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ARQUEOLOGIA DA COMPOSIÇÃO: MANUEL BANDEIRA Autor: Eduardo dos Santos Coelho Orientador: Eucanaã de Nazareno Ferraz Tese de doutorado submetida ao Programa de Pós-Graduação em Letras Vernácu- las da Universidade Federal do Rio de Janeiro – UFRJ, como parte dos requisitos necessários para a obtenção do título de Doutor em Letras Vernáculas (Literatura Brasileira). Examinada por: __________________________________________________________ Presidente, Professor Doutor Eucanaã Ferraz ___________________________________________________________ Professor Doutor Antonio Carlos Secchin – UFRJ ___________________________________________________________ Professor Doutor Eduardo Jardim de Moraes – PUC-RJ ___________________________________________________________ Professor Doutor José Miguel Soares Wisnik – USP ___________________________________________________________ Professora Doutora Marlene de Castro Correia – UFRJ ___________________________________________________________ Professor Doutor Frederico Augusto Liberato de Góes – UFRJ, suplente ___________________________________________________________ Professor Doutor Júlio Cesar Valladão Diniz – UFRJ, suplente Rio de Janeiro Março de 2009 ARQUEOLOGIA DA COMPOSIÇÃO: MANUEL BANDEIRA Eduardo dos Santos Coelho Tese de Doutorado apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Letras Vernáculas da Universidade Federal do Rio de Janeiro co- mo quesito para a obtenção do Título de Doutor em Letras Vernáculas (Literatura Brasileira). Orientador: Eucanaã de Nazareno Ferraz. Rio de Janeiro Março de 2009 AGRADECIMENTOS Agradeço, primeiramente, ao professor Eucanaã Ferraz, que colaborou de maneira terna e generosa em toda minha formação acadêmica. Devo a ele não so- mente a orientação desta pesquisa, mas, especialmente, o modo zeloso de consolidar a nossa amizade. Aos professores da Faculdade de Letras da UFRJ que intensificaram, com saber e companheirismo, o meu interesse pela literatura. A eles também devo o meu afeto e a minha admiração. Aos professores Antonio Carlos Secchin e Eduardo Jardim, que participa- ram do meu Exame de Qualificação e fizeram observações valiosas para o desenvolvi- mento deste trabalho. Aos demais professores que muito especialmente compõem esta banca: Marlene de Castro Correia e José Miguel Wisnik. A Júlio Castañon Guimaraens, a quem devo muitos instrumentos de leitura usados nesta tese. A todos que, de alguma maneira, contribuíram atenciosamente para a reali- zação desta tese: Armando Freitas Filho, Connie Lopes, Eliane Vasconcellos, Fred Góes, João Camillo Penna, Luiz Ruffato, Patrícia Reis, Sofia de Sousa Silva, Terezinha Marinho e aos funcionários do Arquivo-Museu de Literatura Brasileira da Fundação Casa de Rui Barbosa, especialmente Laura Regina Xavier, Rosângela Rangel e Glau- ber Cruz. Por fim, devo agradecer ao CNPq pela bolsa de pesquisa para a realização deste estudo. SINOPSE A poética de Manuel Bandeira no contexto modernista. O con- tato do poeta com técnicas tradicionais ou vanguardistas de cri- ação. O poema de substrato biográfico e o poema “impessoal”. Construção e inspiração na lírica bandeiriana. In: COELHO, Eduardo. Arqueologia da composição: Manuel Bandeira. Rio de Janeiro: UFRJ, Faculdade de Letras, 2009. 219 fl. Tese de Doutorado em Literatu- ra Brasileira. ABSTRACT Manuel Bandeira’s lyricism. The contact of the poet with both traditional and innovative techniques of writing. The incorpora- tion of principles from Philology and Linguistics into the pro- saic language of the modernists. The poem based on a bio- graphical event and the “impersonal” poem. Construction and inspiration in Bandeira’s lyricism. In: COELHO, Eduardo. Arqueologia da composição: Manuel Bandeira. Rio de Janeiro: UFRJ, Faculdade de Letras, 2009. 222 fl. Tese de Doutorado em Literatura Brasileira. SUMÁRIO 1. Introdução, 9 2. Mistura de códigos: “turco com sírio-libanês”, 17 2.1. “O poeta que sabe nadar em todas as águas”, 27 3. O poeta modernista em lingüística, 46 4. O poeta “dentro” e “fora” do modernismo, 69 4.1. O dito e o não-dito, 105 4.1.1. Guillaume Apollinaire, o dito, 105 4.1.2. Blaise Cendrars, o não-dito, 126 5. Dois poemas elástico, 139 5.1. “A realidade e a imagem”, 139 5.1.1. Dois fatos estilísticos, 140 5.1.2. O processo de criação, 152 5.2. “Poema tirado de uma notícia de jornal”, 170 6. Apêndice, 183 7. Bibliografia, 192 Para Regina e Sofia. Chamo poeta 100% o que é artista também, isto é, artesão também, ― o poeta que sabe nadar em todas as águas: no oceano em completo perpé- tuo movimento do verso-livre e... nos blocos congelados da forma-fixa. Os poetas que não têm o verso medido nas ouças, mesmo quando da for- ça extraordinária de um Schmidt ou de um Murilo, me causam um certo mal-estar nas minhas idéias sobre poesia. Como de resto o poeta- medidor que se perde no verso-livre que nem João mais Maria sem mi- lho para marcar o caminho na floresta. Trecho de carta de Manuel Bandeira a Alphonsus de Guimaraens Filho. 1. INTRODUÇÃO Manuel Bandeira considerava um equívoco afirmar que “o modernista não diz o que sente ou o que pensa do objeto porém faz o objeto viver”. Para ele, também é “besteira” distinguir o lirismo puro do lirismo objetivo, pois acreditava que todas as manifestações do poético são subjetivas. O que diferenciaria um lirismo do outro, con- forme explicou em carta a Mário de Andrade, seria “a maior ou menor complicação de elementos intelectuais”.1 Tais considerações nos ajudam a compreender que um dos poetas mais líri- cos da literatura brasileira tenha declarado que “[...] a poesia está nas palavras, se faz com palavras e não com sentimentos [...]”, acompanhando, ainda segundo ele, a lição de Stéphane Mallarmé.2 Porém, a continuação de sua análise insere um elemento compli- cador: “[...] muito embora, bem entendido, seja pela força do sentimento ou pela tensão do espírito que acodem ao poeta as combinações de palavras onde há carga de poesia.”3 Trata-se de um acréscimo que vai na direção oposta ao programa criativo de Mallarmé, gerando, conseqüentemente, uma tensão de interesses: Manuel Bandeira recorria, no processo de composição, ao lado construtivo e também ao emocional-intuitivo. Logo, suspeitamos que a sua poesia consagradamente simples revela um projeto ambicioso, a 1 Estes dados a respeito do pensamento bandeiriano acerca do lirismo foram extraídos da carta de 10 de outubro de 1927. Cf. ANDRADE, Mário; BANDEIRA, Manuel. Correspondência Mário de Andrade & Manuel Bandeira. Introdução e notas de Marco Antonio de Moraes. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 2000. p. 356. Coleção Correspondência de Mário de Andrade. 2 BANDEIRA, Manuel. Itinerário de Pasárgada. Rio de Janeiro: Jornal de Letras, 1954. p. 24. 3 Ibid., p. 24. englobar, acerca da escrita poética, a visão moderna, mais próxima da idéia de constru- ção, e a tradicional, que, no seu caso, estaria mais ligada sobretudo ao romantismo. Tendo em vista tais questões, parece-nos necessário desconfiar de um certo juízo crítico que costumeiramente usa a obra bandeiriana para propor, de modo esque- mático, as distintas orientações da poesia moderna no Brasil. A 23 de março de 2001, no seminário “Cabral ― Bandeira ― Drummond”, realizado na Fundação Casa de Rui Barbosa, Luiz Costa Lima serviu-se da poéticade Manuel Bandeira para constatar que João Cabral de Melo Neto se encontra num “outro agora”, mais construtivo e conscien- te, onde não há pessoalização e psicologia. Nesta argumentação, em um pólo ficaria Bandeira, o lírico, que no poema “Meninos carvoeiros”, de O ritmo dissoluto, substituiu a impessoalização pela afetividade, conforme Costa Lima; no outro, Cabral, o antilírico responsável, racional, cujo caráter construtivo e a sensibilidade do intelecto receberam destaque na análise do poema “O vento no canavial”, de Paisagens com figuras. Tal oposição buscava mostrar, fundamentalmente, que o lirismo bandeiriano põe a afetivi- dade no lugar da consciência (“ética da fraternidade” de um “mundo sereno”), enquanto o antilirismo cabralino se relaciona com um senso político (“ética da polis” do alerta sensível e pensado). Embora o crítico tenha esclarecido que pretendia demonstrar que as poéticas desses autores “são bastante distintas, sem que sejam antagônicas”, no anda- mento do estudo há diversas proposições opositivas.4 Já Silviano Santiago, em resenha de Poemas esparsos, de Vinicius de Mora- es, publicada a 3 de janeiro de 2009, estabelece uma oposição entre Bandeira, o defen- sor da tradição, e Oswald de Andrade, o vanguardista: 4 A conferência de Luiz Costa Lima, em mesa-redonda com Augusto Massi e Júlio Castañon Guimarães, foi publicada em duas versões: a primeira, na Revista USP, n.o 50, junho-julho-agosto de 2001, São Pau- lo, Universidade de São Paulo, p. 39-45; a segunda, no livro Intervenções (São Paulo: Edusp, 2002. p. 57- 68), onde suaviza as oposições devido, provavelmente, às críticas recebidas de Augusto Massi durante o seminário. Parte da história do modernismo brasileiro descreve uma luta livre entre os defensores do poema de vanguarda e os desafiantes do poema lírico tradicional. De um lado do ringue, Oswald de Andrade, o Touro Antropófago, e do outro, Manuel Bandeira, o Alce de Clava- del. À esquerda, João Cabral de Melo Neto, o Otelo dos Canaviais, e, à direita, Ledo Ivo, o Cabra do Sertão.5 O breve esquema de Silviano Santiago é mais incisivo do que parece. Não se trata apenas de um antagonismo formalista, pois a estranha