito já 
conhece, a uma lembrança. O traumático é vivido a partir de uma fonte de excitação interna, 
assim o traumatismo externo somente repercutirá no sujeito enquanto relacionado a tal fonte. 
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Mesmo com a revisão de sua teoria do trauma, realizada em 1926 com "Inibições, 
Sintomas e Ansiedade", Freud mantém essa idéia ... "o perigo externo (real) deve também 
tornar-se internalizado, se se quiser que seja significativo para o ego" (id. ibid. , p. 193). 
Assim, o evento constitui-se em um evento traumático a partir do encontro entre o traumático 
e aquilo que o sujeito já conhece. 
Conforme enfatizam Arnt, Spitz e Zaidhaft (2001), aspesquisas mais recentes 
apontam a resposta subjetiva ao trauma como preponderante à gravidade do mesmo. Traumas 
que podem parecer diminutos para alguns, provocam em outros sujeitos graves transtornos 
psicológicos, enquanto efetivamente eventos traumáticos importantes parecem não contribuir 
para graves transtornos psicológicos ou psiquiátricos. Tudo será relativizado mediante a 
subjetividade do sujeito. 
Há que se considerar ainda a importância do efeito surpresa, do susto diante do evento 
traumático. Ao desenvolver o tema acerca das "neuroses traumáticas" em "Além do Princípio 
do Prazer" ( 1920), Freud distingue susto, medo e angústia, apontando-as como expressões 
utilizadas eventualmente como sinônimas com relação às situações de perigo. Angústia diz ele 
é um "estado particular de esperar o perigo ou preparar-se para ele" (p. 23), mesmo quando o 
perigo é desconhecido. Já para se utilizar a expressão "medo" é necessário que haja um objeto 
definido que seja temido: "Susto", é o nome atribuído ao estado em que fica alguém quando 
não se encontrava preparado para a situação de perigo, na qual, portanto, há que ser 
considerado o fator surpresa. 
A singularidade da reação ao trauma relaciona-se sobretudo àquilo em que o sujeito foi 
pego de surpresa, do susto pelo fato de não esperar pelo evento determinante do trauma, da 
relação com seu momento particular. 
Uma paciente em etapa de reconstrução do desfiguramento de seu rosto relata que, 
certa noite, tomou o maior "susto". Acordou com barulho de sirene de bombeiros e ao olhar a 
janela viu um tumulto formado. Visualizou dois carros do corpo de bombeiros, pessoas 
descendo a escada do prédio, gritos. Muito assustada, ligou para o síndico que tranqüilizou-a 
dizendo que havia sido um início de incêndio no prédio, o qual já tinha sido contornado. "Já 
pensou o susto?" Disse ela. A terapeuta disse a ela o quanto um "outro" susto acompanhava 
esse susto de agora. "Nem me fale ! " Responde ela à colocação feita pela terapeuta. "Logo 
agora que estou reorganizando minha vida" ! 
Conforme Arnt, Spitz e Zaidthaft (2001) alguns fatores podem estar associados a uma 
maior vulnerabilidade frente ao evento traumático: presença de trauma na infância, situações 
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estressantes, alterações recentes do cotidiano e dificuldades em encontrar suporte sócio­
farniliar. Por outro lado, relacionamentos favoráveis e afetivo relacionam-se à possibilidade 
de eventos traumáticos não causarem transtornos psicológicos para sempre. Cada sujeito 
constrói mecanismos de defesa próprios para lidar com as situações traumáticas. 
Durante o acompanhamento psicoterápico dos sujeitos da pesquisa, foi possível a 
escuta de referências ao passado. Urna paciente contou que quando nasceu era gêmea de um 
irmão que morreu aos quatro meses. O irmão nasceu primeiro e ninguém sabia que havia 
outra criança para nascer. De repente, conta a paciente, quando tudo já havia terminado, 
minha mãe chamou meu pai e disse que estava saindo "uma coisa, um negócio". "Era eu, 
pequenininha e roxinha" relata a paciente. Aí disseram: "Essa não veve", diz imitando a fala 
dos familiares que trabalhavam no interior do Brasil, na lavoura do algodão. Conta ainda que 
a avó, que era índia, colocou-a numa cumbuca com folhas e cuidou dela e aí pronto diz : 
" Vivi" . 
Urna outra paciente relata que sua mãe era "desligada". Deixou uma vez um fogo 
aceso quando a paciente era muito pequena e quase que ela poderia ter morrido queimada. 
Alguém viu a tempo e retirou-a da casa. Um outro paciente, conta que eram só dois filhos. Ele 
e uma irmã mais velha. "Minha mãe sempre deu mais atenção e gostou mais de minha irmã". 
Essas são algumas falas, dentre outras semelhantes, através das quais se pode escutar 
relatos de situações vividas, ao que parece, como traumáticas na infância de alguns pacientes. 
O significado atribuído ao evento traumático terá representações e significantes 
próprios a cada sujeito. Os pacientes narram suas próprias estórias. Nunca os encontros 
traumáticos produzem efeitos idênticos, exatamente por serem encontros. Uma deformidade 
mínima na pontinha do nariz pode ser vivida como uma catástrofe, levando em alguns 
momentos pacientes a configurações depressivas importantes. Por outro lado, grandes 
deformidades da face, que implicam na associação de fraturas múltiplas e graves traumas de 
partes moles e que promovem grande desfigurarnento do rosto, atingindo áreas funcionais 
relevantes como visão, dentição constituem-se em importante incentivo à reconstrução. 
Entretanto, todos os pacientes que se entrevistou lutavam pela reconstrução de seu 
rosto. Exigem-se a reconstrução. A desfiguração do rosto, esfaceladora da identidade que 
implica em um rosto que não reconhecem como seu, exige e impõe por si só a necessidade de 
reconstruir. 
Um paciente, "por não querer incomodar o pai", que estava dormindo no quarto onde 
estava seu capacete, saiu de moto sem o mesmo. Sofreu um grave acidente no qual teve 
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cortadas as cordas vocais, traumatismo craniano, três paradas cardíacas, insuficiência 
respiratória, permanecendo em coma por 45 dias. Em dez anos, a partir da data do acidente, já 
realizou sete cirurgias. Refere que a força maior para enfrentar essas cirurgias "vem do desejo 
de voltar a ser o que era" . Fiquei muito impossibilitado. Não podia me alimentar sozinho, 
não podia beijar (sofreu o acidente quando tinha 1 9 anos) meus dentes ficaram totalmente 
deformados. Precisava voltar a me reconhecer". 
O desfiguramento traumático do rosto, enquanto conseqüência de graves deformidades 
súbitas da face, inevitavelmente altera a imagem do corpo. 
A imagem do corpo, como já apresentado, se dá a partir de representações ( externas e 
internas) feitas pelo ego no corpo. O ego, ao fazer representações no corpo, "permite" que 
qualquer deformidade do corpo, que implique numa alteração da imagem do corpo, portanto 
numa perda, pode provocar um processo de luto semelhante ao da perda de um objeto. O 
esvaziamento do ego, se o sujeito possuir tendências ao luto patológico, deverá converter-se 
em depressão. (FREUD, 1 91 7[1 91 5])25 . 
Durante o acompanhamento psicológico dos pacientes, não se encontrou graves 
situações de depressão. A conservação da vida toma-se muito fundamental. Uma paciente 
relata que chorou ao saber que havia perdido a visão de um dos olhos, mas que estava tão 
preocupada em saber se no outro olho teria condições para enxergar ( o outro olho também 
havia sido afetado), que nem se preocupou tanto por ter perdido a visão daquele olho. Na 
verdade, o que tinha para comemorar era mais importante, segundo ela: a recuperação de 1 O, 
20% do olho para o qual havia esperanças, o que ela realmente conseguiu recuperar. 
Constata-se, portanto, que qualquer alteração da imagem do corpo e, sobretudo, do 
rosto implica em diferentes reações no próprio sujeito e nos outros. Conforme Juan David 
Nasio (1 996)26, o eu é o intérprete para a língua das pulsões. Quando as alterações das 
mesmas são moderadas, o eu pode traduzi-las em língua de emoções, de sentimentos de 
prazer e desprazer. No entanto, quando tratam-se de modulações extremas, essas tornam-se 
dor. O funcionamento psíquico regula a intensidade das tensões pulsionais, tornando-as 
suportáveis ao aparelho psíquico. A dor é o testemunho de um desregramento da vida psíquica 
que escapa ao prazer. Nas situações extremas, a dor não será somente a dor de perder, mas a 
autopercepção que o eu tem do transtorno interno desencadeado pela perda. Assim, a dor não 
25 FREUD, Sigmund. Luto e melancolia. ln : ESB. Vol. XIX. Rio de Janeiro: Imago, 1 974 ( 1 9 1 7[ 1 9 1 5 )) . 
26 NASIO. Juan-David. O livro da dor e do amor. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1 996. 
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é só a dor da perda, mas sobretudo a dor do caos interno das pulsões. Segundo Nasio (1996, p. 
22), é possível falar-se de uma "loucurapulsional". 
Diante dessa pulsional "loucura pulsional" é que entende-se que, sob o predomínio da 
pulsão de vida, voltar a reconhecer-se se impõe. Todos os pacientes anseiam e lutam por suas 
reconstruções. A "loucura pulsional" diante do desfiguramento do rosto traduz o que seria 
perder-se completamente de si mesmo. Diante desse risco, todas as energias pulsionais se 
reúnem. 
Nas situações extremas de graves deformidades da face e desfiguramento do rosto, as 
forças reunidas pelos pacientes impressionam. Durante o acompanhamento de um desses 
casos - aquele gravíssimo que estimulou a produção desta pesquisa - a terapeuta, ao chegar 
ao Hospital, defrontou-se com a seguinte indagação por parte de uma enfermeira. "A senhora 
é que é a psicóloga de X?" 
Diante da resposta afirmativa, a enfermeira exclamou "Como ela é forte, se fosse eu ( e 
apontando para sua própria testa, gesticula e diz) : se fosse eu, já tinha oh! (simulando a ação 
de dar um tiro na cabeça) . 
Apesar dos comentários feitos pelo senso comum, de que situações de desfiguramento 
dos pacientes são de grande desespero, luto e perda, tais como: "eu me mataria, não iria 
suportar tudo isso", estes, nunca foram encontrados no grupo de pessoas que realmente 
vivem o problema. A gravidade da situação é de tal ordem, que o próprio acontecimento 
traumático, em si, já é o "fundo do poço". Não há mais nada a perder. Assim o que se coloca 
para os pacientes, é salvarem o que permanece e ainda possuem, sobretudo a vida. 
Os pacientes não têm interesse em recordar melancolicamente o evento traumático e, 
realmente ultrapassam as expectativas. Como considera Freud ( 1920, p. 24), ao mencionar a 
neurose traumática, é mais provável que pessoas que passaram por situações de trauma não 
estejam interessadas em pensar nelas com freqüência. Os pacientes superam obstáculos. 
defrontam-se com inúmeras adversidades, mas não desistem de reconstruírem seus rostos. 
"Numa relação de forças sem saída, só uma resistência nascida das próprias 
fontes pulsionais de morte pode afrontar a ameaça de perigo mortal. Chamo 
este fluxo da pulsão de morte mais, individualista, mais libertário, de pulsão 
anarquista". (ZAL TZMAN. 1 994, p. 64)27. 
2; ZAL TZMAN. Nathalie. Pulsão anarquista. São Paulo: Escura, 1 994. 
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Segundo a autora, esse ângulo possível a ser considerado da pulsão de morte terá 
como objetivo abrir "uma saída vital" quando uma situação extrema se apresenta, situação 
que pode levar o sujeito à morte. 
As situações extremas, limites nas palavras da autora, existem. Alguns seres humanos 
a elas sucumbem, podendo inclusive desagregar-se. Outros a enfrentam, as ultrapassam. 
Utilizam-se da pulsão anarquista como alternativa para a possibilidade de manutenção da 
vida, para uma possibilidade de escolha, mesmo nas situações onde os limites fingem anular 
qualquer escolha possível. Ou melhor traduzido por uma paciente: 
"Depois o carinho, o amor de pessoas que são indispensáveis, vêm fazer 
parte de uma nova etapa que é a de não desistir jamais. CAMINHO SEM 
VOLTA/ESCOLHA SEM DESISTÊNCIA (grifado pela própria). "Estava 
folheando a revista e me chamou atenção a frase, que dizia: "Guerreiro é 
aquele que luta até o fim da vida e não só um dia" . . . "Acho que hoje tenho 
experiência suficiente para falar sobre o assunto e ainda complemento 
dizendo: que o verdadeiro guerreiro mesmo no fim, continua lutando". 
Nas situações de experiências - limite, - "relação entre a fragilidade das razões de 
viver e sua indestrutibilidade" (id. ibid., p. 65), a vontade de viver e a eliminação de 
possibilidades destrutivas, encontrarão suas forças na ameaça de morte. Só a pulsão de morte 
com sua energia desagregadora pode trabalhar contra as formas de vida estabelecidas e 
aprisionantes, contribuindo para renová-las. 
Como é maravilhosamente comum a todos os pacientes, observou-se uma valorização 
da vida, ou talvez melhor dizendo, valorização do fato de estar vivo. 
Sobre o tema, relatam ainda os pacientes: "No princípio há um deslumbre de estar 
viva, (respirando)" (grifado pela própria paciente, escrito num caderno pelo qual se 
comunicava com uma amiga e que entregou à psicóloga). 
Outra paciente conta que, em certa ocasião, após o acidente, estava no carro ao lado do 
marido que se encontrava alcoolizado. Insistiu para que ele a deixasse conduzir o carro, o que 
foi negado. Diz, então, que, a partir desse momento, teve certeza que iria se separar. Pensou: 
"Deus já me deu uma chance, não sei se me dará outra". 
Ou ainda em uma entrevista; o piloto de Fórmula I Alessandro Zanardi : "Estive muito 
perto de morrer. Quero agora viver com intensidade. Perdi as pernas, mas não a vida". 
Os pacientes passam a interrogar-se sobre suas participações nos eventos traumáticos e 
a se perguntar quais as implicações dessas vivências para suas vidas. 
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Há uma mudança quanto aos valores, de modo geral, segundo os pacientes. Respirar, 
andar, saborear os alimentos adquirem intensidade. Os valores humanos, as relações afetivas 
são resgatadas e ganham novos coloridos. São unânimes em afirmar: "Os amigos, aqueles que 
realmente se interessam pela gente, é o que verdadeiramente conta, é o que vale a pena". 
O confronto com a possibilidade real da morte, nas situações inusitadas pelas quais 
passam os pacientes, produz um acordar aterrorizante do que até aquele momento eram 
apenas fantasias referidas à morte de outros. Parece que o real irrepresentável da morte 
referente a si mesmo não pode ser processado, e justamente ele acaba impulsionando para a 
vida, num efeito "a posteriori". Há o "encontro" dialético morte - vida, construção -
desconstrução, sentido - disjunção de sentido, "criando uma pulsação que constitui o ser 
humano e o coloca permanentemente em crise, tornando impossível a permanência", segundo 
Lepold Nosek (2001 , p. 6) .28 
"O construído pede sua substituição na destruição, para dar conta da representação do 
momento seguinte" (id. ibid., p. 6) . Assim, aos pacientes a reconstrução de seus rostos se 
impõe soberana. A permanência da destruição "construída" é impossível, e assim a "dialética 
da vida" continua. hnpossível permanecer com um rosto "estranho". 
3.4 - Um rosto "estranho" 
"Estranhamente o estrangeiro nos habita: é a face escondida 
de nossa identidade ". KRJSTEVA 
Ao considerar tal afirmação, o que dizer quando esse "estrangeiro" não mais se 
esconde, mas ao contrário, aparece na face com toda sua força, provocando em algumas 
ocasiões sentimentos de rejeição e de exclusão. 
Frente à singularidade de cada um dos pacientes, aos quais se teve acesso durante a 
realização desta pesquisa, um traço comum foi possível ser encontrado: o constrangimento, o 
incômodo de estar com o rosto desfigurado, o sentimento de "estrangeiro", de exclusão, sendo 
esses sentimentos provocados, principalmente, diante do olhar dos outros. As pessoas olham, 
perguntam o que foi, como aconteceu-relatam os pacientes. Essa é uma atitude à qual todos os 
pacientes se referem. 
28 NOSEK, Leopold. O futuro da teoria psicanalítica. ABP Notícias, Rio de Janeiro, ano IV, no. 2, set. 200 1 . 
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As reações e os modos de lidar com tal situação, entretanto, variam de acordo com a 
singularidade de cada um deles. Alguns se utilizam de máscaras ( como as usadas em centros 
cirúrgicos) outros de lenços, toalhas ou simplesmente panos para protegerem, cobrirem, 
esconderem as áreas destruídas de seus rostos. 
Na crítica de Eliane Robert Moraes ( 1 999)29 sobre o filme "De olhos bem fechados de 
Stanley Kubrik, a certa altura, a colunista comenta sobre a presença da máscara nos ritos 
sexuais. Coloca que, "na medida em que o rosto representa por excelência o signo da 
individualidade, quem se mascara perde a identidade para tornar-se parte indeterminada de 
um mundo anônimo e impessoal". (p. 3) 
As máscaras, desde o teatrogrego, sempre foram utilizadas com tal fim, ou seja, o de 
não permitir o reconhecimento das identidades daqueles que as usam. O termo máscara em 
grego deu o equivalente latino personna, que vem a dar em português pessoa, personalidade e 
personagem. 
Mascarando-se, o indivíduo encobre a si mesmo e aos outros, isentando-se de olhares 
e juízos sobre sua pessoa. 
Segundo Dolto ( 1 992) as máscaras, os disfarces servem para que o sujeito se livre 
"dos rostos pré-genitais do desejo" que não passaram pela "castração humanizante". As festas 
sociais de grupo, nas quais os indivíduos se mascaram, estariam também a serviço de liberar 
pulsões recalcadas e que não foram totalmente sublimadas de acordo com éticas sociais. As 
máscaras e disfarces autorizam, portanto, ainda segundo a autora, uma catarse coletiva, 
desculpabilizante, de aspectos remanescentes de uma época onde provavelmente haveria 
incompatibilidade entre certas pulsões sexuais e o rosto humano. Segue a autora: "Ou o rosto 
humano ou direito ao sexo". (p. 1 32) 
Com a utilização de máscaras e disfarces, sentimentos de culpa, vergonha, 
inferioridade, ódio, desejos de ataques e destruição, considerados monstruosos, vergonhosos e 
indesejáveis tanto por si mesmos, quanto pelo social, ficam assim encobertos e protegidos de 
possíveis ataques e humilhações provenientes de outros. 
Figuras estranhas, fantasmas e monstros são companheiros do ser humano desde muito 
cedo. Ou ainda, nas palavras de Salomon Resnik 2000, p. 22)3°: "a mãe "monstruosa" (da 
qual o pai é um prolongamento) é objeto de projeção de sentimentos persecutórios e hostis 
29 MORAES, Eliane Robert. De olhos bem fechados. A Folha de São Paulo. Caderno Mais. São Paulo, 5 de set. 
1999. 