designição “Alce de Cla- vadel”, como epíteto de Manuel Bandeira, destaca o poeta tísico no ambiente do sanató- rio suíço e desconsidera, nessa imagem alegórica, a presença marcante de outras geogra- fias muito mais importantes da lírica bandeiriana, como Recife e Rio de Janeiro, que sugerem, entre outras características, a naturalidade e a simplicidade de sua poesia. A limitação geográfica do epíteto representa também uma restrição temporal, pois Clava- del corresponde a quinze meses na vida de um poeta que viveu oitenta e dois anos. Tal- vez seria mais apropriado chamá-lo, digamos, “Andorinha da rua da Aurora” ou “Ca- chorro Vira-Lata da Lapa”. No entanto, o crítico mineiro recusou as inovações de Liber- tinagem e dos livros seguintes para salientar o que pode ser considerado passadista. Por fim, atentemos no cenário montado por Silviano: os dois poetas encon- tram-se num “ringue”, como se houvesse, da parte de Bandeira, interesse de esmurrar as técnicas vanguardistas de composição. Por meio desse esquema, o poeta do cotidiano e do trivial mais se assemelha a um purista, que ele mesmo combateu violenta e explici- tamente em “Poética” e “Evocação do Recife”. Desse modo, Luiz Costa Lima e Silviano Santiago estão concentrados, em suas propostas esquemáticas, na primeira fase da obra do poeta, que ocupa uma posição 5 Cf. SANTIAGO, Silviano. Reunião de Eucanaã valoriza “sobras” de Vinicius, Folha de S. Paulo, Folha Ilustrada, São Paulo, 3 de janeiro de 2009. mais conservadora se comparada com os seus demais títulos, sobretudo Libertinagem. Bastaria ler, dentre muitos textos, o “Poema tirado de uma notícia de jornal” e “A reali- dade e a imagem” para comprovar a impossibilidade de uma relação desse tipo. Podemos deduzir que, em ambos os casos, a poesia bandeiriana foi lida simploriamente e com inocência? Não, tendo em vista que os críticos em questão ocu- pam um lugar por demais importante nos estudos da literatura brasileira, com produções intelectuais vastas e respeitadíssimas, com ensaios determinantes para a compreensão do contexto modernista. Não queremos afirmar que os itens apontados pelos dois críti- cos não sejam fundamentais para caracterizar a obra de Bandeira. Entretanto, Costa Li- ma e Silviano sofrem de um esquematismo didático à disposição de conclusões prede- terminadas, o que não é suficiente para abordar poéticas tão complexas como a de Ma- nuel Bandeira. Seria necessário ainda, para tais esquemas, considerar a sua postura inte- lectual revelada nas cartas, crônicas, entrevistas e no Itinerário de Pasárgada. Ele não autoriza, portanto, qualquer crítico a enquadrá-lo a esquemas nos quais se reduzam os elementos de sua poética, marcada por múltiplas formas de escrita e técnicas de construção: criação consciente e intuitiva; poemas de substrato biográfico e de caráter “impessoal”; versos metrificados e livres, entre outros. Assim, tais esque- mas, sugeridos até mesmo por críticos notáveis, levantam uma série de questionamentos concernentes a visões mais ou menos redutoras da poética bandeiriana, alguns dos quais pretendemos desenvolver aqui. É fundamental, nesse sentido, examinar no que consistem os aspectos tradi- cionais e os modernistas de sua lírica, verificando, além disso, se o primeiro não ofere- ceria elementos para a consolidação de uma poesia que, à sua maneira, parece bastante inovadora e singular no contexto das propostas consolidadas na Semana de Arte Mo- derna. Em razão disso, torna-se necessário investigar não apenas os diálogos que estabe- leceu com a tradição, mas também com os principais escritores do grupo modernista ― Mário de Andrade e Oswald de Andrade ―, e levantar os pontos de contato e as diver- gências entre eles. O mesmo devemos fazer com poetas das vanguardas européias que tiveram, direta ou indiretamente, uma importância destacada na própria formação das técnicas de construção bandeirianas e/ou de outros modernistas. Talvez encontremos, por meio dessas influências, novas possibilidades interpretativas de elementos tradicio- nais e modernos por Bandeira incorporados. Porém, não só às técnicas deveremos nos ater. Seria igualmente importante, para maiores esclarecimentos das orientações criativas seguidas pelo poeta, analisar como funcionam os procedimentos de escrita ― a construção e a inspiração ― por ele acionados. Acreditamos ainda que pode ser interessante pensar na apropriação de fatos biográficos ou de linguagens não-literárias para a elaboração de certos poemas. A partir daí, será importante averiguar as implições dessa série de aspectos em sua obra. Para desenvolver nossa proposta, tomaremos, como principal base crítico- teórica, as correspondências de Manuel Bandeira ― principalmente a destinada a Mário de Andrade e Ribeiro Couto. Escritas com regularidade, compreendendo os anos de 1919 a 1954, nessas cartas há registros esclarecedores sobre a geração da Semana de Arte Moderna de 1922; discussões a respeito das vanguardas européias e do modernis- mo brasileiro, bem como de seus autores; reflexões a respeito da coloquialidade e da simplicidade; exame de características referentes ao lirismo; análises acerca da natureza das formas fixas; considerações em torno da filologia e da lingüística da época, além de observações muito bem engendradas a respeito de sua própria criação. Logo, sua cor- respondência é mais do que um espaço onde vicejam notícias e assuntos pessoais: ela teve êxito como suporte ao amadurecimento de muitos poemas e técnicas, o que, por extensão, contribuiu para formar a sua obra. Também foi possível chegarmos, por meio delas,aos livros que lera naque- les anos e, conseqüentemente, ao levantamento de possíveis diálogos com outras orien- tações criativas, como as de Blaise Cendrars, Guillaume Apollinaire, João Ribeiro e Oswald de Andrade, os quais avaliaremos. Lembremos ainda das versões de alguns po- emas bandeirianos transcritos nas cartas, a nos revelar, através do instrumental da crítica genética, variados processos de construção de que se valeu para elaborar algumas espe- cificidades de sua lírica. Referente à aplicação da crítica genética para o desenvolvimento deste tra- balho, poderemos recorrer às edições críticas de A cinza das horas, Carnaval, O ritmo dissoluto, Libertinagem e Estrela da Manhã,6 além de um volume anotado de Poesias, de 1940, em que Bandeira fez, para o biógrafo e crítico Francisco de Assis Barbosa, observações manuscritas à margem das páginas.7 Por fim, investigaremos, quando ne- cessário, versões de poemas que foram publicados em jornais e revistas. Julgamos que desse modo haverá condições de avaliar, com mais profundidade, a elaboração da sua poética modernista, pois trata-se de um instrumental que nos possibilita assistir à cria- ção em progresso, desvelando os seus objetivos ao fazer certas mudanças nos textos. Portanto, assim como a arqueologia examina testemunhos materiais para constituir o passado de uma comunidade ou nação, nosso objetivo é pesquisar, nessas correspondências (que seriam o nosso campo arqueológico), elementos que servem à recomposição de um processo diacrônico de formulação da poética inovadora do poeta. 6 BANDEIRA, Manuel. A cinza das horas; Carnaval; O ritmo dissoluto. Edição crítica preparada por Júlio Castañon Guimarães e Rachel T. Valença. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1994; BANDEIRA, Manuel. Libertinagem–Estrela da manhã. Edição crítica preparada por Giulia Lanciani. Madrid; París; México; Buenos Aires, São Paulo; Lima, Guatemala, San José; Santiago de Chile: ALLCA XX, 1998. Coleção Archivos, 33. 7 Cf. O exemplar anotado encontra-se na biblioteca da Fundação Casa de Rui Barbosa. No Anexo, repro- duzimos as observações manuscritas de Manuel Bandeira referentes aos livros Libertinagem e Estrela da Manhã, a que recorremos neste trabalho. Pensamos que, mediante esse riquíssimo corpus, chegaremos a esclarecimentos funda- mentais para a compreensão de sua obra e das variadas técnicas de que se valeu o poeta. Interessa destacar que as cartas são basicamente de duas naturezas, cujas propriedades, aliás, às vezes se misturam: caracterizam-se pela escrita e reflexão acerca da poesia ou pelo registro do cotidiano do próprio autor. Dessa maneira, as correspon- dências serão lidas como um diário biográfico e criativo, a partir do qual tentaremos comprovar e aprofundar hipóteses que foram suscitadas mediante a leitura da sua poesi- a, e também como textos (semi)literários, uma vez que elas se tornaram parte integrante do processo construtivo e da conscientização de certas técnicas. Contudo, não propomos um estudo das cartas de Manuel Bandeira, mas uma tentativa de abrir novas sendas de análise, em que talvez se revele necessário, por meio desse método, corrigir idéias já consagradas pela sua fortuna crítica. De alguma forma, esteve em foco, durante toda a pesquisa, a seleção do que, nas suas cartas, pudesse nos revelar novas perspectivas em torno da criação. Por outro lado, é justamente pela manipulação dessas correspondên- cias como testemunho material e também literário que estabeleceremos uma parte da originalidade de Arqueologia da composição. Em seguida, veio a necessidade de aprofundar a pesquisa, estendendo o seu campo de ação: seria enriquecedor perceber como as questões por ele levantadas nas cartas eram tratadas em seus artigos, crônicas e entrevistas, além do seu livro autobio- gráfico, o Itinerário de Pasárgada. Conseqüentemente, a tese buscará não só a investi- gação de técnicas e procedimentos criativos: também queremos observar o pensamento de Manuel Bandeira acerca da poesia. Diante da falibilidade da crítica e de sua insuficiência para tratar da natureza da criação poética, escolhemos, para estruturar nossa tese, a forma do ensaio, uma via sempre provisória e de caráter orgânico. Consideramos que o gênero ensaístico possa se tornar o caminho mais eficiente para atingir nossos objetivos analíticos. Trata-se de uma escolha metodológica, certamente, embora este conceito não nos seja o mais adequado, pelo que há nele de premeditação. É que a metodologia busca estabelecer caminhos de modo a fechar-se para outras possibilidades. Estas, no decorrer do processo de elabora- ção de uma obra, podem gerar novos meios de exploração do objeto de análise, assim como ampliar as conclusões do trabalho. Não queremos restringir outras vias que po- dem surgir ao longo da tese e para esse intento o ensaio promete ser bastante eficaz: ele permite um tipo móvel de análise e base crítico-teórica, mantendo-se aberto a novas questões que podem se manifestar a qualquer momento. Tal escolha está ligada a uma forma antidoutrinária, que vê na transitoriedade um valor e, dessa maneira, parece-nos um meio adequado para desenvolver uma pesquisa sobre o poeta da liberdade criativa. 