30 RESNIK, Salomon. La fonction du pere et la mere archaique. Topique: revue freudienne. [S.l . : s.n . ] . no. 72, 
2000. 
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muito fortes na criança". A curiosidade infantil, a cena primária arcaica, a avidez e os 
sentimentos de destruição ameaçam a criança e passam a constituir-se num teatro imaginário 
constante. 
Como também aponta Tuckerman ( 1999, p. 95) os monstros, "estranhas" figuras em 
seu dizer, permeiam o imaginário humano desde sempre: É possível dizer que nasceram junto 
com a própria humanidade". A necessidade de estabelecer diferenças, alteridades relaciona-se 
com as próprias definições que os homens fazem acerca de si mesmos, a partir das 
representações de monstruosidade das diferentes épocas. 
Ou seja, "os monstros" são necessários para o estabelecimento de parâmetros. Dizem 
respeito, os monstros, não tanto ao que se é, mas do que se poderia ser ou, jamais vir a ser. 
Em última instância, nas palavras de Tucherman: "até que grau de deformação ( ou 
estranheza) permanecemos humanos"? (ib. ibid., p. 101) 
Frente ao seu desfiguramento, a sua vulnerabilidade, frente ao "monstro" que se 
sentem e ao qual se referem, os pacientes incomodam-se, ressentem-se e mascaram-se ou, no 
mínimo, fogem do olhar do outro frente a seu rosto "estranho". 
No artigo "O estranho" escrito por Freud em 1919, encontra-se toda uma série de 
idéias a respeito do sentimento de estranheza que ocorre em diferentes momentos, às 
diferentes pessoas. Segundo o autor, o tema do "estranho", não aparece com freqüência nos 
trabalhos que tratam a questão da estética. Para ele, tal fato deve-se à dificuldade que se tem, 
de modo geral, de lidar com aquilo que não seja considerado "belo, atraente e sublime" 
(FREUD, 19 19, p. 276).3 1 
Ao belo, atraente e sublime impõe-se a subjetividade. O belo desde a Grécia Antiga, é 
um modelo mimético com relação a natureza, refere-se à tentativa de imitação, à eternidade 
dos modelos de beleza, à auto-conservação, à manutenção de valores tradicionais. Já o 
sublime, pode-se dizer, relaciona-se a algo que é muito elevado, além dos limites de um 
entendimento possível, e por que não, à ruptura da auto-conservação, enfim à experiência da 
morte? 
O interessante em Freud é que ele junta as três categorias, colocando o atraente entre o 
belo e o sublime. 
Por atraente, pode-se entender aquilo que seduz, fascina, e portanto atrai, podendo ser 
compreendido também como o que aproxima. Contextualizando a reflexão no quadro dos 
pacientes com deformidades faciais tem-se que, com seus rostos desfigurados e destruídos, 
31 FREUD, Sigmund. O estranho. ln: ESB. Vol. XVII. Rio de Janeiro: Imago, 1 972 ( 1 9 1 9). 
86 
eles perdem, seu ponto de atração. Não sabem mais quem são, como são, nem para si 
mesmos, nem para os outros. "Esse é meu terceiro rosto, Dra. Sara", exclamou Maria, após 
submeter-se a uma terceira etapa de reconstrução de sua face na qual, entre outros 
procedimentos, foi colocada uma prótese ocular, no local onde havia apenas pálpebras 
fechadas. Nesta mesma cirurgia seu lábio inferior foi reconstruído. Por último, a paciente, por 
sugestão do cirurgião, havia realizado um novo corte de cabelo, e experimentava também 
utilizar-se de óculos. Este detalhe importa na medida em que, pela experiência do cirurgião­
chefe da equipe, existe grande melhora da imagem e da auto-imagem do paciente quando 
estes utilizam-se de óculos. 
Curiosamente, os pacientes tomam-se, pelas deformidades, pela desfiguração que 
apresentam, pelo "estranho" de seus rostos, fascinantes, um verdadeiro ponto de atração para 
outros. 
Retomando a Freud, quando diz que: "o estranho é aquela categoria do assustador que 
remete ao que é conhecido, de velho, e há muito familiar". (id. ibid., p. 277) tem-se que, para 
chegar a essa idéia, ele percorre os diversos significados da palavra "estranho", inclusive em 
diferentes idiomas, mostrando significados opostos da palavra que vão coincidir entre si. 
Continuando a discorrer sobre o tema percebe que algo de antigo retomará como novo 
e assustador, ao que conclui: "algo tem que ser acrescentado ao que é novo e não familiar 
para tomá-lo "estranho". (id. ibid., p. 277) Completamos o sentido com a definição de 
Schelling, (apud FREUD, 19 19, p. 282): "Unheimliche (estranho) é tudo aquilo que deveria 
ter permanecido oculto mas veio à luz". 
Nesse momento permite-se, por associação, pensar o "estranho" como tudo aquilo que 
foi recalcado e que retoma provocando sentimentos de estranheza. " . .. O recalcado reaparece 
nos domínios da imagem-própria do eu, perturbando de forma decisiva as certezas do sujeito 
quanto a si mesmo" . (PEREIRA, 1 999, p. 50) 
Segundo Freud ainda, todos os temas relativos à estranheza remetem-se ao fenômeno 
do "duplo", 
"pelo fato de que o sujeito identifica-se com outra pessoa, de tal forma que 
fica em dúvida sobre quem é o seu eu (self), ou substitui o seu próprio eu 
(self) por um estranho. Em outras palavras, há uma duplicação, divisão e 
intercâmbio do eu (self)". (FREUD, 1 9 1 9, p. 293) . 
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À idéia do fenômeno do "duplo", segundo Freud, captada de modo abrangente por seu 
colega Otto Rank, associa-se uma segurança contra as ameaças de destruição do ego e da 
"negação do poder da morte". 
O primeiro registro de um "duplo" será o da mãe ou daquele que exerce a função 
materna. Nesses momentos iniciais de constituição do psíquico, não é possível ao ego, como 
Freud aponta, distinguir-se com segurança do mundo externo e de outras pessoas. Confusão 
de percepções de sensações, de sentidos, de imagens, de alternância entre insegurança e 
segurança, momentos de confusão entre vida e morte em última instância. Momentos iniciais, 
do percurso de um indivíduo que se registrarão sobretudo de início, pelas sensações, pelo 
corpo. 
Nada melhor do que a espontaneidade, da qual só as crianças são capazes, para 
traduzir essa confusão, para traduzir o "estranho" sobretudo diante da vida e da morte. 
Conta Maria, que certa vez foi a uma festinha de aniversário, e que uma criança 
pequena ao olhar para ela e para seu rosto muito deformado, perguntou à mãe: "Mãe, o que é 
isso? "Ela ficou assim, com essa cara, depois que ela morreu?" . 
Da morte, portanto, o ser humano não se livra nunca, mesmo quando vivo. Alguns 
depoimentos ilustram o tênue limiar entre ambas as instâncias. "É uma busca que não cessa, 
estamos constantemente num devir, construindo e desconstruindo o nosso Ser, num processo 
de vida e morte que está dentro de um mesmo ato que é viver". (TAVARES, 2000, p. 1).32 
Ou ainda: 
"Pretendo fotografar pessoas que morrem no carnaval. Entre a vida intensa e a morte 
há uma linha muito fina que me intriga porque estive muito perto da morte em Serra Leoa, na 
Etiópia, em Bagdá .. . " afirma Michel Comte, fotógrafo, em uma entrevista.33 
Com isto se quer dizer que da mesma forma que, para a boa harmonia e beleza da 
música são necessárias a alternância de pausas e ligaduras, também para o pleno 
desenvolvimento e integração do ser humano supõe-se ser necessária a "alternância musical 
de vínculos e separações" , de experiências ligadas à vida e à morte. (KISLANOV, 1993, p. 
28)34 
32 TA V ARES, Renata Zappa. Da dor de existir à alegria de viver. 2000 pg. 3. Trabalho de Conclusão de Curso. 
Departamento de Psicologia. Pontifícia Universidade Católica do Rio de Janeiro. 
33 COMTE, Michel. O Globo, Rio de Janeiro, 1 0 de fev. 2001. 
34 KISLANOV, Sara Angela. A importância do suporte emocional aos pais de bebês internados num CTI 
pediátrico: aspectos teóricos re práticos de um trabalho, 1983, 94fl. Dissertação de Mestrado em Psicologia da 
Personalidade. Instituto Superior de Estudos e Pesquisas Psicossociais. Fundação Getúlio Vargas, Rio de 
Janeiro. 
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' 
88 
O "duplo" que inicialmente tem como finalidade pennitir que o bebê se sinta seguro, 
protegido contra o aniquilamento, contra a morte e que é fruto do narcisismo primário, 
posteriormente segundo Freud, torna-se justamente o oposto, isto é, transforma-se em 
estranho anunciador da morte, passa a configurar um objeto de terror. 
A consciência, a capacidade de auto-observação e de auto-crítica, remanescentes de 
um narcisismo primário superado, de acordo com Freud possibilita um novo significado à 
idéia do duplo. 
Sentindo-se confusos com a imagem de seus próprios rostos o que se estende às suas 
identidades, mas capazes de juízos críticos sobre si mesmos, os pacientes falam sempre sobre 
o quanto se intimidam, constrangem, envergonham, enfim, sentem-se "estranhos" ante os 
olhares dos outros. 