2. MISTURA DE CÓDIGOS: “TURCO COM SÍRIO-LIBANÊS”8 Um dos traços fundamentais da escrita de Manuel Bandeira, desde Liberti- nagem, foi a busca da poesia nos elementos convencionalmente não-poéticos. Ele então se afastava do olhar costumeiro sobre as coisas, para extrair ― não sem obstáculos ― o lirismo encoberto pela rotina, por outras linguagens não-literárias e até mesmo pelas linguagens estritamente literárias. Desse modo, Bandeira distanciava-se da expressão excessivamente psicologizada, para que seus versos fossem construídos. Não se tratava portanto de um encontro fortuito com a poesia: havia, ao contrário, um esforço consci- ente em direção ao poético que estivesse sob as diversas formas tradicionalmente inade- quadas para estimular a realização criativa. Dessa arte compreendida como fazer surgiram relações entre as técnicas jor- nalísticas e a escrita poética, que analisaremos no presente capítulo. As primeiras mar- cas evidentes desse diálogo emergem, na obra bandeiriana, no “Poema tirado de uma notícia de jornal”, publicado a 31 de dezembro de 1925, em A Noite.9 Mais tarde, a idéia de uma poesia que pode ser desentranhada do jornal aparecerá, respectivamente, em duas crônicas ― “Fragmentos”, de Crônicas da província do Brasil, editado em 1936, e no “Poema desentranhado”, de Flauta de papel, reunião de crônicas publicada em 1957: 8 Título inspirado na crônica “Poesia pau-brasil”, de Andorinha, andorinha (Seleção e organização de Carlos Drummond de Andrade. Rio de Janeiro: José Olympio, 1966. p. 247). 9 BANDEIRA, op. cit., 1998, p. 28. Todos os dias a poesia reponta onde menos se espera: numa notícia policial dos jornais, numa tabuleta de fábrica, num nome de hotel da Rua Marechal Floriano, nos anúncios da Casa Matias... [...]. [...] num livro de fórmulas de toilette para mulheres.10 E ainda: O poeta é um abstrator de quinta-essências líricas. É um sujeito que sabe desentranhar a poesia que há escondida nas coisas, nas palavras, nos gritos, nos sonhos. A poesia que há em tudo, porque a poesia é o éter em que tudo mergulha, e que tudo penetra. O poeta muitas vezes se delicia em criar poesia, não tirando-a de si, dos seus sentimen- tos, dos seus sonhos, das suas experiências, mas “desgangarizando-a”, como disse Couto de Barros,11 dos minérios em que ela jaz sepultada: uma notícia de jornal, uma frase ouvida num bonde ou lida numa receita de doce ou numa fórmula de toilette.12 Estas crônicas nos levam, ao menos, a três conclusões: 1.a) São textos queserviram como exercício de análise de sua própria poéti- ca e, conseqüentemente, à formação de um projeto artístico coerente ou, ao menos, re- gularmente pensado. Bandeira escrevia poemas nos quais aplicava novas técnicas, de- pois refletia, por intermédio das crônicas, acerca desses percursos de criação, o que o levaria, adiante, a um importante volume de reminiscências, o Itinerário de Pasárgada. A consciência sobre o processo criativo adensava-se com o tempo, uma vez que o poeta reavaliava permanentemente a própria obra e criava, a partir disso, novas perspectivas sobre ela. 10 BANDEIRA, Manuel. Manuel Bandeira. Seleção e prefácio de Eduardo Coelho. São Paulo: Global, 2003. Coleção Melhores Crônicas. p. 104. 11 Trata-se aqui de uma referência ao texto “Divagação em torno de Manuel Bandeira”, de Couto de Bar- ros, publicado no livro Homenagem a Manuel Bandeira (Rio de Janeiro: Jornal do Commercio, 1936. p. 75-79). 12 BANDEIRA, op. cit., 2003, p. 150. Observemos também que o Itinerário de Pasárgada nasceu de um convite feito por Fernando Sabino e Paulo Mendes Campos. A proposta era que Manuel Ban- deira escrevesse as suas memórias para serem publicadas em série, feito crônicas, mas a revista a que se destinavam não teve êxito e as reminiscências surgiram a público, por fim, no Jornal de Letras, sob o comando de João Condé.13 Manteve-se, ainda assim, o caráter serial desses textos, um traço que não se revela no livro em função da sua unida- de interna, do perfeito encadeamento que há entre os registros das experiências biográ- ficas e literárias. A perfeita coesão entre os textos do Itinerário de Pasárgada parece surgir do trânsito que há muito ele estabelecera entre o poema e a crônica. Esse trânsito se evidencia no interesse de Bandeira pela linguagem coloquial e pelos fatos cotidianos, duas marcas definidoras do gênero crônica e também de sua obra poética. Em “Camelôs”, “Evocação do Recife”, “Mangue” e “Poema tirado de uma notícia de jornal”, todos de Libertinagem, reconhecemos o olhar do cronista, que escre- via ora numa linguagem direta e objetiva, ora num tom emocionado e lírico, às vezes a coexistirem. Há crônicas e poemas que surgiram assinalados pelo coloquialismo e pela simplicidade, com registros sobre a urbe e suas transformações, os fait divers, as belezas e singularidades do cotidiano ― características que pontuam elementos da realidade brasileira como quem se põe em conversação familiar e íntima. A crônica e o poema revelam, nesse sentido, um diálogo íntimo, em que um gênero parece ter cedido instru- mentos formais ao outro. É um diálogo que se evidencia, mais claramente, quando observamos as considerações de Bandeira sobre o provincianismo: este, segundo ele, pode ser “do bom, [...] que está nos hábitos do seu meio, que sente as realidades, as necessidades do seu meio. Esse sente as excelências da província. Não tem vergonha da província, ― 13 BANDEIRA, op. cit., 1954, p. 23. tem é orgulho”.14 Refere-se então ao período em que colaborou no jornal A Província, sob direção de Gilberto Freire, que tencionava dar “feitio e caráter bem provincianos” ao periódico de Recife. A seu ver foi nessa época, nas páginas d’A Província, que ele “pegou” o “jeito provinciano de conversar”,15 ou seja, uma forma de escrita mais pró- xima da oralidade, com aparência coloquial e simples. Além disso, a crônica é marcada pelo registro do circunstancial, do acontecimento do dia-a-dia, normalmente sem grande importância mas que, examinado pelo cronista, ganha outra dimensão. Algo semelhante se dá em poemas como “O cacto”, “Momento num café” (ambos de Libertinagem) e “Tragédia brasileira” (de Estrela da manhã). A partir de tais similitudes podemos esta- belecer, com maior fundamento, um contato implícito ― certamente desejado para os seus intentos modernistas ― entre a linguagem coloquial, enxuta, provinciana e simples das crônicas, que ele começou a escrever nos anos 1920, e a dos poemas de Libertina- gem, criados na mesma década. O provincianismo ganhou tamanha relevância na configuração de sua per- sonalidade poética que observamos, no “Auto-retrato”, de Mafuá do malungo, duas re- ferências a esse modo de posicionar-se diante das coisas: “Provinciano que nunca sou- be/ Escolher bem uma gravata” e “até mesmo escrevendo crônicas/ Ficou cronista de província”.16 2.a) Em seu processo criativo, a poesia desentranhada da matéria jornalísti- ca não é uma característica volúvel, visto que entre a primeira crônica (do livro de 1936) e a segunda (do livro de 1957) se passam mais de vinte anos, tempo suficiente para que Bandeira cristalizasse seu estilo e sua personalidade artística. Mediante os laços que se 14 Cf. BANDEIRA, op. cit., 1966. p. 4. 15 Ibid., p. 4. 16 BANDEIRA, Manuel. Auto-retrato. Poesia e prosa. Introdução geral de Sérgio Buarque de Holanda e Francisco de Assis Brasil. Rio de Janeiro: José Aguilar, 1958. v. I, p. 515. firmam entre os versos e a teorização sobre eles revela-se um processo de construção, disperso nas muitas etapas que buscaremos compor neste roteiro de leitura. 