Perdidos de si mesmos ao olhar o outro e não se identificarem, mas ao contrário ao 
identificaram-se com o estranho que o outro percebe neles, no mínimo o evitam e no máximo 
se encobrem. 
Esse caminho, com certeza, é uma via de mão dupla. Ao olhar um rosto, e percebê-lo 
como diferente, estranho, belo, atraente e ou sublime, as pessoas olham. 
Conta Maria que todos olham. Seja um chofer de táxi ou um guarda de trânsito, todos 
olham. As pessoas não se agüentam, diz ela. Perguntam o que aconteceu, como foi, se aquilo 
é de nascença ou não. Segue falando, e relata que, numa ocasião sentada num táxi, justo no 
banco de trás do motorista, esse a olhava tanto pelo espelho retrovisor que ela temeu até um 
novo acidente Maria havia sofrido um gravíssimo acidente de carro, no qual praticamente 
todo o seu rosto ficara destruído. 
Em outra ocasião, relata Maria, estava em uma fila do Instituto Nacional de 
Seguridade Social e, ao chegar sua vez e indagar uma informação à funcionária, esta começou 
a falar em voz muito alta, julgando que Maria fosse também surda. As pessoas se 
surpreendem e imaginam tudo o que querem, diz Maria rindo. 
Assim, a sensação de estranheza que um rosto deformado e desfigurado suscita nos 
outros, e o quanto o olhar e a curiosidade desses fazem com que os pacientes sintam-se 
estranhos, diferentes, constrangidos, excluídos e humilhados parece guardar relação direta 
com o estranho que cada uma possui dentro de si, e que é evocado, atraído quando espelha-se 
com ele, o que se constitui, portanto, nessa via de mão dupla. Conclui-se aqui que os 
pacientes com seus rostos deformados, desfigurados, remetem as pessoas, de um modo geral, 
a esse "estranho" que todos foram um dia em seu duplo original . 
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89 
Um estranho usualmente falando é aquele que ainda não se conhece, até que essa 
mesma pessoa venha a ser apresentada, nomeada e posteriormente identificada em suas 
referências sociais. Da mesma forma, é a mãe ou aquele que exerce a função materna que 
apresentará, nomeará e possibilitará a criança, sua identificação e identidade social, 
nomeando e apresentando para ela, criança bebê, "esse estranho". 
Irving Goffman ( 1 988)35, autor que se dedicou ao estudo dos estigmas, das 
discriminações sociais, mostra como as normas de identidade são estabelecidas sobretudo 
pelo social. Existe um perfil de expectativas normativas com relação à conduta e ao caráter. 
Assim, existe uma determinada estereotipia na avaliação das pessoas. 
A partir de um relacionamento mais íntimo, categorias estereotipadas tendem a ceder, 
frente à compreensão, à empatia e a uma idéia mais aproximada e mais imparcial, real 
daquela pessoa. 
O termo estigma, criado pelos gregos, refere-se a sinais corporais através dos quais se 
procurava colocar à vista algo de "extraordinário ou mau sobre o status moral de quem os 
apresentava" (GOFFMAN, 1 988, p. 10). Tais sinais eram realizados com cortes ou fogo no 
corpo de determinada pessoa e indicavam ser aquele um escravo, um criminoso ou um traidor, 
que deveria ser evitado, principalmente em lugares públicos. Um estigma, segundo o autor, 
será "um tipo especial de relação entre atributo e estereótipo" (ib. ibid., p. 1 3) . 
Ainda de acordo com Goffman, existem três tipos distintos de estigmas: o primeiro diz 
respeito às várias e diferentes deformidades físicas; em segundo lugar as doenças mentais, 
prisões, vícios, desempregas, comportamento político radical, enfim a tudo aquilo que se 
poderia considerar como desviante de um perfil de expectativa normativa frente à conduta 
social; e, por último, os estigmas relativos a raça, nação e religião". 
Goffman relata adiante que um defeito como a "desfiguração facial", (ib. ibid., p. 62) 
embora possa afastar um estranho, não afasta aqueles as pessoas que possuem um contato 
mais íntimo com o paciente. Assim a "área de manipulação do estigma, .. . pode ser 
considerada como algo que pertence . . . à vida pública, ao contato entre estranhos ... colocando­
se no extremo de um continuum cujo pólo oposto é a intimidade". (id. ibid., p. 62) 
Goffman propõe duas categorias com relação aos estigmatizados: a de desacreditado 
e de desacreditável. A primeira delas, refere-se a quando a pessoa estigmatizada acredita e 
assume ser o que a distingue dos outros algo já conhecido ou evidente. É para a categoria de 
35 GOFFMAN, Irving. Estigma: notas sobre a manipulação da identidade deteriorada. Rio de Janeiro: Guanabara, 
1 988. 
90 
desacreditável, propõe então que a pessoa estigmatizada acredite e assuma que aquilo que a 
diferencia dos outros e a faz sentir-se estigmatizada não é conhecido de outros, nem 
imediatamente perceptível. A situação de vida do sujeito estigmatizado, conforme Goffman, 
girará em torno da questão daquilo que se nomeia em geral por "aceitação". Para o autor, 
portanto, os pacientes sujeitos desta pesquisa encontram-se, com certeza, na categoria de 
desacreditados. 
Possuem deformidades e desfigurações em seus rostos, que são evidentes logo à 
primeira vista; e isso se dá mesmo quando tentam ocultá-las, uma vez que a própria tentativa 
de ocultamento contribui, em determinados casos, para evidenciá-las ainda mais. Tal fato por 
si só, ou seja, a tentativa de ocultamento da desfiguração, já indica o quanto a questão de se 
sentir aceito socialmente torna-se uma necessidade imperativa para esses pacientes. 
Como aponta Goffman, o estigmatizado, por sua vez, fará de tudo para conquistar essa 
aceitação: de maneiradireta - através da correção de deformidades físicas por cirurgias 
plásticas por exemplo - ou de modo indireto - quando o sujeito estigmatizado tenta superar-se 
em suas possibilidades naquele momento: cegos que se tornam campeões de esqui, ou 
paraplégicos que se especializam em atividades para as quais não teriam condições: 
basquetebol, dança como exemplos. 
Maria, em etapa inicial de reconstrução de seu rosto muito desfigurado e usando 
muletas por conseqüência ainda do grave acidente que sofrera, telefonou um dia deixando 
recado na secretária eletrônica: falava de sua alegria (possuía apenas o ensino médio 
completo) em haver prestado exame para o vestibular de Administração e ter sido aprovada. 
Enfim, são inúmeras as tentativas, por parte dos pacientes, para novamente 
conseguirem reconhecer-se e serem reconhecidos pessoal e socialmente. 
"Não me reconheço assim", foi uma das frases ouvidas, por mais de uma vez. Ou 
ainda, o jovem rapaz Luiz, que, ao ter sido baleado na boca, perdeu toda a estrutura externa e 
interna, parte duras e moles, incluindo-se aí os dentes; ele disse, em uma das entrevistas de 
acompanhamento ao referir-se à possibilidade de novos envolvimentos amorosos: "Dra. Sara 
a senhora acha que eu vou beijar alguém estando sem os meus dentes? Não é muito 
estranho? " 
Acredita-se, nesse momento, que os pacientes referem-se à estranheza que têm diante 
de si mesmos, não só com relação ao aspecto externo, mas também quanto aos seus aspectos 
internos, quanto a seu mundo interior, quanto à relação que gostariam de restabelecer com 
( 
91 
seus pares. Ao perder o rosto que tinham e ao senti-lo como "estranho" perdem-se, na verdade 
de si mesmos. 
Por tudo isso, ao seu rosto "estranho" impõem-se reconstruções tanto pelo aspecto 
funcional quanto pelo social - e que não exclui, ao contrário, inclui o reencontro consigo 
mesmo. 
Mas afinal, que reconstrução é essa pela qual tanto anseiam os pacientes? 
Reconstruir o quê, afinal? 
92 
4. RECONSTRUÇÕES 
''Nada menos de duas almas. Cada criatura humana traz duas 
almas consigo: uma que olha de dentro para fora, outra que 
olha de fora para dentro 1.../ a alma exterior pode ser um 
espírito, um fluido, um homem, muitos homens, um objeto, uma 
operação ! . ./ quem perde uma das metades, perde 
naturalmente a metade da existência; e casos há, não raros, em 
que a perda da alma exterior implica a da existência inteira. " 
MACHADO DE ASSIS 
4.1 - Reconstruções "de dentro para fora" pela transferência 
Cabe novamente lembrar que a "idéia-mãe" dessa pesquisa, originou-se de uma 
situação inusitada e complexa. Frente a uma paciente com grande e grave desfiguramento do 
rosto, decorrente de traumatismo súbito (acidente de carro) em que era possível visualizar-se 
a orofaringe - o que fazer, ou melhor, o que dizer? 
Nada melhor do que escutar o próprio sujeito em questão: "gostei daqui porque é de 
dentro para fora", Com certeza, referia-se à proposta cirúrgica feita pelo chefe da equipe à 
qual a paciente se dirigia, além do que anunciava que a paciente reconhecia, no que vivera, a 
existência de todo um interior, todo um "de dentro" que havia sido tão destruído quanto o "de 
fora"; ou seja, ela clamava por uma reconstrução integral de si mesma. 
Por reconstruções "de dentro para fora" entende-se, portanto, que devem ser feitas em 
paralelo às reconstruções cirúrgicas, isto é, "de fora para dentro" . Somente desse modo, ao 
final de todas as etapas operatórias, o paciente poderá reconhecer o rosto reconstruído como 
seu. 