3.a) Na crônica “Fragmentos” ele conceitua, com simplicidade e coloquia- lismo, a poesia que “reponta” no dia-a-dia. Exemplifica-a através de notícias de jornal, tabuleta de fábrica, nome de hotel, anúncios de loja e fórmulas para toilette. Há um foco especial voltado para o cotidiano, a linguagem impessoal e a concisão discursiva. Como “instâncias” em que pode surgir a poesia, adiciona-se à lista, na segunda crônica, uma frase ouvida num bonde ― que se caracteriza por uma urbanidade baudelairiana (a frase colhida num bonde, na cidade), pela oralidade e, supomos, pela coloquialidade da língua do povo ― ou lida em uma receita de doce, que revela, como de costume, concisão, força imagética, feminilidade e prazeres sensoriais. Embora a poesia esteja onde “menos se espera”, notamos, pela crônica “Fragmentos”, que ela reponta “todos os dias”. Não está vinculada a um momento espe- cial, mas à completa banalidade. Na “Crônica de Petrópolis”, do livro Flauta de papel, Bandeira escreve que não tinha, “como tanta gente, [...] o horror do lugar-comum”. Sus- tenta, logo depois, a possibilidade de se fazer poesia “da melhor” com uma “seleção avisada de lugares-comuns”.17 Parece haver, nessa direção, uma tentativa de dessacrali- zar a criação literária, o que pode ser observado nos próprios elementos que contêm a poesia (“tudo penetra”) ou que nela estão contidos (“o éter em que tudo mergulha”). Além disso, Manuel Bandeira tinha absoluta consciência do “inesperado”, expressão que não se refere a seu modo de percepção desse instante, mas à maneira como a tradi- ção costumava entendê-lo. Para quem dominava a extração da poesia dos elementos convencionalmente não-poéticos, o que as referidas crônicas nos mostram com muita 17 Ibid., v. II, p. 278. propriedade, não havia nada de inesperado: a atenção do poeta parecia estar disponível para executar tal operação criativa. Estas “lições” teriam sido recebidas indiretamente, desde garoto (dos seis aos dez anos de idade, sobretudo), mediante as brincadeiras verbais de seu pai e de todo o ambiente e seus personagens (o casarão do avô; a preta das bananas com o xale de pano-da-costa; Rosa, sua ama-seca, entre outros), quando viviam na rua da União. Con- forme o Itinerário de Pasárgada, foi quando Bandeira descobriu as cantigas de roda, “as trovas populares, coplas de zarzuelas, couplets de operetas francesas”, “nonsenses líricos” e as invocações de vocábulos que o atraíam.18 Existia, dessa maneira, uma série de versos e “jogos” com palavras de toda variedade, a maior parte deles de origem po- pular, que o livraram de preconceitosartísticos e lingüísticos. Era o início de um reser- vatório criativo que se fazia arbitrariamente e por um modo bastante aderente ― o lu- dismo. Muitos anos mais tarde, Manuel Bandeira veio a considerar que seu pai ti- nha, já naquela época, um gosto muito semelhante às tendências da literatura vanguar- dista, especialmente no que concerne ao interesse pela coloquialidade, aos diálogos com as tradições populares e aos nonsenses líricos. Constatemos o perfil “modernista” de seu pai ― que veio a servir de base para uma renovação estética no lirismo bandeiriano ― em trechos do Itinerário de Pasárgada e de cartas destinadas a Mário de Andrade. Des- tacamos os principais para esta análise: Se eu tivesse algum gênio poético, certo poderia, partindo dessas brincadeiras que meu pai chamava “óperas”, ter lançado o “surréalisme” antes de Breton e seus companheiros. [I- tinerário de Pasárgada.] 18 BANDEIRA, op. cit., 1954. p. 10-11. O próprio meu pai era um grande improvisador de nonsenses líricos, o seu jeito de dar expansão ao gosto verbal nos momentos de bom-humor. [Itinerário de Pasárgada.] Se meu pai fosse vivo você não teria leitor mais gozado para a sua história. Ele era doi- do por esse lirismo essa graça essa sacanagem esse verbalismo popular. [Referindo-se a Macunaíma, em carta a Mário de Andrade, a 23 de agosto de 1928.] [...] o meu lirismo cotidiano (aquelas coisas que herdei de meu pai e que você conhece [...]. [Em carta ra Mário de Andrade, a 29 de julho de 1931.]19 Esta dicção “modernista” seria incorporada e transformada de diversas ma- neiras para renovar a lírica bandeiriana. As brincadeiras surgiam como referências cir- cunstanciais, força evocativa capaz de mobilizar o sujeito para criar alguns poemas e ainda como paradigma da estrutura de composição de versos e estrofes. “Trem de fer- ro”, de Estrela da manhã, é um exemplo perfeito desse último caso. Avaliemos um fragmento da carta de 3 de dezembro de 1925, também a Mário de Andrade, que traz maiores esclarecimentos sobre as motivações que levaram Manuel Bandeira a criar esse poema: [Camargo Guarnieri] me pediu uma letra para uma peça de canto e piano sob o título de Trem-de-ferro [sic]. [...] Me acudiu uma brincadeira que meu pai fazia. Quando o trem sai da estação, dizia ele, vai dizendo: Ca... fé cumpão ...ca...fé cumpão...ca...fé cumpão... E quando toma velocidade: Poucagente, poucagente, poucagente... Sobre essas duas células compus a “bossa”. Introduzi na parte central melódica uma quadrinha popular, e para esti- cá-la, a pedido do Camargo, inventei mais duas no mesmo estilo.20 A brincadeira, como podemos observar, ultrapassa o nível de citação e firma a estrutura de versos e estrofes baseada na repetição de expressões que simulam o mo- 19 Os dois primeiros trechos estão na páginas 11 do Itinerário de Pasárgada, edição supracitada, enquanto os últimos foram extraídos das páginas 399 e 512 da Correspondência Mário de Andrade & Manuel Ban- deira. 20 Ibid., p. 619. vimento do trem, marcado pelas expressões “quando o trem sai da estação”, “quando toma velocidade”, conforme relata na carta. A mimese desse movimento também se manifesta, no poema, mediante o andamento rítmico, pois quase todos os versos são curtos, de intensidade ágil, variando entre três e seis sílabas métricas, exceto um deles ― “Virge Maria que foi isto maquinista”, quando há um distanciamento da cena. Por fim, a brincadeira da infância ainda sugere o “tipo” de intertextualidade a ser feita: a que estabelecesse um diálogo com a literatura oral, já que os versinhos do pai pareciam sur- gir dessa tradição. Quanto a este último acréscimo, à brincadeira paterna foram somadas três cantigas, “Quando me prendero/ No canaviá/ Cada pé de cana/ Era um oficiá”, que, segundo anotação do próprio autor, foi ouvida de seu pai,21 dando continuidade à recu- peração das brincadeiras da infância, num processo em que a natureza dos versinhos revela-se apta a ser adequada à estrutura do poema e simular, através do ritmo e da mé- trica, o movimento mais dilatado do trem; “Menina bonita/ Do vestido verde/ Me dá tua boca/ Pra matá minha sede” e “Não gosto daqui/ Nasci no sertão/ Sou de Ouricuri”, cri- ados sob ímpetos de absoluto caráter modernista e popular, mantendo igualmente a uni- dade em relação ao que seu pai lhe “forneceu”, de maneira involuntária, para fazer o poema.22 As brincadeiras verbais da infância ganharam, desse modo, outros valores à medida que se formava, no início do século XX, o poeta Manuel Bandeira. Elas eram, a princípio, somente “jogos” com palavras; depois houve um processo de canalização do ludismo da tenra idade para a construção de um lirismo modernizante, que identificava conteúdo artístico tanto nos “amores como nos chinelos, tanto nas coisas lógicas como nas disparatadas”.23 Ao tornar-se escritor de linhagem moderna, ele parece ter ligado as brincadeiras ao princípio de que a escrita poética não está confinada ao domínio dos 21 BANDEIRA, op. cit., 1998, p. 76. 22 Ibid., p. 77-78. 23 BANDEIRA, op. cit., 1954, p. 11. versos, podendo invadir distintos níveis da linguagem. Esta amplidão vem a ser, aliás, um dos preceitos das vanguardas européias e também do modernismo brasileiro, que no poeta de Estrela da vida inteira vem recheado ora com seu cotidiano simples e os fatos concernentes à sua biografia, ora com os versos impessoais. Mediante uma breve análise de “Trem de ferro”, observamos que as brinca- deiras podem ser mais do que meras referências: é através delas e de sua simplicidade que, em alguns casos, a construção do poema se dá, pois elas estabelecem as orientações construtivas dos versos. Aparentemente simples, “Trem de ferro” agrupa, pela técnica de montagem, uma brincadeira, uma cantiga da literatura oral, duas outras cantigas cria- das pelo autor, tudo composto harmoniosamente em função do que serviu de base para o poema: uma brincadeira. A simplicidade está revelada à superfície do texto ― oriunda da brincadeira paterna; da repetição de palavras e versos (“foge”, “passa”, “vou” e “Ca- fé com pão”, “Muita força”, “Pouca gente”);24 da métrica que tem certa regularidade, impondo facilmente o ritmo à leitura; das cantigas de cinco e sete sílabas métricas, as redondilhas menor e maior, que são as mais populares e tradicionais na lírica de língua portuguesa e na literatura oral. A partir desses “ingredientes” muito simples, Manuel Bandeira veio a criar um poema, no entanto, elaboradíssimo. Esse tipo de matéria-prima tornou-se fundamental para que desenvolvesse uma obra modernista, contrária ao artifi- cialismo dos puristas mas não menos engenhosa e rigorosamente construída. Analisemos, daqui para a frente, os tempos da formação poética modernista de Manuel Bandeira, baseando-nos em artigos, cartas (algumas inéditas), crônicas, de- poimentos, ensaios, entrevistas e poemas do próprio autor. Examinaremos os tempos da infância, da leitura e da formulação de uma técnica, entre outros. Estes não serão obser- vados linearmente, mas sob as ordens impostas no exame do percurso biográfico do 24 BANDEIRA, op. cit., 1998, p. 77-78. autor e do percurso criativo de Libertinagem. Sejamos levados, como Paul Valéry, pela idéia de que a ação criadora desvela alguns elementos determinantes para a compreen- são de uma obra artística.25 Tentaremos mostrar, por meio desta análise, como Bandeira se insere na lírica brasileira entre os mais representativos, experimentais e renovadores poetas do início do século XX. 2.1. “O POETA QUE SABE NADAR EM TODAS AS ÁGUAS”26 Em “Evocação do Recife” o poeta concentrou algumas brincadeiras de sua infância enos revela uma Pasárgada vivida e preservada, como fonte de estímulos, na memória: “Quando comparo esses quatro anos de minha meninice a quaisquer outros quatro anos de minha vida de adulto, fico espantado do vazio destes últimos em cotejo com a densidade daquela quadra distante”, escreveu Manuel Bandeira.27 Essa espessura da infância relaciona-se com a forma como as brincadeiras, as cantigas de roda, os con- tos da carochinha, a invocação de palavras velhas, os livros João Felpudo, Simplício 25 VALÉRY, Paul. Primeira aula do curso de poética. Variedades. Organização e introdução de João Alexandre Barbosa. Tradução de Maiza Martins de Siqueira. Posfácio de Aguinaldo Gonçalves. São Pau- lo: Iluminuras, 1999. p. 181. 26 Trecho de uma carta de Manuel Bandeira a Alphonsus de Guimaraens Filho, de 19 de outubro de 1941. Cf. GUIMARAENS FILHO, Alphonsus. Itinerários: cartas a Alphonsus de Guimaraens Filho [de] Mário de Andrade e Manuel Bandeira. São Paulo: Duas Cidades, 1974. p. 81. 27 BANDEIRA, op. cit., 1954, p. 13. olha pro ar, Viagem à roda do mundo numa casquinha de noz, entre outros, estimula- vam o seu imaginário em direção a uma realidade mais bela, posteriormente organizada para servir à renovação de sua lírica. A infância se contrapõe, aos poucos, às privações de uma existência tempo- rariamente marcada pela debilidade física e pela impossibilidade de estender o presente além das rígidas normas que a doença estabelecia. A certeza e a precisão com que narra fatos da sua infância insinuam, no Itinerário de Pasárgada, um conteúdo memorialísti- co muito bem manipulado, porém a “naturalidade” do seu discurso é tamanha, num sen- tido geral, que o leitor mal consegue identificar o caráter construtivo das lembranças. Aqui devemos entender “naturalidade” como o efeito que parece velar a construção das memórias, imprimindo espontaneidade à narrativa. Caso avaliemos relatos biográficos que tem a infância como um dos temas, como eu:seis conferências, de cummings; Poe- sia e verdade, de Goethe; Um homem sem profissão: memórias e confissões, de Oswald de Andrade ou As confissões dum poeta, de Paul Verlaine, observaremos que neles o passado recebe outro tratamento, com muitas sinalizações de dúvidas e referências “mal-acabadas”, ao contrário dos textos bandeirianos, onde referências desse tipo são escassas.28 Comparando o Itinerário de Pasárgada e essas obras memorialísticas, foi possível observar mais facilmente que Manuel Bandeira tem, com a própria infância, uma finalidade bem definida: construir como um roteiro ― conforme o título, trata-se de um itinerário, não podemos esquecer ― a importância de certos fatos da meninice, 28 Cf. ANDRADE, Oswald. Obras completas IX. Um homem sem profissão: memórias e confissões. Sob as ordens de mamãe. Prefácio de Antonio Candido. 2.a edição. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1976; CUMMINGS, e.e. eu:seis conferências. Conferências Charles Eliot Norton 1952-1953. Tradução e prefácio Cecília Rego Pinheiro. Lisboa: Assírio & Alvim, 20003; GOETHE. Poesia e verdade. Tradução de Lúcio Cardoso. Estudo de Agripino Greco. Rio de Janeiro: José Olympio, 1948. 2 v.; VERLAINE, Paul. Confissões dum poeta. Tradução, introdução e notas de Cabral do Nascimento. Lisboa: Portugália, s/d. entre outros, para a formulação de sua poética. Desse modo, o relato da infância de Bandeira revela uma edição de acontecimentos biográficos que busca mostrar as impli- cações destes para o desenvolvimento de sua poesia. Contudo, tal questão já tinha sido analisada por ele, de modo esparso, em crônicas (“Minha mãe”, “Finados”, “Saudades de Quixeramobim”, “O quintal”, “Cheia! as cheias!”) e poemas (“Evocação de Recife”, “Profundamente”, “Vou-me embora pra Pasárgada”, “Infância”, “Versos de Natal”, “Velha chácara”), o que certamente facilitou, no seu Itinerário de Pasárgada, a compo- sição de um cenário a entrelaçar alguns fatos biográficos com a constituição de sua poé- tica. Biografar-se significa, para Manuel Bandeira, registrar os acontecimentos ligados à criação de sua obra, num gesto de quem busca fugir da auto-referência típica desse dis- curso. Devemos tomar em consideração que o autor engendrou diversos olhares sobre uma fase determinada, evidente tanto nos poemas quanto nas crônicas e no Itine- rário de Pasárgada. Os quatro anos passados em Recife ressurgem então suspensos, destacados no tempo da obra, como se ele buscasse transformá-los em matéria criativa. Tudo parece ser motivo para instigar a construção de poemas: uma brincadeira do pai, uma festa de São João, uma história contada pela ama-seca. É justamente nesse sentido que podemos conferir à criação um caráter existencial: há uma temporalidade restrita ― são apenas quatro anos ― que alimenta o discurso bandeiriano. O poeta já havia notado, desde muito cedo, que nas memórias da infância estavam os elementos necessários para lançá-lo a uma criação mais ousada e renovado- ra, em que a construção dos versos se dá a partir dos elementos mais simples e familia- res. Conforme Beatriz Sarlo, o “[...] retorno ao passado nem sempre é um momento libertador da lembrança, mas um advento, uma captura do presente”.29 A captura do 29 SARLO, Beatriz. Tempo passado: cultura da memória e guinada subjetiva. Tradução de Rosa Freire d’Aguiar. Belo Horizonte; São Paulo: UFMG; Companhia das Letras, 2007. p. 7. presente mediante um retorno ao passado se dá à medida que Bandeira encontra, na sua infância, substratos para servirem ao desenvolvimento de técnicas de composição mais ligadas às necessidades expressivas requeridas pela sua própria subjetividade e pelo contexto histórico seu contemporâneo. É com o auxílio do passado que ele chegará ao presente e até mesmo ao futuro de sua obra, uma vez que tal processo estabelece o devir da poética bandeiriana. Os anos passados na rua da União tornam-se um manancial de emoções e sensações ― fonte para a composição de poemas que contrastam com a vida regrada que passou a ter a partir dos tratamentos de saúde. Para evitar as crises de tuberculose em 1910 e no início dos anos 1920, fugia dos excessos e resguardava-se em casa; vigia- va o próprio corpo; dormia disciplinadamente; evitava comidas de pensão (“uma lásti- ma”, segundo ele);30 medicava-se quando necessário, recorrendo cuidadosamente a A- calypha indica, substância homeopática freqüentemente receitada nas hemorragias pul- monares caracterizadas por tosses com expectoração sangüínea, hemoptises etc.; revela- va-se um conhecedor das reações físicas decorrentes da tuberculose e, logo que se mani- festavam, consultava o seu médico.31 Frente às limitações, Bandeira tornou-se um leitor compulsivo do seu passado, examinando-o minuciosamente e destacando, nesse percur- so, os ensinamentos paternos, algumas experiências e sensações marcantes, que talvez já começassem a dialogar com os livros que lhe chegavam nessa época. Foi quando estu- dou os principais autores da poesia moderna, como Arthur Rimbaud, Blaise Cendrars, Guillaume Apollinaire, Paul Verlaine, entre muitos outros, formando, a partir disso, uma técnica moderna e rica de procedimentos criativos: “[do] ano de 1904, em que ado- eci, ao de 1917, quando publiquei o meu primeiro livro de versos – A cinza das horas[,] 30 Carta inédita de Manuel Bandeira a Ribeiro Couto, 20 de agosto de 1925. Cf. ARQUIVO RIBEIRO COUTO, Arquivo-Museu de Literatura Brasileira – AMLB, Fundação Casa de Rui Barbosa. 31 Estes dados biográficos podem ser encontrados em suas cartas destinadas a Ribeiro Couto, poeta que foi, sem qualquer dúvida, o seu amigo mais íntimo. Cf. ARQUIVO RIBEIRO COUTO, Arquivo-Museu de Literatura Brasileira – AMLB, Fundação Casa de Rui Barbosa. [...] tomeiconsciência de minhas limitações, nesses treze anos que formei a minha téc- nica”, escreveu no Itinerário de Pasárgada.32 A doença portanto não engendraria logo o poeta, mas primeiramente um leitor que calibrava com minúcia o artista em potencial que havia nele, à espera da aquisição de técnicas e processos de composição suficientes para encorajar aquele leitor em direção à sua própria literatura e à sua própria história, que avançavam gradativamente a caminho das experimentações dos tempos modernos. E as memórias da infância parecem ter sido um dos principais componentes para tal conquista. Por mais que esse percurso se mostre involuntário, notamos, na reunião de seus livros, a existência de uma obra desenvolvida com grande paciência e rigor. Por mais que a doença tenha, a princípio, estimulado a criação que servisse de mera distra- ção ou como válvula de escape, aos poucos Bandeira encontrou-se efetivamente no ofí- cio de poeta e começava a desenvolver um projeto literário intenso e profundo, mesmo que apenas sustentado sobre o cotidiano e as coisas triviais. Mesmo que esse projeto fosse negado pelo próprio autor, que afirmava deixar a sua obra conduzir-se por si mes- ma ― por meio de estímulos externos ―, observamos uma coerência de pensamento muito significativa para definir a sua poética. Manuel Bandeira chegou a declarar, no Itinerário de Pasárgada, que o mo- dernismo de Libertinagem, em grande medida, “não era senão o espírito” do grupo ale- gre de amigos com quem convivia naquele tempo, formado por Dante Milano,33 Dodô,34 32 BANDEIRA, op. cit., 1954, p. 23. 33 Dante Milano (1899-1991), poeta cuja obra esteve inicialmente ligada ao grupo modernista. Posterior- mente, desligou-se do movimento e construiu sua obra à margem das tendências da época: seu estilo tornou-se classicista e notabilizou-se pelos sonetos. Reuniu sua obra no livro Poesias, de 1948. Fez tradu- ções notáveis de poemas de Baudelaire, Dante e Mallarmé. 