Conforme Ivo Pitanguy et. al . (200 1 , p. 339), 1 o médico frente a um paciente que 
possui deformidade decorrente de situação traumática, deve entender que essa deformidade 
constitui-se em uma ferida que abala toda uma estrutura do sujeito: profissional, social e 
emocional. Ou ainda, nas palavras de Schacter:2 "Quando e se, devido a um acidente . . . , algo 
ocorre que destrói ou modifica qualquer parte de nosso corpo, . . . necessitamos reorganizar 
completamente a nossa imagem e enfim, a concepção que fazemos de nós mesmos" . 
1 PIT ANGUY, Ivo et. ai. O trauma e a cirurgai plástica. ln: FREIRE, E. (org. ) Trauma: a doença dos 
séculos.Rio de Janeiro: Atheneu, 200 1 , p . 339. 
2 PIT ANGUY, Ivo et. ai. Criatividade e cirurgia plástica. Revista Brasileira de Cirurgia. No. 83, 1 993, pp. 79-
86. 
93 
Ao iniciar o tratamento de reconstrução integral, fundamental será o processo de 
transferência. Dada a sua importância para a Psicanálise, esta será aqui considerada como 
ferramenta imprescindível às reconstruções "de dentro para fora" e necessárias à organização 
da imagem do sujeito e das concepções que este tem de si mesmo. Laplanche e Pontalis, 
apontam o termo como referenciado a: 
"( . . . ) processo pelo qual os desejos inconscientes se atualizam sobre certos 
objetos no enquadre de um certo tipo de relação estabelecida com eles e, 
eminentemente no quadro da relação analítica. . . A transferência é 
classicamente reconhecida como o terreno em que se dá a problemática de 
um tratamento psicanalítico, pois são a sua instalação, as suas modalidades, 
a sua interpretação e a sua resolução que caracterizam este" .(LAPLANCHE 
e PONTALIS, 1 973, p. 5 14) 
Ao se considerar que a transferência está sempre presente nas relações humanas é que 
se toma possível ao psicólogo enquanto terapeuta, utilizá-la também num espaço - setting 
hospitalar. 
Cabe remeter ao sentido aqui atribuído a estas três expressões: relações humanas, 
setting e terapeuta. Por relações humanas está se considerando o sentido apresentado por 
Fábio Herrmann ( 1993) para a palavra "relação" . Segundo o autor, ela não se refere 
exclusivamente a uma relação interpessoal, mas sim a tudo aquilo que possui um "sentido 
humano" (p. 134). Segue dizendo que "aplicar o método psicanalítico é fazer brotar do estudo 
de algumas relações humanas as estruturas profundas que as determinam". (p. 134) Isso é 
possível pela transferência. 
Por setting entenda-se todo espaço que inclua o terapeuta e o paciente, no qual possam 
"brotar estruturas profundas geradaras de sentido humano" ; segundo o mesmo Herrmann 
( 1993), tais estruturas constituem-se em um "não-ser" e estão referidas ao sentido dos atos 
humanos, as quais ele denomina inconsciente. (p. 136) 
E por último, ao psicólogo enquanto terapeuta deve atribuir-se o entendimento desta 
função conforme apresentada ainda por Herrmann ( 1993): "o terapeuta é também Therapon, 
( ... ) um amigo que acompanha o herói na sua empresa arriscada" (p. 142) "de construção de 
um mundo humano". (p. 143)3 
Ao definir desse modo a função do terapeuta, Herrmann refere-se aos gregos, quando 
estes nomeavam de Therapon as figuras que acompanhavam os heróis. O termo é um 
substantivo derivado do verbo Therapein que, por sua vez é de onde se origina a palavra tão 
3 HERRMANN, Fábio. Clínica psicanalítica: a arte da interpretação. São Paulo: Brasiliense, 1993. 
.,....., 
r 
94 
conhecida e utilizada-terapeuta. Therapein remete a "cuidar de", "servir a", "tratar de" . (p. 
1 42) 
Compactua-se aqui com Herrmann ao se considerar tais expressões abordadas por esse 
enfoque, na medida em que se tomam relevantes para as especificidades da clínica proposta 
nas reconstruções "de dentro para fora" - seja pelo processo transferencial, seja por uma via 
possível de reconstruções à qual se articulará a transferência, considerando-se a especificidade 
dos sujeitos da pesquisa. 
Tal especificidade constitui-se, principalmente, pelo fato de ser o corpo acometido em 
parte tão especial e essencial: o rosto. Como já mencionado, o rosto humano é a imagem 
primeira à qual o sujeito se identifica e através da qual irá constituir-se e posteriormente 
reconhecer-se. Assim entende-se que as transferências que mais contribuirão para as 
reconstruções "de fora para dentro" são as que remetem ao nível do sensível, às primeiras 
etapas de constituiçãode um si mesmo nas quais o corpo sente, percebe, identifica e por fim 
ajuda a simbolizar. São exatamente essas transferências relativas ao sensível, as que mais se 
apresentam e devem ser utilizadas na clínica com os pacientes destes quadros. 
Numa determinada ocasião, ao entrar no quarto de Maria, que se encontrava no pós­
operatório de uma de suas inúmeras etapas de reconstrução, por solicitação dela própria, puxei 
o cobertor de modo a que cobrisse seus pés que se encontravam fora do cobertor e nos quais 
Maria dizia sentir frio. Maria então disse: "Nossa, a senhora fez igualzinho à minha mãe, só 
que as mãos dela eram geladas, e as da senhora são quentinhas, esquentam antes mesmo do 
cobertor" . 
Apesar da informalidade aparente, imposta pelo próprio "setting", algo formal, no 
sentido de propiciar o surgimento de uma forma, ocorre num momento como esse. 
M., que sempre relatava com preocupação que sua mãe era muito desligada, e que esse 
desligamento representava-se em Maria por uma mãe "fria" , nesse momento e pelo próprio 
aconchego do cobertor, passa a ter possibilidades, pela transferência, ao identificar-se com um 
objeto "que esquenta mesmo antes do cobertor" , encontrar continente para seu "frio", seu 
desconforto. 
Tendo passado por grave situação de desfiguramento traumático de seu rosto, entende­
se o que Maria necessita. Depreende-se, de seu pedido, que se cuide de suas extremidades - e 
o rosto é uma extremidade -, que o terapeuta se "ligue" nela, contribuindo para que, mesmo 
nas situações-limite, sobretudo nas que vida e morte se tangenciam, encontre um outro na 
"temperatura" solicitada com o qual sintonize, permitindo um predomínio de experiências de 
r 
\ 
95 
vida. Para tal, é necessário que, através da transferência, o paciente encontre um espelho 
humano integrador, de modo que possa reconstruir uma representação somato-psíquica, a qual 
se encontra no mínimo esfacelada. Em outras palavras, uma representação de si mesmo, 
atualizada no agora. 
Ao recorrer-se a Freud, toma-se mais fácil compreender como, no processo de 
transferência, o fator afetivo é fundamental. Só a capacidade de identificação empática toma 
significativa a interpretação. 
"Vinte e cinco anos de intenso trabalho tiveram por resultado que os 
objetivos imediatos da psicanálise sejam hoje inteiramente diferentes do que 
eram no começo ( . . . ) A psicanálise era ( . . . ) uma arte interpretativa. Uma vez 
que isso não solucionava o problema terapêutico ( . . . ) outro objetivo surgiu à 
vista: obrigar o paciente a confirmar a construção teórica do analista com sua 
própria memória. ( . . . ) a ênfase principal reside nas resistências do paciente: a 
arte consistia então ( . . . ) pela influência humana - era aqui que a sugestão, 
funcionando como "transferência", desempenhava sue papel. . . " (FREUD, 
1 920, p. 3 1 ) 
Autores contemporâneos nacionais e estrangeiros interessam-se em repensar a técnica 
psicanalítica, para que esta possa atualizar-se e dar conta das "novas doenças da alma" como a 
elas se refere Julia Kristeva (2002).4 
As dificuldades em ligar o corpo à palavra exigem uma modificação das transferências 
clássicas de modo que possibilitem aos pacientes vivenciar uma relação que não chegaram a 
experimentar em suas vidas. Não cabe mais interpretar conflitos e defesas, como aponta Edna 
Pereira Vilete ao tratar do tema "O Futuro da Clínica Psicanalítica", mas sim cuidar do 
desamparo, do vazio afetivo e do medo de aniquilamento a que se referem tais pacientes.5 
No caso dos pacientes para os quais se direciona essa pesquisa, além de conviverem 
com todos os avanços das modernas tecnologias, principalmente as médico-cirúrgicas e delas 
se beneficiarem, sofrem uma situação paradoxal: quanto maior esse avanço, maior poderá ser 
a tendência ao sentimento de desamparo, de medo do vazio e de perder-se de si mesmo. 
Acredita-se que o terapeuta nesses casos, deverá estar mais atento ainda a essas questões, por 
conta dessa dupla inserção. 
Os pacientes apresentam-se fortes e destemidos, procuram superar-se a cada instante. 
Em alguns momentos parecem querer conciliar o impossível. Por exemplo: seguem 
4 KRISTEV A, Julia. As novas doenças da alma. Rio de Janeiro: Rocco, 2002. 
5 VILETE, Edna Pereira. O futuro da clínica psicanalítica. ABP Notícias, Rio de Janeiro, ano III, no. l , mai . 
2000. 
i 
n 
96 
mantendo-se produtivos, principalmente do ponto de vista econômico, mesmo submetendo-se 
às inúmeras interrupções de seu cotidiano pelas internações hospitalares a que estão sujeitos. 