34 Geraldo Barroso do Amaral, mais conhecido como Dodô, frequentava assiduamente o bar Nacional, onde se encontrava com Dante Milano, Jaime Ovalle, Manuel Bandeira e Germana Almeida, entre outros. Foi um dos principais amigos de Manuel Bandeira durante os anos 1920. “Sinto uma ternura extraordiná- ria por ele [Dodô], sem saber até que ponto vai nisso a espontaneidade do meu sentimento e a retribuição afetiva, pois na vida encontrei 4 pessoas que gostaram de mim diferentemente dos outros e que sem dúvi- da sentiram em mim o mesmo móvel de me quererem bem […]”, escreveu Bandeira, a 24 de julho de Jaime Ovalle,35 Osvaldo Costa,36 entre outros. Apesar de todo o modernismo de sua obra, o poeta ainda declarou que graças a esses amigos escrevera versos como os de “Mangue”, “Na boca”, “Macumba do pai Zuzé” e “Noturno da rua da Lapa”.37 Precisa- mos observar, contudo, alguma perspicácia nessa declaração: ele busca, de modo propo- sital, manipular os leitores do Itinerário de Pasárgada, fazendo-os pensar que o seu processo criativo modernista agia unicamente por meio de forças externas, mas, se fosse dessa maneira, Bandeira não teria chegado, conceitualmente, à excelência de sua poéti- ca. Esta declaração mais parecia um modo de inviabilizar qualquer tentativa de fazer aderir a sua obra a grupos literários e, conseqüentemente, assim manter a liberdade que tanto defendia para a esfera da criação. Deixar-se levar pela adesão explícita aos grupos em formação equivaleria, para ele, a abandonar o seu percurso poético, que se fazia com sobeja consciência. Acreditamos que esta posição foi assumida facilmente devido ao fato de ele não ter “nascido” modernista. Seu lado renovador surgiu aos poucos, acrescentando-se em cada livro alguns novos elementos. Como esta posição bandeiriana ― autônoma, 1926 (Cf. ANDRADE, BANDEIRA, op. cit., p. 301). Ribeiro Couto, a 27 de setembro de 1927, traça um perfil do boêmio: “Do Dodô eu só tenho o sentimento de não podê-lo fazer menos obsceno e de não lhe poder tirar o vício. De resto, tudo que é substância humana, nele, atrai a minha. Nele há essa organização, essa estrutura natural de franqueza e bondade, que nem a cultura, nem as habilidades do engenho conse- guem criar. Quem é bom já nasce feito...” (Cf. ARQUIVO MANUEL BANDEIRA, Arquivo-Museu de Literatura Brasileira – AMLB, Fundação Casa de Rui Barbosa). A crônica “Golpe do chapéu”, de Crôni- cas da província do Brasil, revela um caso que se passou com Dodô (Cf. BANDEIRA, op. cit., 2006, p. 169). Não há, nas enciclopédias e dicionários de literatura, qualquer referência a Dodô ou Geraldo Barro- so do Amaral. Tudo levaria a crer que se tratasse de um malandro da Lapa, mas, conforme Humberto Werneck, ele era, nessa época, estudante de engenharia e se aposentou como engenheiro da Central do Brasil (WERNECK, Humberto. O anjo sujo: a vida de Jayme Ovalle. São Paulo: Cosac & Naify, 2008. p. 76). 35 Jaime Ovalle (1894-1955), músico popular. Autor de obras para piano e canto. Manuel Bandeira foi seu parceiro em algumas canções, como “Modinha” e “Azulão” (Cf. BANDEIRA, op. cit., 1958, v. I, p. 1154-1158). Relacionados ao músico, Bandeira publicou, em Belo belo, “Poema só para Jaime Ovalle” e “Esparsa triste”; em Estrela da tarde, “Elegia de Londres” (Cf. ibid., v. I, p. 332; 348; 442-443, respecti- vamente). Jaime Ovalle também escreveu versos em inglês; “Três poemas” foi traduzido por Manuel Bandeira (Cf. ibid., v. I, p. 583-584). Em Flauta de papel, foi publicada a crônica “Ovalle”, em que há um perfil desse músico (Cf. BANDEIRA, op. cit., 2003, p. 139-143). 36 Osvaldo Costa (1900-1975) foi jornalista, diretor de A Manhã, em 1926, e poeta. Participou da Revista de Antropofagia. Autor do livro de poemas Asas de borboleta. 37 BANDEIRA, op. cit., 1956, p. 87. independente ― vem de antes do início das manifestações combativas do grupo moder- nista, ela podia ser adotada sem parecer falsa, tanto que os próprios autores da Semana de Arte Moderna o apelidaram de São João Batista do modernismo brasileiro, por ter sido um precursor das propostas anunciadas no teatro Municipal de São Paulo, em 1922. Esse processo inicial de inovações, que compreende a publicação dos seus três primei- ros livros (A cinza das horas, de 1917; Carnaval, de 1919; e O ritmo dissoluto, de 1924), encontra-se muito bem sistematizado no livro Do penumbrismo ao modernismo, de Norma Goldstein. A autora observa o aumento gradativo, de A cinza das horas a O ritmo dissoluto, de recursos como o verso livre ou polimétrico, quebras rítmicas, deslo- camentos do acento tônico, rimas irregulares e/ou toantes, estrofação irregular, presença do cotidiano ― características que vão se consolidar, posteriormente, em Libertinagem, de 1930.38 Para assumir e desenvolver sua nova literatura, a dos anos 1920, Manuel Bandeira agarrou-se às experiências da infância e da doença, os dois núcleos fundamen- tais de sua biografia que vieram a desencadear o maior número de conseqüências na formação de uma técnica moderna, especialmente de Libertinagem em diante. Sejamos, porém, cautelosos: ambos, como “enredos” de sua poética, são menos recorrentes do que se costuma pensar, ainda que muito marcados. A importância das experiências da infância e da morte refere-se bem mais à constituição de uma técnica que parece ter se “disponibilizado” mediante a sua biografia, mas também apoiada em autores profunda- mente examinados por Bandeira, como Apollinaire, Blaise Cendrars, Mário de Andrade e Oswald de Andrade, além de todo o romantismo brasileiro. Quanto mais ele escrevia, mais encontrava elementos e fatos do seu passado a serem aproveitados pelas técnicas de composição, o que coincidia com as táticas de diferentes vanguardas na busca pela38 GOLDSTEIN, Norma. Do penumbrismo ao modernismo: o primeiro Bandeira e outros poetas significa- tivos. São Paulo: Ática, 1983. p. 95-185. simplicidade em oposição ao artificialismo das artes tão predominante na virada do sé- culo XIX para o XX. Mais importantes que a sua quantificação, as experiências biográ- ficas e a presença do circunstancial destacam-se por ter se formado, a partir delas, uma série de estratégias modernas de composição. Nesse sentido, “Evocação do Recife” é um texto exemplar para o nosso argumento: Recife Não a Veneza americana Não a Mauritsstad dos armadores das Índias Ocidentais Não o Recife dos Mascates Nem mesmo o Recife que aprendi a amar depois – Recife das revoluções libertárias Mas o Recife sem história nem literatura Recife sem mais nada Recife da minha infância A Rua da União onde eu brincava de chicote-queimado e partia as vidraças da casa de [dona Aninha Viegas [...] A gente brincava no meio da rua Os meninos gritavam: Coelho sai! Não sai! À distância as vozes macias das meninas politonavam: Roseira dá-me uma rosa Craveiro dá-me um botão (Dessas rosas muita rosa Terá morrido em botão...) De repente nos longes da noite um sino Uma pessoa grande dizia: Fogo em Santo Antônio! Outra contrariava: São José! [...] Rua da União... Como eram lindos os nomes das ruas da minha infância [...] Novenas Cavalhadas [...] Rua da União onde todas as tardes passava a preta das bananas Com o xale vistoso de pano da Costa E o vendedor de roletes de cana O de amendoim que se chamava mindubim e não era torrado era cozido Me lembro de todos os pregões: Ovos frescos e baratos Dez ovos por uma pataca Foi há muito tempo... A vida não me chegava pelos jornais nem pelos livros Vinha da boca do povo na língua errada do povo Língua certa do povo Porque ele é que fala gostoso o português do Brasil Ao passo que nós O que fazemos É macaquear A sintaxe lusíada A vida com uma porção de coisas que eu não entendia bem Terras que não sabia onde ficavam Recife... Rua da União... A casa de meu avô... Nunca pensei que ela acabasse! Tudo lá parecia impregnado de eternidade Recife... Meu avô morto. Recife morto. Recife bom, Recife brasileiro como a casa de meu avô Rio, 192539 O poema concentra muitas das inclinações criativas desenvolvidas ao longo do percurso de Manuel Bandeira. Podemos afirmar que “Evocação do Recife” é a carta- coringa da poética bandeiriana, pois seus versos explicam ― “adaptando-se” à combi- nação de elementos segundo os poemas em jogo ― muitos outros versos do próprio autor. A sua “evocação” permite-nos criar grupos de poemas que destacam certos prin- cípios criativos: abrasileiramento da sintaxe, aplicação de brincadeiras da infância como técnica de construção vérsica, prática do discurso intertextual, recurso biográfico para concepção do seu lirismo, coloquialidade, entre outros. Podemos considerar, diante dis- so, que “Evocação do Recife” é uma espécie de manifesto, por seu alcance e por reunir uma série de formulações sintéticas e explosivas, que tem uma dimensão crítico-teórica. Assim como os manifestos revelam-se como programas, “Evocação do Recife” estende- se organicamente pela criação, propondo novas experiências estéticas, o que vem a ser o caráter mais incisivo desse poema. É possível observar que os versos de “Evocação do Recife” vão muito além da temática da infância, tomando-a, antes, como arte poética, e demonstrando-a na prá- tica. A técnica está em evidência ou, como afirmou Ruy Belo a respeito do “Poema para Santa Rosa”, “[n]este caso é-nos dado assistir paulatinamente à composição da poesia. 39 BANDEIRA, op. cit., 1998, p. 24-26. Puro experimentalismo. Construção e destruição da poesia ao longo de um conjunto que flecte sobre si próprio numa atitude crítica”.40 Quanto à construção e à destruição mencionadas por Ruy Belo dentro do próprio poema, no caso de “Evocação do Recife” observamos que elas não se fazem concomitantemente, porém se realizam na macroestrutura, ou seja, no livro, tendo em vista o diálogo estabelecido com o “Poema tirado de uma notícia de jornal”. Manuel Bandeira nega primeiramente a linguagem jornalística, em “Evocação do Recife”, para em seguida fazer o poema a partir de uma notícia da morte de João Gostoso, sob recur- sos que, no entanto, transgridem as normas do noticiário e formam a escrita poética dos seus versos. Baseamo-nos, para essa afirmação, não só no título do poema, mas também na anotação que Bandeira fez num exemplar de Poesias completas, em que escreveu o seguinte: “Lido em jornal”.41 Por intermédio desse diálogo entre os poemas, compreendemos com maior nitidez como Manuel Bandeira construiu, na macroestrutura, o conceito de liberdade criativa, que designa toda a diversidade formal ― rítmica, métrica, vérsica ― que apli- ca em sua obra. Obviamente que a justaposição dos poemas na ordem do livro intensifi- ca o conceito nele elaborado, coloca-o em destaque e acentua um projeto literário. O livro, por fim, traz novos sentidos aos versos, desenvolvendo questões que os poemas não poderiam revelar (ou revelariam com menor intensidade) se analisados individual- mente. É inquestionável que os textos têm valores por si mesmos, entretanto, no contex- to do livro, muitos pontos ganham relevo, principalmente o conceito de liberdade criati- va. Em Libertinagem, alguns poemas, se comparados entre si, revelam uma série de 40 BELO, Ruy. Manuel Bandeira em verso e prosa. Na senda da poesia. Edição de Maria Jorge Vilar de Figueiredo. Lisboa: Assírio & Alvim, 2002. p. 229. 41 Este exemplar encontra-se na coleção Plínio Doyle da biblioteca da Fundação Casa de Rui Barbosa, entre os documentos doados por Francisco de Assis Barbosa. Todas as anotações que Manuel Bandeira fez nesse livro se encontram no Anexo desta tese. características opositivas, compondo, dessa forma, a diversidade sugerida pelo próprio título do volume. Esta defesa pela variedade pode ser observada entre os poemas de fundo biográfico (“O anjo da guarda”, “Porquinho-da-índia”, “Evocação do Recife”, “Profundamente”, entre outros) e os impessoais (“Poema tirado de uma notícia de jor- nal”, “O major” e “Cunhatã”); os textos em verso (como “Camelôs”, “O cacto”, “Man- gue” e “Irene no céu”) e os que foram construídos em prosa (“Lenda brasileira” e “No- turno da rua da Lapa”); os poemas de tom predominantemente eufórico (como “Não sei dançar”, “Poética” e “Mangue”) e os que contêm uma tonalidade disfórica (“Pneumotó- rax”, “O major”, “Poema de finados”, entre outros). Embora distintos, Bandeira parece estruturar Libertinagem e outros títulos com um domínio semelhante ao de João Cabral de Melo Neto, o exemplo máximo desse procedimento na literatura brasileira. A diferença é que João Cabral organizava o livro para impedir qualquer interferência do acaso durante o processo de realização poética; criava um projeto a que o livro deveria obedecer, tal como um arquiteto que desenhasse o edifício antes de construí-lo. Ele buscava portanto restringir a feitura dos poemas aos seus interesses manifestos conscientemente, e fazer ver que ele, o autor, está no domínio da criação. Na poética bandeiriana também há um projeto que antecede a construção, um projeto que no entanto não restringe, que não priva o autor dos variados recursos poéticos, mas amplia as possibilidades de realização dos poemas. É uma postura seme- lhante à de quem lavra o campo, limpa a casa, põe a mesa, “com cada coisa em seu lu- gar”, à espera da “Indesejadadas gentes”,42 que já indicia, no processo criativo, uma relação com o acidental que corresponde à relação que Bandeira terá, posteriormente, com a própria morte. O poeta deveria aceitá-lo e construir-se a si mesmo e a seus poe- mas aproveitando-se das interferências do que fugisse ao seu controle. Trata-se de uma 42 BANDEIRA, Consoada, op. cit., 1958, v. I, p. 404. afirmação que talvez soe, para o leitor, como uma falta de domínio sobre a criação, to- davia ela demonstra a absoluta consciência de Manuel Bandeira a respeito das variadas condições e possibilidades de que dispunha para construir os seus poemas. Nesse “cená- rio”, Libertinagem é o campo lavrado, a casa limpa, a mesa posta, que prepara o devir de toda a sua obra. Como os versos de “Evocação do Recife”, o livro parece se fazer paulati- namente, como puro exercício de experimentalismo, um fazer que também não é arbi- trário: ele revelará, quando concluído, uma estrutura que tem início, meio e fim, com- pondo algumas “narrativas” no transcorrer dos textos.43 Em Libertinagem é possível observar, inicialmente, a predominância da louvação à alegria, à esperança e à própria liberdade expressiva, com marcas de euforia, humor e ternura (“Não sei dançar”, “Mu- lheres”, “Pensão familiar” e “Camelôs”). Posteriomente, há maiores oscilações em di- versos sentidos ― do caráter emocional, formal e temático: reafirma-se então a defesa pela alegria (“Poética”, “Mangue” e “Oração a Teresinha do Menino Jesus”); o humor e/ou a ironia revelam-se em muitos poemas (“Comentário musical”, “Teresa”, “Madri- gal tão engraçadinho”, “Cunhatã”, “Namorados”); a melancolia e/ou a tragédia estão mais presentes (“Cacto”, “Chambre vide”, “Bonheur lyrique”, “Pneumotórax”, “Poema tirado de uma notícia de jornal”, “A Virgem Maria”, “Oração do saco de Mangaratiba”, “O major”, “Andorinha”, “Noturno da parada Amorim”), porém, no que se refere ao primeiro caso ― a melancolia ―, quase sempre ela se encontra mesclada a lampejos de prazer e ternura que surgem principalmente de cenas da infância (“Porquinho-da-índia”, “Evocação do Recife”, “Profundamente”, “Cabedelo”), além de retratar com entusias- mo, nessa segunda parte do livro, a vida urbana e suas particularidades (“Mangue” e “Belém do Pará”). No fechamento de Libertinagem, que parece ter início com “Vou-me 43 Cf. Anexo. embora pra Pasárgada”, o poeta aproxima-se ainda mais dos temas relacionados com a morte e motivos de fuga, sem abandonar a paixão, a ternura, o tom eufórico e ardente típicos de Libertinagem. Por meio da observação de toda a variedade formal, de sentimentos e “te- mas” desse livro, também constatamos que o conceito de liberdade criativa estava sendo efetivamente desenvolvido. Logo, esse conceito não é um mero resultado aleatório da reunião desses poemas, o que observamos pelo andamento construidíssimo e muito bem enredado de Libertinagem. Bandeira mostrava então absoluta consciência das transfor- mações engendradas no seu quarto livro e que foram perfeitamente compreendidas por Rodrigo Melo Franco de Andrade, de quem partiu a sugestão do título Libertinagem ― certamente o melhor dos três (os outros dois, criações do próprio poeta, eram Verso li- bertino e Outra coisa) ―, sobretudo por abarcar o conceito do verso livre e a pluralida- de de técnicas aplicadas nos poemas. Em carta a Mário de Andrade, de 15 de março de 1929, Manuel Bandeira escreveu que o título [...] Libertinagem serve para a forma e por ironia para o fundo. Nem é tão irônico assim: na “Oração a Terezinha do Menino Jesus” há uma confusão de oração e cantata, da santa e da mulher, que tem alguma coisa de sacrílego, de “libertino” no sentido original francês. Li- bertinagem é dúbio, é triste, é geral, é breve, é bonito...44 Na sua obra a consciência criativa estava presente tanto na organização do livro quanto acerca das técnicas trabalhadas em cada poema, o que pode ser relaciona- do, de certo modo, com a posição construtiva de Mallarmé. Em torno da lírica bandeiri- ana, observamos, entre outros, um rigor muito presente na seleção dos vocábulos; o modo atento a que se dedicava aos aspectos melódicos dos versos, bem como um inte- resse, sobretudo a partir de Libertinagem, em construir poemas impessoais, quase sem- 44 ANDRADE, BANDEIRA, op. cit., p. 415. pre concisos, sem a presença de uma subjetividade mais tipicamente romântica. Con- forme já vimos, Manuel Bandeira também acredita, conforme a lição de Mallarmé, que “a poesia está nas palavras, se faz com palavras e não com sentimentos [...]”.45 Além disso, ele sempre buscou ter consciência do processo de criação, o que se evidencia fa- cilmente através de algumas crônicas, do Itinerário de Pasárgada e poemas metalin- güísticos. Contudo, a sua consciência abrangia inclusive o que fugisse do seu controle, estabelecendo-se, nesse sentido, uma diferença significativa entre esses dois autores no que diz respeito à compreensão sobre o fazer poético. No caso de Bandeira, o inconsci- ente e a inspiração agiam depois de uma reflexão, desenvolvida a curto ou longo prazo. Esta se desdobrava, posteriormente, num impulso criativo, conforme podemos observar, entre outros exemplos, em outra carta destinada a Mário de Andrade, a 13 de julho de 1929: [...] Nós preparamos as nossas sinceridades futuras por meio de preocupações existentes se- jam conscientes ou não. É certo que meus versos são todos impulsivos. É falso que jamais eu tenha escrito um só verso (mesmo dos que me parecem falsos atualmente) pra provar ou botar em prática uma teoria minha. Mas estas teorias existiam de antemão. E na verdade foi pela preocupação interna delas que a maioria dos meus versos saiu, como diz Augusto Me- yer, exemplos quase didáticos de Poética.46 Esse trecho nos ajuda a compreender melhor o mecanismo criativo de Ma- nuel Bandeira. O seu impulso de fazer os versos é precedido de teorias referentes à cria- ção e fica evidente, pela sua carta, que ele se “liberava” da preocupação técnica no mo- mento exato da escrita. Logo, a construção se dá, a princípio, na fase pré-escrita, em que havia uma intensa reflexão acerca de questões referentes ao poético, e ainda na etapa posterior à versão original, quando a técnica voltava a ser acionada para se chegar a um 45 BANDEIRA, op. cit., 1954, p. 24. 