Ao que se constata na clínica, urge sentirem-se vivos . . . Maria é um desses exemplos.6 
Maria, entretanto em determinado pós-operatório de uma de suas cirurgias, necessitou 
permanecer uma noite no Centro de Tratamento Intensivo (CTI) do Hospital. Já havia sido 
avisada por seu cirurgião que não poderia falar, em seu pós operatório, por cerca de um mês, 
no mínimo. Algumas sessões foram estabelecidas entre Maria e a terapeuta no sentido de um 
"preparo" para este período de silêncio. 
No dia seguinte à cirurgia, quando a psicóloga chegou ao CTI, conforme combinado 
anteriormente com a paciente, o médico responsável pela equipe do CTI disse: - Ah, que bom 
que você chegou. Maria já havia perguntado por você! ( escrevendo num caderno que levou 
consigo para o CTI) - dirigindo-se à psicóloga. Não confia em ninguém. Tem medo. Não 
deixa ninguém mexer na perna dela. Está bem clinicamente, mas muito ansiosa. (Maria 
possuía grave fratura na perna e que doía muito. Havia dito à psicóloga que essa era uma de 
suas grandes preocupações: que não soubessem a maneira certa de pegar na sua perna para 
que não sentisse dor). 
Ao visualizar a psicóloga, Maria sorriu e gesticulou levantando o dedo polegar, o que 
foi contra-transferencialmente vivido pela terapeuta como: está tudo bem, que bom que você 
chegou, estou viva, apontando em seguida para sua perna. Maria necessitava sair do leito do 
CTI e ser transferida para a maca para descer à enfermaria e ir para o quarto. A terapeuta 
dirigiu-se à perna de Maria e indicou acenando com a cabeça aos enfermeiros que poderiam 
iniciar a transferência de Maria do leito para a maca, segurando em seguida a perna de Maria, 
o que, de fato aconteceu. Como é possível perceber tudo se passou sem palavras, apenas por 
gestos . 
Evidente que não se tratava do fato de a terapeuta saber a melhor forma de segurar a 
perna de Maria, até porque a equipe de enfermagem, especializada justo por ser uma equipe 
de CTI tem melhores condições para isso. Tal fato só pode ser compreendido pelo 
surgimento através da transferência de sensações anteriormente vividas, que encontram 
possibilidade de atualização por uma outra via, a do sensorial. Ou ainda, de acordo com 
Ivanise Fontes (2001) pela "dimensão corporal da transferência" .7 
6 Veio de um outro estado do País e faz bordados para seu sustento e o dos filhos, mesmo durante as internações 
hospitalares. 
7 FONTES, lvanise. Transferência: uma regressão alucinatória. Revista Latino-americana de Psicopatologia 
Fundamental. São Paulo, ano IV, no. 2, 2001 . 
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"O processo transferencial favorece extraordinariamente a instauração de 
movimentos regressivos, evidenciando uma via sensorial inerente à 
comunicação analista-analisando. As noções de regressão e repetição em 
psicanálise permitem a compreensão de que certas manifestações corporais 
são a expressão de uma memória corporal redespertada". (FONTES, 200 1 , 
p . 1 8) 
97 
Continuando com Fontes, a autora aponta que determinadas experiências só poderão 
ser rememoradas pela via do sensorial, visto que justamente por terem sido impressas em tal 
registro, tomam-se portanto inacessíveis à representação. Acredita-se que permaneçam 
"silenciosas", porém só com o lado "incômodo" do silêncio. 
As relações transferenciais que se estabelecem entre paciente e terapeuta nas situaçõesde uma internação hospitalar referente ao corpo organizam-se, na maioria das vezes, em 
níveis muito arcaicos. A própria condição da internação hospitalar, como já mencionado 
anteriormente, favorece a regressão do paciente a tais níveis transferenciais. 
Maria remetia-se repetidamente a sua mãe como sendo muito "desligada" para com 
ela, Maria. Em muitas ocasiões, durante seu acompanhamento, dizia que em criança, ela é que 
tinha que cuidar da mãe, o que isso ocorria também agora, já na vida adulta. Nestes 
"momentos transferenciais" relatados, Maria deixou-se cuidar. Estabeleceu-se, entre terapeuta 
e paciente, uma relação de confiança. 
Com estes exemplos, pretendeu-se mostrar que, ao aventurar-se junto a esses 
pacientes, determina-se também ao terapeuta pensar a transferência no que esta relaciona-se à 
questão nomeada por Gilberto Safra ( 1999, p. 1 19) da "materialidade do self'. 
Segundo esse autor, na teoria psicanalítica, a noção de objeto é em geral utilizada de 
modo abstrato: objeto interno, objeto do desejo, objeto da pulsão, entre outras formas. 
Entretanto, diante da noção de Winnicott dos fenômenos transicionais, destaca-se a 
pregnância da sensorialidade da experiência. Tais fenômenos "implicam o encontro da 
vivência subjetiva com a materialidade do mundo objetivamente percebido". (p. 1 19) 
Segundo Winnicott, será o cuidado da mãe com o bebê que permite o que se nomeia 
natureza humana, e que dará início ao processo de temporalização do "self' do bebê. 
Acrescenta Safra que tais situações precursoras e fundadoras do si mesmo, na verdade, não se 
constituem só em processo de temporalização; na verdade, são mais que isso, pois fazem do 
tempo "carne de si" . O "si mesmo" vai acontecer no espaço proporcionado pelo outro, mas 
também, apropria-se desse espaço enquanto matéria integrante do si mesmo. 
Mesmo que por alguns momentos, emprestar-se e disponibilizar-se efetivamente, 
corporalmente aos pacientes propiciará à transferência uma vitalidade necessária à 
r 
98 
reconstrução de "dentro para fora" - tanto da imagem corporal, quanto do reconhecimento de 
si mesmo. 
Assim, tendo-se como ferramenta básica a transferência e alertando-se para suas 
peculiaridades com relação aos sujeitos desta pesquisa, é possível ter-se acesso a uma via 
possível para as reconstruções. 
4.2 - Uma via possível para as reconstruções 
Frente ao esfacelamento de si mesmo e, portanto, de uma identidade, e ainda em 
busca sobretudo da reconstrução de seu rosto, a tarefa do psicólogo junto aos pacientes que 
desejam e submetem-se a esse tipo de reconstrução cirúrgica é estar ao seu lado. 
Retomando a correlação apresentada anteriormente entre terapeuta e Therapon, este 
será aqui considerado como quem acompanha e sustenta o paciente em seu percurso de 
reconstruções. Reconstruções de seu rosto e de si mesmo, as quais implicam na apropriação 
do rosto reconstruído como próprio. 
Sendo a reconstrução de um rosto uma exigência pessoal, funcional e social, um 
primeiro passo é oferecer e disponibilizar-se à escuta dos pacientes, convidando-os a falar, 
compartilhando com eles de sua trajetória de reconstruções e dos limites de sua 
vulnerabilidade. 
Com Winnicott, pode-se pensar que a função do terapeuta junto a esses pacientes 
consiste em oferecer o holding8 como uma via possível para as reconstruções. 
Entenda-se aqui por holding um conceito de amplitude tal que abarca os movimentos 
do terapeuta e a própria construção do setting. A clínica de pacientes com rostos gravemente 
desfigurados impele por sua especificidade a recortar tal conceito. A função especular mais 
uma vez, é aqui utilizada, como uma bússola no percurso das reconstruções. É preciso ser 
olhado para se ver - este é a função primordial do terapeuta ao oferecer o holding e que será 
aqui explorada. 
Ao oferecer holding, estando ao lado dos pacientes em vários momentos distintos, 
sobretudo aqueles que os pacientes referem como difíceis de serem ultrapassados, - em geral 
8 "Neste ponto, minha tendência é pensar em termos de "segurar-se" . Isso vale para o segurar" físico na vida 
intra-uterina, e gradualmente amplia seu alcance, adquirindo o significado da globalidade do cuidado 
adaptativo em relação à infância, incluindo a forma de manuseio" . (WINNICOTI, 1999, p. 1 0) . 
"Este termo deve ser entendido como uma provisão ambiental que abrange particularidades do cuidado 
materno, as quais incluem tanto a provisão física quanto a psicológica" . (KLAUTAU, 2002, p. 3 1 ) 
\ 
' 
99 
os momentos que precedem às cirurgias e os do pós-operatório, ou aqueles procedimentos que 
são tradicionalmente considerados como dolorosos e/ou passíveis de se configurarem como 
traumáticos - enfim, encontrando-se ao lado do paciente, o terapeuta começa a ser 
efetivamente olhado por este; sua presença constante, em tais situações, traz a possibilidade 
de o paciente senti-lo digno de confiança, o que o toma mais disponível a envolvimento 
afetivo. 
Dessa forma, o terapeuta se toma suficientemente bom,9 nem invasivo, nem evasivo, 
capaz de adaptar-se ativamente às necessidades dos pacientes. A presença constante, atenta, 
ritmada, promove a confiança do paciente no terapeuta. 
Freqüentemente, os pacientes indagam "A senhora estará aqui, né?" Em geral tal 
pergunta é feita quando sabem da data em que serão realizadas as cirurgias, ou seja, quando as 
mesmas são marcadas. Pensa-se tal indagação como uma garantia de que estarão 
solidariamente acompanhados em sua "aventura" . É como se quisessem e necessitassem ter 
um controle sobre o terapeuta, controle mágico e onipotente. A entonação, o modo de 
formular a pergunta é quase um imperativo, como se não houvesse a alternativa do terapeuta 
dizer não, em ousar não estar presente no período das cirurgias. 