46 ANDRADE; BANDEIRA, op. cit., p. 429. “acabamento” mais eficiente dos versos, como podemos observar em mais uma carta a Mário, de 10 de outubro de 1924: “A gente topa com eles [os milagres verbais] no mo- mento da inspiração. Depois vem o juízo, a inteligência e não sei mais e começam a soprar coisinhas.”47 Contudo, em se tratando de um poeta tão consciente dos domínios da cria- ção, seria ingênuo pensar que não hovesse qualquer atuação da inteligência no próprio momento da escrita. Em torno disso, a carta de 23 de janeiro de 1931, também enviada a Mário, esclarece-nos melhor o processo bandeiriano de composição: “[...] o subconsci- ente entra fornecendo coisas bonitas, às vezes só pela sonoridade, você nem sempre separa o que não é ele e a inteligência se intromete; se intromete não está bem: chega muito pra perto do poema (ela tem que ficar vigilante pra fiscalizar mas só pra fiscalizar e bem entendido quando não se trata de poema reflexivo, discursivo [...])”.48Dessa ma- neira, ele não opunha o lirismo à razão, mas fazia com que, no processo criativo, os dois estivessem em cena. Tais cartas revelam que existe um pensamento que antecede a es- crita do poema: é possível deduzir, a partir disso, que as técnicas eram projetadas de antemão. Portanto, no momento da escrita, o poeta não se preocupava com os elementos mais adequados a serem desenvolvidos e liberava, conseqüentemente,o inconsciente, que podia então acrescentar novos ingredientes à receita (“coisas bonitas, às vezes só pelas sonoridades”), desde que eles não fugissem da estrutura programada. Talvez nesse sentido que a inteligência ficasse vigilante “pra fiscalizar mas só pra fiscalizar”. Diante disso, percebemos que o lirismo de Manuel Bandeira não é conven- cional, não está relacionado apenas com o inconsciente e a intuição, pois há um caráter construtivo antes, durante e depois da escrita. Porém, a questão é mais ampla. Segundo a crônica “Poema desentranhado”, de Flauta de papel, o poeta às vezes se “delicia” em 47 Ibid., p. 132. 48 Ibid., p. 484. criar poesia “não tirando-a de si, dos seus sentimentos, dos seus sonhos, das suas expe- riências”, mas “dos minérios em que ela jaz sepultada”, conforme já vimos.49 O lirismo de Bandeira também está ligado, portanto, a uma poesia que não está diretamente ligada ao sujeito ou que usa elementos externos para expressar a sua subjetividade. Nesse sen- tido, a sua técnica de composição ― a incorporar cartaz de publicidade, conversas, notí- cias de jornal, entre outros ― aproxima-se de um lirismo menos pessoal. Trata-se de uma técnica bastante semelhante ao conceito do “correlativo objetivo” [“objective cor- relative”], de T.S. Eliot: O único modo de expressar emoção na forma de arte é descobrindo um “correlativo ob- jetivo”; por outras palavras, um conjunto de objectos, uma situação, uma cadeia de aconte- cimentos que será a fórmula dessa emoção específica; de tal maneira que quando os factos exteriores, que devem resultar em experiência sensorial, são facultados, a emoção é imedia- tamente evocada.50 Se tomarmos de empréstimo o conceito eliotiano para uma análise da poéti- ca de Manuel Bandeira, observaremos facilmente que há uma grande proximidade entre o “correlativo objetivo” e uma série de técnicas criativas freqüentemente usadas em Libertinagem e também nos seus demais livros. Pelas anotações manuscritas que Ban- deira fez no exemplar de Poesia reunida oferecido a Francisco de Assis Barbosa,51 iden- tificamos vários processos de criação relacionados com o conceito do “correlativo obje- tivo” eliotiana: citação de cantigas (“Evocação de Recife”), lendas (“Cunhatã”), música popular brasileira (“Na boca”) e versos da tradição da literatura (“Balada das três mu- 49 BANDEIRA, op. cit., 2003, p. 150. 50 ELIOT, T.S. Hamlet. Ensaios escolhidos. Seleção, tradução e notas de Maria Adelaide Ramos. Lisboa: Cotovia, 1992. p. 20. 51 Cf. ARQUIVO MANUEL BANDEIRA, Arquivo-Museu de Literatura Brasileira – AMLB, Fundação Casa de Rui Barbosa. lheres do sabonete Araxá”); diálogos inter-semióticos (com um cartaz publicitário, em “Balada das três mulheres do sabonete Araxá”) e intertextuais (com uma entrevista, como no poema “Nietzschiana”, e com notícias de periódicos, no “Poema tirado de uma notícia de jornal” e na “Tragédia brasileira”); frases ouvidas (de um amigo, em “Estrela da Manhã”; da mãe, em “Contrição”; do pai, em “Conto cruel”); paródias (“Os sapos” e “Teresa”), entre outros recursos.52 Ele também aproveita valores caros à “poesia pura”, como a crença na auto-suficiência da poesia, que se faz com palavras; o sentido de fun- cionalidade das experiências tipográficas; a elaboração cuidadosa em torno da melodia e do ritmo dos poemas, assim como o domínio sobre os processos criativos, que destacam a linha de força antilírica. No entanto, tais elementos da “poesia pura” também foram adequados por Manuel Bandeira às suas necessidades expressivas ao criar a sua poesia “suja” (“a nódoa no brim”),53 que ganha procedimentos sofisticados para construir mui- tos poemas a partir de elementos triviais e menores, de “restos” (as frases ouvidas, notí- cias de jornal) que lhe eram fornecidos no seio da vida urbana, então misturados a ele- mentos da cultura popular e de clássicos da literatura. Enfim, há uma variedade de téc- nicas que faz de Manuel Bandeira um conciliador de contrários, reunindo, numa mesma obra, orientações e processos criativos diversos. Dessa maneira, precisamos relativizar afirmações como a de Bella Jozef: “Poeta do verso despojado, da palavra essencial, da simplicidade e do cotidiano, nunca do banal, poeta das circunstâncias e de desabafos, intuitivo, Bandeira foi poeta lírico por excelência [...]”.54 Trata-se de uma caracterização romântica do lirismo, que também seria útil, por exemplo, para classificar a poesia de Casimiro de Abreu. Apesar da corre- ção dos aspectos levantados por B. Jozef, há certa limitação nesse modo de comprender 52 Cf. novamente o Anexo. 53 Referência ao poema “Nova poética”, de Belo belo. Cf. BANDEIRA, op. cit., 1958, v. II, p. 363. 54 JOZEF, Bela. Manuel Bandeira: lirismo e espaço mítico. Homenagem a Manuel Bandeira, 1986-1988. Organização de Maximiano de Carvalho e Silva. Niterói; Rio de Janeiro: Sociedade Sousa da Silveira; Monteiro Aranha: Presença Edições, 1989. p. o lirismo bandeiriano. A razão disso parece estar no fato de ela não ter considerado que também há outro pólo na poesia bandeiriana, mais inovador, cujos traços se interpene- tram com os mais tradicionais, constituindo, desse modo, uma lírica muito singular. 3. O POETA MODERNISTA EM LINGÜÍSTICA Voltando à arguta reflexão de Ruy Belo sobre o “Poema para Santa Rosa”,55 observamos que nos versos de “Evocação do Recife” também se dá a construção paula- tina da poesia. Logo na primeira estrofe evidenciamos o caráter metalingüístico do tex- to, onde está resumido o que será elaborado no poema: não a Veneza americana, a Mau- ritsstad dos armadores das Índias Ocidentais, o Recife dos mascates nem o Recife que Manuel Bandeira aprendeu a amar depois ― o Recife das revoluções libertárias ―, mas um Recife íntimo e particular, tal como a sua obra. A todo momento é um poema que busca evidenciar, com naturalidade, a técnica de composição mediante um processo de correspondência entre o Recife de sua infância e a linguagem poética. Esta naturalidade resulta dos efeitos do uso da coloquialidade, do verso livre, das referências à infância, a costumes, a versos da literatura oral, bem como à recorrência do cotidiano mais simples da cidade, tudo agrupando-se muito bem para explicitar, construtivamente, uma lírica relacionada com a fala brasileira e sua prosódia, o que era uma das causas de nosso mo- dernismo. “Ajustar” a expressão literária às singularidades da língua nacional era uma busca de Manuel Bandeira, como de todos os modernistas, só que fundamentada nos inovadores estudos de filólogos seus contemporâneos, como Antenor Nascentes, João Ribeiro e Sousa da Silveira, com os quais manteve diálogos ricos e produtivos. Tal “a- 55 BELO, op. cit., p. 229. juste” é percebido, em “Evocação do Recife”, sobretudo na estrofe que destaca o falar “gostoso” do povo, quando se afirma que a vida não lhe “chegava pelos jornais nem pelos livros”, ambos com seus textos governados, naquela época, pela norma culta; ela chegava da “boca do povo”, na língua “errada” e “certa” do povo. Este falar é avaliado, no começo da estrofe, sob a perspectiva oficial ― dos gramáticos mais ortodoxos ou, em outras palavras, dos puristas. Trata-se de uma postu- ra fixada pelo uso do adjetivo “errada”, expressão que qualifica a língua do povo. Con- tudo, a idéia de “erro” será imediatamente desconstruída por meio dos adjetivos “certa” e “gostoso”, que se opõem à língua-padrão das gramáticas normativas, que impõem, segundo o poema, a “sintaxe lusíada” então “macaqueada”, ou seja, copiada ridicula- mente. Há, nesse direcionamento conceitual, o retorno das propostas
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