Entende-se, a partir dessa solicitação, o quanto o paciente liga-se, por movimentos 
transparenciais ao terapeuta, identificando-se a este e incluindo-o em seu ambiente e no 
processo de suas reconstruções. 
Por uma coincidência, a terapeuta, durante o tempo de realização da pesquisa usava 
um aparelho ortodôntico. Esse é também muito utilizado por vários motivos diferentes, por 
muitos pacientes submetidos ao processo de reconstrução de face. Freqüentemente tal fato era 
observado pelos pacientes que a ele se referiam: "vai a senhora também usar aparelho nos 
dentes Igual ao meu! " "Por que o colocou? " "quando vai tirá-lo?" "Dói?" 
Essas observações eram compreendidas como uma interrogação no sentido de se era 
possível sintonizar e compreender o que sentiam, se se identificava a eles. Na maioria das 
ocasiões a resposta era apenas: "É verdade, também uso aparelho igual a você ! " . 
Em outros momentos o terapeuta era identificado tanto pelo paciente, quanto por seus 
familiares e pelos próprios profissionais de outras equipes de saúde que não pertenciam às de 
reconstruções da face, como sendo parente do paciente. "A senhora é irmã dela" ; "a senhora 
é prima, irmã dele? - A essas interrogações a terapeuta respondia com um sorriso, esperando 
que o próprio paciente, se quisesse, respondesse. Em alguns casos, os pacientes respondiam 
9 Ver mãe suficientemente boa p. 62. 
1 00 
afirmativamente, ou, em outros apenas olhavam para o terapeuta, sorrindo, e então paciente e 
terapeuta estabeleciam uma cumplicidade brincando10 e nada falavam. 
* Ao deixar esta interrogação no ar - ser ou não-ser familiar do paciente - pode-se 
dizer que se está na área da transicionalidade, do "de dentro e de fora", "do de fora e de 
dentro". 
Ao reviver a experiência da transicionalidade, portanto de uma área intermediária de 
objetos e fenômenos transicionais, "área de repouso para o indivíduo" é que o paciente 
encontra elementos para o uso da ilusão. 
A ilusão é fundamental no sentido do repouso que o paciente possa ter para acreditar 
que a realidade externa corresponde à sua própria capacidade de criar. A ilusão, portantodará 
uma forma aos objetos e fenômenos transicionais. 
Com freqüência, alguns pacientes referiam-se à ilusão. Maria, certa vez, perguntou 
literalmente se poderia ter a ilusão de que seu nariz ficaria parecido com o meu, o qual ela 
acreditava que parecido com o seu nariz original. Sustentar a ilusão através do holding 
oferecido é função do terapeuta e condição para que o paciente perceba seu novo rosto como 
próprio. A percepção, que por seu lado implica em via de mão dupla com o ambiente através 
de uma "troca significativa com o mundo" - palavras de Winnicott - (p. 1 55), diferindo 
portando da apercepção, uma vez que essa é vista por Winnicott apenas como apreensão da 
realidade. 
Para Laura foi um momento de expressar: "A senhora sabe que eu já havia feito sete 
cirurgias e ainda não tinha notado diferença. Essa foi a primeira vez que vi diferença no meu 
rosto e fiquei muito satisfeita com o resultado da cirurgia". 
Para que essa percepção se dê é preciso, sobretudo, que os pacientes, ao serem 
olhados, reconheçam-se nesse olhar. 
Para Maria, o selo da carta evoca a imagem da relação terapeuta-paciente, através de 
uma estética que dispensa palavras sobre a função do terapeuta: 
10 O "brincando" é aqui concebido como o fluir da criança e do adulto de sua l iberdade de criação. Ainda, "a 
psicoterapia é efetuada na superposição de duas áreas lúdicas, a do paciente e a do terapeuta. ( . . . ) O brincar é 
essencial porque nele o paciente manifesta sua criatividade" . (WINNICOIT, 1975, pp. 79-80) 
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Quando a partir do holding oferecido, torna-se possível o encontro paciente-terapeuta 
e através da identificação, da ilusão, da transicionalidade, a criatividade humana advém, o 
paciente remete-se "à sensação individual de realidade da experiência e do objeto" (p. 1 30). O 
mundo é criado de novo e o rosto estranho pode ser reconhecido e percebido como integrado 
a si mesmo. Enfim, reconstruções são possíveis: de um rosto estético, de um rosto psíquico e 
das relações destes com o mundo. 
1 02 
5. CONSIDERAÇÕES FINAIS 
A questão do rosto destruído por acidente remete à questão humanitária da 
reconstrução corporal possível graças ao desenvolvimento das técnicas cirúrgicas de 
reconstrução. Ainda que o paciente esteja submetido a sofrimentos e agruras, a reconstrução 
corporal é um campo de esperanças. 
Na clínica psicanalítica, no entanto, casos da atualidade remetem a uma queixa comum 
- o paciente diz ter : "quebrado a cara" . Trata-se de uma metáfora que denota a situação 
limite em que o paciente se encontra. 
Pensando-se a subjetividade que permeia nossos tempos, chama-se a atenção para o 
mal-estar da atualidade e a capacidade de renovação que teria ou não a Psicanálise para lidar 
com a mistura de intolerância, narcisismo, alteridade e violência que o caracteriza. 
A sociedade de consumo e o neoliberalismo, com suas maneiras de organizar as 
relações sociais e econômicas, estão gerando uma série de doenças ligadas à imagem e à 
performance, que alguns conceitos clássicos da Psicanálise do modo como utilizados parecem 
não mais dar conta. Por exemplo dessas doenças: a série de sofrimentos que resultam em 
afecções psicossomáticas e vários tipos de adicção, ligadas às drogas, à comida e ao trabalho. 
Ainda, a atualidade presencia a desestruturação dos valores, da idéia ensandecida de 
que se vive para sobreviver e ter dinheiro, para aparecer e ter visibilidade. Está em 
desestruturação o universo de regras do que é moralmente permitido e proibido. Os valores 
tradicionais humanitários estão se diluindo na banalidade do sucesso econômico, visibilidade 
social e truculência. Assiste-se à desvalorização da vida, já que a violência está no cenário 
econômico e social. 
Dentro deste quadro, a preocupação com a vida parece esvaziada do que poderia ter 
mais ternura, proteção e altruísmo. Os sujeitos são preparados para concorrer e vencer, para 
ter uma performance adequada. 
Os relacionamentos afetivos estão sendo transferidos para outras coisas a saber: 
concorrência, competição, perfil masculino, grande agressividade e deslocamento das relações 
próximas para poder se dedicar completamente às corporações e empresas. 
O afastamento dos indivíduos das próprias questões, a possibilidade de consumo 
atuando como "obrigação", ter acesso ou sentir-se marginalizado pela posse de objetos que o 
1 03 
capitalismo apresenta sob a roupagem de melhoria da qualidade de vida, está pressionando as 
subjetividades. 
O paciente que chega ao consultório dizendo "quebrei a cara" estaria se referindo a 
quê? Qual seria a sua inadequação, segundo ele mesmo? Seria ao momento sócio-político 
contemporâneo e à própria incapacidade de suportar as exigências do modelo e o estresse 
seria a sua resposta? Estaria referindo ao desejo de heterogeneidade e sua dificuldade para 
lidar com a homogeneidade e a pasteurização dos desejos? "Quebrei a cara" é mais urna 
expressão oral que se constitui rnetaforicarnente e responde a um terna sobre-determinado, de 
múltiplas inserções e interpretações. 
O que se imagina, sobre a contribuição da Psicanálise à clínica contemporânea, é que 
possa se dar através da atenção ao que Freud valorizou como máxima da angústia, resgatando 
as relações afetivas que o sujeito desconhece quanto às intensidades, o vazio afetivo que as 
pessoas estão preenchendo com o consumo desenfreado e que está presente nos valores 
perdidos. O estudo profundo e os anos de clínica demonstram que o resgate de vínculos 
afetivos é possível pela transferência. 
Um tratamento psicanalítico ou psicológico deve contribuir para reintegrar o sujeito a 
si mesmo e ao entorno, sobretudo neste contexto tomado pelo mal estar da civilização, 
retomando a reflexão freudiana. Em se tratando, porém, de auxiliar na reconstrução de um 
sujeito que a um tempo tem o seu interior e o próprio rosto esfacelado, é um trabalho sutil de 
costuras simultâneas que exige do teraupeuta, analogamente ao processo de cicatrização, 
começar a reconstrução "de dentro para fora" . 
Retomando, pois, o enfoque ao "rosto" algumas reflexões foram tecidas durante a 
pesqmsa. 
Mesmo se reconhecendo o universo de formas e tipos de rostos, traços característicos 
dos mais variados povos que compõem o conjunto dos seres humanos, essa pesquisa não 
pretendeu em momento algum identificá-los. Está, sim, atualizada para a importância do 
rosto, sua repercussão no cotidiano das pessoas, nas barreiras impostas pelos padrões da 
estética. Portanto, e de modo principal, interliga-se ao contexto da clínica - voltada às 
dificuldades e à rejeição enfrentadas pelos indivíduos que se encontram, parcial ou totalmente 
fragilizados ou, mais ainda, marginalizados para conduzir a seqüência de seus dias. 
Principal veículo de identificação do indivíduo com o seu meio, é comum o rosto ser 
submetido a avaliações desde os primeiros momentos. Pelo resto da vida, o rosto permanecerá 
sendo julgado. Adiante, pouco importará a semelhança genética. Fundamental será o 
1 04 
enquadramento do rosto quando aferido com os padrões que irão adjetivá-lo no seio da 
coletividade: feio, normal, estranho, expressivo, bonito, entre outros conceitos. 
A perseguição aos padrões de estética e beleza (mutáveis através dos tempos) tem 
marcado, invariavelmente, os indivíduos. Mesmo não sendo uma regra, muitas vezes 
repercute com intensidade na formação do caráter e, como conseqüência, inibe ou estimula 
ações comportamentais negativas ou positivas. Assim, como pode estar relacionada com a 
auto-satisfação, com a coragem para o enfrentamento das adversidades e - novamente sem ser 
uma regra - com o sucesso, excessos podem ser responsáveis por fracassos. 
A verdade é que a tentativa de estar o mais próximo possível dos referidos padrões 
tem norteado, ao longo da História, homens e mulheres.Pinturas e adornos, por exemplo, 
atravessaram os séculos e chegaram firmes ao terceiro milênio, tomando-se coadjuvantes de 
uma gigantesca máquina industrial e médica totalmente direcionada ao segmento da Beleza. 
Hoje, a ferocidade imposta pela competição, incluindo-se aí desde a sedução que leva 
ao par até o mercado profissional, termina por privilegiar mais do que nunca o culto à beleza e 
à estética. Ainda que combatida como politicamente incorreta, a supremacia da "boa 
aparência" se impõe. 
A ditadura da boa aparência é quase determinante da situação, sucesso e 
reconhecimento do indivíduo. É um contexto altamente seletivo e perverso que dita a 
marginalidade ou exclusão dos que não se enquadram em tais requisitos de beleza. A presente 
pesquisa, dentro deste quadro atual, apontou para uma metodologia que permite a 
reconstrução do rosto - signo da aparência, expressão e identidade do sujeito - de pessoas que 
sofreram deformidades faciais súbitas. 
Viu-se que a tecnologia e seus avanços técnicos vieram possibilitar reconstruções 
corporais, entre as quais a da face. O paciente frente às técnicas que a ele são propostas para 
reconstruir seu rosto e a velocidade com que tais técnicas são substituídas e os processos de 
reconstrução reformulados, manifesta a esperança da sonhada reconstrução obter sucesso e 
possibilitar sua reintegração no campo social. 
Ao compreender, porém, que a sucessão de operações cirúrgicas tem uma incógnita ao 
final, os pacientes também manifestam medo do insucesso. 
O desamparo, portanto, sempre acompanha o paciente. Dito de outra forma, o estado 
de dependência de outrem e a impotência para realizar ações de direção da própria vida torna­
se cotidiano do paciente que teve seu rosto desfigurado. 
1 05 
Este mesmo, o desamparo, também acompanha o trabalho do médico, da sua equipe e, 
inclusive, do próprio terapeuta responsável pelo acompanhamento psíquico do paciente, dada 
a reconhecida complexidade do processo de reconstrução e a incerteza de seus resultados. 
Neste contexto delicado e pela declarada urgência do processo, pacientes e médicos 
afirmaram a importância da reconstrução se dar "de dentro para fora". Repetiu-se aqui a 
expressão de uma paciente que manifestou seu desejo e sem saber estimulou um 
procedimento específico , o qual passou a ser orientador do processo. É uma expressão que, 
como se pode perceber remete a questões da técnica e a questões do psiquismo. Solidário com 
a metáfora - "de dentro para fora" -, o psicólogo pergunta-se como poderia a Psicologia dar 
conta desta prática - e entender que cabe a ele próprio pensar qual seria uma resposta 
fundamentada teoricamente e como se constituiria sua aplicabilidade. 
Os conceitos estudados nesta pesquisa pretenderam oferecer ao psicólogo um cabedal 
de conhecimento vital para subsidiar a clínica e possibilitar o entendimento de que o rosto é 
passível de reconstrução, tanto médica quanto psíquica. Ao desamparo generalizado, 
contrapõe-se o encontro de sensibilidades; isso torna possível a realização da proposta de 
"dentro para fora". A expressão do desejo da paciente interessa ao psicólogo também porque, 
através da transferência, poder-se-ia unir os esforços do médico e do paciente. 
"De dentro para fora", portanto, constitui-se em metáfora do modo como o psicólogo 
pode encontrar seu lugar na relação deste contexto específico. 
Já do ponto de vista do paciente, a construção subjetiva do rosto é uma experiência 
comum aos que se olham, ao espelho e se vêem feios ou bonitos. Convém lembrar aqui que 
função especular, identificação e ilusão são conceitos teóricos. Na clínica, o psicólogo 
"empresta-se" ao paciente, de tal modo que é possível a terceiros perguntar a quaisquer 
pacientes, indistintamente se aquela pessoa que está e seu quarto, o psicólogo, é seu parente. 
A colocação decorre da identificação vivida pelo paciente, a qual permite o reconhecimento 
do outro e de si mesmo. 
Os conceitos estudados nesta pesquisa como se pode verificar, surgiram da relação 
com o paciente e se reportam ao movimento vivo da prática para a teoria - a clínica 
integrando teoria à prática. A clínica enriquece na transferência, e por sua vez, pauta-se na 
sensibilidade, na escura, no se deixar tocar. O "setting" adquire contornos próprios e o 
psicólogo, ainda que psicanalista, tende a se mobilizar segundo as circunstâncias em que 
pacientes se encontram. 
1 06 
O paciente, por ter sua boca imobilizada durante alguns meses, pode estar impedido de 
falar. Mas, o terapeuta pode cumprir mesmo assim seu ofício, de modo criativo, fazendo com 
que ambos se utilizem dos recursos possíveis para poder se comunicar. 
Vale ressaltar que todo este processo ocorre em um contexto especialíssimo, já que o 
paciente hospitalar está numa situação limite, eminentemente traumática, em que se depara 
com o "seu" rosto "estranho" . E a reconstrução propicia, em sucessão, vários rostos estranhos 
com os quais ele tem que conviver. 
O desfiguramento da face implica em grande dano ao esquema e à imagem corporal. 
O sofrimento, além disso, é inaudito e as feridas concretas, o que demanda tempo e 
exige do paciente esperar o período de cicatrização. No entanto, conforme descrito ao longo 
da pesquisa, é possível encontrar pacientes que afirmam a dinâmica da vida e chamam por ela. 
Têm interesse em trabalhar e namorar. O terapeuta compartilha dessa possibilidade de 
reconstrução pessoal e social, ao reconhecer, lado à sua posição teórico-prática, a própria 
responsabilidade social e ética ao buscar uma clínica para o sujeito. 
Acolher o paciente é a grande questão. O acolhimento será o contraponto ao 
desamparo e a afetividade ajudará a preencher o vazio das rejeições - inclusive aquelas mais 
antigas. O espaço de escuta e fala é por si só terapêutico. O holding é o recurso que o 
terapeuta adota, portanto, para se contrapor ao desamparo. Assim vai ser possível responder 
às necessidades primárias do paciente. A reconstrução dar-se-á através da transferência, 
sobretudo pela via da sensorialidade. Assim o holding permite que o paciente possa 
reconstruir vínculos primários e criar, reconhecendo cada novo rosto como seu. 
O preenchimento de um vazio afetivo que existe em decorrência da sociedade voltada 
para o consumo, onde "ser é ter" pode se dar através da transferência. Os "meus" pacientes, 
com os rostos deformados também "esvaziam-se", perdem-se de si mesmos, não se 
reconhecem, e o preenchimento do vazio se dava pela transferência, a qual possibilita a 
"reconstrução de vínculos afetivos primários" . 
O que se verifica, portanto, é no quanto a declaração de uma paciente - sobre a 
reconstrução de seu rosto a partir do "interior" - pode contribuir para o desenvolvimento de 
uma metodologia específica, que reconhece como visceral a participação, do psicólogo na 
equipe médica. Foi possível assim, redefinir a prática clínica e desenvolver aqui um estudo, 
que mostrasse como rosto e olhar humanos articulam-se para embasar a constituição do 
sentimento de si mesmo. Esta pesquisa entretanto não esgota o tema da reconstrução do rosto. 
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1 07 
É passível de reconstrução teórico-prática, na medida em que reconstrução são sempre 
possíveis. 
Entretanto, nesta pesquisa a função especialíssima do terapeuta reside em um 
procedimento especular: devolver ao paciente o que ele traz de si mesmo, ou seja, espelhar 
sua singularidade. E mais longe: fazê-lo comprender que o rosto estranho - além e aquém dos 
modelos de perfeição vigentes - representam o espanto, o "unheimliche" e caos, desconhecido 
e não familiar, representam uma outra forma de ordem - a qual por sua vez, talvez imponha 
uma reconstrução. 
Vale lembrar o pensamento contemporâneo - após a crise dos paradigmas - de que 
não existem certezas absolutas, mesmo as científicas, para a explicação integral das verdades. 
Neste contexto de indeterminação filosófica ecientífica, a questão da interdisciplinaridade 
permeia as mais diversas metodologias, o que obviamente alcança o trabalho do psicólogo em 
sua "prática psicanalítica" . E é provavelmente esta prática que vai favorecer a esculta/ausculta 
do paciente, ou seja, vai permitir que o psicólogo produza sentidos a partir da ponte 
estabelecida entre ele e o paciente - da fala ao "coração" . O que importa neste processo será a 
disponibilidade interna de ambos frente à efemeridade ou à permanência de contextos 
inusitados e a dinâmica da produção de respostas frente ao novo, ao diferente, ao inesperado -
sempre buscando reverter mesmo o que pode parecer irreversível. Neste sentido, no rosto 
assim como na vida, reconstruções são sempre possíveis. 
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